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Reparto com você o que não é meu

FERREIRA GULLAR
Folha de S. Paulo
Ilustrada, São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os


lances sem roubar (Baudelaire)

NÃO É por falta de assunto. É que nada que escrevesse daria ao leitor tanto prazer quanto o que
se segue:
-Comigo a anatomia ficou louca: sou todo coração (Maiakóvski).
-O pensamento se faz na boca (Tristan Tzara).
-Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma
mesa de necrotério (Lautréamont).
-Quando as mulheres vão urinar, as árvores olham e não dizem nada (poema dos índios
Macunis).
-Pulo das páginas em teus braços (Walt Whitman).
-Não há lugar para a morte; sempre vivos, os seres retornam todos ao céu, em esferas de luz
(Virgílio).
-Se, hoje, o arcanjo, uma ameaça detrás das estrelas, desse um passo apenas em direção a nós,
nosso coração, sobressaltado, explodiria (R. M. Rilke).
-Após nossa morte, deveriam nos meter numa bola; essa bola seria de madeira e de várias cores.
Rolariam a bola para nos conduzir ao cemitério e os papa-defuntos encarregados dessa tarefa
usariam luvas transparentes para despertar nos amantes a lembrança das carícias (Francis
Picabia).
-Desse pão não comerei (Benjamin Péret).
-É preciso esgotar o campo do possível (Holderlin).
-Se a aparência expressasse a essência, a ciência seria desnecessária (Karl Marx).
-Os poetas não mandam no que cantam (Homero).
-A natureza ama se ocultar (Heráclito de Éfeso).
-Boca de fonte, oh boca generosa / dizendo sempre a mesma água clara (R. M. Rilke).
-Aqui é a escola das árvores. Estão aprendendo geometria (Raul Bopp).
-A noite está bonita. Parece envidraçada (Raul Bopp).
-Eu te mostrarei o medo num punhado de pó (T. S. Eliot).
-Irmã sem memória, morte, com um só beijo me tornarás igual ao sonho (Giuseppe Ungaretti).
-Na casa havia nove irmãs. Uma foi comer biscoito. Deu o tangolomango nela, não ficaram
senão oito (folclore).
-Fixava vertigens (Arthur Rimbaud).
-Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (C. Baudelaire).
-Mas a coisas findas; muito mais que lindas / essas ficarão (Carlos Drummond de Andrade).
-Então a nuvem passou e o tanque estava seco / Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão
cheias de crianças, ali escondidas e excitadas, contendo o riso / Vai, vai, vai, disse o pássaro: o
espírito humano não suporta tanta realidade (T. S. Eliot).
-No ponto em que estamos, não há nenhum temor urgente (René Char).
-Voltei lá onde jamais estivera. Nada do que não era tinha mudado. Sobre a mesa (a toalha de
linóleo em quadrados); reencontrei pela metade, o copo que jamais se enchera. Tudo continuava
tal como nunca havia deixado. (Giorgio Caproni).
-Alguém moveu Sírius de um lado para o outro (Murilo Mendes).
-E os chapéus das mulheres que passam são cometas no incêndio do anoitecer (Blaise Cendrars).
-Uma floresta cujos pássaros são todos de chamas (André Breton).
-Os bombons e as flores me dão dor de dentes (Francis Picabia).
-Minha mãe tocava piano no caos (Murilo Mendes).
-O poeta futuro cai do velocípede (Murilo Mendes).
-Se dom Pedro 2º vier aqui com história, eu boto ele na cadeia (Oswald de Andrade).
-Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre a legião dos anjos? (R. M. Rilke).
-Para onde caminha minha sombra / neste cavalo de eletricidade? (Augusto dos Anjos).
-Já vai escurecendo / o sangue pára de arder / Agora o que digo acendo / para não me perder
(Vitorino Nemésio).
-Quem fizer amor dormindo / é logo expulso do sono (Jean Cocteau).
-Por ter roubado a Nissus, cabelos de púrpura / sua filha traz cães furiosos no púbis e nas
virilhas (Ovídio).
-Meu amor de nádegas de primavera (André Breton).
-A mulher do fim do mundo / chama a luz com um assovio (Murilo Mendes).
-Mais abaixo que eu, sempre mais abaixo que eu, se encontra a água. É sempre de olhos baixos
que a vejo (Francis Ponge).
-Mal entrava no mato, era um delírio / Os papagaios se reuniam em bando, protestando / como
um verde comício (Cassiano Ricardo).

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