Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
É fato também que há memórias (imagens) mais acessíveis ao eu, justamente por serem
recorrentes ou repetidas. Há outras – como algumas da infância – mais distantes, difíceis de
serem puxadas à consciência. Isto tudo depende da disposição do eu: se você leu com
atenção as palavras de Bergson, notou que ele faz uma forte ligação entre a ação presente e
a evocação de imagens da memória. Em outras palavras, as imagens que “subirão”
dependem, em grande parte, do eu presente que está interessado em algo, inclinado em
direção a algum aspecto da própria vida, com abertura de alma, etc.
Leia novamente este trecho do filósofo francês: "Para que uma lembrança reapareça à
consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o
ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o
apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação
presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida."
“É do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde”. Se algo aconteceu, se algo
você fez e, portanto, está no seu passado, isto não está absolutamente perdido. Isto precisa,
apenas, de uma provocação, investigação ou “empurrão” do eu-presente. É preciso, mais
do que qualquer coisa, querer saber de si mesmo. Quem quer que diga que nada lembra
do próprio passado está apenas confessando que não tem real e verdadeiro interesse na
própria história (excluindo, claro, as doenças da memória).
Você está ou não disposto a investir sobre si mesmo? Quer ou não mergulhar na própria
história?
É disto que trata, inclusive, o filme “Inverno da Alma”: aquele brava menina precisa ir em
direção à história familiar e pessoal em busca de seu pai. Só encontrando-o ela “salvará a
própria casa”. Veja que simbolismo evidente! A cena em que ela põe a mão na lama para
puxar um pedaço do corpo do pai não poderia ser mais clara: é preciso ir até o fundo para
arrancar do esquecimento a trajetória pessoal.
A vontade e bravura da personagem em ir busca de si mesma deve servir como modelo
para nós, sujeitos também de uma história pessoal e intransferível.
Leia também esta reflexão sobre a memória, tirada das anotações da professora
Luciane Amato para seu curso Autobiografia e Literatura.
MEMÓRIA
Não há nada de mais pessoal, de mais íntimo e mais secreto do que a memória.
O dever de memória, de que se fala hoje em dia, não é uma obrigação que se deveria opor
ao trabalho de memória. Ele coroa-o. No sentido de que o encoraja sob a forma de uma
exortação a continuar a narrar, ainda e sempre; não se trata de um imperativo que visa
intimidar os modestos e a denunciar os desertores. Uma exortação a fazer o trabalho da
memória contra, simultaneamente, o esquecimento e a repetição nostálgica. O bom uso das
feridas da memória resume-se na fidelidade a essa exortação.
Além disso, o dever da memória confere uma dimensão moral e política ao dever de
memória sob o signo da justiça. Fazer justiça aos de outrora, conhecidos, desconhecidos e
ignorados. O sentido da justiça não visa estabelecer uma escala dos méritos, mas ajudar
cada um a encontrar o seu lugar e distância adequados aos protagonistas que a nossa
história nos fez cruzar em diversos papéis. Mas o sentido da justiça lembra-nos sobretudo
duas coisas: que é, antes de mais, às vítimas que a justiça é devida, — mas que em todas as
circunstâncias uma vida vale tanto como outra: nenhuma é mais importante do que outra.
Nem o trabalho de memória nem o dever de memória podem ser levados a cabo sem um
outro trabalho, o trabalho de luto. O luto é diferente da lamentação. É uma aceitação da
perda dos entes queridos e de tudo aquilo que nunca mais nos será restituído. É preciso
aceitarmos que haja o irreparável nas nossas posses, o irreconciliável nos nossos conflitos,
o indecifrável nos nossos destinos. Um luto conseguido é a condição de uma memória
pacificada, e nessa medida, feliz.
***
Prof. Tiago