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Entrevista: Philippe Dubois e a elasticidade temporal das imagens... https://revistazum.com.

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ENTREVISTAS

Entrevista: Philippe Dubois e a


elasticidade temporal das
imagens contemporâneas
Phillipe Dubois & Lúcia Ramos Monteiro
Publicado em: 07 de fevereiro de 2018
! "

Na videoinstalação Mar adentro, de Katia Maciel, o mar surge em ondas disparadas pelo
movimento dos pés no piso coberto de areia, extrapolando a experiência bidimensional e
contemplativa da imagem. Funarte, Belo Horizonte, 2015. Foto de Paula Moura. Cortesia da
artista.

Um dos mais importantes teóricos da imagem tecnológica


da atualidade, o belga radicado na França Philippe Dubois
(1952) notabilizou-se, ainda nos anos 1980, com o livro O
ato fotográfico. Na época, seu objetivo era pensar o
processo de realização da fotografia, do ato de fotografar à
recepção, relacionando-o a formas anteriores de
reprodução ou representação por meio de imagens não
realizadas pelo homem. Diferentemente da pintura ou da
escultura, o Santo Sudário seria um exemplo precoce desse
tipo de representação: o tecido que teria coberto Jesus
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Cristo depois de sua crucifixão traria o registro da imagem
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de seu corpo, sem que ela tenha sido feita pelas mãos de um ! " # $
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artista. Publicado em francês em 1983, O ato fotográfico foi
rapidamente traduzido para diversos idiomas. No Brasil,
lançado pela Papirus em 1993, está na 14a edição.

Seria um erro, no entanto, tentar circunscrever o


pensamento de Dubois, limitando-o ao campo estritamente
fotográfico: são as formas visuais que lhe interessam. E em
particular as zonas nebulosas de fronteira entre elas.
Dedicou-se, por exemplo, a pensar obras videográficas,
produzidas tanto por cineastas quanto por artistas, seja
para o universo da televisão como para o da arte
contemporânea. Fruto dessa reflexão, o livro Cinema,
vídeo, Godard (Cosac Naify, 2004) foi publicado
inicialmente no Brasil e, em seguida, lançado em outros
países. Na França, uma versão modificada dessa obra saiu
em 2011 como La question vidéo: entre cinéma et art
contemporain.

Professor do departamento de cinema e audiovisual da


Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, e professor
convidado em universidades brasileiras, como  a UFC
(Universidade Federal do Ceará) e a Unicamp (em
Campinas), o autor tem investigado mais recentemente os
conceitos de “pós-cinema” e “pós-fotografia”, temas do livro
que organiza em parceria com a professora da UFC Beatriz
Furtado, com lançamento previsto para este ano pelas
Edições Sesc. De acordo com a hipótese proposta por
Dubois, como consequência das tecnologias digitais de
produção e fruição das imagens, os limites entre fotografia
e cinema tornaram-se pouco nítidos e, talvez, a própria
distinção entre as duas linguagens seja, hoje, algo
anacrônico. A oposição entre fotografia e cinema calcada no
antagonismo entre imobilidade e movimento, que fez muito
sentido no século 20, se revelaria, assim, menos proveitosa
atualmente do que o pensamento mais amplo sobre aquilo
que ele chama de “elasticidade temporal das imagens
contemporâneas”.

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Seu primeiro livro, O ato fotográfico, publicado ! " # $
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originalmente em 1983, propunha-se a pensar a
relação entre fotografia e realismo a partir das
teorias de Roland Barthes. A inscrição da luz
refletida por um referente sobre a película
translúcida no momento preciso da tomada
garantia uma imagem sem mediação – ou quase.
Naquele momento, ainda era preciso reafirmar a
importância da fotografia como um análogo
objetivo do real. O famoso “ça a été” ou “isso foi”,
de Barthes, condensava a ideia do estatuto indicial
da fotografia, sua capacidade de gravar uma
realidade objetiva, algo que de fato ocorreu na
frente da câmera. A noção de impressão de uma
realidade na imagem era portanto fundamental
para O ato fotográfico. Com as tecnologias digitais,
esse cenário se altera. Ainda é possível afirmar,
como você fazia no livro, que “a imagem
fotográfica é impensável fora do ato que a gera”?
Em seus trabalhos recentes, você fala da passagem
da “imagem-rastro” para a “imagem-ficção”. O que
isso quer dizer exatamente?

Philippe Dubois: Em 1980, depois de ter concluído um


doutorado em Teoria Literária, um editor me propôs que
escrevesse um livro sobre fotografia. O assunto estava em
voga. Eu dava um curso sobre fotografia na época e
aproveitei a oportunidade de abandonar o tema de minha
tese, de me distanciar da literatura, e me concentrar em
outra coisa: a imagem. Me joguei no campo da teoria da
fotografia. Eu não tinha uma grande cultura no assunto,
mas esse campo teórico era bastante limitado à época.
Barthes havia lançado A Câmara Clara; alguns outros
livros estavam sendo preparados. Peguei o bonde andando
e escrevi O ato fotográfico rapidamente, em 1982, e ele foi
publicado em 1983. O que me fascinava, a mim e a
praticamente todos os teóricos daquela época, era que nada
estava verdadeiramente estabelecido até então. Havia um
discurso organizado sobre as imagens na pintura e sobre a
teoria do cinema, mas a teoria da fotografia se limitava a
uma dezena de livros, se tanto. E todos mais ou menos
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recentes. A fotografia oferecia uma imagem imediatamente
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constituída. Como dizia o slogan da Kodak: “basta um ! " # $
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clique: eles fazem o resto”. Ou seja, a tecnologia cuida do
restante. A fotografia era pensada como uma imagem de
coisas que estavam lá, presentes, como algo que não foi
construído, elaborado, mas que se instituía
“espontaneamente”. Esse era o fenômeno que eu tentei
conceituar, com base em um semiótico da época, Charles
Sanders Peirce (1839-1914), e nas teorias do index.

A ideia dominante do livro era a de rastro: a imagem é o


registro do mundo, com pouca mediação. Havia, é verdade,
as mediações técnicas: a imagem podia ser em preto e
branco ou em cores; ela era plana. É verdade que já
existiam textos anteriores de Siegfried Kracauer
(1889-1966), André Bazin (1918-1958) e Rudolf Arnheim
(1904-2007) evidenciando que a fotografia não é de fato
algo totalmente imediato. Mas, em comparação com a
pintura, que oferecia o grande modelo teórico existente até
então, ela trazia a diferença de não ser fabricada ponto por
ponto, elemento por elemento.

Esse discurso dos anos 1980 evoluiu muito pouco no campo


da teoria. Houve progressos importantes no campo da
história da fotografia, no da sociologia dos usos da imagem,
mas pouca novidade surgiu nas reflexões sobre a natureza
da imagem fotográfica. Em 2015, o Centro Pompidou
abrigou um colóquio intitulado Onde estão as teorias da
fotografia hoje?. A pergunta subentendida era: “O que
mudou desde o digital?”. A ideia de rastro, justamente,
havia deixado de ser dominante. A maioria dos convidados,
americanos, alemães, franceses, não havia avançado muito
sobre essa questão. Ainda discutíamos o vestígio, a
impressão, o “ça a été” (“isso foi”), o index, o índice e assim
por diante.

É nesse momento que surge a ideia de imagem-


ficção em oposição à imagem-rastro?

PD: Eu havia sido convidado para esse colóquio enquanto


representante do “velho mundo” dos anos 1980, por ter
escrito O ato fotográfico. Levei a demanda a sério e quis
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refletir sobre o que de fato mudou na teoria. Foi então que
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construí minha ideia. Passei a outro campo do saber, não ! " # $
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mais aquele da semiologia ou da filosofia de Roland Barthes
e Peirce, mas o da teoria dos mundos possíveis, que tem sua
origem na filosofia. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716)
foi seu iniciador. No início do século 20, essa teoria ganhou
interesse renovado, concentrando-se sobretudo na ficção
literária. Um mundo romanesco é um mundo possível, que
tem sua lógica, sua verossimilhança, suas regras e critérios.
É como o mundo real, mas não é um mundo real, existindo
paralelamente a ele. De tempos em tempos, o romance dito
realista se pretende “reflexo” do mundo real, mas, por sua
própria natureza de objeto literário, de pura ficção, trata-se
de uma invenção, mais ou menos calcada no real. O
importante é que ele tenha suas próprias regras enquanto
mundo fictício possível, e pressupõe, portanto, um contrato
de crença: deve-se acreditar na existência desse mundo,
mas como mundo virtual, que existe apenas em
pensamento. Muito se escreveu a respeito da teoria dos
mundos possíveis aplicada à literatura, na Lógica e na
Teoria Literária.

Tentei então interrogar se, no domínio do visual, também


seria possível basear-se na teoria dos mundos possíveis.
Poderia a invenção de um mundo visual ser descrita em
termos de mundos fictícios? Ou seja, de um mundo possível
existindo paralelamente ao mundo real e com ele nutrindo
relações variadas, ora de reprodução, imitação, ora de
ausência total de possibilidades do mundo real? Um mundo
de pensamento, que existiria apenas na imagem. Esse
campo foi um pouco explorado, não tanto nas teorias da
pintura, mas no pensamento ligado à imagem, em especial
ao cinema, que desenvolveu ele próprio ficções de mundos
possíveis. Matrix [Lana e Lili Wachowski, 1999] é um
exemplo canônico: ele traz um mundo possível, que poderia
existir e que tem suas lógicas próprias.

Ninguém até agora havia aplicado a teoria dos mundos


possíveis ao universo da fotografia. Pareceu-me
interessante interrogar a fotografia sob essa perspectiva. Se
a fotografia não se destina mais a ser a impressão do
mundo, o rastro de algo que esteve ali e que foi registrado
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em uma imagem, se posso ter nela um animal de cinco
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patas e um peixe coberto de pelos [referência ao trabalho do ! " # $
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artista conceitual catalão Joan Fontcuberta (1955), que a
partir de suas mais célebres séries, como Fauna (1987) e
Sputnik (1997), vem questionando a verdade da
fotografia.], será que ela deixa de ser encarada como
vestígio do mundo? Como rastro de algo que ocorreu? Ela
pode então ser pensada como uma invenção em si, que não
deve mais ao mundo outras relações a não ser a de ser um
mundo paralelo, com regras próprias, e não mais a reprise
deste mundo em uma imagem.

Truta peluda do Lago Clifford, imagem da série Fauna, de Joan Fontcuberta, 1987 © Joan
Fontcuberta

Há algo de pós-verdade nessa visão, o que nos leva


a rever as funções da fotografia. Se característica
indicial fazia com que ela pudesse servir de prova e
de lembrança, será que hoje a função dêitica
tornou-se predominante? No lugar do “isso foi”,
haveria hoje sobretudo um “estou aqui” que é
passível de invenção, de ficcionalização?

PD: O exemplo mais evidente do que você descreve está


nos usos ordinários da fotografia. Hoje, com um celular,
todo mundo tira fotos o tempo inteiro: da mulher, do bebê,
dos pais, do que se vai comer no restaurante, do pôr do sol
na praia… A questão é: são mesmo fotografias? Temos o
impulso de classificá-las na categoria das
“fotografias/rastros da vida” como nos álbuns de antes. Mas
fazemos tantas que os álbuns deixaram de existir, assim
como o suporte. Claro, algumas imagens podem ser
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impressas e afixadas na parede, mas a maioria permanecerá
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como arquivo digital no telefone móvel. Talvez as ! " # $
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transfiramos para o computador para passar num slide-
show como fundo de tela. É o que essas imagens fazem:
circular, passar. É diferente da marca sobre o papel
encarnada pela velha lógica da fotografia analógica.

Com as redes sociais, a função mais importante das fotos do


cotidiano é a circulação, seja no Instagram, no Facebook ou
em outros aplicativos. “Você viu? Estou aqui!”. Já não se
trata mais de imagens-memória ou imagens-monumento
para serem conservadas, mas de imagens que circulam para
desaparecerem tão rapidamente quanto aparecem. Não há
lista ou álbum. Elas sequer são inventariadas. Logo se
apagam, sem uma inscrição para durar. A lógica da
estocagem se opõe à do fluxo. A fotografia se torna, assim,
um objeto de circulação, elemento de fluxo.

Hoje em dia, quando falo aos estudantes do autorretrato


fotográfico, eles logo pensam nas selfies. Não é fácil fazê-los
entender que são coisas bem distintas. O autorretrato não é
apenas uma imagem de si, mas uma imagem de si no
mundo. É assim tanto uma imagem do mundo em nós
quanto de nós no mundo. Essa relação do sujeito no mundo
é constitutiva da própria ideia de autorretrato desde suas
origens, na pintura ou na literatura. O livro de Michel
Beaujour, Espelhos de tinta. Retórica do autorretrato
(Miroirs d’encre), trata dessa questão. O autorretrato se
define pela dialética entre o sujeito e o mundo que o rodeia.
O que faz exatamente quem tira uma selfie em frente à
Torre Eiffel? Ele dá as costas ao monumento, direciona o
aparelho para si e deixa a Torre Eiffel como pano de fundo.
É a negação da relação com o mundo e a afirmação em
looping do “eu me olho no meu aparelho que me olha
enquanto poso e eu não olho o que está atrás”. A imagem é
imediatamente enviada ao amigo que permaneceu do outro
lado do mundo, como um atestado de presença: “estou em
Paris”. A cidade é um pano de fundo. A relação do sujeito
com o mundo se resume a uma relação de presença, e não
mais de confrontação, apreensão, compreensão, intelecção.
O mundo torna-se apenas cenário e a única coisa que conta
é o eu frente a mim mesmo.
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Os detalhes terríveis, de Eric Baudelaire, 2006, é composto por duas fotografias feitas em um
set de filmagens nos Estados Unidos simulando uma ação do exército norte-americano na
Guerra do Afeganistão. C-print 209 x 375 cm (díptico). Comissionado pela CNAP e cortesia
ADAPG.

Mas entre os usos atuais da fotografia, a prova pela


imagem permanece em vigor, apesar das
trapaças…

PD: Sim e não. Já na época da fotografia analógica a função


de prova pela imagem se reduzia a algumas poucas
situações. Uma imagem atestava simplesmente que o que se
via nela tinha de fato existido. Era um atestado de
existência, não uma demonstração de sentido. Sempre se
pode fazer com que a imagem diga o que se deseja. Desde
antes do digital havia trucagens e manipulações. A imagem
sempre foi passível de intervenções. Já se duvidava
bastante do estatuto de prova. Podem-se apagar ou
acrescentar coisas. Fotografias de políticos na China ou na
Rússia eram retocadas, agregando-se ou subtraindo-se
generais aos retratos de grupo. Hoje ocorre algo mais
profundo. Além da ideia de que a fotografia pode ter sido
manipulada, que sempre existiu, algo em sua própria
natureza foi colocada em dúvida. Uma foto digital pode
fazer com que diversos elementos intervenham, pode
relacionar de mil maneiras, e com facilidade
desconcertante, fundos e primeiros planos. Com qualquer
programa de tratamento de imagem, faço em segundos uma
selfie em frente a um monumento de Pequim – ainda que
eu nunca tenha pisado ali. A desconfiança com relação à
veracidade é hoje geral. Muitos fotógrafos, sobretudo
fotojornalistas, usaram e abusaram. O caso mais célebre é o
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de Eric Baudelaire, com suas manipulações de imagens de
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guerra pretensamente feitas nos campos de batalha do ! " # $
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Iraque. São imagens trucadas, compostas digitalmente e
apresentadas em concursos como sendo reais, a ponto de
enganarem jurados profissionais. A imagem digital, com
suas possibilidades de construir mundos que não guardam
elo físico com o real, está generalizada. Não há mais
nenhuma certeza com relação à função de prova de uma
fotografia. Mas é possível acreditar nela, como em uma
ficção.///

Philippe Dubois (1952) é professor no departamento de


Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle
– Paris 3 e membro sênior do Instituto Universitário da
França (IUF).

Lúcia Ramos Monteiro é doutora em cinema pela


Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pesquisadora
de pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), com financiamento
da Fapesp.

Tags: Entrevista, filosofia da imagem, Pós-cinema, pós-fotografia

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