Você está na página 1de 10

Ensaio sobre a cegueira de Édipo, e de todos nós

Raquel Lopes Rios1

1 O Complexo de Édipo

Quando o assunto é Psicanálise, podemos supor algumas associações na mente de um


leigo (não tão leigo assim): Freud e a corriqueira expressão: “Freud explica!”; inconsciente,
sexualidade, e claro, a relação triangular: papai, mamãe e filho.
Penso que o personagem Édipo deve sua origem e criação a Sófocles, mas sua
popularidade a Freud. Entretanto, essa fama pode custar caro ao personagem e também à
Psicanálise, gerando reducionismos e generalizações que culminam num empobrecimento
tanto do mito, quanto das teorias freudianas. Aproveito então esse tema que está na “boca do
povo” e incansavelmente na dos Psicanalistas para retomar alguns aspectos da teoria, ampliar
reflexões e propor novas conversas.
Foi em uma carta de 15 de outubro de 1897 (FREUD, 1974, p. 350), dirigida a Fliess,
que Sigmund Freud interpretou pela primeira vez a tragédia de Sófocles, fazendo dela o ponto
nodal de um desejo incestuoso infantil, reconhecendo em si o amor pela mãe e o ciúme em
relação ao pai. A descoberta do Complexo de Édipo, preparada há muito pela análise de seus
pacientes, concretiza-se então no decorrer de sua autoanálise e amplia-se ao longo de suas
teorizações até tornar-se um dos principais eixos de referência da psicopatologia dentro da
Psicanálise.
De forma resumida, esse conceito é definido por Laplanche e Pontalis (2001) como:

Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação


aos pais. Sob sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de
Édipo-Rei: desejo de morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo
sexual pela personagem do sexo oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se de
modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor
do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na
chamada forma completa do complexo de Édipo. (p. 77).

Embora Freud não tenha apresentado uma exposição sistemática do Complexo de


Édipo, sustenta ao longo de sua obra a universalidade e o papel estrutural deste, na medida em
que envolve funções fundamentais, como a escolha do objeto de amor, o acesso à genitalidade
(na medida em que este não é garantido pela simples maturação biológica), os efeitos sobre a
1
Mestre em Literatura de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). raquel.lopesrios@gmail.com.
estruturação da personalidade (sobre a constituição das diferentes instâncias, especialmente as
do superego e ideal de ego), entre outras.

2 Édipo Rei e a busca pela verdade

A partir da ampla teorização acerca do Complexo de Édipo, os pós-freudianos


puderam também dar novas contribuições, como o fez a psicanalista argentina Arminda
Aberastury. Foi essa autora, em seu livro A paternidade, especificamente no capítulo O
complexo de Édipo, que abriu meus olhos para novos e importantes aspectos do Complexo.
Segundo ela, aspectos ignorados ou reprimidos pelo próprio Freud, que, ao situar a
problemática sobre o triângulo pai-mãe-filho, sobre a rivalidade edípica e incesto, caiu na
repressão de alguns conflitos que possivelmente o afetavam.
Para Aberastury (1984), Freud tomou conta somente da situação do menino frente aos
pais e eludiu o que os pais sentem em relação aos filhos. Na opinião da autora, o pai de Édipo,
Laio, é decisivo para compreender o destino do filho e não aparece nos comentários de Freud.
Para compreendermos melhor seu raciocínio, retomemos brevemente o mito de Sófocles,
segundo a tradução da editora Martin Claret (2002).
Laio abandonara Tebas e refugiara-se na Élida, junto ao rei Pélope. Lá apaixona-se
pelo filho desse, Crisipo, sendo inteiramente correspondido. Num ato de desespero Laio rapta
o amado, mas Crisipo temeroso da reação paterna, suicida-se. Ao tomar conhecimento da
notícia, o pai de Crisipo invoca uma maldição a Laio: que este nunca tivesse um filho ou, se o
tivesse, que a morte o atingisse através dele.
Laio retorna a Tebas e tenta esquecer a infeliz aventura, unindo-se em matrimônio à
bela Jocasta. Preocupado com a maldição, decide consultar o oráculo de Apolo, e ouve a
terrível predição: se tivesse um filho, este o mataria e se casaria com a mãe. Em vão Laio
procura evitar que Jocasta conceba um ser condenado ao parricídio e incesto. Quando isso
acontece, imeditamente decide: a criança será morta tão logo nasça. Nascido o menino, e
temendo que a professia se concretizasse, Laio resolveu se desvencilhar do bebê: perfurou os
tornozelos da criança, prendeu-os com uma correia junto as pernas e o entregou a um servo
para que este o abandonasse no monte Citerón.
O servo de Laio não teve coragem de abandonar o recém-nascido, como lhe fora
ordenado, e o confiou a um pastor. Este, por sua vez, entregou- o a Pólibo e Peribéia, rei e
rainha da cidade de Corinto, que por não conseguirem ter filhos, adotaram a criança e a
criaram como legítimo.
Édipo cresceu saudável, acreditando ser filho desse casal, mas durante uma discussão
um coríntio dirigiu-se a ele de maneira ofensiva, chamando-o de filho bastardo. Desconfiado,
pediu explicações a Pólipo, que afirmou ser seu pai verdadeiro. Não convencido, o herói
decide consultar o oráculo de Delfos sobre sua verdadeira origem, esse apenas lhe responde
que Édipo haveria de matar o pai e desposar a mãe.
Para impedir que tal destino se cumprisse, Édipo resolveu não voltar para Corinto e se
dirigiu a Tebas. Nesse caminho, no meio de uma encruzilhada, teve um encontro com Laio e
por causa de uma discussão, acaba matando-o, desconhecendo sua identidade.
Creonte, irmão de Jocasta e regente de Tebas, havia oferecido o reino através da mão
de sua irmã, a quem derrotasse a esfinge e libertasse Tebas da peste que a assolava. Édipo
resolve o enigma da esfinge e fica assim convertido em rei de Tebas e cônjuge de sua própria
mãe, com quem concebeu quatro filhos: Polinice, Edíocle, Ismene e Antígona.
Édipo reinou durante 20 anos como um soberano justo, mas sua trágica história
continua: Tebas abate-se pela praga da infertilidade das mulheres e dos campos, que segundo
a revelação do oráculo, tal desgraça acontecera porque ninguém havia vingado a morte de
Laio. Então, Édipo empenha-se para descobrir o culpado.
Importante lembrar também, que ao longo da tragédia, Édipo interroga diversas vezes
Jocasta, que parece o desviar do caminho do esclarecimento para manter sua união com ele.
A verdade é então revelada por Tirésias, um cego advinho e por um mensageiro de
Corinto que lhe conta como ele próprio, no passado, havia recolhido um menino nas mãos do
pastor para entrega-lo ao rei. Quando tal insuportável verdade é desvelada, Jocasta comete
suicídio, e Édipo cega os próprios olhos com os broches da mãe-esposa. Em suas falas
percebemos como justifica o ato de cegar-se, diz: “Mas não foi mão estranha que arrancou
meus olhos, senão a minha! Ai de mim! Que mais desejaria eu ver, se a visão só desgosto me
causaria?” (SÓFOCLES, 2002, p. 72); Diz ainda: “E se eu soubesse como silenciar os sons
em meus ouvidos, eu vedaria por completo este miserável corpo, para que nada mais pudesse
ver, nem ouvir, pois há de ser um alívio estar incomunicável com este mundo de dores.”
(SÓFOCLES, 2002, p. 73).
Através desse breve resumo, podemos então acompanhar as observações de
Aberastury acerca da vida de Laio, da maldição que lhe rogara o pai de Crisipo e também
sobre o papel de Jocasta. Segundo essa autora, as circunstâncias em que Freud iniciou a
investigação sobre o Complexo de Édipo (durante elaboração do luto pelo falecimento do
próprio pai), explicam por que possivelmente ele reprimiu a homossexualiade de Laio e o
ódio do pai ao filho. “Em Freud, Édipo mata o pai, mas não faz menção a que o pai mandou
matar o filho e que mais adiante, na encruzilhada dos caminhos, Laio atacou Édipo e este
matou em defesa própria.” (ABERASTURY, 1984, p. 51).
Além disso, “[...] quando Freud faz referência a essa tragédia, insiste em que Édipo se
cega por haver cometido o parricídio e o incesto. Na obra de Sófocles, se destaca
permanentemente que Édipo mata em defesa própria e que o incesto não era penalizado pelos
gregos.” (p. 50). Sendo assim, a cegueira de Édipo interpretada por Freud como um castigo
que ele se infligiu pelo crime do incesto, no texto de Sófocles, é mais evidente que arrancar os
olhos é um esforço desesperado de Édipo por negar a verdade recém-descoberta.
Os pecados de Édipo não foram seus crimes, mas sua ignorância em face de sua
origem, sua história de vida e de si mesmo. Impedido de enxergar os fatos pela sua
arrogância, pagou o alto preço de viver sem saber quem realmente era. Tentou realizar seus
desejos, mas, conforme salienta a teoria freudiana, devemos ter a prudência de examiná-los,
ter a atitude de ver e reconhecer nossos desejos sem deixar que eles assumam o comando.
Tais considerações não têm como objetivo desmembrar os conceitos psicanalíticos
freudianos; pelo contrário, graças a eles e a partir deles podemos hoje ampliar nossa
compreensão do mito e, consequentemente, do funcionamento mental. Por isso, como
anteriormente dito, meu objetivo neste artigo é, a partir das descobertas freudianas e,
consequentemente, dos pós-freudianos, agregar conhecimentos e promover novas indagações
e reflexões sobre o tema.
Aberastury (1984) amplia sua percepção acerca do mito e afirma que Édipo Rei foi
qualificado como o drama do esclarecimento e nos narra a saga de um ser humano em busca
da verdade sobre si mesmo. Em vários fragmentos da tragédia, vemos como Édipo se
interroga e interroga outrem sobre seus pés, sobre seus verdadeiros pais e consequentemente
sobre sua origem. Fragmentos de verdade são conhecidos e verbalizados pelos personagens,
mas não são ligados entre si, assim como ocorre nas neuroses. Nas palavras da autora: “O
processo de revelação da verdade é similar ao processo de análise em que o analista vai
desvelando através da interpretação fragmentos da vida do paciente que este relata sem
relacionar um com o outro.” ( p. 50).
Na tragédia de Sófocles, o coro é testemunho, não julga, ratifica e esclarece,
modificando-se de acordo com o que vê e com o progressivo esclarecimento do duplo crime.
Isso se assemelha à voz do analista, em seu trabalho psicanalítico, que, com neutralidade,
intuição e atenção flutuante, visa lançar luz a aspectos antes obscuros e assim comunicar
novos aspectos ao paciente. A sensibilidade nesse trabalho é ferramenta primordial na medida
em que conversamos sobre aspectos dolorosos, que não por acaso estavam encobertos. Édipo,
ao cegar-se, tenta não ver, negar os acontecimentos de sua vida e seus sentimentos, o que
muitas vezes ocorre com nossos pacientes, já que, como assinala Aberastury (1984): “[...] na
tragédia de Sófocles existe um paulatino desvelamento acompanhado de regressões onde se
nega a verdade descoberta, sendo um processo similar ao da análise, onde é freqüente que à
descoberta da verdade se siga uma negação mais intensa como defesa.” (p. 56). Inúmeras
vezes ouvimos em nossos consultórios: “preferia não saber disso”, “quando tempo isso estava
na minha cara e eu não vi”, “tão doído enxergar essas coisas, acho que a vida é mais fácil para
os alienados” etc. Esses discursos retratam a mesma luta entre a cegueira e o esclarecimento
que rege a vida mental.
Sendo assim, penso que, para além da elaboração da triangulação edípica, dos desejos
incestuosos e da rivalidade parental, cada um de nossos pacientes nos procura também a fim
de resgatar coragem para o enfrentamento de difíceis facetas da realidade, forças para o
embate entre cegueira e esclarecimento, entre consciente e inconsciente, que certamente
produz tanto sofrimento, e, principalmente, a fim de achar parceria e companhia para adentrar
na aventura da busca pela verdade de si mesmo. Ou seja, a maioria deles vêm ao nosso
encontro em busca de um encontro ainda maior e verdadeiro consigo mesmo.
Ottaiano (2015) lembra-nos que nesse corajoso encontro entre analista e paciente é
possível (re)viver angústias, dores, medos, sentimentos e sensações supostamente esquecidos.
Em suas palavras:

Mas há que se romper resistências, o que exige tempo e persistência! Para que o
desconhecido surja, se torne conhecido, há que se romper paradigmas estabelecidos
durante toda uma vida sem vida. Como nos afastarmos de nós mesmos para
encontrar nossa essência, durante todo o processo de autoconhecimento, se o tempo
todo o medo de nos encontrarmos está presente? O medo do desconhecido, do
pecado, da culpa, dos fantasmas que nos assombram... Que enigmas subjacentes aos
nossos comportamentos tememos decifrar? É o medo da subversão que nos remete
sempre à repetição¿ Haja coração! “Conhece-te a ti mesmo!” Os mitos nos mostram
os perigos desta pretensão, mas ao mesmo tempo é fascinante e irresistível a
instigação. (p. 56).

Fascinada por essa irresistível instigação, inspirada por essas leituras e às voltas com a
reflexão desse tema, lembrei-me do livro de José Saramago O ensaio sobre a cegueira e,
consequentemente, do filme de mesmo nome produzido a partir da obra literária.

3 O ensaio sobre a cegueira


O romance do escritor português José Saramago narra a história de uma cegueira que
acomete as pessoas de maneira repentina e que se alastra sobre uma cidade, atingindo quase
toda a população, sem nenhuma distinção de classe social ou econômica, disseminando as
instituições públicas e privadas, como também os valores sociais e individuais que antes
norteavam aquela sociedade. Trata-se de uma cegueira branca e luminosa, descrita como “mar
de leite” ou “sol em meio ao nevoeiro”, ao contrário da cegueira comum, que se caracteriza
pela ausência total de luz. Tal fato aponta para outras possibilidades de cegueira, que não
física, mas possivelmente psicológica, ideológica, política etc. É uma incógnita que nos
permite inúmeras reflexões, como as faziam os próprios personagens do romance: “[...] quem
sabe, na verdade os olhos não são mais que umas lentes, umas objectivas, o cérebro é que
realmente vê. (SARAMAGO, 1995, p. 70). Ou, “[...] quem sabe, esta cegueira não é igual às
outras, assim como veio, assim poderá desaparecer.” (SARAMAGO, 1995, p. 101).
Em busca de compreender tal epidemia, foram convocados estimados cientistas, mas
os discursos e “verdades científicas” parecem irrelevantes diante de uma realidade que não
tem nenhuma explicação racional para os fatos. As autoridades decidem, então, confinar os
afetados pela epidemia em um espaço isolado, em um manicômio, o que denota também a
falta de visão dessas autoridades que abandonam o cidadão como se ele fosse um objeto sem
serventia e que deve ser separado dos demais. Penso que, de um ponto de vista ideológico, a
cegueira também pode ser entendida como o fato de fechar os olhos para a realidade de um
sistema socioeconômico que oprime e desumaniza, principalmente quando tira dos cidadãos o
direito de ver, de sentir e de ser. “[...] A cegueira também é isto, viver num mundo onde se
tenha acabado a esperança”. (SARAMAGO, 1995, p. 204). Tal cegueira pode ainda ser
pensada como uma metáfora da “falta de visão” do homem que não enxerga aquilo que não
quer ver, ou que prefere não compreender, lembrando-nos o famoso ditado: “O pior cego é
aquele que não quer ver”.
Nesse manicômio, local de exílio dos cegos, fica escancarado o lado mais primitivo de
cada um dos personagens: a agressividade, a rivalidade, o individualismo, entre outras
atitudes. Estes vão se relacionando entre si de forma complexa, nas quais as máscaras sociais
caem, como lembra um deles: “[...] Só num mundo de cegos as coisas serão o que
verdadeiramente são.” (SARAMAGO, 1995, p. 128). Contudo, será por meio dessa dolorosa
experiência que eles também encontrarão a possibilidade de transformação, de reaprender a
olhar o mundo, o outro e a si próprio.
O olhar passará, então, a ser direcionado ao campo da percepção: visível e invisível
moldados no sensível. “[...] mais e mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio
cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vistas”.
(SARAMAGO, 1995, p. 158). O afago na alma virá por meio de uma música, o amparo a
partir de um abraço, a presença por intermédio do cheiro do outro... Cada um à sua maneira, a
seu tempo. Essa transformação e descoberta dependerão da sensibilidade de cada personagem,
conforme nos alerta esta passagem: “[...] o sol não nasce ao mesmo tempo para todos os
cegos, muitas vezes depende da finura do ouvido de cada um”. (SARAMAGO, 1995, p. 19).
Ao longo da narrativa, é possível acompanharmos essas mudanças, como a que ocorre
com o ladrão, segundos antes de falecer em decorrência de um grave ferimento na perna: “[...]
De súbito sem que ele contasse, a consciência acordou e censurou-o asperamente por ter sido
capaz de roubar o automóvel de um pobre cego. (SARAMAGO, 1995, p. 79). “Assombrava-o
o espírito lógico que estava descobrindo na sua pessoa, a rapidez e o acerto dos raciocínios,
via-se a si mesmo diferente, outro homem, e se não fosse este azar da perna estaria disposto a
dizer que nunca em toda a sua vida se sentira tão bem.” (SARAMAGO, 1995, p. 80) Este,
assim como os outros personagens, lembra-nos que o caminho para o autoconhecimento passa
pelo estudo dos próprios atos, erros e omissões. Freud conjecturou que no método
psicanalítico interpretativo devemos ter todos os equívocos, chistes e ato falhos como nossos
aliados, já que esses também estão associados a algo mais profundo do que aparentam ser. O
pai da Psicanálise ressalta que nossas atitudes são movidas por uma lógica inconsciente e que,
somente trazendo luz ao que está encoberto, teremos a chance de elaborarmos e
transformarmos.
Nessa trajetória, todos os personagens contam com a ajuda da “mulher do médico”,
que, para acompanhar o marido nesse exílio, diz às autoridades que também estava cega, mas
na realidade é a única que ainda podia enxergar. Ela parece ampliar ainda mais sua visão com
sua sensibilidade, com a capacidade de refletir, planejar e pensar ainda que naquele meio
turbulento. Nem por isso ela se sente privilegiada, pois é consciente de sua limitação. Ela diz:
“[...] não mando, organizo o que posso, sou, unicamente os olhos que vocês deixaram de ter”.
(SARAMAGO, 1995, p. 245). Essa mulher desempenha um papel fundamental de resistência,
do uso da verdade e da inteligência em busca do equilíbrio sobre a barbárie que se instalou
sobre aquela comunidade. “Parecia impossível como esta mulher dava fé de tudo quanto se
passava, devia ser dotada de um sexto sentido, uma espécie de visão sem olhos”.
(SARAMAGO, 1995, p. 196). E, dentro dessa situação, ela acaba se dando conta da
responsabilidade de se ter olhos quando os outros não os têm, ela diz: “Eu continuo a ver,
felizmente [...] a responsabilidade de ter olhos quando os outros já os perderam”.
(SARAMAGO, 1995, p. 241).
O papel dessa personagem me chamou muito atenção, em livre associação, pensei:
essa não será também uma das funções do psicanalista e a consequente responsabilidade de
seu trabalho? Enxergar aspectos até então encobertos, acompanhar seus pacientes e com eles
adentrar nesse local (mente) repleto de caos, turbulência, de conflitos, da loucura, mas
também da percepção, dos afetos, da luz? Acreditar na possibilidade de transformação interna,
e se aventurar com cada um nessa busca por si mesmo e pela verdade? Penso que sim. Em
muitas dessas coisas consiste nosso trabalho.
Essa reflexão tornou-se pertinente, principalmente como uma candidata à formação
analítica, que, após um percurso dentro da instituição, somando supervisões e análise, pude
perceber que o fazer “psicanálise” vai muito além de tornar consciente os aspectos
insconscientes de nosso pacientes, requer antes um encontro com nossa própria identidade,
com nossas próprias vivências de transformação e, então, conhecimento (a partir da própria
pele) do funcionamento mental. As vivências em análise e com nossos pacientes é fascinante
e ao mesmo tempo “assustadora”, como disse Maria Cássia Aspertini Ottaiano (2015), em seu
artigo Sonhando a formação:

E o medo de sermos capturados pelo fascínio que o encontro em dupla exerce¿É


assutador, e ao mesmo tempo tentador, libertador, constrangedor. Um risco de sentir
a dor e o sabor de ser conhecedor. Ser capaz de suportar a dor, o desamor e o pavor
de se saber não só bela, mas também fera. ( p. 56).

Vivenciamos isso a cada encontro com o outro, como também podemos vivenciar a
cada leitura, podendo acompanhar esse “sabor e dor de ser conhecedor”, seja por meio do
mito de Édipo, seja a partir do romance de Saramago. Todas elas são experiências que nos
fortalecem, enriquecem, e, somadas às teorias psicanalíticas, nos instrumentalizam para o
fazer analítico. Junqueira (2006), citado por Ottaiano (2015), resume nosso trabalho em sábias
palavras: “O psicanalista, como Édipo na busca da identidade, precisa estar preparado para
suportar o mistério da feiura interna matizada pela beleza da busca da verdade. Enfrentar seu
amor e ódio pela psicanálise.” (p. 57).
Penso que esse real encontro com o outro, com as alegrias e tristezas decorrentes, são
fundamentais para não sermos capturados pela “beleza”, ou até mesmo pelo glamour e status
do “ser psicanalista”. As dificuldades diárias, as incertezas, os conflitos e o “não saber” são
partes constituintes da realidade e de nós mesmos.
No romance de Saramago, a mulher do médico lembra-nos da importância da
humildade em vários momentos, mas penso que, no final, essa questão atinge seu ponto
fundamental. Aos poucos todos vão recuperando a visão novamente; nesse momento, a
mulher do médico levanta-se, vai até a janela e: “Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo,
para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo
branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali
estava.” (SARAMAGO, 1995, p. 310, grifo nosso). O medo e a consequente possibilidade de
também ficar cega permite-nos pensar que não se trata de ser ou não cego, mas um estado,
que atinge a todos. Também nós, psicanalistas, assim como nossos pacientes, temos
dificuldades em encarar determinados aspectos e realidades, também nós temos um psiquismo
constituído por consciente e insconsciente, luz e escuridão, saber e desconhecido, momentos
de esclarecimento e outros de cegueira, porque antes mesmo de sonharmos com nossa
profissão, nascemos humanos.
Para concluir, cito um poema de Fernando Pessoa, que não apenas resume as ideias
aqui contidas, mas vai além, como toda arte, trazendo um farol de sabedoria e lucidez para
este trabalho:

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem do desaprender.
Como o olhar, a razão Deus me deu para ver
Para além da visão
Olhar de conhecer. (PESSOA, XXXX, p. xx).

Referências

OTTAIANO, Maria Cássia Asperti. Sonhando a formação. In: PRYZANT, Evelyn.


Construções IV. 1. ed. São Paulo: Associação Brasileira de Candidatos, 2015. p. 53-60.

ABERASTURY, Arminda; SALAS, Eduardo J. A paternidade. Tradução de Maria


Nestrovsky Folberg. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

SÓFOCLES. Édipo rei; Antígona: texto integral. Tradução de Jean Melville. São Paulo:
Martin Claret, 2006. (Coleção A obra-prima de cada autor).

LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: v. 3: primeiras publicações psicanalíticas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 251-385.

Você também pode gostar