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org Ano 3, n°7, 2011

Gênero e Trabalho Revisitados


O “trabalho doméstico” hoje sob as lentes de Helena Hirata e Roswitha Scholz1

Íris Nery do Carmo*

INTRODUÇÃO

Nos anos oitenta do século XX, nos países ocidentais, se começou a falar em
“feminização” do mercado de trabalho, dada a crescente participação feminina na produção
iniciada na década de setenta e intensificada nos anos seguintes. Tal ascensão profissional
das mulheres ocorreu como resultado da conjugação de diversos fatores, como a
reestruturação produtiva, a reemergência2 do movimento feminista e as transformações
culturais. A partir da academia e do ativismo feminista, mulheres passaram a realizar estudos
que buscavam conjugar a diferença de gênero às reflexões sobre trabalho e emprego, de modo
a subverter os paradigmas hegemônicos de disciplinas como a economia política e a
sociologia do trabalho3.
Ao fim do século XX, comparações internacionais mostram a permanência da divisão
sexual do trabalho no espaço e no tempo4. A conciliação entre vida profissional e vida familiar
é ainda quase que exclusivamente realizada pelas mulheres, variando apenas as configurações
dessa conciliação.5 Ou seja, a despeito da realização do trabalho remunerado, continuam a

*Socióloga e Mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade
Federal da Bahia.
1 Esse artigo expõe resumidamente o principal argumento desenvolvido em minha monografia de conclusão do

Bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBa),
sob orientação da Prof. Dra. Iracema Guimarães. Deixo aqui meus agradecimentos à Profa. Dra. Gabriela Hita,
pelas críticas e sugestões que foram feitas durante a pesquisa.
2 Utilizo o termo “reemergência” como forma de designar o que se convencionou chamar de “feminismo da

segundo onda”, de modo a não invisibilizar outras manifestações feministas anteriores.


3 Isto não quer dizer que, hoje, essas disciplinas tenham logrado de fato integrar uma dimensão sexuada nas

suas análises sobre o trabalho. Há dificuldades persistentes para a integração. Como sublinhado por Hirata e
Kergoat (2008, p. 41), “Apesar do peso crescente das pesquisas sobre as mulheres e o trabalho na sociologia do
trabalho francesa nestes últimos anos, as figuras neutras do pobre, do precário, do vulnerável, são construídas
em referência à figura masculina do assalariado com emprego a tempo integral e contrato com duração
indeterminada.”
4 HIRATA, Helena. Apresentação à edição brasileira. In: HIRATA, Helena; MARUANI, Margaret (Orgs.). As

Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: Editora Senac,
2003b.
5 Na Alemanha e Inglaterra, por exemplo, a disponibilidade das mulheres para a conciliação é obtida através do

trabalho feminino em tempo parcial (HIRATA, 2003b).

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recair principalmente sobre elas as responsabilidades com o cuidado das crianças, dos
adultos dependentes e com a gestão da esfera familiar.
Bila Sorj6 acrescenta que a despeito de muitos autores concordarem que a participação
masculina nas rotinas domésticas vem aumentando, o ritmo da mudança é extremamente
lento; na França, por exemplo, entre 1986 e 1999 os homens aumentaram em apenas dez
minutos o tempo consagrado às tarefas domésticas7. Para a autora, estamos bastante
distantes das “imagens difundidas na mídia de que estaríamos diante da emergência de uma
nova identidade masculina que valoriza o vínculo doméstico”.8
A participação masculina no domínio privado não é só limitada, como também
seletiva. Assim, a maior parte do tempo que os homens dedicam aos afazeres domésticos é
gasta nos cuidados com os filhos, em especial em atividades que envolvem interação e
mediação com o mundo público – como levar as crianças ao médico e fazer compras. Este
envolvimento diminui na medida em que as atividades implicam trabalho manual, rotineiro e
solitário.9
Segundo Salvador Deddeca10, de forma nenhuma o trabalho doméstico desaparece e se
torna obsoleto no desenvolvimento social atual. Ao contrário do propalado pelos defensores
da teoria do tempo livre, o período de tempo gasto para a reprodução social na realização de
afazeres domésticos tem sido acompanhado por certa estabilidade, mesmo com toda
parafernália eletroeletrônica que caracteriza os domicílios e que não reduz o tempo aí gasto
com os afazeres. Portanto, trata-se de um objeto de pesquisa que é ainda hoje recorrente.
No espaço acadêmico feminista, os debates em torno da categoria trabalho foram
constantes. Eles buscaram dar visibilidade a estas atividades realizadas gratuitamente por
mulheres no âmbito doméstico e romper com as abordagens sexualmente “neutras”.

6 SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol;
OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. p. 107-120.
7 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In:

BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 2002. Apud SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI,
Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e
privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 107-120.
8 Ibid., p. 108.
9 SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol;

OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. p. 107-120.
10 DEDDECA, Salvador. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice; et al. (Orgs.). Reconfiguração das

relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004. p. 21-52

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Termos como “trabalho doméstico”11, “atividade doméstica”, “atividade reprodutiva”,

“serviço doméstico”, “emprego doméstico”, “trabalho familiar”, “trabalho reprodutivo”12,


“trabalho de reprodução”13, “serviços do cuidado (care)” e “trabalhos de cuidados”14,
expressam as diferentes maneiras pelas quais as teorias feministas buscaram dar conta deste
problema e, como coloca Carrasco15, indicam a não resolução deste intenso debate, pois “El
hecho de que exista una variada terminología para expresar un único concepto, es un
indicador de que ninguno de los términos utilizados es totalmente satisfactorio.” Também
Matxalan Iza16 argumenta que:
[...] cuando se habla de trabajo no remunerado y de cuidado, nos encontramos ante
términos imprecisos o con confusas delimitaciones. Considero que es el reto del
feminismo, tanto desde la teoría como en la práxis, trabajar ahora en adelante en los
instrumentos adecuados que nos permitan una comprensión más plena de estas
actividades, para conseguir, de forma reflexiva, una maior precisión en su definición
que posibilite el enriquecimiento de los planteamientos teóricos y los instrumentos
para la acción política.

Embora esta seja uma discussão cujas origens se encontram nos anos 70, fenômenos
atuais contribuem para trazer novamente o debate sobre trabalho doméstico à tona e
intensificar a confusão terminológica. As novas configurações no cenário mundial, como a
globalização, a reestruturação da organização do trabalho e a crise do Estado de Bem Estar
Social (nos países desenvolvidos), levaram, na sociologia, à revisão de conceitos até então
consolidados na disciplina. As novas dinâmicas de gênero articuladas a essas transformações
reacendem alguns debates enraizados nos estudos feministas/sobre a mulher, e entre eles
figura o tema do trabalho doméstico.

11 COSTA, Maria Rosa Dalla. La sostenibilidad de La reprodución: de las luchas por La renta a La salvaguarda de
La vida. . In: CANTOS, Débora A.; IZA, Matxalen L.; OROZCO, Amaia P. (Orgs.). Laboratorio feminista:
transformaciones del trabajo desde una perspectiva feminista. Madri: Tierradenadie ediciones, 2006.
12 LISBOA, Teresa Kleba. Fluxos migratórios de mulheres para o trabalho reprodutivo: a globalização da

assistência. Estudos Feministas. Florianópolis, v.15, n. 3, p. 805-821, set./dez., 2007.


13 HUGUET, Montserrat Galcerán. Introdución: produción y reproduction en Marx. In: CANTOS, Débora A.;

IZA, Matxalen L.; OROZCO, Amaia P. (Orgs.). Laboratorio feminista: transformaciones del trabajo desde
una perspectiva feminista. Madri: Tierradenadie ediciones, 2006.
14 CARRASCO, Cristina. La paradoja del cuidado: necesario pero invisible. Revista de economia crítica, n. 5,

março 2006, p. 39-64. PALOMO, Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los
cuidados”. Cuadernos de Relaciones Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008.
15 Ibid.. p. 45.
16 IZA, Matxalen Legarreta. Sobre el trabajo y los trabajos (o las polissemias del trabajo): reflexiones desde una

perspectiva femenista. In: CANTOS, Débora; IZA, Matxalen; OROZCO, Amaia. (Orgs.). Transformaciones del
trabajo desde una perspectiva femenista: producción, reproducción, deseo, consumo. Madri: Tierradenadie
Ediciones, 2006. p. 228.

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Nesse contexto, o presente trabalho se propõe a explorar no plano teórico e a luz destes
fenômenos contemporâneos, as tensões existentes entre duas abordagens específicas: de um
lado, a teorização acerca da Divisão sexual do trabalho, que na tradição do feminismo francês
possui uma trajetória específica, mas que também faz parte de outras correntes feministas de
base marxista/materialista; por outro lado, a “Teoria do valor-dissociação” cujos aportes
teóricos se encontram na chamada “Nova Crítica do Valor” e que está sendo desenvolvida
principalmente pela socióloga alemã Roswitha Scholz.
Considerando-se que os confrontos entre distintas abordagens contribuem para o
avanço da pesquisa científica, buscarei investigar de que modo essas correntes de
pensamento fornecem subsídios para a compreensão sociológica destes fenômenos empíricos
que estão ocorrendo e acrescentando novos elementos ao panorama contemporâneo. Assim,
trata-se de uma leitura em contraponto das duas correntes, mas esse não é um objetivo que
visa descobrir puramente as diferenças e semelhanças entre elas, mas, antes, operar esse
contraponto tendo como fio condutor a categoria “trabalho doméstico”.
A escolha dessas duas abordagens se deu tendo-se como critério as posições que
ocupam no campo teórico sobre gênero e trabalho. Fazendo um breve e limitado apanhado
histórico deste panorama, percebemos que no início as autoras desse campo utilizavam-se do
referencial marxista como paradigma para pensar as relações de gênero, de modo que
analisava-se a opressão das mulheres vendo esta como uma peça funcional aos dispositivos
econômicos do capitalismo17. O abandono desta análise de tipo mercantil e economicista foi
seguido pelos “esquemas duais de pensamento”18 que viam a sociedade de forma dicotômica,
como produção versus reprodução.
Neste contexto, Helena Hirata e Daniele Kergoat, através da problemática da Divisão
sexual do trabalho e das Relações sociais de sexo (rapport social de sexe), empreenderam
pioneiramente a busca por romper com o dualismo e pensar as relações de classe como
sexuadas, assim como as relações de gênero como perpassadas por pontos de vista de classe.
No Brasil as suas pesquisas são bastante publicadas e arrisco a dizer que possuem hoje uma
posição preponderante nos estudos sobre o tema.

17 NYE, Andrea. A periferia da teoria marxista. In: ____. Teoria feminista e as filosofias do homem. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1995
18 CARRASCO, Cristina. Introdução: para uma economia feminista. Articulando Eletronicamente, [S.l.], n. 126,

2005. Disponível em: <http://www.articulacaodemulheres.org.br>. Acesso em: 21 jun. 2010.

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Com relação à Roswitha Scholz, a escolha da Teoria do Valor-Dissociação se deu a


partir da percepção de que os seus pressupostos teóricos – pós-marxistas19 – divergem, ao
menos no Brasil, daqueles majoritariamente utilizados no panorama intelectual sobre gênero
e trabalho, constituindo, assim, um contraponto interessante para fomentar o debate, além
de dar visibilidade à sua obra, pouquíssimo lida no país 20. Ao passo que o marxismo, durante
muito tempo, forneceu as categorias para se pensar a opressão da mulher em termos
materialistas, Roswitha Scholz, por sua vez, opera uma ruptura ao que denomina “marxismo
vulgar”, o que lhe confere um novo ponto de vista para se pensar velhos temas como a relação
patriarcado-capitalismo e o “trabalho doméstico”.
Para que este seja o tema norteador do confronto entre as abordagens escolhidas, será
necessário comparar o que cada autora entende por “trabalho” – e consequentemente por
“não-trabalho”. Uma estratégia recorrente nos estudos feministas consistiu em, partindo do
conceito moderno desenvolvido por Marx, que entende trabalho como trabalho assalariado
industrial (e masculino, como acrescentam as feministas), alargá-lo de modo que pudesse
abarcar não só a realização dos afazeres no lar, como também outras formas atípicas de
“trabalho”, como o “trabalho” voluntário, o “trabalho” para consumo próprio, etc.21
No entanto, como colocado por Prieto22, considera-se que “trabalho” é uma categoria
constantemente (re) inventada e (re) negociada, isto é, disputada pelos diferentes atores
sociais – bem como pelas diversas correntes de pensamento/prática feminista. Deste modo,
cabe a esta pesquisa investigar como as abordagens selecionadas se comportam frente a este
conceito de “trabalho‟ doméstico” e as suas implicações teórico-metodológicas. Isto acarreta
discussões mais amplas, tais como os diferentes entendimentos sobre a relação público-
privado e as suas atuais configurações.
Este trabalho se insere no campo da Sociologia Feminista, acarretando em mais
rupturas no que se refere ao mito do conhecimento desinteressado, ao inserir uma relação

19 Afirmação feita com base no artigo “O pós-marxismo e o fetiche do trabalho”, no qual o autor – Robert Kurz –,
também membro da escola da Nova Crítica do Valor, expõe o projeto de superação do marxismo (KURZ,
2003a).
20 Há apenas um artigo de sua autoria publicado no país. A maioria dos artigos consultados para este trabalho

foram publicados em Portugal.


21 PALOMO, Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los cuidados”. Cuadernos de

Relaciones Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008.


22 PRIETO, Carlos. De la „perfecta casada‟ a la „conciliación de la vida familiar y laboral‟ o la querelle des sexes.

In: ____. Trabajo, género y tiempo social. Madri: Hacer/Complutense, 2007, p. 21-48. Apud PALOMO,
Maria Teresa Martín. “Domesticar el trabajo: una reflexión a partir de los cuidados”. Cuadernos de Relaciones
Laborales, v. 26, n. 3, p. 13-44. 2008.

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entre produção de conhecimento e emancipação social. Como coloca Lucila Scavone 23, a
Sociologia Feminista é aquela que mantém sua atenção para as relações de dominação
masculina, não dispensando então o diálogo com o movimento e a realidade social, “[...] pois
pressupõe que teoria e ação política se retroalimentam.” Nesse contexto, Pierre Bourdieu 24
defende que a sociologia é “uma ciência que incomoda”, pois a sua função consiste em
compreender o mundo social a partir do poder – uma “operação que não é socialmente
neutra e que preenche sem dúvida alguma função social, entre outras razões porque não há
poder que não deva uma parte – e não a menor – da sua eficácia ao desconhecimento dos
mecanismos que o fundam.”

DUAS ABORDAGENS FEMINISTAS ACERCA DO TRABALHO: HELENA HIRATA


E ROSWITHA SCHOLZ

Sucedendo àquelas construções teóricas socialistas-feministas iniciadas nos anos


setenta do século passado, e se construíndo criticamente sobre o legado destas, temos como
exemplares as teorias que vem sendo desenvolvidas por Helena Hirata, de um lado, e, de
outro, por Roswitha Scholz, desde os anos oitenta e noventa (respectivamente), até hoje em
dia, e que serão apresentadas nas próximas linhas.
De antemão podemos dizer que as autoras possuem em comum a visão de que
exploração econômica e dominação masculina são indissociáveis. No entanto, para chegar a
essa conclusão, cada uma recorre a caminhos teóricos/metodológicos distintos – a serem
apresentados. Podemos adiantar também, a título de introdução, que a velha relação público-
privado presente no feminismo é rediscutida por elas, cada uma à sua maneira. Em comum
está o fato de essas autoras não trabalharem com sistemas duais de pensamento, em termos
de produção-reprodução (entendidos como sistemas separados que se inter-relacionam). Ao
meu ver, Helena Hirata escapa do dualismo sistêmico através da sua tese da

23SCAVONE, Lucila. “Estudos de gênero: uma sociologia feminista?” Estudos Feministas. Florianópolis, v. 16, n.
1, p. 174, jan./abril, 2008
24 BOURDIEU, Pierre. Uma ciência que incomoda. In: ______. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século,

2003. p. 32.

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“coextensividade”, e Roswitha Scholz através da construção teórica do princípio do valor-


dissociação.

HELENA HIRATA E DANIÈLE KERGOAT: A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Nas palavras de Lucila Scavone25, “A divisão sexual do trabalho e as relações sociais de


sexo são conceitos que estão na base da teoria materialista do feminismo francês de
inspiração marxista.” Para Helena Hirata e Danièle Kergoat, esses dois conceitos são
indissociáveis e juntos formam um sistema teórico coerente. É então imprescindível explicar
o que cada termo designa bem como o seu surgimento dentro do contexto do feminismo
francês. Durante a exposição serão indicados os acréscimos e mudanças promovidos por elas,
e principalmente por Hirata, em suas construções teóricas ao longo das suas trajetórias de
pesquisa.
Para tratar das relações entre homens e mulheres na sociedade ocidental, as
pesquisadoras feministas francesas construíram a noção de “relações sociais de sexo”
(rapport social de sexe), que é fruto de uma história do movimento na França que foi distinta
do que ocorreu em outros países, como os Estados Unidos, por exemplo. No contexto francês,
o marxismo foi uma teoria central de referência para o feminismo, e em relação ao qual
conceitos básicos foram criados – como “sexagem”, “classe de sexo”, “modo de produção
doméstica” e etc.26
Michèle Ferrand27 caracteriza as relações sociais de sexo em quatro pontos que, ao
meu ver, também estão presentes na teoria de Hirata e Kergoat, quais sejam: (1)
antagonismo, (2) transversalidade, (3) dinamismo e historicidade, e (4) hierarquização social.
Diferentemente do português, “o francês [...] oferece duas possibilidades para
descrever as relações sociais: rapport social e lien social [relação social e vínculo social]”28.

25 SCAVONE, Lucila. Prefácio à edição brasileira. In: HIRATA, Helena; et al. (Orgs.). Dicionário crítico do
feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 10.
26 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos Feministas, Florianópolis,

ano 2, n. 1, p. 93-100, jan./jun. 1994.


KERGOAT, Danièle. A propósito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. La
división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 31-40.
27 FERRAND, Michèle. Relações sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michèle Ferrand. Estudos

Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 677-688, set./dez. 2005. Entrevista realizada por Carmen Rial, Mara
Coelho de Souza Lago e Miriam Pillar Grossi.
28 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In:

BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 2002. p. 114.

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Relação social, por sua vez, no contexto da língua francesa, remete às relações de
antagonismo e poder que possuem base material – tal como no seu uso marxista em “relações
sociais de classe”. É a esta acepção que o conceito de relações sociais de sexo se reporta. 29
A primeira característica consiste então, no antagonismo presente entre os dois pólos
das relações sociais de sexo; por antagonismo entende-se interesses opostos envolvidos na
relação: o homem procura manter a sua dominação e a mulher tenta libertar-se. Annie-Marie
Devreux30 acrescenta que esta característica permite que se pense na existência de uma luta –
empreendida não só pelas mulheres, como normalmente se pensa, mas também pelos
homens:
Os resultados empíricos das pesquisas sobre a situação social das mulheres mostram
claramente que, do ponto de vista do devir da dominação de sexo, os interesses dos
homens e das mulheres opõem-se radicalmente. Eles lutam para preservar os
benefícios obtidos com a dominação sobre as mulheres e a exploração do trabalho
delas. Elas lutam para se desembaraçar dessa opressão e reduzir os efeitos dela sobre
suas condições de vida, sobre sua liberdade e sobre sua integridade física.

De acordo com a segunda característica, essas relações são transversais, ou seja, não
estão presentes apenas ou principalmente no âmbito familiar, mas, antes, elas estruturam e
organizam todos os âmbitos da vida social – não só a produção como também a reprodução,
não só o âmbito ideológico como também o material31. Assim, as relações sociais de sexo
dinamizam todos os campos sociais e são, portanto, atravessadas pelas outras relações sociais
(como as relações de classe)32. Nas palavras de Kergoat (2009, p. 71), essa relação social “[...]
é estruturante para o conjunto do campo social e transversal à totalidade desse campo, o que
não é o caso do conjunto das relações sociais.” É essa percepção que permite a articulação das
relações sociais de sexo com a divisão sexual do trabalho, tal como será visto mais à frente.

29 É importante notar aqui que, em trabalho posterior, Hirata e Kergoat (2003) admitem a existência de vínculo
social, o que complexifica as relações sociais de sexo: “Há, simultaneamente, para os grupos sociais presentes
– os gêneros, se se preferir – e para os indivíduos, vínculo e antagonismo. Nenhum princípio de coerência
teórica – antagonismo ou vínculo social – pode ser eleito como princípio de explicação universal. Ao contrário,
diversidade e contradição estão no centro de toda a prática social. Por conseguinte, vínculo social não invalida
relação social e vice-versa (p. 115).
30 DEVREUX, Anne-Marie. “A Teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação

masculina”. Sociedade e Estado, Brasília, v.20, n. 3, p. 577, set./dez. 2005.


31 A despeito desta dupla consideração, percebe-se um enfoque maior sobre a base material dessas relações,

idéia esta que será desenvolvida posteriormente, na análise da concepção de divisão sexual do trabalho
propriamente e da hipótese colocada pelas autoras.
32 KERGOAT, Danièle. A propósito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle.

La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 31-
40.

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As relações sociais de sexo são relações históricas e dinâmicas. Enquanto construção


sócio-histórica, essas relações são passíveis de transformação: “Homens e mulheres nascem
dentro de uma sociedade definida por relações sociais de sexo, mas todos participam da
produção e reprodução dessas relações”.33
Por fim, nas relações sociais de sexo as “categorias sociais de sexo” são hierarquizadas
através de posições distintas para homens e mulheres na sociedade.
Colocada a problemática trazida pela teoria das relações sociais de sexo, é importante
notar que, com o passar do tempo há o fim crescente da utilização do termo –, tal como
coloca Ferrand34:
Entretanto, o termo relações sociais de sexo era longo, pesado, difícil de utilizar nos
títulos, etc... e, com a influência das anglo-saxãs e a ajuda das instituições
internacionais, as feministas francesas puseram-se, pouco a pouco, a utilizar o termo
[gênero]; principalmente em equipes de pesquisa como o MAGE (Mercado do Trabalho
e Gênero) ou nos Cahiers du Genre, que sucederam os Cahiers du GEDISST35, porém,
sempre com uma certa reticência, em razão de seu aspecto redutor. Por isso, emprega-
se freqüentemente a terminologia bastarda de relações de gênero, no sentido de
manter uma idéia dinâmica.

Esta eliminação do termo relações sociais de sexo seguida pelo uso, de forma reticente, do
gênero36 é também percebida nos trabalhos mais recentes de Hirata e Kergoat. 37
Dito isto, passamos agora para a articulação do termo – relações sociais de sexo – com
a divisão sexual do trabalho. A propriedade da transversalidade está diretamente relacionada
a esta articulação: admitindo-se que as relações sociais de sexo organizam e estruturam todos
os âmbitos sociais, torna-se possível pensar na relação entre a esfera produtiva (a qual em

33 FERRAND, Michèle. “Relações sociais de sexo e relações de gênero: entrevista com Michèle Ferrand”. Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 680, set./dez. 2005. Entrevista realizada por Carmen Rial, Mara
Coelho de Souza Lago e Miriam Pillar Grossi.
34 Ibid., p.682.
35 Grupos de estudos sobre divisão social e sexual do trabalho – coletivo do qual Helena Hirata e Danièle

Kergoat fazem parte.


36 É importante notar aqui a grande utilização que há, a partir dos anos noventa, da conceituação da categoria

gênero pela historiadora Joan Scott (1994), que traz grandes divergências com relação ao enfoque materialista
da teoria da divisão sexual do trabalho. Para a autora, “[...] gênero significa o saber a respeito das diferenças
sexuais” (p.12); saber esse entendido como relativo, e histórico, de modo que seus usos e significados
constituem os meios pelos quais as relações de poder são construídas (Foucault). Essa conceituação leva a
uma mudança de ênfase, voltada para um estudo dos processos, isto é, de como as hierarquias de gênero são
construídas e legitimadas através da significação, e não mais para as origens desta hierarquia – como é em
parte a ênfase da teoria da divisão sexual do trabalho.
37 Como em: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”.

Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. HIRATA, Helena. “Tecnologia,
formação profissional e relações de gênero no trabalho”. Revista Educação e Tecnologia, Curitiba, vol. 6, p.
144-156, 2003. HIRATA, Helena. “Globalização e divisão sexual do trabalho”. Cadernos Pagu, Campinas, n.
17/18, p. 139-156, 2001. HIRATA, Helena. “A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho”.
Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 24-41, jan./jun. 2009.

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geral é vista apenas em termos de classe social) e a esfera reprodutiva (na qual se pensa em
geral que as relações de sexo estão aí encerradas).
Daniele Kergoat38 critica o uso meramente descritivo e sociográfico da divisão sexual
do trabalho, que apenas constata a existência de uma diferenciação das atividades segundo o
sexo. Para a autora, trata-se não só de descrever, mas também de articular esta descrição com
uma reflexão que permita pensar nos meios pelos quais a sociedade utiliza esta diferenciação
para hierarquizar as atividades. Tal reflexão só é possível, por sua vez, através da articulação
com a noção de relações sociais de sexo.
As autoras assim definem a divisão sexual do trabalho:
[...] é em primeiro lugar a imputação aos homens do trabalho produtivo – e a dispensa
do trabalho doméstico – e a atribuição do trabalho doméstico às mulheres, ao passo
que são cada vez mais numerosas na nossa sociedade salarial as mulheres a querer
entrar e se manter no mercado de trabalho.39

A divisão sexual do trabalho é constituída por relações antagônicas e hierárquicas:


assim, o valor – termo aqui utilizado no sentido antropológico, designando uma importância
socialmente atribuída – do trabalho masculino é maior do que o valor do trabalho feminino,
produção vale mais que reprodução, produção masculina vale mais do que produção
feminina, etc. Esta desigualdade de valor, por sua vez, induz a uma hierarquia social,
provinda de uma relação social de sexo que é hierarquizante. Daí que seria necessário se falar
de “opressão” e de “dominação”, ao invés de “desigualdade” ou “injustiça”. 40
De forma semelhante à tese de autores marxistas, como Heidi Hartmann41, Hirata e
Kergoat acreditam que a divisão sexual do trabalho é um fator prioritário para a
sobrevivência da hierárquica relação social de sexo:
É assim que somos levadas a propor a seguinte hipótese: em nossas sociedades
salariais, a divisão do trabalho entre os sexos é o que está em jogo nas relações sociais
de sexo. [...] Em outros termos: suprima-se a imputação do trabalho doméstico ao
grupo social das mulheres e são as relações sociais que desmoronam, junto com as
relações de força, a dominação, a violência real ou simbólica, o antagonismo que elas

38 KERGOAT, Danièle. A proposito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle.
La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 31-
40.
39 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena;

MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de


trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 113.
40 Ibid.
41 HARTMANN, Heidi. Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progresiva entre marxismo y

feminismo. Barcelona: Fundacio Campalans, 1988. Disponível em: <http://www.fundaciocampalans.com/>.


Acesso em 04 maio 2010.

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carregam. A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os homens


exercem sobre as mulheres.42

Embora as autoras admitam a existência de uma instância subjetiva (ou ideológica)


presente nas relações entre homens e mulheres, Kergoat 43 coloca que é na divisão sexual do
trabalho que as relações sociais de sexo se afirmam materialmente.
Portanto, para entender as relações de homens e mulheres em sua complexidade é
insuficiente levar em conta só a relação de dominação homem/mulher44. Esta constatação
leva a se pensar na “coextensividade” entre as relações de sexo e de classe, ou seja, há uma
sobreposição parcial de uma pela outra, sem que haja qualquer preeminência de um dos
lados45. De forma semelhante a Heleieth Saffioti46, para a qual dominação e exploração são
um só fenômeno, as autoras concluem que a exploração econômica e a opressão masculina
são indissociáveis: “não é só em casa que se é oprimida nem só na fábrica que se é explorado
(a)!”.47
Em pesquisa empírica realizada no Japão, Hirata48 buscou aplicar este princípio
teórico da coextensividade, pensando a relação entre a esfera produtiva das indústrias
japonesas (bem como seu modelo de gestão da mão de obra), e a esfera reprodutiva,
composta pela organização familiar (patriarcal) presente no país.
Foi visto que as chamadas “artes domésticas” japonesas, como o arranjo floral, são
passadas para as meninas através da socialização primária, na família, e formam as futuras
operárias, que vão trabalhar nos ramos microeletrônico e têxtil, nos quais são requeridas
qualidades como paciência, minúcia, destreza e habilidade manual – presentes na técnica do

42 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena;
MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de
trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 114.
43 KERGOAT, Danièle. A proposito de las relaciones sociales de sexo. In: HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle.

La división sexual del trabajo: permanencia y cambio. Argentina: Asociación Trabajo y sociedad, 1997. p. 31-
40.
44 Ibid.
45 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In:

BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 2002.
46 SAFFIOTI, Heleieth. Rearticulando gênero e classe social. In: BRUSCHINI, Cristina; COSTA, Albertina de

Oliveira (Orgs.). Uma questão de gênero. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. p. 183-215.
47 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos Feministas, Florianópolis,

ano 2, n. 1, p. 96, jan./jun. 1994.


48 HIRATA, Helena. Vida reprodutiva e produção: família e empresa no Japão. In: KARTCHEVSKY-BULPORT,

Andrée; et al. O Sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.63-78. (Mulheres em Movimento, v.
01).

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arranjo floral. Portanto, o trabalho doméstico possui importância primordial para a


qualificação das operárias.
Com relação aos empregos masculinos, constatou-se que “somente os modos de
organização da família e as relações vigentes no casal viabilizam certas políticas de gestão de
mão de obra”49 que caracterizam o modelo japonês. Assim, as políticas de organização do
trabalho baseadas na participação operária na gestão da empresa, como os círculos de
controle de qualidade e o “defeito zero”, requerem grande envolvimento do operário, como o
trabalho fora das horas delimitadas pela jornada de trabalho (frequentemente realizado em
casa) e os deslocamentos sistemáticos dos trabalhadores. Esse envolvimento máximo do
trabalhador é, por sua vez, possibilitado pelo tipo de vida familiar, no qual as mulheres são
encarregadas da totalidade das tarefas domésticas e da educação dos filhos.
Portanto, para os homens, todas as dificuldades ligadas à reprodução são eliminadas,
de modo que estes trabalhadores possuem estabilidade na carreira, sendo promovidos por
tempo de serviço e tendo direito ao emprego vitalício. Com relação às mulheres, ocorre o
oposto, pois há uma descontinuidade que acompanha o ciclo da vida reprodutiva: quando
jovens, trabalham em tempo integral; a vinda dos/as filhos/as leva a uma pausa no trabalho
assalariado, retornando após a sua criação, dessa vez para empregos em tempo parcial.
Assim, os três pilares reconhecidos do modelo japonês – emprego vitalício, promoção por
tempo de serviço e baixa taxa de desemprego – são válidos apenas para os homens
assalariados.
Conclui-se, a partir dessa abordagem relacional, que as estruturas familiares
contribuem diretamente para o desenvolvimento do sistema produtivo e para o crescimento
da produtividade do trabalho nas empresas – sendo este um aspecto normalmente ignorado
nas análises sobre o modelo de gestão japonês, que enfocam apenas o espaço fabril. Constata-
se muito mais uma “[...] continuidade e supressão das linhas de demarcação entre esfera
produtiva e esfera reprodutiva [...]”50, do que uma marcação clara de onde começa e onde
termina o público e o privado. Esta trajetória teórica traz conseqüências para as ciências
sociais: a ampliação do conceito da categoria trabalho, de forma que abarque o trabalho não
remunerado, o trabalho informal e, principalmente, o trabalho feminino – dando visibilidade
ao “trabalho doméstico” e, por conseguinte, à exploração da mulher pela realização gratuita

49 Ibid., p. 69.
50 Ibid., p. 78.

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deste trabalho51; também o questionamento da separação de disciplinas, como sociologia do


trabalho e sociologia da família é uma consequência dessa abordagem.52
Do que foi visto até aqui, fica claro que as autoras elaboraram um quadro teórico que
diverge dos sistemas duais de pensamento (produção-reprodução) comuns às elaborações
sobre gênero e classe. A divisão sexual do trabalho opera a ponte entre os dois âmbitos
sociais, através da ampliação do conceito de trabalho, que permite relacionar trabalho
profissional e “trabalho doméstico”. Essa ampliação tem papel fundamental para a idéia da
coextensividade, pois é através dela que o público e o privado são pensados como um só
contínuo.

ROSWITHA SCHOLZ: A TEORIA DO VALOR-DISSOCIAÇÃO

Roswitha Scholz53 faz parte da chamada “Nova crítica do valor”, uma corrente de
pensamento crítico que, de um modo geral, discute e elabora uma crítica reformulada ao
capitalismo, que tem como centro a parte do pensamento de Karl Marx que questiona a
mercadoria, o valor, o fetiche e o trabalho. Essa seria uma parte da teoria marxiana ignorada
pelo marxismo tradicional. A outra base para o pensamento dos/as autores/as dessa corrente
teórica está na Escola de Frankfurt54, a qual é identificada como precursora da crítica do
valor.
Em um debate crítico com essas posições teóricas, Roswitha Scholz tem, por sua vez,
elaborado uma nova concepção da crítica feminista, denominada Teoria do valor-

51 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In:
BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 2002. HIRATA, Helena. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de
Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007.
52 HIRATA, Helena. Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual? In:

BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, 2002.
53 A autora foi membro, até 2004, do corpo editorial da revista alemã “Krisis – contribuições à crítica da

sociedade da mercadoria” (Krisis - Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft). A partir de então e em
decorrência de cisões internas (ver SCHOLZ, 2004a), a autora hoje faz parte do corpo editorial da revista
“EXIT! - Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria”.
54 Como é admitido por Robert Kurz (1992), também membro da Revista Exit!, em entrevista: “Vejo a Escola de

Frankfurt como uma base para todo o meu pensamento. Mas há dois procedimentos dentro da esquerda na
Alemanha, ou na Europa, que seria melhor que deles nos afastássemos. Um deles é o das pessoas que
aprenderam a idéia, mas estão coladas à idéia e ficam administrando o legado da Escola de Frankfurt. Outro
procedimento é aquele das pessoas que acabam descartando as idéias da Escola de Frankfurt como se fossem
uma camisa suja que precisa ser jogada no lixo. Toda idéia morre se ela não for levada adiante. É preciso
conhecer as idéias de Adorno e Horkheimer, mas é preciso também retrabalhá-las, para que não morram.”

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dissociação55, através da qual a autora se propõe a demonstrar que é possível tematizar a


“questão social” e as diferenças sociais – como de gênero – sem que se tenha que abrir mão
de um dos dois.56
Para o projeto teórico dos Grupos de pesquisa “EXIT!” e “Krisis”, dos quais
Roswitha Scholz fez/faz parte, o marxismo não deve, hoje, ser descartado como um “erro”,
nem tampouco levado adiante na sua integralidade. Apenas junto com o fim do seu objeto – o
capital – a teoria de Karl Marx poderá morrer. Antes, é preciso superar o marxismo, retendo-
lhe alguns aspectos, acrescentando-lhe novos, de modo a construir uma “crítica do
capitalismo para o século XXI”, “com Marx para além de Marx”.57
Aqui a teoria marxiana não é vista como um conjunto fechado e uniforme, como ocorre
normalmente, mas, antes, identificam-se dois teóricos numa mesma cabeça, duas vias
contraditórias e que não correspondem à divisão entre um “jovem Marx” e um “Marx
maduro”, visto que a contradição se estende por toda sua obra (KURZ, 2005). Tal constatação
leva Robert Kurz58, também membro dos Grupos “EXIT!”/“Krisis”, a falar em um “duplo
Marx”. De um lado está o “Marx exotérico”59 – mundialmente conhecido e acolhido de “modo
fetichista” pelo movimento operário e pelo marxismo tradicional (desde o movimento
bolchevique, passando pela revolução chinesa e os movimentos de libertação nacional
anticolonialistas, até a “Nova Esquerda” e o movimento estudantil de 196860).
Neste Marx vulgarizado, as categorias centrais da socialização moderna capitalista
seriam pensadas ontológica e positivamente; as críticas são voltadas principalmente para a
apropriação da mais-valia (aqui entendida como “trabalho não pago”) ao capital – não
enxergando que a mais-valia faz parte de um mecanismo sistêmico mais amplo, no qual está
imbricada. Assim, para este marxismo tradicional, alimentado pelo “Marx exotérico”, as

55 A teoria de Scholz é denominada também com “Teoria do valor-dissociação”, “teoria da dissociação-valor” e


“teoria do valor-separação”, a depender da tradução para o português. No entanto, nas traduções, é mais
recorrente o nome “teoria do valor-dissociação”.
56 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: <

http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010.


57 Referência ao título de um dos artigos escritos por Robert Kurz (2007) “Crítica do capitalismo para o século

XXI – com Marx para além de Marx: o projecto teórico do Grupo „EXIT!”.
58 KURZ, Robert. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho: sobre a contradição histórica na teoria de Marx.

Lisboa: Obeco, 2003a. Disponível em: <http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm>. Acesso


em: 07 maio 2009. KURZ, Robert. Crítica do capitalismo para o século XXI – com Marx para além de Marx:
o projeto teórico do grupo “EXIT!”. Lisboa: Obeco, 2007. Disponível em: Acesso em: 08 nov. 2009.
59 Exotérico: “Diz-se de ensinamento transmitido ao público sem restrição.” (FERREIRA, 2000, p. 305).
60 Á respeito desse momento do marxismo, Robert Kurz abre uma exceção: “A única fonte realmente original

dentro da „Nova Esquerda‟ (ao lado de Ernst Bloch, cuja recepção foi contudo periférica) era a Teoria Crítica da
Escola de Frankfurt, que já fora formulada muito antes e que em geral ficou à margem das coisas marxistas”
(KURZ, 2003a, p. 2).

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alternativas sociais situam-se na busca pelo controle estatal: por exemplo, busca-se
“substituir a „propriedade privada dos meios de produção‟ (jurídica) pela propriedade
estatal”.61
Por sua vez, o trabalho é ontologizado e tido como positivo, figurando como uma
obrigação nas medidas propostas para a revolução comunista, no texto do Manifesto
Comunista: “8. Unificação do trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos
industriais, particularmente para a agricultura.”62
Este Marx é também o Marx da “luta de classes”, para o qual a história é movida por
interesses sociais antagônicos. Assim, busca-se a elevação da classe proletária à classe
dominante, que por sua vez se apropriará do capital – antes nas mãos da burguesia:
O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o
capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do
Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o
mais rapidamente possível o total das forças produtivas.63

Segundo a perspectiva da Nova Crítica do Valor, “o conceito de capital aqui [...] já não
indica uma relação social, mas um aglomerado de riqueza material, que uma classe pode tirar
à outra [...]”.64 Demonstrando a sua herança iluminista, a teoria da dominação presente neste
jargão marxista reduziria o problema de modo utilitarista: a “classe dominante” se apropria
da mais-valia para uso e proveito individual dessas pessoas, num egoísmo utilitário. O
processo tautológico de valorização do capital se reduziria à vontade subjetiva do sujeito –
“vontade de exploração” –, e a um mero cálculo de interesses.
Por sua vez, a segunda perspectiva contém o núcleo de radicalidade 65 da teoria de
Marx. Na leitura de Kurz e da “EXIT!”, este “Marx esotérico” 66 foi sepultado precocemente
pelo próprio marxismo. “Trata-se daquela dimensão da teoria de Marx que permaneceu
completamente obscurecida na esquerda até hoje existente”.67

61 KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm
>Acesso em: 15 nov. 2009.
62 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich Engels. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. p. 58.
63 Ibid.
64 KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm

>Acesso em: 15 nov. 2009


65 O termo é aqui entendido em sentido estrito, isto é, denotando um movimento que desce às raízes dos

fenômenos sociais.
66 Esotérico: “1. Relativo ao esoterismo (1 e 2). 2. Diz-se de ensinamento ligado ao ocultismo. 3. Diz-se de

ensinamento reservado a poucos.” (FERREIRA, 2000, p.286).


67 KURZ, Robert. Crítica do capitalismo para o século XXI – com Marx para além de Marx: o projeto teórico

do grupo “EXIT!”. Lisboa: Obeco, 2007. Disponível em: Acesso em: 08 nov. 2009.

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Em contraposição ao “Marx marxista”, aqui a mais-valia aparece como a forma


assumida pelo valor68. Categorias como a racionalidade econômica empresarial, o trabalho
abstrato, e suas formas de expressão: valor, mercadoria, dinheiro e mercado, são submetidas
a uma crítica radical, como objetos negativos e históricos (ao invés de positivos e ontológicos)
– e portanto superáveis.
A modernidade é marcada por uma transformação histórica do valor, que passa de
mediador de trocas simples a fim em si mesmo. Há uma inversão entre fim e meio: a
produção de bens de uso que antes era o próprio sentido da produção, passa a ser mero
suporte da valorização do valor. O dispêndio de energia que tinha como objetivo a produção
de coisas úteis, agora serve a este movimento tautológico. O resultado desta reificação é
vermos as mercadorias como tendo vida própria, subtraindo o fato de que se trata de um
produto de uma relação social fetichista.69
A consequência lógica dessa crítica marxiana do fetichismo está na própria superação
do trabalho, assim como da forma mercadoria e da relação monetária, que, em teoria e
prática, foram deixados intactos pelo marxismo operário. Tal consequência é sugerida n‟A
Ideologia Alemã, onde pode-se ler: “[...] este fenômeno [a subordinação dos indivíduos à
divisão do trabalho] só pode ser suprimido se for suprimida a propriedade privada e o
próprio trabalho.”70
Nessa interpretação da parte radical dos escritos de Marx, a luta de classes é
compreendida de maneira distinta: ela não contribui para a queda do capitalismo, mas, antes,
constitui o próprio motor interno ao desenvolvimento do sistema. Assim, o movimento

68 Robert Kurz (1991), em seu glossário, assim define o verbete “Valor”: “Tanto etimologicamente quanto na
prática, o conceito de valor parece designar o "bom" como tal, o desejável. Apesar da acentuação diferente,
confundem-se como sinónimos o valor económico e os "valores" éticos e culturais. Não é à toa que o fundador
da economia política clássica, Adam Smith, actuava paralelamente como filósofo da moral. Mas na
conceituação totalmente inversa de Marx, o valor económico é, precisamente o contrário, o negativo central da
sociedade da mercadoria. Nela é "objetificado" o trabalho abstracto, a forma social fetichista dos produtos. A
expressão de um produto "ter" um chamado valor, tem para ele um significado duplo. Primeiro, enquanto são
valores económicos, extingue-se a qualidade sensível dos produtos, não passando eles de representantes
materiais de trabalho abstracto indiscriminado, que apenas como tais podem ser transformados na forma de
encarnação do dinheiro. Em segundo lugar, porém, revela-se na forma-valor abstracta dos produtos, que se
expressa pelo preço em dinheiro, o absurdo social de que o processo vivo da apropriação da natureza pelo
homem e das relações sociais por ela medidas assumem a forma de propriedades de objectos mortos. A
actividade viva dos homens é absorvida, por assim dizer, por seus próprios produtos, que por esse mecanismo
absurdo são promovidas a quase-sujeitos da sociedade, enquanto os homens, seus criadores, são degradados a
meros acessórios. No automovimento do dinheiro termina essa inversão.”
69 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009.


70 MARX, Karl. A ideologia alemã. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 62.

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operário, ao impor o aumento dos salários, a redução da jornada de trabalho, a liberdade de


associação, o sufrágio universal, a intervenção estatal, entre outros, impôs na verdade,
condições do desenvolvimento e expansão do capitalismo industrial.71 O reconhecimento dos
proletários fabris enquanto sujeitos civis foi condição para a “livre” concorrência 72. Aqui é
evidente a semelhança com estudo realizado por Max Horkheimer com o objetivo de
“elucidar o enigma não resolvido do marxismo tradicional: o de um proletariado que jamais
se tornou o arauto tão esperado da história”73 e cujos “resultados obtidos insinuam que a
classe operária alemã se oporia muito menos firmemente a uma tomada de poder pela direita
do que seria capaz de acreditar a ideologia militante.”74
Para o projeto teórico da Nova crítica do valor, trata-se de finalmente “sepultar” o
“Marx „marxista” e, inversamente, trazer à luz, pela primeira vez, esse “outro Marx”. 75 Esse
projeto visa, portanto, superar o “marxismo vulgar” (KURZ, 2000), tendo em vista não só a
crítica marxiana do valor, como também o panorama social, econômico e político do século
XXI na modernidade tardia e as suas consequência para a formulação atual de uma teoria
crítica.
Roswitha Scholz, por sua vez, assume criticamente essas posições como ponto de
partida para a sua tese. Depreende-se daí uma diferença fundamental com relação às demais
autoras anteriormente vistas: a referência teórica da Crítica do valor, cujo centro está no
“outro Marx” e não nos seus intérpretes marxistas ou no “Marx vulgar”.
Para a autora, a Crítica fundamental do valor, exposta acima, é, por sua vez, passível de
crítica na medida em que “[...] comporta-se de modo masculinamente universal, como é
típico do pensamente masculino do Ocidente, e sugere ser igualmente válido para todos e
para todas.”76 Ela propõe então uma alteração qualitativa, de modo que esta teoria seja
também uma crítica ao patriarcado.

71 KURZ, Robert. O duplo Marx. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz8.htm
>Acesso em: 15 nov. 2009
72 KURZ, Robert. Para lá da luta de classes. Lisboa: Obeco, 2003b. Disponível em: Acesso em: 23 nov. 2009.
73 LALLEMENT, Michel. Depois de Marx: teorias críticas e sociologias radicais. In: ____. História das idéias

sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. cap. 6, p. 201.
74 Ibid., p. 202.
75 KURZ, Robert. O pós-marxismo e o fetiche do trabalho: sobre a contradição histórica na teoria de Marx.

Lisboa: Obeco, 2003a. Disponível em: <http://www.geocities.com/grupokrisis2003/rkurz136.htm>. Acesso


em: 07 maio 2009.
76 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”.

Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 16, julho 1996.

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A teoria crítica construída pelos grupos “EXIT!” e “Krisis” seria indiferente às relações
entre os sexos, não enxergando que também no sistema produtor de mercadorias tem que ser
feita a lida da casa, tem que se cuidar e educar as crianças, etc. Estas são tarefas
habitualmente delegadas às mulheres e que não podem ser totalmente supridas pelo
mercado.
Assim, “Todo conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstrata do valor [...] é
delegado à mulher [...].”77 ; esta relação é assimétrica: o elemento sensível é marcado como
feminino e por isso mesmo inferiorizado. Para Scholz, esta dimensão não deve ser subtraída
da análise e tampouco pode ser apreendida através dos instrumentos analíticos criados por
Marx.78
A formação de uma esfera privada “feminina” – família, sexualidade, etc. – dissociada
de uma esfera pública “masculina” – trabalho, estado, política, ciência, arte, etc. – é recente,
já que nem sempre produção e reprodução estiveram em polos tão opostos. A autora faz uma
análise histórica buscando verificar sua tese acerca dessa dissociação, partindo da
Antiguidade à formação Moderna – quando se instauraria uma relação inédita entre os sexos,
inaugurando a clausura doméstica da mulher79. Nesta incursão histórica Scholz aborda as
representações que foram feitas sobre as mulheres (e homens) presentes no imaginário social
de cada época; esta incursão através da subjetividade tem papel primordial na defesa da sua
tese acerca da dissociação, e ao mesmo tempo marca um aspecto da sua abordagem da
relação capitalismo-patriarcado que destoa das autoras anteriormente referenciadas.
Assim, em sociedades agrárias – não-européias e também as velhas sociedades da
Europa – as relações patriarcais não possuíam a mesma dimensão que tem na nossa
sociedade. A mulher tinha um poder informal baseado na produção e controle dos recursos
vitais. A esfera público-jurídica, masculina, não se encontrava totalmente dissociada.
Por sua vez, é na Grécia antiga que se encontram as raízes do patriarcado moderno.
Uma racionalidade de cunho masculino e mercantil se firma, ao passo que a esfera pública
adquire novo significado com as assembléias populares. Entretanto, esta esfera pública
nascente era reservada aos homens, cabendo às mulheres atenienses o lar e a maternidade. A
mulher servia de antípoda, na qual se projetava tudo o que não era admitido no âmbito
público. Ela já era vista como lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco

77 Ibid., p. 18.
78 Ibid.
79 Ibid.

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dotada, etc. Com a derrocada da sociedade antiga, desmoronou esta esfera pública dissociada.
Entre os germanos, as mulheres gozavam de certa reputação mística e as relações patriarcais
modernas teriam que começar do zero até se reconstruir.
Na sociedade Medieval e em especial na Alta Idade Média, apesar da inferioridade
jurídica, a mulher podia dedicar-se ao comércio, possuía a prática do curandeirismo e o oficio
de parteira. A própria imagem da bruxa não possuía o estigma negativo que posteriormente
viria a ter. No início da Idade Moderna, essa situação feminina antes contraditória, torna-se
drasticamente pior. A imagem negativa da mulher como um “poço de pecados” propagada
pela Igreja passa a ter grande repercussão.
A caça às bruxas, ao instaurar uma campanha de aniquilação contra o feminino, é
interpretada por Scholz como um pressuposto sangrento para a ascensão da modernidade. As
qualidades “femininas” devem ter aparecido como uma ameaça à incipiente modernidade
masculina: “Para que a racionalidade do homem moderno pudesse impor-se na esteira do
legado antigo e para além dele, era necessário portanto literalmente eliminar a mulher e tudo
o que ela representava (o sensível, o difuso, o incalculável, o contingente, etc.).”80 Estava em
jogo um outro projeto de relacionamento com a natureza – de apropriação e exploração desta
–, no qual os homens expropriaram brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres.
Agora era também preciso modificar os costumes; o autocontrole dos afetos e paixões passa a
ser requerido pela economia monetária, a divisão do trabalho e o comércio.
Durante a Reforma, desenvolveu-se o ideal materno como a nova imagem da mulher,
defendida sobretudo por Lutero, para o qual a mulher deveria ser domesticada; há assim
uma nova codificação da sexualidade feminina, agora encerrada ao casamento e a família, em
contraste do que ocorria na Idade Média. Tal esboço de uma feminilidade burguesa pouco a
pouco se alastrou por todas as classes e estamentos sociais.
Na Ilustração, o que ocorre é uma polarização constante do caráter entre os sexos, uma
diferenciação na qual se imputam aos homens a ação e a racionalidade no espaço público, e às
mulheres, a passividade e emotividade. As mulheres deveriam tornar agradável a vida do
marido com sua assistência e cuidado, o que testemunha o quanto a racionalidade patriarcal
capitalista fugiu ao controle do homem, que passa a depender do bem estar doméstico.
No século XIX as esferas cindiram-se cada vez mais, e a “vocação materna” da mulher
burguesa ganhou ainda mais relevância, de modo que já era grande a discrepância entre a

80 Ibid., p. 22.

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existência feminina familiar, e a inclinação profissional masculina. Boa parte do que até então
era produzido em casa passa a ser comercializado. Também este século viu nascer o primeiro
movimento feminista, que com a sua exigência de emancipação própria à Ilustração,
reclamava por uma melhor formação e pelo direito à atividade remunerada. Assim, o exílio
doméstico permanecia indisputado e inquestionado, com a exceção de uma minoria
radicalizada do movimento.81
É, portanto, na modernidade capitalista ocidental que os âmbitos da produção e da
reprodução são sexualmente cindidos82, dando lugar a duas dimensões distintas tanto em
forma como conteúdo e que se relacionam dialeticamente. Para Roswitha Scholz, o
movimento tautológico do trabalho abstrato deve ser entendido como um princípio
masculino, cuja ascensão histórica é acompanhada pelo confinamento da mulher e a sua
repressão. A Teoria do valor-dissociação não reclama para si, portanto, qualquer caráter
ontológico e transcultural, demonstrando os seus próprios limites83:
O valor-dissociação pode ser definido como um princípio fundamental / relação
estrutural que está activo nas diversas regiões mundiais; mas ao mesmo tempo têm de
ser tidas em conta as respectivas relações (entre sexos) concretas e empíricas que não
se encaixam no conceito geral do valor-dissociação e que, entre outras coisas, também
correspondem a condicionalismos culturais. Diga-se a propósito que múltiplas
referências se fazem sentir na era da globalização. Assim sendo, o valor-dissociação
também pode, por exemplo, sobrepor-se a relações tradicionalmente simétricas entre
os sexos, ou em dado momento sexismos tradicionais podem amalgamar-se com
sexismos do valor-dissociação, dando lugar a uma qualidade nova, sem que essas
relações tenham rostos ocidentais.84

Compreende-se que as relações entre os sexos é produto da cultura e que as relações


patriarcais não tem sempre o mesmo significado: “Um patriarcado no sentido de uma
determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstrato e do valor é típico
apenas da sociedade ocidental.”85
Em decorrência deste raciocínio, as atividades femininas “dissociadas” ligadas à
reprodução não poderiam ser denominadas “trabalho”, como o faz determinadas autoras
feministas. Equiparar o “trabalho” doméstico à categoria trabalho assalariado é visto por

81 Ibid.
82 Como é colocado pela autora, “Nos tempos pré-modernos não existia a mulher como dona-de-casa nem o
homem como sustento da família” (SCHOLZ, 2004b, p. 2).
83 SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010.


84 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. p. 10. Disponível

em: < http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010.


85 SCHOLZ, Roswitha. O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos.

Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 17, julho 1996.

115
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Scholz como um equívoco que pode levar a uma maior reificação das relações sociais no plano
teórico, uma vez que tenta-se compreender esse âmbito através de categorias relativas à
produção de mercadorias.
Para a autora, a esfera das atividades “femininas” é regida por uma outra lógica, sendo
o “outro lado da moeda” do trabalho abstrato. A saída está em, ao buscar o reconhecimento
das atividades domésticas, não superestimar o valor a ponto de denominá-las “trabalho”,
mas, antes, fazer a crítica ao trabalho, entendendo o movimento tautológico do trabalho
abstrato como um princípio masculino, que se consolidou historicamente, dando lugar ao
“patriarcado ligado à forma valor”.86 Aqui fica clara uma diferença radical com relação à
literatura feminista sobre o trabalho, que, como vimos, frequentemente utiliza o termo
“trabalho doméstico” – como uma forma de dar visibilidade a esta atividade não-paga – e
outros, como “divisão sexual do trabalho” – que busca pensar de modo sexuado e
relacionalmente o público e o privado através do “trabalho”.
A autora apresenta seu desconforto com os termos “trabalho” e “atividade” para
designar os afazeres domésticos da seguinte forma:
Ainda que tanto o trabalho doméstico como a educação dos filhos representem de certo
modo o reverso do trabalho abstrato e não possam por isso ser apreendidos
teoricamente com o conceito de "trabalho", isso não significa que eles estejam
absolutamente livres de aspectos instrumentais ou de normas "protestantes". Eis por
que a meu ver se deve procurar um terceiro conceito, com o qual se possa definir com
mais precisão teórica a atividade tradicional da mulher na esfera da reprodução, já que
o termo "atividade" é por demais difuso e possui um caráter excessivamente genérico.
Além disso, por intermédio do conceito "atividade" poder-se-ia alimentar o velho mito
da dona de casa ociosa. Essa questão, longe de ser irrelevante, não pode entretanto ser
desenvolvida aqui. Na falta de tal esclarecimento, sirvo-me de ora em diante do
insatisfatório conceito de "atividade" ao tratar do "trabalho" na esfera da reprodução.87

Conclui-se que o “dissociado” não pode ser apreendido com o instrumentário da crítica
do valor, pois há também aí o afeto, a assistência, o cuidado humano, o erotismo, a
sexualidade e o “amor” – sentimentos, emoções e posturas que se contrapõem à racionalidade
empresarial presente no âmbito do trabalho abstrato.88 O que a crítica do valor realizada por
Robert Kurz (entre outros) denominava capitalismo, agora passa a ser a “sociedade do valor-
dissociação”.89

86 Ibid.
87 Ibid., p. 16.
88 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009.


89 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em:

< http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm >. Acesso em: 29 março 2010.

116
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Na visão de Scholz, os sujeitos sociais são estruturados por essa dissociação: são
projetadas na mulher não só certas atividades como também qualidades e sentimentos
“femininos”: sensualidade, emotividade, fraqueza de entendimento e de caráter, etc; ao
sujeito masculino é imputado a força de se impor, o intelecto, força de caráter, etc. O
“patriarcado produtor de mercadorias” – outra denominação dessa estrutura – consiste,
assim, num modelo civilizacional, que possui não só uma dimensão simbólico-cultural, como
também psico-social.90 À diferença das feministas socialistas que buscam estudar a opressão
das mulheres em sua base material, descarta-se o esquema base material-superestrutura,
pois para a estrutura do valor-dissociação, os níveis psico-social e simbólico-cultural são tão
constitutivos quanto o nível material.91
A Teoria do valor-dissociação configura uma “metateoria”: não parte do princípio de
que os indivíduos correspondem totalmente à estrutura como definida, mas, antes, defende-
se que “Os homens e as mulheres nem se encaixam nela numa relação de um para um, nem
conseguem subtrair-se por completo às correspondentes atribuições.”92
Em consonância com a crítica da lógica da identidade realizada por Adorno 93, ressalta-
se que o fato de a “dissociação-valor” ser um princípio fundamental constituinte da forma
social capitalista não significa que ela possa ser elevada à contradição principal, pois “[...] a
teoria da dissociação sexual tem de garantir um lugar teoricamente equivalente para outras
formas da discriminação social”94 – como o racismo e o antissemitismo.
Assim, a totalidade social abarcada pela teoria scholziana é uma totalidade em si
fragmentária, contraditória e quebrada, consciente de que o conceito de valor-dissociação não
abarca a totalidade das relações sociais. Tem-se a pretensão de uma “grande teoria”, mas,
como ressalta a autora, não no sentido das grandes teorias abrangentes androcêntricas e
universalistas; ou seja, não se trata de uma “tese”, uma fórmula ou uma definição que, uma
vez apontada no quadro, seja auto-suficiente e possa tudo deduzir.95
Seguindo este princípio, o racismo e o antissemitismo devem ser levados a sério em
suas constituições diversas. Enquanto as mulheres eram consideradas seres domesticados, na

90 SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b.
Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010.
91 Ibid.
92 Ibid., p. 2.
93 Ibid.
94 Ibid., p. 9.
95 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças. Lisboa: Obeco, 2005. Disponível em: <

http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm>. Acesso em: 29 março 2010.

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cultura ocidental da conquista colonial, negros e “selvagens” se por um lado eram encarados
como seres naturais (à semelhança das mulheres), por outro eram vistos como
irremediavelmente subdesenvolvidos. De modo paradoxal, no olhar do antissemitismo os
judeus foram constituídos como “negativamente super-civilizados”, com “super-humanidade”
e gananciosos96. Para a autora, apesar de não se poder reclamar para o racismo uma
construção unitária aplicável para todo o Ocidente, pode-se dizer, de modo viável, que “no
desenvolvimento capitalista [...] as construções racistas tiveram alguma importância para a
constituição em sujeito do moderno indivíduo masculino e branco ocidental [...]
precisamente também tendo em vista a exploração econômica.”97
A “dissociação-valor” está submetida à transformação histórica. Atualmente a esfera
do trabalho abstrato deixou de ser exclusivamente masculina. Isto não quer dizer, no entanto,
que o pressuposto patriarcal básico e fundante da relação de valor foi eliminado. A despeito
de toda atividade remunerada feminina, o trabalho não tem até hoje, para as mulheres, o
mesmo “poder fundador de identidade”98 que tem para os homens. Robert Kurz acrescenta
que
Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas
sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em
princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo „amor‟, ou seja, nunca é
levada à sério na economia ou na política.99

A autora discorda de certas correntes feministas que, dada tal identidade masculina,
redefinem as mulheres como superiores em sua inferioridade e a transformam, juntamente
com a feminidade, em alternativa social. Para Scholz, as condutas e qualidade atribuídas a
homens e mulheres são produtos da longa evolução histórica do “patriarcado do valor” 100,
sendo a mulher um indivíduo pelo menos tão reduzido quanto o homem.
Nesse sentido, Bila Sorj101 coloca que a percepção da convivência harmônica entre
modernidade e formas institucionalizadas ou espontâneas de sexismo promoveu a suspeita
do feminismo para com o “projeto da modernidade”, o qual oferecia pouca chance de se ver

96 Ibid.
97 Ibid., p. 10-11.
98 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”.

Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 34, julho 1996.


99 KURZ, Robert. Dominação sem sujeito: sobre a superação de uma crítica social redutora. Lisboa: Obeco,

2000. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2009.


100 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”.

Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 34, julho 1996.


101 SORJ, Bila. O feminismo na encruzilhada da modernidade e pós-modernidade. In: COSTA, Albertina;

BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. p. 15-23.

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incluída a perspectiva das mulheres: ou elas abandonavam sua identidade particular e se


integravam no “humano universal”, ou estariam excluídas do mundo público. Frente a isto o
feminismo, aliado ao pensamento pós-moderno, se recusaria a colocar-se diante destas
alternativas e apostaria na reivindicação de uma “cultura particularista”, isto é, na defesa da
idéia de que traços da personalidade feminina – como a ética do cuidado – podem conter
habilidades cognitivas e emocionais que devem ser incorporadas na reestruturação da cultura
dominante. Fazendo um paralelo com o pensamento scholziano, percebemos que há uma
proximidade com a crítica feminista pós-moderna – nos termos colocados por Sorj – na
medida em que questiona o universalismo androcêntrico e vê a modernidade de forma
radicalmente crítica. No entanto, ao mesmo tempo há um distanciamento desta perspectiva,
na medida em que não se credita maior potencial revolucionário às qualidades femininas,
mas, antes entende-se que elas são tão reduzidas quantos as qualidades masculinas, e,
portanto, ambas devem ser superadas, bem como a cisão fundante da sociabilidade
capitalista ocidental.
Na Pós-modernidade102 a estrutura da dissociação apresenta nova face. Com a
desintegração da família nuclear, as mulheres passam a ser igualmente responsáveis pela
profissão e pela família. Essa situação se tornou visível a partir das favelas do dito Terceiro
Mundo – e hoje alcança escala mundial –, aonde as mulheres são precariamente responsáveis
tanto pelo dinheiro como pelo viver, educando os filhos com a ajuda de parentes e vizinhas do
mesmo sexo. Apesar de o homem já não mais assumir sozinho o sustento da família, não
desapareceu a hierarquização dos gêneros.103
Com o aumento vertiginoso da atividade feminina remunerada, a dissociação
prossegue mesmo no interior da esfera pública: as mulheres são sempre as mais
responsabilizadas pelos filhos e pelo “trabalho” doméstico, e no trabalho remunerado são
mais mal pagas, sendo raro encontrá-las em posições públicas de direção, etc. Há, assim,

102 “Se me refiro à pós-modernidade, para mim o que está em causa não é uma definição exacta mas, sim, um
conceito que designa tendências dominantes do pós-guerra, como a dissolução de estruturas e contextos de
vida tradicionais, assim como os processos de individualização que a acompanham, e que por sua vez estão
interligados com fortes tendências de pluralização e também com uma multiplicidade de formas
„multicultural‟.” (SCHOLZ, p. 14, 2005).
103 SCHOLZ, ROSWITHA. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010.

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certa continuidade com as atribuições sexuais modernas, que continuam a fazer-se sentir
mesmo no pós-fordismo.104
Carmen Bachiller105 faz uma descrição dessa atual condição feminina bastante
ilustrativa do que é colocado por Scholz:
Pero si en la época victoriana la “inactividad” era garantía de la feminidad, en la
actualidad la capacidad de solventar la domesticidad sin que se note se entiende como
parte de la actividad desenfrenada de la “mujer moderna”, una “superwoman” que no
sólo tiene éxito profesional sino que continúa respondiendo a los imperativos de la
feminidad en todas sus formas: es ama de casa, madre, cuida de su aspecto y es
sexualmente complaciente con su pareja.

Assim, anos após a publicação das primeiras definições sobre a “meta-estrutura do


valor-dissociação”, Scholz acredita que é preciso levar em consideração algumas coisas, como
o fenômeno atual do “asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias”, visto que na
crise estrutural do sistema capitalista, as mulheres são responsabilizadas não só pela
reprodução, mas em igual medida pelo ganha-pão, mantendo sua subvalorização.106
A teoria de Scholz não se torna irrelevante com as transformações atuais pós-
modernas, mas, antes, assume uma posição manifestada por Adorno107, para o qual de um
lado está o essencial – as leis do movimento da sociedade –, e de outro, a aparência, cabendo
à sociologia conceitualizar teoricamente os desvios entre essência e aparência. Depreende-se
daí que a dissociação-valor é um princípio da forma da totalidade social, agora como antes:
“[...] as recentes modificações empíricas da relação de gênero têm de ser entendidas a partir
dos mecanismos e estruturas da própria dissociação-valor.”108
Conclui-se que “[...] a questão da mulher é tudo menos uma questão exclusivamente
feminina [...]”.109 Na problemática atual da sociedade em crise (ecológica, social e
econômica), encontra-se pois a expressão dessa questão:
A crise social e ecológica do mundo é produto dos “potenciais de destruição do sensível”
presentes na forma do valor; tais potenciais, por sua vez, resultam do mecanismo

104 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000.
Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009.
105 BACHILLER, Carmen Romero. “De diferencias, jerarquizaciones excluyentes, y materiales de ló cultural. Una

aproximación a La precariedad desde el feminismo y La teoria queer”. Cuadernos de Relaciones Laborales,


Madri, vol. 21, n. 1, p. 50, 2003.
106 SCHOLZ, Roswitha. Primeira parte: sobre o conceito de valor e de valor-dissociação. Lisboa: Obeco, 2000.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz6.htm>. Acesso em: 05 maio 2009.


107 SCHOLZ, Roswitha. A teoria da dissociação sexual e a teoria crítica de Adorno. Lisboa: Obeco, 2004b.

Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz9.htm>. Acesso em: 10 jan. 2010.


108 Ibid., p. 5.

109 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”.
Revista Novos Estudos. São Paulo, n. 45, p. 35, julho 1996.

120
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patriarcal de cisões que, histórica e estruturalmente, se encontra na base de toda esta


relação.110

EXPLORANDO AS TENSÕES

De início cabe fazer breves considerações acerca dos referenciais teóricos de ambas
autoras e suas consequências teórico/epistemológicas. De certo modo, pode-se afirmar que
Helena Hirata utiliza o que Roswitha Scholz denomina “marxismo vulgar”, ou “Marx
exotérico”, ou seja, aquela parte da teoria marxiana que foi posteriormente desenvolvida por
inúmeros marxistas (e apropriada massivamente pela esquerda). Esse marxismo gira em
torno da categoria positivada trabalho, a qual possui centralidade para os demais
desenvolvimentos teóricos.
Isto gera uma série de consequências: para incluir a esfera doméstica na análise
marxista, a autora adota um conceito ampliado de trabalho, capaz de articular as duas
esferas. No entanto, essa ampliação acarreta a perda teórica de elementos associadas por
Marx ao conceito de trabalho, como o valor e o fetichismo111 – conceitos só dificilmente
aplicáveis de forma satisfatória à esfera privada. Assim, quando Hirata e Kergoat 112 colocam
que a divisão sexual do trabalho é hierárquica pois valores distintos são atribuídos aos
“trabalhos” masculino e feminino, elas alegam que utiliza-se aí o termo valor apenas em seu

110 Ibid.
111Segundo o glossário de Robert Kurz (1991), trata-se de “Conceito que se origina na crítica da religião do século
XVIII, sendo considerado uma característica essencial de religiões „primitivas‟. Fundamentava-se nas
observações de colonizadores portugueses na África e servia para designar uma crença que imagina em
objectos mortos uma alma e forças sobrenaturais. Marx referiu esse conceito ironicamente à moderna
sociedade produtora de mercadorias, que se sujeita a um fetichismo análogo na forma do dinheiro e de seu
movimento de exploração em empresas. Assim, o conceito tornou-se corriqueiro na critica da lógica da
mercadoria, apesar de ser, a rigor, demasiadamente geral. Pois no fundo, Marx não quer ressaltar o facto de
que a objectos em geral podem ser atribuídas forças sobrenaturais que nada tem a ver com sua existência
natural, mas sim caracterizar um estado social em que a sociedade não tem consciência de si mesma, não
penetra nem organiza directamente na prática sua própria forma de socialização, mas sim tem que „representá-
la‟ simbolicamente em um objecto externo. Esse objecto (que também pode ser animado) assume então um
significado sobrenatural que não é idêntico a sua forma externa, mas que aparece através desta. Em virtude
desse significado adquire ele, apesar de sua banalidade material, poder sobre todos os membros dessa
sociedade.[...] O dinheiro, como uma das muitas formas do fetichismo, existe em todas essas sociedades, mas
ainda não possui a função geral de representar a socialização inconsciente, que adopta outras formas. Somente
na modernidade assume o dinheiro definitivamente essa função. Por isso, pode ser designado como totemismo
objectivado e secularizado da modernidade. [...] Somente em conexão com sua crítica do fetiche mercadoria e
de sua forma de manifestação, como dinheiro, pode-se compreender por que para Marx a modernidade ainda
faz parte da „pré-história da humanidade‟.”
112 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A Divisão sexual do trabalho revisitada. In: HIRATA, Helena;

MARUANI, Margaret (Orgs.). As Novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de


trabalho. São Paulo: Editora Senac, 2003. cap. 7, p. 111-123.

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sentido antropológico, ou seja, designando uma importância socialmente atribuída de modo


desigual aos trabalhos de homens e mulheres.113 Ao circunscrever o termo “valor” à sua face
antropológica, a autora descarta assim a possibilidade de se estar utilizando do mesmo
referencial de Roswitha Scholz.
Para Hirata, em última instância, seria esta valorização desigual que causa (nas
palavras das autoras, “induz”) a hierarquia social presente nas relações sociais de sexo,
instaurando a opressão da mulher. Ao mesmo tempo, não fica claro por que e de onde vem tal
valorização desigual.
A centralidade do trabalho na teoria desenvolvida por Hirata demonstra a sua ênfase
numa explicação materialista e é explicitada na sua hipótese, já vista, acerca do trabalho
doméstico, segundo a qual “A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os
homens exercem sobre as mulheres.”114
Em contrapartida, Roswitha Scholz, tendo em vista superar as heranças teóricas
iluministas, rompe com a divisão base material/ideologia ao se posicionar no interior do pós-
marxismo – no sentido colocado por Robert Kurz, qual seja, de reter alguns aspectos e
acrescentar outros ao marxismo. Partindo do que Kurz chama de “Marx esotérico” ou “outro
Marx”, Scholz coloca a necessidade de problematizar a categoria “trabalho” de modo a
relacioná-la à conceitos como valor, abstração e fetiche, negativando-a.
Scholz não assume o compromisso de uma explicação materialista. Em decorrência, a
autora não utiliza o termo (trabalho) para dar visibilidade às atividades realizadas pelas
mulheres, como o faz Hirata. Como foi visto, ela acredita que a dimensão analítica do espaço
privado “feminino” não pode ser apreendida através dos instrumentos analíticos criados por
Marx.
Por que então o elemento feminino e tudo que é a ele relacionado é inferiorizado? A
resposta está na leitura feita pela autora das representações do masculino e do feminino ao
longo da construção da Modernidade Ocidental, marcada pelo desprezo do sensível, difuso e
incalculável, que, como foi visto, por não serem absorvidos na forma abstrata do valor, foram
delegados às mulheres. É neste processo que a dissociação se desenvolve e se consolida,
dando lugar às esferas cindidas.

113 Nas palavras das autoras: “Esse problema do „valor‟ do trabalho – termo empregado aqui no sentido
antropológico e ético, não no sentido econômico – atravessa toda a nossa reflexão: ele induz a uma hierarquia
social.” (HIRATA; KERGOAT, 2003, p. 113).
114 Ibid., p. 114.

122
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É importante ressaltar que, embora utilize os termos público e privado, assim como
Hirata e Kergoat, a autora não utiliza sistemas duais de explicação. O valor-dissociação é, nas
palavras da autora, um princípio da forma da totalidade social, ou seja, uma relação social
estrutural que permeia toda a sociedade e na qual os níveis psico-social e simbólico-cultural
são tão constituintes quanto o nível material.
O princípio do valor-dissociação não se resume à cisão entre esferas, mas, antes, está
presente mesmo no interior de cada uma, como pode-se notar na afirmação de Scholz de que,
com a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, a dissociação prossegue mesmo
no interior da esfera pública. A partir dos dados obtidos por Bila Sorj115, e apresentados na
introdução deste artigo, poderíamos dizer que a dissociação também prossegue no interior do
ambiente doméstico uma vez que o mínimo envolvimento masculino que ai ocorre se dá
tendo como critério a presença na esfera pública, como a atividade de ir e buscar as crianças,
etc.
Ao considerar o movimento tautológico do capital e do trabalho abstrato como um
princípio masculino, que, ao se consolidar historicamente, levou ao confinamento da mulher,
Roswitha Scholz opera, em outros termos e categorias, a junção de opressão (“material”) e
dominação (“simbólica”).
Voltando a Hirata e Kergoat, pode-se dizer que elas também possuem reservas com
relação às explicações que recorrem aos esquemas duais. Isto fica claro no seguinte trecho:
A divisão sexual do trabalho, no começo, tinha o status de articulação de duas esferas,
como indica o subtítulo Estruturas familiares e sistemas produtivos, de Sexo do
trabalho [...]. Mas essa noção de articulação se mostrou rapidamente insuficiente: os
dois princípios – separação e hierarquia – se encontram em toda parte e se aplicam
sempre no mesmo sentido; era necessário passar a um segundo nível de análise: a
conceituação dessa relação social recorrente entre o grupo dos homens e o das
mulheres.116

Ao meu ver, é através do princípio teórico da coextensividade que as autoras superam


tal dualismo, ao enxergar as relações de classe e as relações de sexo como contínuas.
Entretanto, tal continuidade se dá atrelada à ampliação do conceito de trabalho, de modo a
permitir que se fale em divisão sexual do “trabalho”.

115 SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol;
OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. p. 107-120.
116 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena; et al. (Orgs.).

Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 70.

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CONCLUSÃO

No final do século XX, com a crise dos paradigmas das Ciências Sociais, no meio
acadêmico passam a ser questionados a razão cartesiana e os dualismos binários empregados
nas análises e epistemologias. Nesse sentido, as duas construções teóricas aqui vistas,
contrastadas e debatidas, enfrentam este desafio, propondo novas formas de articular gênero
e classe, que prescindam de análises do tipo capitalismo-patriarcado; isto é, elas dão um salto
qualitativo quando colocam a existência de relações de classe nas relações de gênero, e vice-
versa (embora o façam através de outras categorias analíticas). Assim, não se trata mais de
escolher entre feminismo ou marxismo, patriarcado ou capitalismo, exploração ou opressão;
foram criados novos termos que põem fim a essas escolhas unilaterais.
No que concerne ao “trabalho doméstico” – preocupação central neste trabalho –, a
trajetória percorrida aponta para algumas questões. É visível que o termo adquiriu ampla
aceitação pública: para além do círculo feminista, ele passou a fazer parte do nosso
vocabulário cotidiano, talvez como fruto da insistência feminista em qualificar como
“trabalho” as atividades femininas realizadas no âmbito doméstico.
O termo, portanto, solapou, ao menos no senso comum, aquela gama de terminações
como “trabalho reprodutivo”, “trabalho de reprodução”, “atividade doméstica”, etc., e foi
incorporado ao nosso dia a dia.
Entretanto, uma interpretação crítica das estatísticas nacionais parece indicar que não
ocorreu a valorização esperada no plano prático (e que impulsionou a defesa do termo).
Segundo Cristina Bruschini117, dos anos noventa até o ano de dois mil e cinco, verificou-se
grande crescimento do número de mulheres na População Economicamente Ativa (PEA)118:
entre 1993 e 2005, a taxa de atividade feminina – isto é, a proporção de mulheres
economicamente ativas (ocupadas e desocupadas) sobre o total de mulheres –, passou de
47% para 53%.
Embora as mulheres estejam longe de atingir as taxas masculinas de atividade
econômica, que chegam a mais de 70%, nota-se que houve um grande avanço. Porém, para as
mulheres, a vivência do trabalho ainda implica a articulação entre “trabalho” produtivo e

117BRUSCHINI, Cristina. “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos”. Cadernos de Pesquisa. [S.l.], v.37,
n. 132, p. 537-572, set./dez. 2007.
118 “[...]fazem parte da População Economicamente Ativa, os Ocupados (trabalhando regularmente) e os

Desocupados, assim considerados os que não trabalhavam, mas tomaram alguma providência para encontrar
trabalho.” (Fundação Carlos Chagas).

124
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reprodutivo. Segundo Bruschini, a PNAD de 2002 mostra que quase 90% das mulheres
consultadas realizavam afazeres domésticos, contra 45% dos homens. O número médio de
horas semanas dedicadas a esta atividade foi, para os homens, de 10 horas, enquanto que,
para as mulheres, correspondia a 27 horas.
Esse quadro parece indicar que houve resultados contraditórios frente às intenções
por trás do uso do termo (“trabalho‟ doméstico”), pois não ocorreu a valorização que se
esperava ocorrer e que, presumivelmente, elevaria o status dessas atividades de modo que
elas passariam a ser uma responsabilidade distribuída igualmente entre homens e mulheres.
Isso pode ser notado também no status do emprego doméstico: segundo Bruschini, a
inserção das mulheres no mercado de trabalho brasileiro tem sido marcada pela
precariedade, pois os “serviços domésticos”, ou seja, o emprego doméstico remunerado, é o
nicho ocupacional feminino por excelência, no qual, em 2005, mais de 90% dos
trabalhadores eram mulheres; além disso este é um setor que emprega mais de 6,2 milhões
de mulheres, o que corresponde a 17% da força de trabalho feminina. É um tipo de ocupação
“considerada precária em razão das longas jornadas de trabalho [...], pelo baixo índice de
posse de carteira de trabalho (apenas 25% delas) e pelos baixos rendimentos auferidos (96%
ganham até dois salários mínimos).”119
A situação das mulheres brasileiras, com base nas estatísticas oficiais, de certo modo
valoriza a posição defendida por Roswitha Scholz, uma vez que o uso do termo trabalho para
designar as atividades domésticas não atingiu o seu objetivo político, que seria desmistificar o
estereótipo da dona de casa ociosa.
Sem negar o pioneirismo de Helena Hirata e Danièle Kergoat, é nesse sentido que
podemos afirmar que Scholz utiliza com eficácia seu método de pesquisa científica pois,
segundo Bourdieu,
O que conta, na realidade é a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar
nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de constituir cientificamente
objetos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na sua
capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objetos socialmente
importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto [...].120

119 BRUSCHINI, Cristina. “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos”. Cadernos de Pesquisa. [S.l.], v.37,
n. 132, p. 561, set./dez. 2007.
120 BOURDIEU, Pierra. Introdução a uma sociologia científica. In: ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2007. p. 20.

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Assim, como uma conclusão de caráter provisório, pode-se afirmar que Roswitha
Scholz reconstrói o “trabalho doméstico” – um grande objeto das teorias feministas – de um
ponto de vista imprevisto, a partir de um referencial teórico até então nunca aplicado a este
objeto, e que com sucesso consegue se desvincular da prática frequente que é o uso de termos
originalmente referentes ao trabalho (produtivo) para explicar a construção das identidades
femininas e a dinâmica do lar.
Há então consideráveis rupturas no que se refere à práxis feminista. Nesse sentido,
Robert Kurz, fazendo referência à Teoria do valor-dissociação de Scholz, coloca que:
Só para além da divisão estrutural entre uma „lógica do dinheiro‟, de um lado, e uma
„falta de lógica‟ da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, se
poderia conseguir uma relação emancipatória entre homens e mulheres. Ao contrário,
um feminismo que se limite à exigência de „direitos iguais‟ no interior do modo de
produção dominante terá necessariamente de ficar impotente perante a forma cindida
da vida social. Sempre caiu em ouvidos moucos o simples apelo a que os homens
participassem em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida
pessoal e familiar. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no
âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. 121

É preciso destacar, ainda, os limites deste trabalho. As conclusões apresentadas são


provisórias, visto que a bibliografia utilizada de Roswitha Scholz foi especialmente limitada –
apenas cinco artigos – dada a escassa publicação da autora em língua portuguesa bem como
em língua inglesa, visto que a sua produção teórica permanece sendo publicada
principalmente em alemão. Ademais, a maioria dos artigos aos quais tive acesso são
traduções imprecisas e publicadas na internet. Dito isto, fica em aberto a possibilidade de
novas pesquisas a partir de uma bibliografia mais vasta, que permita maior aprofundamento.
Outro limite deste trabalho, ao meu ver, está na seguinte questão: a divisão público-
privado enquanto recurso analítico, possui centralidade para se pensar acerca de todas as
mulheres? Enquanto processo histórico, afeta igualmente a todas as mulheres, as tendo
relegado igualmente à domesticidade?
Sueli Carneiro122 critica as concepções do feminismo clássico que universalizam os
valores de uma cultura particular (ocidental), invisibilizando as experiências historicamente
diferenciadas das mulheres negras. Nesse sentido, ela coloca os seguintes questionamentos,
que considero de demasiada importância para este trabalho:

121 KURZ, Robert. Virtudes Femininas: a crise do feminismo e a gestão pós-moderna. Lisboa: Obeco, 2000. p.
02. Disponível em: < http://obeco.planetaclix.pt/rkurz42.htm >. Acesso em: 16 set. 2010.
122 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma

perspectiva de gênero. LOLA Press, nº 16, novembro, 2001. p. 01.

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Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a


proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque
nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que
trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como
vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as
feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!123

Assim, é dada a necessidade de colocar que as construções teóricas são geográfica e


historicamente situadas, e no caso em questão, provêm claramente de um contexto europeu,
muito distinto da nossa realidade latino-americana pós-colonial, multirracial e pluricultural.

123 Ibid., p. 1.

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