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1 O Complexo de Édipo
Mas há que se romper resistências, o que exige tempo e persistência! Para que o
desconhecido surja, se torne conhecido, há que se romper paradigmas estabelecidos
durante toda uma vida sem vida. Como nos afastarmos de nós mesmos para
encontrar nossa essência, durante todo o processo de autoconhecimento, se o tempo
todo o medo de nos encontrarmos está presente? O medo do desconhecido, do
pecado, da culpa, dos fantasmas que nos assombram... Que enigmas subjacentes aos
nossos comportamentos tememos decifrar? É o medo da subversão que nos remete
sempre à repetição¿ Haja coração! “Conhece-te a ti mesmo!” Os mitos nos mostram
os perigos desta pretensão, mas ao mesmo tempo é fascinante e irresistível a
instigação. (p. 56).
Fascinada por essa irresistível instigação, inspirada por essas leituras e às voltas com a
reflexão desse tema, lembrei-me do livro de José Saramago O ensaio sobre a cegueira e,
consequentemente, do filme de mesmo nome produzido a partir da obra literária.
Vivenciamos isso a cada encontro com o outro, como também podemos vivenciar a
cada leitura, podendo acompanhar esse “sabor e dor de ser conhecedor”, seja por meio do
mito de Édipo, seja a partir do romance de Saramago. Todas elas são experiências que nos
fortalecem, enriquecem, e, somadas às teorias psicanalíticas, nos instrumentalizam para o
fazer analítico. Junqueira (2006), citado por Ottaiano (2015), resume nosso trabalho em sábias
palavras: “O psicanalista, como Édipo na busca da identidade, precisa estar preparado para
suportar o mistério da feiura interna matizada pela beleza da busca da verdade. Enfrentar seu
amor e ódio pela psicanálise.” (p. 57).
Penso que esse real encontro com o outro, com as alegrias e tristezas decorrentes, são
fundamentais para não sermos capturados pela “beleza”, ou até mesmo pelo glamour e status
do “ser psicanalista”. As dificuldades diárias, as incertezas, os conflitos e o “não saber” são
partes constituintes da realidade e de nós mesmos.
No romance de Saramago, a mulher do médico lembra-nos da importância da
humildade em vários momentos, mas penso que, no final, essa questão atinge seu ponto
fundamental. Aos poucos todos vão recuperando a visão novamente; nesse momento, a
mulher do médico levanta-se, vai até a janela e: “Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo,
para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo
branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali
estava.” (SARAMAGO, 1995, p. 310, grifo nosso). O medo e a consequente possibilidade de
também ficar cega permite-nos pensar que não se trata de ser ou não cego, mas um estado,
que atinge a todos. Também nós, psicanalistas, assim como nossos pacientes, temos
dificuldades em encarar determinados aspectos e realidades, também nós temos um psiquismo
constituído por consciente e insconsciente, luz e escuridão, saber e desconhecido, momentos
de esclarecimento e outros de cegueira, porque antes mesmo de sonharmos com nossa
profissão, nascemos humanos.
Para concluir, cito um poema de Fernando Pessoa, que não apenas resume as ideias
aqui contidas, mas vai além, como toda arte, trazendo um farol de sabedoria e lucidez para
este trabalho:
Referências
SÓFOCLES. Édipo rei; Antígona: texto integral. Tradução de Jean Melville. São Paulo:
Martin Claret, 2006. (Coleção A obra-prima de cada autor).
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: v. 3: primeiras publicações psicanalíticas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 251-385.