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EDIÇÃO 164 | MAIO_2020

questões midiáticas

O QUE MOVE A CNN BRASIL


Com dois sócios que sempre estiveram ao lado do poder, a nova emissora tenta mostrar que pode ser
independente
FABIO VICTOR

O switcher, a sala de onde se controla tudo o que vai ao ar: o dono da CNN, Rubens Menin, também é austero em casa. Ele e a
família têm um grupo de WhatsApp para discutir cortes nos gastos domésticos. O grupo chama-se Tesoura CREDITO:
RICARDO FROTA_2020

C
om luzes vermelhas projetadas sobre toda a circunferência da sua
cúpula de concreto, a Oca parecia uma nave futurista de seriado
antigo. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer como uma
homenagem modernista à habitação indígena que lhe empresta o nome,
o prédio, localizado dentro do Parque do Ibirapuera em São Paulo,
estava em festa na noite de 9 de março passado. Na entrada, um enorme
letreiro, também vermelho, berrava o nome do anfitrião: CNN. Lá
dentro, havia mais de 1 300 pessoas, às quais ao final da noite garçons
ofereceram espumante francês La Roche Brut (40 reais a garrafa),
canapés, porções de massa e cuscuz marroquino, enquanto um
saxofonista que recorria ao auxílio do playback tocava músicas de
elevador. Estavam ali políticos, empresários, banqueiros, publicitários,
jornalistas, cinco governadores de estado e a elite dos três poderes da
República.

A noite de celebração tentava abrandar um dia de pânico nos mercados


ao redor do mundo. No Brasil, a Bolsa despencara 12,17%, a maior
queda desde 1998. A guerra em torno do preço do petróleo travada entre
Arábia Saudita e Rússia era um dos motivos para o pandemônio global,
mas por trás dessa crise pontual se escondia uma outra, infinitamente
maior, que crescia desde o começo do ano: a do novo coronavírus.
Àquela altura, o Brasil contabilizava apenas trinta casos de Covid-19 e
nenhuma morte. Dois dias depois da festa, em 11 de março, a onu
classificou a contaminação como pandemia. Quatro dias depois da festa,
o governo de São Paulo determinou a suspensão de eventos públicos com
mais de quinhentas pessoas. Oito dias depois da festa, morreu o
primeiro brasileiro com a doença. Os mais de 1 300 convidados da CNN
Brasil que lotavam a Oca não sabiam, mas aquela era a última reunião
social que frequentariam por muito tempo.

No subsolo da Oca, a plateia, distribuída em cadeiras provisórias, ficou


diante de um imenso painel com cinco monitores gigantes de tevê. Nas
telas, apareceram os executivos Randall Stephenson, presidente mundial
da AT&T, a gigante norte-americana de telefonia e dona da
WarnerMedia, e Jeff Zucker, presidente mundial da CNN, dando boas-
vindas à nova parceira. Stephenson disse que o Brasil “é um mercado
muito importante para o setor de mídia e entretenimento da AT&T” e
que o “arcabouço regulatório do Brasil parece estar indo na direção
certa”. Ambos tinham sido impedidos de vir ao país por causa das
restrições impostas pela pandemia do coronavírus. No palco em frente
ao painel, todos os apresentadores do canal foram mestres de cerimônia,
a começar por William Waack e Monalisa Perrone, dois jornalistas com
passagem pela TV Globo. Coube a ela chamar ao palco o grande nome
da noite, o empresário mineiro Rubens Menin, principal investidor da
CNN Brasil, cujo discurso durou onze minutos e tentou responder uma
questão recorrente desde o anúncio do projeto, há quase um ano e meio.

“Muitas pessoas me perguntam”, começou Menin. “Mas por que CNN?”


Em seguida, desfiou a resposta. “Muito simples, pessoal. Eu sou
brasileiro, moro no Brasil, amo esse país, minha família toda mora aqui,
meus filhos, meus netos, temos negócios neste país. E o que a gente mais
quer é que este país vá para a frente. Só isso já seria suficiente para levar
este projeto adiante.” Menin listou então as três razões que o levaram a
abrir a CNN Brasil. Disse que, com sua emissora, quer ajudar a
melhorar o ambiente de negócios no Brasil, reverter o êxodo de
brasileiros para outros países e, por fim, estimular a filantropia, coisa
que a imprensa, na sua avaliação, deveria fazer e pouco faz.
Horas antes de Menin subir ao palco, seus principais negócios, uma
construtora e um banco, estavam derretendo na Bolsa de Valores. A
MRV é a maior empreiteira residencial do Brasil. Teve lucro de 690
milhões de reais no ano passado e gera cerca de 25 mil empregos diretos
e indiretos. Fundada em 1979, deu seu grande salto durante os governos
do PT, quando passou a ser a estrela do programa habitacional Minha
Casa Minha Vida (MCMV). Em onze anos, desde a criação do MCMV
até fevereiro passado, a construtora recebeu 33,98 bilhões de reais,
recursos da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
No dia da festa, ao final do pregão, as ações da MRV caíram 11,27%. O
Banco Inter, joia do patrimônio de Menin, é um dos cinco maiores bancos
digitais do país. Tem 5 milhões de correntistas e lucrou 81,6 milhões de
reais no ano passado, quando seu valor de mercado estava estimado em
16 bilhões de reais. Mas, naquela segunda-feira, as ações do banco
caíram 22,71%. Mesmo assim, Menin discursou sem abalo. Como que
para frisar a seriedade do seu compromisso filantrópico, afirmou: “Eu,
pessoalmente, não tenho vergonha de falar, nos últimos cinco anos
investi 50 milhões de reais em filantropia.” A plateia aplaudiu. “E nos
próximos cinco anos resolvemos investir 100 milhões de reais.” A plateia
voltou a aplaudir.

A
notícia de que Menin se associara ao jornalista Douglas Tavolaro
para trazer ao Brasil a franquia da CNN veio a público em 14 de
janeiro de 2019. Até então, Tavolaro ocupara o cargo de vice-
presidente de Jornalismo da TV Record, emissora do bispo Edir Macedo,
fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Deixava a
empresa, na qual trabalhara por dezessete anos, para liderar a
implantação do novo canal de notícias na tevê paga brasileira.

Douglas Tavolaro de Oliveira, 42 anos, vem de uma família de classe


média do Tatuapé, bairro da Zona Leste de São Paulo. O pai, que ele
define como “metalúrgico”, tinha uma pequena firma de ferro e aço, e a
mãe era dona de casa. Tavolaro se formou em jornalismo na Faculdade
Cásper Líbero. Em 2001, publicou na revista IstoÉ seu relato sobre as 24
horas em que ficou como refém de presos rebelados na antiga Casa de
Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, onde fora fazer uma
reportagem a respeito do trabalho de evangélicos nas prisões. No ano
seguinte, publicou em livro seu trabalho de conclusão de curso, A Casa
do Delírio: Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. No
mesmo ano, chegou à TV Record para ser produtor e editor. Três anos
depois, virou diretor do Departamento de Jornalismo e, em seguida,
vice-presidente. Sob seu comando, o jornalismo ganhou mais espaço na
emissora. Ele apostou em programação ao vivo e reportagens
investigativas, e reforçou a rede de afiliadas.

Em quase duas décadas na Record, Tavolaro conquistou a confiança do


bispo Edir Macedo. Assumiu um papel mais institucional e tornou-se um
articulador político da emissora, servindo como elo entre o dono do
canal e os governantes. Um grampo revelado pelo site BuzzFeed News
em 2017 sugere que Tavolaro cobrou um patrocínio em troca de uma
entrevista para a emissora – um desvio ético inadmissível no bom
jornalismo. Na gravação, Tavolaro conversa com o então senador Aécio
Neves (PSDB-MG) sobre o interesse do Palácio do Planalto em que a
emissora entrevistasse o então presidente Michel Temer. A certa altura,
Tavolaro afirma: “Só tem um jeito de sair. Se tiver uma coisa, entendeu?”
Na ocasião, o ministro Moreira Franco, que pleiteava a entrevista com
Temer, solicitara à Caixa Econômica Federal “uma avaliação a respeito
da possibilidade de patrocínio ao Grupo Record”. O patrocínio não saiu,
nem a entrevista. Na época, a Record negou que, na conversa com Aécio
Neves, Tavolaro estivesse negociando uma entrevista. Justificou que, no
diálogo, o executivo “trabalhava com suas fontes para conseguir as
informações e a primazia” e disse que a entrevista com Temer não foi
feita porque a emissora pediu exclusividade, o que não foi atendido. O
Palácio do Planalto deu uma versão distinta: declarou que nem sequer
houve pedido de entrevista. Indagado hoje sobre o assunto, Tavolaro
reitera a resposta dada pela emissora na época. “Foi aquilo que a Record
publicou mesmo”, disse.

A Igreja Universal e a TV Record apoiaram todos os governos desde a


redemocratização. Demonizaram o PT e seus candidatos até aderirem a
Luiz Inácio Lula da Silva às vésperas da vitória do candidato na eleição
de 2002. Mantiveram uma relação fraternal com Lula e sua sucessora,
Dilma Rousseff, mas apoiaram o impeachment dela na primeira hora,
assim como endossaram o seu sucessor, Michel Temer. Em 2018, Edir
Macedo anunciou pelo Facebook ainda no primeiro turno seu apoio à
candidatura de Jair Bolsonaro, quando o atual presidente liderava as
pesquisas. Coube ao então vice-presidente de Jornalismo adequar a linha
editorial da emissora à preferência do seu dono.

Na campanha presidencial, Tavolaro frequentou a casa do empresário


Paulo Marinho no Rio, onde funcionou o quartel-general de Bolsonaro.
Como mandachuva do jornalismo da Record, liderou uma das
coberturas mais enviesadas da história recente da tevê brasileira.
Quando um simpatizante bolsonarista matou a facadas um simpatizante
do petista Fernando Haddad em Salvador, o mestre de capoeira Moa do
Katendê, a emissora nem sequer noticiou o assassinato, relegando o caso
a um breve registro no portal do grupo na internet, o R7. O crime rendeu
a Bolsonaro acusações de que a intolerância do candidato contaminava
seus seguidores. Uma semana antes do segundo turno, o Domingo
Espetacular, programa de notícias e variedades da emissora, divulgou
as manifestações de rua a favor de Bolsonaro e de Haddad. Segundo a
Folha de S. Paulo, deu 1 minuto e 40 segundos para as manifestações
pró-Bolsonaro e 20 segundos para as pró-Haddad. Jornalistas da
emissora chegaram a procurar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo
para se queixar do desequilíbrio editorial da emissora. Incomodada com
a orientação para preservar Bolsonaro no noticiário, a chefe de redação
do Jornal da Record, Luciana Barcellos, pediu demissão.
Na Record, Tavolaro tinha rendimentos de alto executivo, na faixa dos
200 mil reais mensais. Tornou-se um homem rico, mora numa casa de
alto padrão no bairro paulistano dos Jardins e ganhou muito dinheiro
com a participação nas vendas de livros e filmes sobre o chefe. Além de
ter escrito, em 2007, com Christina Lemos, uma biografia do líder
religioso (O Bispo – A História Revelada de Edir Macedo), ele foi coautor
dos três volumes de Nada a Perder, memórias de Macedo, que
venderam, segundo anúncio da editora Planeta, “mais de 7 milhões de
exemplares em todo o mundo”. Tavolaro foi também coautor de A Dama
da Fé, memórias da mulher do bispo, Ester Bezerra, e de Morri para
Viver, que conta a história da ex-modelo Andressa Urach, que se
converteu à Igreja Universal. Calcula-se que, com os seis títulos,
Tavolaro pode ter recebido mais de 30 milhões de reais em direitos
autorais.

No cinema, uma indústria bem mais lucrativa, Tavolaro produziu dois


filmes baseados na trilogia biográfica do bispo Macedo, que renderam
algo em torno de 180 milhões de reais – neste caso, ele diz ter recebido
valores fixos pelo trabalho, sem revelar quanto. Nada a Perder 1,
lançado em 2018, entrou para a história como a maior bilheteria do
cinema nacional, com 12 milhões de ingressos vendidos. A sequência,
Nada a Perder 2, que chegou às telas em agosto de 2019, vendeu 6,1
milhões de ingressos. Antes, em 2016, também havia produzido Os Dez
Mandamentos: O Filme, uma adaptação da novela homônima
apresentada pela Record, que vendeu 11,2 milhões de ingressos.
Nenhum desses números, porém, deve ser tomado pelo seu valor de
face. Afinal, como foi noticiado pela imprensa na época, a igreja
distribuiu ingressos entre os fiéis, fazendo com que os filmes fossem
exibidos com lotação esgotada, mas muitas vezes com plateias vazias.
No caso dos livros, bispos da Universal compravam vastas quantidades
de exemplares para distribuí-los nas igrejas.
E
m 2017, deu-se uma breve confluência de interesses. A CNN
International Commercial, responsável pelas parcerias da empresa
norte-americana, há muito desejava abrir uma franquia no Brasil,
nos moldes do que já ocorria em países como Turquia, Japão, Índia,
Indonésia e Filipinas. Naquele ano, a TV Record considerava abrir mão
da Record News, o seu canal de notícias que jamais vingou, para ter no
lugar uma licenciada da CNN. Tavolaro participou da negociação, que
acabou terminando sem nenhum acordo. A Record diz que a CNN
exigia controle editorial e a maior parte do faturamento. “Era muito
para eles e nada para nós”, diz um executivo da Record, que pede para
não ser identificado para não se indispor com seus superiores. Procurada
pela piauí, a CNN International Commercial declarou que não comenta
o assunto. Nos bastidores da CNN Brasil, corre uma única versão: a de
que a empresa norte-americana não quis selar uma parceria com a
emissora do bispo em função de seus vínculos religiosos e políticos – a
Igreja Universal é ligada ao Republicanos, partido que sucedeu o antigo
PRB.

Como a negociação não prosperou, Tavolaro começou um voo solo ao


ser, segundo ele, procurado por executivos da CNN International
Commercial. Entabulou as conversações em nome próprio, embora
ainda fosse vice-presidente da Record. Nos Estados Unidos, em Nova
York e na cidade de Atlanta, onde fica a sede da CNN, Tavolaro passou
a tratar dos aspectos editoriais de um possível contrato. Com o escritório
de Londres, base da CNN International Commercial, discutia sobre a
questão comercial. Como as conversas evoluíam bem, um grupo de
representantes da CNN veio ao Brasil para sabatiná-lo. Durante quase
um ano, o jornalista empenhou-se em viabilizar a parceria. Contratou
uma consultoria para auxiliá-lo a elaborar um plano de negócios e
montou, com auxílio dos norte-americanos, um plano editorial cujos
detalhes discutia, discretamente, com funcionários de sua confiança na
Record – alguns desses profissionais, posteriormente, foram contratados
para trabalhar na cnn Brasil.
“Eu tinha o sonho de empreender”, disse Tavolaro. “Pensava no meu
futuro. O que iria fazer da minha vida, da minha carreira, como poderia
crescer? Poder me tornar sócio de um projeto como o da CNN é o sonho
da minha vida”, completou ele, na sala de reuniões da sede da emissora
em São Paulo, de cuja janela pode-se avistar o prédio da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e uma banca de revista que se
chamava Terceiro Milênio e, agora, patrocinada pelo novo vizinho,
mudou o nome para Banca CNN Brasil. Quando examinava sua
trajetória na Record, o jornalista não via futuro para crescer. Os
presidentes da emissora sempre tiveram uma condição que lhe faltava:
eram todos bispos da Universal. Tavolaro se diz cristão, mas não
informa se é adepto de alguma religião ou igreja. (Em dezembro de
2017, ele casou com Raissa Caroline Lima, numa cerimônia celebrada
pelo bispo Macedo. Raissa é ex-assessora do partido do bispo na
Assembleia Legislativa de São Paulo. Deixou o cargo depois que uma
reportagem do site The Intercept Brasil mostrou indícios de que ela era
funcionária fantasma. Responde a uma ação por enriquecimento ilícito e
improbidade administrativa, na qual teve 164 mil reais bloqueados pela
Justiça. Ela sempre negou a acusação e disse que exercia efetivamente as
atividades do cargo.)

Na negociação com a CNN, Tavolaro precisava de um investidor – e


sacou da manga um nome: Rubens Menin. “Eu disse: conheço um
empresário que tem gestão de excelência, está bem capitalizado, tem
uma construtora que é um sucesso, um banco que é um sucesso, é uma
pessoa séria e é um amigo.” A construtora MRV era anunciante na
Record e fora uma das patrocinadoras das cinebiografias do bispo Edir
Macedo, mas quem aproximou Tavolaro e Menin foi um amigo em
comum: o empresário Flávio Carneiro, ex-sócio do Grupo Bel, dono de
uma afiliada da TV Record em Varginha, no interior de Minas Gerais.
Em 2013, o Grupo Bel comprou da Record o jornal mineiro Hoje em Dia,
um negócio que rendeu a Flávio Carneiro uma investigação do
Ministério Público. Junto a Aécio Neves e a irmã dele, Andréa Neves,
Carneiro é investigado por suspeita de desvio de recursos públicos e
pagamento de propina na compra do jornal.

Tavolaro foi apresentar o projeto a Menin na sede do Banco Inter em São


Paulo, no oitavo andar de um prédio empresarial na Avenida Juscelino
Kubitschek, bairro do Itaim Bibi. Na conversa de duas horas, em que o
anfitrião lhe serviu pão de queijo, Tavolaro exibiu o plano de negócios e
o projeto editorial que havia bolado com a CNN. Martelou que a marca
norte-americana era um símbolo mundial e que, bem trabalhada,
poderia ser um bom investimento. Ressaltou seu currículo na Record e
lembrou que tinha expertise em se contrapor à TV Globo, o que poderia
ser um trunfo, já que a CNN Brasil competiria com a GloboNews, o
canal pago de notícias do grupo carioca. No dia seguinte, Menin
telefonou para Tavolaro: “Estou dentro.”

Os dois foram então à sede da CNN em Atlanta, onde Menin conheceu a


empresa e foi aprovado como investidor. Quando o contrato de
licenciamento da marca estava prestes a ser assinado, Tavolaro procurou
o bispo Edir Macedo para avisar sobre sua saída da Record. Era o Natal
de 2018. O bispo estava em Lisboa e pediu que o executivo fosse até lá.
No dia 25 de dezembro, Tavolaro pegou um voo da Latam e partiu ao
encontro de Macedo. Chegou na manhã do dia 26 e, à tarde, se dirigiu
ao local onde o bispo estava hospedado, um apartamento dentro do
Templo Maior, sede da Igreja Universal na capital portuguesa, no bairro
de Chelas. Pela versão do jornalista, confirmada por fontes ligadas ao
bispo, Macedo aceitou bem a saída de Tavolaro, em consideração à sua
lealdade durante quase duas décadas. O líder religioso encorajou o
interlocutor a “seguir seu sonho”, mas fez três pedidos. Que Tavolaro
esperasse quinze dias para anunciar sua saída, que sugerisse um
sucessor (o indicado foi Antonio Guerreiro) e que a CNN não contratasse
nenhum apresentador da Record. Tavolaro prometeu cumprir as três
exigências. No dia seguinte, 27 de dezembro, embarcou num avião da
United Airlines para Nova York, onde se encontrou com seus futuros
parceiros para acertar detalhes finais. Procurado pela piauí, o bispo
Macedo não quis dar entrevista.

A
saída de Tavolaro da Record pode ter sido amigável, mas
fomentou uma versão prejudicial para seu novo negócio – a de que
o bispo Edir Macedo seria, na verdade, sócio oculto da CNN Brasil,
e Tavolaro, seu testa de ferro na nova emissora. A suspeita é tão
incômoda que os representantes da CNN introduzem o assunto sem que
o interlocutor o mencione. Argumentam que um empresário do porte de
Menin não precisaria de investidor oculto, e nem uma empresa do porte
da WarnerMedia toleraria um negócio dessa natureza.

O rumor ganhou mais tração quando se soube que a cúpula do


jornalismo da Record estava se transferindo em peso para a CNN.
Leandro Cipoloni, diretor da Record, virou vice-presidente de
Jornalismo da nova emissora. Virgílio Abranches, outro diretor da
Record, é agora vice-presidente de Programação e Multiplataforma da
CNN. Outros quatro integrantes da linha de frente do jornalismo da
Record – André Ramos, Fabiano Falsi, Givanildo Menezes e Roberto
Munhoz – foram contratados como diretores do novo canal. Marcus
Vinicius Chisco, ex-marido de uma sobrinha de Edir Macedo e também
egresso da Record, é o responsável pela área comercial da CNN.

Em setembro do ano passado, os rumores de uma aliança clandestina


entre a CNN e o bispo tomaram outra direção. A CNN Brasil anunciou a
contratação do apresentador Reinaldo Gottino, que na Record
comandava o Balanço Geral, um programa extravagante, com notícia,
crime e humor, cujo pico de audiência se dava num quadro de fofocas
sobre celebridades. Era um dos raríssimos programas a superar a Globo
no Ibope. A contratação violava o acordo que Tavolaro e o bispo haviam
selado em Lisboa. Irritada com a traição e a perda de uma de suas
principais estrelas do vídeo, a Record passou a exibir em seus telejornais
reportagens críticas à MRV de Rubens Menin. Uma delas mostrava que
milhares de moradores de imóveis construídos pela empreiteira
processaram a empresa pela má qualidade das habitações. Outra
rememorava que a MRV chegara a ser condenada por manter em seus
canteiros de obras trabalhadores em situação análoga à escravidão.

Numa conversa com amigos no Templo de Salomão, sede da Igreja


Universal no bairro do Brás, em São Paulo, o bispo Macedo afirmou que
já considerara Tavolaro “como um filho”, mas que passara a vê-lo “como
um inimigo”. Os ataques a Menin e à MRV foram sua maneira de dizê-
lo. Ao mesmo tempo, bispos com cargo na cúpula da Record, que nunca
toleraram a presença destacada de Tavolaro e travavam com ele
disputas de poder, ajudaram a corroer a imagem que Macedo tinha de
seu ex-braço direito. Por fim, fizeram com que o dono da Record
percebesse o enorme potencial do negócio criado por seu ex-
subordinado, que, na CNN Brasil, passou a ter ao seu lado gigantes
como a AT&T e a WarnerMedia – empresas excepcionalmente bem
posicionadas para a guerra global da era do streaming e que deverão ter
atuação mais ativa no Brasil a partir de agora.

A
pesar de sócios gigantes e tarimbados, nem tudo na CNN Brasil
saiu conforme as práticas mais ortodoxas do mercado, a começar
pelo seu nascimento formal. A pessoa jurídica da nova empresa, no
início, era uma certa NK 047 Empreendimentos e Participações S.A.,
uma “empresa de prateleira”, como são chamadas as pessoas jurídicas
que estão devidamente constituídas mas não têm qualquer atividade.
Quem as adquire costuma ter pressa e quer evitar a burocracia embutida
na abertura de um novo negócio. É uma prática comum, mas não é das
mais recomendáveis, uma vez que os sócios-fundadores da pessoa
jurídica podem, por exemplo, ter problemas judiciais que respinguem
nos compradores. No dia em que anunciaram o projeto, os novos donos
da NK 047 trocaram o nome da empresa. Passou a chamar-se Novus
Mídia S.A. e sua composição acionária ficou assim: Menin tinha 99% das
ações e Tavolaro, 1%. O quadro acionário foi alterado logo depois.
Menin ficou com 64% e Tavolaro, com 35%, por ter idealizado e
implantado o negócio. Leonardo Guimarães Corrêa, diretor financeiro
da MRV, ficou com 1%. A mudança na divisão das ações, segundo os
sócios, decorreu da situação de Tavolaro: na primeira composição,
quando tinha apenas 1% das ações, ele ainda não havia se desligado da
Record, onde era funcionário estatutário e, nessa condição, não podia ter
participação expressiva em outra empresa. Menin foi apontado como
presidente do Conselho de Administração da Novus Mídia.

Os sócios – brasileiros e norte-americanos – não revelam detalhes do


negócio, mas nos bastidores os executivos locais dizem que o contrato
entre a CNN IC e a CNN Brasil tem duração de 35 anos, renováveis por
mais vinte anos, e uma cláusula que garante Tavolaro como presidente
durante dez anos. O tamanho do investimento tampouco foi divulgado.
Ao apresentar a nova emissora ao mercado publicitário, representantes
da CNN Brasil informaram que serão investidos 800 milhões de reais no
projeto, mas não especificaram em quanto tempo. Interlocutores de
Menin dizem que a cifra gira em torno de 600 milhões de reais nos dois
primeiros anos, período em que os sócios têm a expectativa de recuperar
pouco mais de 100 milhões de reais. Em conversas com executivos da
cnn, Menin chegou a dizer que estava disposto a bancar até cinco anos
da operação.

É um prognóstico otimista. Nos tempos que correm, televisão não é


exatamente um bom negócio. As emissoras abertas, mesmo gigantes
como a Globo, passam por dificuldades e têm feito cortes pesados de
despesas. Na tevê paga, o cenário também é ruim, com os canais
registrando queda de assinantes, de audiência e de receita publicitária.
Rubens Menin é um empresário conhecido pelo pragmatismo e pela
austeridade. Em suas empresas, já impôs uma cultura de corte de
despesas com projetos batizados de Brigada de Custos e Projeto
Canivete. Até em casa, o empresário pensa em meios de economizar. Já
revelou que mantém, com a mulher e os filhos, um grupo de WhatsApp
em que trocam sugestões sobre como reduzir os gastos domésticos. O
grupo chama-se Tesoura. Por que então um empresário com esse perfil
resolveu colocar tanto dinheiro num negócio de alto risco – para além
dos motivos apontados em seu discurso na Oca?

N
ascido em Belo Horizonte em 12 de março de 1956, filho de um
casal de engenheiros civis, Rubens Menin Teixeira de Souza, 64
anos, formou-se na mesma carreira dos pais na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Junto com os primos Mário Lúcio
Pinheiro Menin e Homero Mattos de Andrade e Silva, montou a MRV
(M de Mário, R de Rubens e V de Vega Engenharia, a firma de Andrade
e Silva), em 1979. Dois anos depois, Andrade e Silva deixou a sociedade.
Em 2006, foi a vez de Mário Lúcio Pinheiro sair, e Rubens Menin ficou
como único dono.

A MRV começou erguendo casas de alvenaria no bairro de Vila Clóris,


periferia de Belo Horizonte. Nos anos 1990, expandiu suas atividades
para o Triângulo Mineiro e chegou ao interior de São Paulo. Em seguida,
ainda na década de 1990, ampliou os negócios para o Sul do país e, no
início dos anos 2000, entrou no mercado das cidades de São Paulo, Rio
de Janeiro e Brasília. Já era uma empresa de porte, que construía 4 mil
apartamentos por ano, quando, em 2007, abriu seu capital na Bolsa de
Valores. E, dois anos depois, entrou no melhor negócio de sua vida – o
Minha Casa Minha Vida, o programa de habitações populares
implantado no final do segundo mandato de Lula. Formatado por
Menin e outros empreiteiros, em conjunto com o governo federal, o
programa tornou-se a principal fonte de receita da MRV (cerca de 80%),
e a MRV, por sua vez, tornou-se a principal construtora do programa.
Em 2012, a empreiteira já estava entregando 40 mil unidades
habitacionais por ano, num salto estratosférico em relação ao que tinha
cinco anos antes. Especializou-se em construir imóveis padronizados –
um apartamento em Belo Horizonte é idêntico a um de Campinas –, com
uma técnica conhecida como alvenaria estrutural, que dispensa vigas e
pilares e se assemelha à montagem de um Lego. O sistema reduz custos
e prazos, aumentando a margem de lucro.

Em 2011, depois de já ter sido notificada dezenas de vezes por


descumprir normas de saúde e segurança no trabalho, a MRV foi
autuada pelo Ministério do Trabalho por submeter seus trabalhadores a
condições análogas à escravidão – coisa que a Record fez questão de
lembrar quando quis atacar Menin. A empresa foi punida por aliciar
operários de outros estados, promover servidão por dívida e oferecer
condições degradantes de trabalho. Acabou sendo autuada pela mesma
infração em outras quatro oportunidades e, em 2012, chegou a ser
incluída na “lista suja do trabalho escravo”, o que punha em risco seus
contratos com o governo federal, mas obteve liminares derrubando a
medida. Condenada em primeira instância na Justiça do Trabalho, a
empresa fez um acordo com o Ministério Público do Trabalho pelo qual
pagou 6,8 milhões de reais e prometeu adequar-se à lei. Alegando que a
fiscalização era arbitrária, Menin, na condição de presidente da
Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), liderou
uma campanha pelo fim da publicação da “lista suja” – conseguiu barrar
a divulgação e deflagrou uma longa guerra jurídica em torno do
assunto, mas a lista acabou voltando a ser publicada.

Os negócios de Menin incluem ainda uma empresa de construção e


aluguel de galpões industriais, loteamentos urbanos, lojas de material de
construção e uma empreiteira nos Estados Unidos, além do Banco Inter,
criado para oferecer crédito imobiliário e consignado. Desde 2008, o
Banco Inter está autorizado pelo Banco Central a operar como banco
múltiplo, ou seja, com carteira comercial e de investimentos. Por
sugestão do caçula do empresário, João Vitor, hoje presidente da
instituição, o Inter em seguida se transformou em banco digital,
eliminando as agências físicas e concedendo isenção de tarifas. Assim
como fizera a MRV, popularizou sua marca ao patrocinar clubes de
futebol, no caso o São Paulo, do qual é o maior anunciante. Em 2018,
tornou-se a primeira fintech – como são chamadas as empresas de
tecnologia voltadas para o setor financeiro – a abrir capital na Bolsa de
Valores.

Dono de uma fortuna avaliada em 1,1 bilhão de dólares, Menin integra


a lista mais recente de bilionários da revista Forbes, de 2019. Em Belo
Horizonte, não frequenta festas nem cerimônias públicas, mas é um
homem vaidoso que gosta de atrair a atenção. Desde 2010, tem uma
conta no Twitter (quase 400 mil seguidores). Já teve um blog e saiu duas
vezes na capa da revista Encontro, uma publicação dirigida para os
ricos da capital mineira. Na primeira vez, em outubro de 2015, a
manchete dizia: “Ele está no auge.” A segunda, no final do ano passado,
estampava: “O filantropo.” Rubão, como o tratam os mais chegados (ele
mede 1,91 metro), é patrocinador generoso e torcedor apaixonado do
Atlético Mineiro, gosta de vinhos e de jogar tênis. Organiza um torneio
para os amigos, o Rubão Closed, uma brincadeira com os grandes
torneios chamados de “Abertos”, como o US Open e o Australian Open.

Apegado à família, Menin e a mulher Beatriz, casados há mais de


quarenta anos, moram perto dos três filhos, e todos atuam nas empresas
da holding, a Conedi. Além do caçula João Vitor à frente do Banco Inter,
a primogênita Maria Fernanda é diretora executiva jurídica da MRV, e o
filho do meio, Rafael, é copresidente da construtora. Como de praxe,
Menin ouviu a família antes de aderir ao projeto da CNN Brasil. A
emissora de tevê será o primeiro negócio em que o empresário não
atuará diretamente e no qual não colocou familiares ou nomes de sua
confiança em posições estratégicas. A única exceção é a diretora
financeira, Jercineide Castro, considerada os olhos do investidor na sede
da CNN Brasil.

M
enin é um governista contumaz. Em 2010, apoiou a eleição de
Dilma Rousseff e até apareceu no programa eleitoral elogiando a
candidata: “O que me impressionou muito na ministra Dilma,
quando eu trabalhei junto com ela no programa Minha Casa Minha
Vida, foi o quanto ela conhece do Brasil, o quanto ela conhece dos
problemas brasileiros.” Quando Dilma começou a balançar no cargo de
presidente em 2015, Menin subiu no muro (“Nós não temos interesse em
defender governo, mas também não temos interesse em atacar”), mas
chegou a sugerir um “acordão” que evitasse o trauma do impeachment.
Em julho de 2017, com Michel Temer no lugar de Dilma, elogiou a
diretriz econômica do novo presidente. Em dezembro de 2018, quando
Jair Bolsonaro já estava eleito, Menin deu uma entrevista ao Correio
Braziliense dizendo que ele e outros tantos empresários estavam
“eufóricos” com as perspectivas do novo governo. Entre os aspectos que
lhe deixavam tão otimista, estavam os três filhos do presidente. “Alguns
gostam de criticar os filhos do Bolsonaro. Poxa, os caras apresentam
comportamento 100% ético […] Foram eleitos e têm demonstrado grande
capacidade de ajudar […] Vamos parar de criticar.” Um dia depois de
Menin dar essa declaração, o jornal O Estado de S. Paulo, publicou a
notícia sobre as suspeitas de rachadinha no gabinete de Flavio
Bolsonaro. Mas, antes disso, Eduardo Bolsonaro já tinha provocado uma
torrente de críticas ao dizer que, para fechar o STF, bastavam um
soldado e um cabo.

Até a festa da Oca, e portanto antes do desempenho vexaminoso do


presidente na pandemia, Menin continuava empolgado com Bolsonaro.
Em seu discurso, ele não exaltou a liberdade de expressão e de imprensa
como pilar da democracia, tema caro à boa parte dos convidados à festa.
Menin encerrou sua fala dizendo o seguinte: “Em 2013, a população foi
às ruas e deixou uma mensagem. Muitos não sabiam o que falar, mas
precisavam falar alguma coisa. A mensagem foi dada, muita coisa
aconteceu depois de 2013. Mas o que eu quero dizer é que eu sou
otimista. Eu vejo a política hoje muito melhor do que ela era no passado.
Ainda não é a ideal, estamos evoluindo, passamos por dificuldades
conjunturais, estamos melhorando, mas precisamos melhorar mais.”

Os elogios de Menin ao novo governo causaram perplexidade entre os


petistas que viram aMRV florescer no Minha Casa Minha Vida. Gilberto
Carvalho, que ocupou cargos de alto escalão nos dois governos do PT,
conviveu bastante com Menin. Quando sua empresa foi flagrada com
trabalho escravo, Menin procurou o Palácio do Planalto. “Chegou meio
desesperado”, disse Carvalho, ao relembrar que, com a introdução de
novas medidas no âmbito de um acordo nacional com empresários da
construção civil, os canteiros de obras da MRV chegaram a ser
referência, com melhorias como salas de aula para os operários.

“Rubão é um cara muito simples, decente, tivemos uma relação muito


interessante, de camaradagem, eu me dava muito bem com ele, é um
sujeito hiperagradável”, disse Carvalho. “Mas confesso a minha surpresa
quando o vi aderir ao Bolsonaro de malas e bagagens. Como é que pode
um cara que não se cansava de elogiar nosso governo apoiar essa
política contrária aos direitos dos trabalhadores?”, disse. “Senti uma
espécie de traição, tanto do ponto de vista pessoal quanto em relação ao
governo em que ele fez sua fortuna. E agora aparece com a CNN, que, ao
que tudo indica, será uma linha auxiliar do bolsonarismo. Fez uma
fortuna espetacular nas gestões do PT para agora investir nesse
brinquedinho…”
aproximação da família Bolsonaro com os sócios da CNN Brasil e com a
AT&T, proprietária da CNN norte-americana, alimentou a suspeita

A
de que a nova emissora seria um canal chapa-branca. Bolsonaro é
simpático à ideia de mudar a lei brasileira segundo a qual
empresas de telecomunicação e empresas de produção de conteúdo
não podem ter mais de 30% do capital uma da outra. Em 2016, a AT&T
comprou a Time Warner, conglomerado de mídia que engloba HBO,
TNT, Cartoon Network e, claro, CNN, consumando assim uma fusão
acima dos percentuais que a lei brasileira permite para empresas que
operam em território nacional. Atendendo pedido do seu colega Donald
Trump, Bolsonaro vem tentando destravar o negócio desde o ano
passado. Eduardo, seu filho, gravou um vídeo criticando as restrições da
lei brasileira, concebida para evitar a concentração de mercado na
indústria audiovisual. Em parte graças ao lobby da família do
presidente, a fusão já foi aprovada em duas instâncias de controle e
regulação (Cade e Anatel), mas ainda depende de uma terceira
aprovação (Ancine) e, finalmente, da alteração da lei pelo Congresso
Nacional. Se Bolsonaro conseguir de fato mudar a lei, será um benefício
inesquecível para a AT&T e a WarnerMedia – e, por extensão, à CNN de
lá e daqui.

Acostumado a criticar a imprensa profissional, incitar boicotes a veículos


e agredir verbalmente jornalistas, Bolsonaro saudou a chegada da nova
emissora, numa das lives que faz às quintas-feiras no Facebook. “Está
para ser inaugurada uma nova tevê no Brasil, a CNN Brasil. Pelo que
eu tô sabendo, vai ser uma rede de televisão diferente aí da Globo, pelo
que eu estou sabendo aí… Torço para que isso seja real realmente”, disse
em 27 de fevereiro. Em 15 de março, dia da estreia do canal, Eduardo
Bolsonaro demonstrou receio de que a CNN Brasil replicasse a CNN
norte-americana, considerada pela direita como uma emissora
“esquerdista”. Mas seu tuíte foi mais receptivo do que desconfiado:
“Como todo novo empreendimento, é preciso dar 1 chance e desejar
sucesso à @CNN Brasil.” E terminou dando a receita para o sucesso:
praticar a “isenção verdadeira”, não a dos “isentões”.
Até aqui, Tavolaro tem sido tratado com distinção pelo governo. No ano
passado, foi recebido três vezes por Bolsonaro no Palácio do Planalto e
almoçou com Filipe Martins, um dos expoentes do “gabinete do ódio”
que, naquela altura, ainda era assessor especial da Presidência para
Assuntos Internacionais. Neste ano, Tavolaro já se reuniu com o vice-
presidente Hamilton Mourão, que esteve na festa da Oca representando
Bolsonaro. Menin, por sua vez, já foi recebido por Bolsonaro duas vezes
– uma vez na companhia de Tavolaro, e outra junto com um empreiteiro
que, tal como o próprio Menin, é contrário à liberação, pelo governo, dos
saques no FGTS, de onde sai a verba para a construção de habitações
populares. O encontro não figurava na agenda do presidente e só foi
incluído quando a imprensa o revelou. Quando a Caixa anunciou em
fevereiro sua primeira linha de crédito para a casa própria com taxa de
juros fixa, Menin definiu a medida como “um sonho de consumo”.
Esteve de novo no Planalto para o evento de lançamento.

Tavolaro afiança que não existe risco de que a CNN Brasil se torne
porta-voz informal do governo. Ele faz menção ao contrato de
licenciamento, pelo qual a franqueada se compromete a aderir às
normas e práticas da franqueadora e a manter um Conselho Editorial
“autônomo”. É um modo de dizer que o Conselho de Administração,
presidido por Menin, não tem ingerência sobre o que vai ao ar, mas a
autonomia parece duvidosa: dos oito integrantes do Conselho Editorial,
sete são empregados da própria emissora. São seis jornalistas e um
advogado – a oitava conselheira, Shasta Darlington, é uma jornalista
norte-americana radicada no Brasil, que foi correspondente da CNN no
país e hoje é consultora da CNN IC. Tavolaro aponta outra razão, essa
mais pragmática, para fugir de uma cobertura favorável a um governo
tão estridente. “O mercado privado que nos sustenta não gosta de
radicalismos”, disse. “Querem o caminho do equilíbrio. É o que vamos
buscar. Não é discurso. Tenho o apoio da CNN americana para isso”,
disse, para arrematar com uma frase de efeito. “Governos e partidos
passam. A CNN vai ficar.”
A supervisão da CNN norte-americana, porém, não é garantia de
equilíbrio editorial. O caso da Turquia é exemplar. A CNN chegou ao
país em 1999 e, com o tempo, começou a se aproximar do autocrata
Recep Tayyip Erdoğan, primeiro-ministro desde 2003 e presidente
desde 2014. Em 2018, a CNN Türk trocou de mãos e passou a adotar
uma linha editorial francamente governista. “A venda mudou tudo”,
disse o jornalista Emre Kızılkaya, dirigente do comitê turco do
International Press Institute e ex-editor do Hürriyet, um dos principais
jornais independentes até ser comprado pela Demirören Holding, a
mesma que adquiriu a CNN Türk. “A família Demirören comprou o
grupo de mídia para afagar o governo em troca de benefícios. Embora os
veículos do grupo estejam deficitários, o governo concedeu-lhes contratos
lucrativos em várias áreas, como energia, construção, na loteria nacional
e em apostas de futebol”, contou Kızılkaya. Quando a guinada editorial
da CNN Türk virou notícia mundial, sites turcos informaram que a
CNN International Commercial estava analisando o caso, havia
notificado a franqueada e poderia até romper o contrato de
licenciamento. Kızılkaya disse que nada aconteceu. “A CNN IC deveria
ter cancelado o contrato há muito tempo. Mas parece que eles gostam
mais de dinheiro do que da segurança e credibilidade da sua marca.”
Indagada pela piauí sobre sua inação, a CNN IC respondeu: “A CNN
Türk nos deu garantias e evidências de que estão fazendo todos os
esforços para realizar uma cobertura equilibrada, e estamos em contato
regular com a CNN Türk em relação às práticas editoriais e de
produção.”

A
o contrário do que ocorre nos Estados Unidos, as emissoras abertas
sempre dominaram o mercado no Brasil. A tevê por assinatura
chegou no final da década de 1980, mas só se tornou amplamente
acessível em meados dos anos 2000. A melhor fase durou dez anos, de
2005 a 2015. “O Brasil era o mercado mais pujante da tevê paga na
América Latina, o crescimento foi explosivo. Nesse período, todo mundo
veio bater na nossa porta em busca de parcerias”, lembrou Alberto
Pecegueiro, que dirigiu por 25 anos a Globosat, unidade de tevê paga do
Grupo Globo, até se aposentar, em fevereiro passado – ele permanece
como consultor do grupo e seu representante em joint ventures. “Mas [os
investidores estrangeiros] propunham: você pega minha marca, vende
publicidade para mim e eu fico com o dinheiro. Então não deu negócio.”

A erosão do setor começou com a crise econômica de 2015 e foi agravada


com a chegada do streaming. Disse Pecegueiro: “A Netflix entrou com
um leque grande de opções e com um preço insustentavelmente baixo,
que, quando se coteja com a tevê por assinatura, parece que a tevê é
cara.” O mercado sofreu em toda a América Latina, mas a queda no
Brasil foi maior, interpretou o executivo, porque a pirataria aqui é
maior. Tudo somado, ele avalia que o momento para se montar uma
emissora de tevê paga é amargo. “Para o mercado, acho que a chegada
da CNN é boa, concorrência faz bem à pele. Mas tevê paga não é tevê
aberta, é construção de marca, leva tempo. E a hora, que já era ruim,
ficou pior com a crise da Covid-19. Do ponto de vista promocional, não
poderia ter havido melhor momento para lançar o canal. Do ponto de
vista comercial, não poderia haver pior momento, porque não vai ter
dinheiro.”

Mesmo antes da pandemia, que levará a uma recessão inevitável, já


predominava no mercado a avaliação de que o modelo da CNN parece
inviável como negócio. A nova emissora conseguiu fechar parceria com
todas as grandes operadoras de tevê por assinatura (Claro Net, Sky,
Vivo e Oi). Depois de um mês de degustação para todos, o canal ficará
disponível para uma base de aproximadamente de 14 milhões de
assinantes. Vai receber em torno de 2 centavos por assinante, o que, no
mercado, não é mau negócio para uma iniciante, mas isso lhe rende 280
mil reais por mês.
O restante da receita vem de publicidade. A CNN estreou com dez
patrocinadores de peso – Santander, Cielo, Volkswagen, 99, IBM,
Magazine Luiza, Nestlé/Nescafé, Claro, Movida e
Heineken/Eisenbahn. O preço oficial das cotas publicitárias variava
entre 2 milhões e 10 milhões de reais por ano – o que lhe daria, na
melhor das hipóteses, 100 milhões de reais anuais. Mas essas cotas
costumam ser vendidas com descontos imensos, às vezes de até 90%.
“Muitas vezes o veículo vende a cota a preços muito baixos para ter
grandes patrocinadores como sinal de prestígio, um cartão de visitas
para o mercado. Em tevê por assinatura, só se vende publicidade se for
muito barato”, avaliou o jornalista Eduardo Correa, dono da editora
Porto Palavra, especializada em publicações voltadas para a área de
mídia do mercado publicitário. “Não tem como essa operação ser viável
como negócio. Não sei qual é o outro objetivo, mas, do ponto de vista
econômico-financeiro, não há dúvida de que a operação da CNN Brasil
será deficitária pelos próximos mil anos. Ainda mais num mercado
publicitário já devastado, no qual o Google caiu como um coronavírus.”

A estimativa de executivos do setor é que, num cenário otimista, a CNN


Brasil terá uma receita publicitária de 50 milhões de reais por ano –
metade do que seus sócios almejam. Numa conta menos otimista, 25
milhões de reais por ano. Ainda que venha a alcançar 50 milhões por
ano com publicidade, somados aos quase 3,4 milhões com assinaturas, a
receita corresponderá a cerca de 18% dos 300 milhões anuais que, na
estimativa do mercado, serão investidos nos dois primeiros anos. No
cenário mais realista projetado por analistas do mercado, a receita não
chegará a 10% do investimento.

“Essa não é uma iniciativa empresarial. Se você faz um mínimo de conta,


o que tem de receita recorrente garantida não paga o salário do William
Waack”, disse Paulo Saad, vice-presidente de canais pagos do Grupo
Bandeirantes, em sua sala no quarto andar da sede da emissora no
bairro do Morumbi, em São Paulo. “Para mim uma coisa é clara: esse
canal CNN é inviável se não tiver ligado a algum outro grupo de
comunicação. A CNN isolada com capital nacional não roda como uma
empresa. Outra opção é que seja um projeto político.”

Dada a empolgação de Menin com Bolsonaro, já se especulou até que


empresários leais ao presidente pudessem garantir a receita publicitária
da nova tevê em um gesto indireto de agrado ao governo. Luiz Lara,
presidente do grupo Lew’Lara/tbwa, com experiência de 39 anos no
mercado publicitário, duvidou: “Nunca vi no Brasil empresário colocar
dinheiro em alguma coisa por ideologia, o que ele quer é resultado. Se
não tiver audiência e resultado, não para de pé.” Com a crise trazida
pela pandemia de Covid-19, mesmo quem via a situação da CNN Brasil
com mais otimismo agora passou à cautela. Fernando Magalhães,
diretor de Programação e Conteúdo da Claro, maior operadora de tevê
paga do país, ponderou: “Eles fizeram um movimento corajoso, estão
apostando tudo na receita de publicidade e patrocínio, e conseguiram
estrear com grandes patrocinadores. O interessante não é ver o que
acontece agora, mas o que vai ser daqui a três anos.” E a recessão que
virá? “O problema é que não vai abater só a CNN, vai abater todo
mundo.”

Para o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD) – que define


Menin como “um amigo, um cara doce e sereno, apaziguador, que
sempre quer fazer as pazes com todo mundo” –, o que move o
empresário a investir na CNN é algo menos palpável. “Deixa eu te falar
uma coisa: chega num ponto da vida da gente, cara… Eu sou prefeito de
Belo Horizonte. Ganho 27 mil reais líquidos. Eu gosto de ser prefeito de
Belo Horizonte. Chegou num ponto da minha vida que eu não quero
mais porra nenhuma. O Rubens tá nesse ponto, cara. Você está achando
que o Rubens quer ganhar dinheiro? Ele não tem onde pôr mais, não.
Tem objetivos que vão mudando na idade da gente. Ele faz porque ele
quer fazer”, disse Kalil, numa conversa por telefone. “Se você perguntar
o que é a CNN, na minha opinião é uma maluquice de um cara que quer
brincar com alguma coisa.”

Há leituras menos cândidas. “Televisão, no Brasil, só é um negócio-fim


para a Globo”, diz um político que mantém boas relações com os
dirigentes da Record e da CNN, e que pediu para não ser identificado
para falar com mais liberdade. “A Record não é um negócio-fim, é um
meio para alavancar a Igreja Universal. O SBT não é um negócio-fim, é
um meio para o Silvio Santos vender Carnê do Baú, Tele Sena, Jequiti…
Essa tevê para o Menin não vai ser um negócio-fim, vai ser um negócio-
meio.”

Tavolaro rebate as previsões pessimistas sobre o futuro da empresa. Ele


ressalta que a CNN Brasil está inaugurando um modelo de negócio
distinto do que vigorou até agora no país. Ao contrário da maioria das
concorrentes, sua emissora não tem sede própria (os escritórios e
estúdios de São Paulo, Brasília e Rio são alugados), nem contratos com
afiliadas, e parte da produção é terceirizada, com equipamentos e
profissionais das produtoras Casablanca e Paris Filmes. Tavolaro diz
que mudará a lógica da receita publicitária, aproveitando o diferencial
de que sua emissora já nasceu na era digital. “Não vendemos uma tevê
por assinatura, vendemos um produto multiplataforma. Nos Estados
Unidos, quando uma empresa privada coloca xis milhões na
CNN, a tevê paga fica com 35%, 40% disso. O restante é espalhado por
outras plataformas, em especial as digitais. Usamos o modelo americano
de vendas, que não existe ainda com tanta força no Brasil.”

Menin não quis ser entrevistado para esta reportagem.

A
CNN Brasil ocupa dois andares de um prédio empresarial na
Avenida Paulista, a 200 metros do Masp, o Museu de Arte de São
Paulo. O letreiro gigante que decorou a entrada da Oca fica no saguão
do edifício – no dia da festa, foi transportado de caminhão – e virou
ponto de selfies de quem passa no local. No primeiro andar, com uma
decoração típica de ambientes corporativos compartilhados, estão a
redação e os estúdios, também com janelas voltadas para a Paulista. Nos
corredores, um painel instiga: The pen is mightier than the sword (A
caneta é mais poderosa do que a espada). Outro reproduz um manifesto
da CNN chamado Facts First (Fatos em primeiro lugar): “Fatos são fatos.
[…] Eles são indiscutíveis. Não há alternativa para um fato. […] Fatos
não são interpretações. Uma vez que os fatos já estão estabelecidos,
opiniões podem ser formadas. E, embora opiniões importem, elas não
mudam os fatos. É por isso que, na CNN, nós começamos com os fatos
primeiro.” Os dirigentes da área de jornalismo ficam próximos: as salas
dos vice-presidentes são contíguas à redação, em cujo centro se sentam os
diretores. No segundo andar, decorado com painéis fotográficos de
coberturas históricas da CNN norte-americana, estão as ilhas de edição,
os setores administrativos e de tecnologia, a principal sala de reuniões e
a sala de Tavolaro. E, de novo, um painel com o manifesto Facts First.

Ao anunciar seu desembarque no Brasil, em janeiro de 2019, a CNN


informou que contrataria 750 funcionários, dos quais 400 seriam
jornalistas. Quando a emissora foi ao ar, um ano e dois meses depois,
havia 450 funcionários – 160 jornalistas. A emissora afirma que não
houve um redimensionamento radical do projeto original, mas um erro
– brutal, neste caso – de comunicação. A maioria da equipe de jornalistas
veio de veículos concorrentes, principalmente do Grupo Globo
(incluindo a rádio cbn), da Record e da Band, mas um dos principais
executivos do projeto, o vice-presidente de Conteúdo, Américo Martins,
foi contratado da britânica BBC. O peso da CNN, sinônimo de notícia ao
redor do mundo, e o fascínio que a marca exerce para jornalistas de
televisão ajudaram a atrair alguns bons nomes – cujo profissionalismo,
como ocorre nas boas redações, será a maior vacina contra uma
cobertura chapa-branca.
Entre os 160 jornalistas, apenas os comentaristas são autorizados a dar
opiniões. Ocasionalmente, os apresentadores ou âncoras podem
arrematar um tema com algum comentário. Entre os principais nomes
estão Monalisa Perrone, Reinaldo Gottino, Evaristo Costa, Daniela Lima
e William Waack. Gottino, cuja contratação tanto irritou o bispo Macedo,
comanda dois telejornais, um de manhã, outro à tarde. É o apresentador
que passa mais tempo ao vivo na CNN, cinco horas e meia por dia.
Waack é a principal contratação da emissora e apresenta o Jornal da
CNN, às 21h30. Era apresentador do Jornal da Globo, de onde foi
demitido em dezembro de 2017, depois que um microfone captou o
jornalista fazendo um comentário racista. Waack se preparava para
entrar ao vivo numa transmissão de Washington D.C., quando soou na
rua uma buzina insistente. Incomodado, Waack virou-se para a janela e
disse: “Está buzinando por quê, seu merda do cacete?” Em seguida,
voltou-se para o convidado do programa, e arrematou: “É preto, é coisa
de preto.”

A maior aposta da CNN para apresentador era o jornalista Ricardo


Boechat, que morreu num desastre de helicóptero em fevereiro do ano
passado. Havia meses que a nova emissora cercava o jornalista, então
âncora do Jornal da Band. Boechat chegou a recusar as primeiras
propostas, mas a CNN insistiu. As partes tiveram um jantar no
restaurante Fasano, em São Paulo, e se falavam com frequência por
mensagens (pelo celular de Veruska, mulher de Boechat, pois o jornalista
não tinha WhatsApp no seu aparelho). Os emissários da CNN estavam
confiantes de que chegariam a um acerto. A tragédia se atravessou na
história. “É verdade que estavam conversando. Mas ele estava feliz na
Band, tinha liberdade para fazer do jeito dele, e vivia uma fase da vida
em que estava mais preocupado em ser grato. Então não sei no que ia
dar”, disse Veruska.
estreia da CNN foi adiada seguidas vezes. De início, os donos previram

A
que o canal iria ao ar no início do segundo semestre de 2019.
Depois, Menin disse que gostaria que a data fosse 7 de setembro.
Em seguida, falou-se em novembro. Finalmente, definiu-se a
estreia para março deste ano. A corrida para cumprir o prazo foi
dolorosa. Os equipamentos importados atrasaram, as obras dos estúdios
foram iniciadas só em dezembro, as jornadas de trabalho se tornaram
exaustivas. Na última hora, para assegurar que os estúdios em São Paulo
funcionariam bem na estreia, a CNN transferiu para a sede o diretor de
Brasília, André Ramos, tido como um resolvedor de problemas. Para seu
lugar na capital federal, foi contratado às pressas o jornalista Roberto
Munhoz, outro egresso da Record.

A CNN Brasil foi ao ar às oito da noite de 15 de março. Naquele mesmo


dia, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, ignorando a orientação de
distanciamento social já em vigor por causa da Covid-19, saíram às ruas
para apoiar o presidente e protestar contra o Congresso e o STF.
Bolsonaro apareceu em frente ao Palácio do Planalto e apertou as mãos
de manifestantes, contrariando a recomendação das autoridades da
saúde. A CNN fez uma cobertura fria de um dia de noticiário quente.
Priorizou se apresentar ao público e exibir material previamente
gravado, mas conseguiu um pequeno trunfo: uma entrevista exclusiva
com Bolsonaro, ao vivo, no Palácio da Alvorada. De surpresa, o
presidente chamou Leandro Magalhães, o plantonista da CNN no
palácio. Na entrevista, fez pouco caso da pandemia, disse que as
medidas de precaução eram “histeria” e provocou os presidentes da
Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre: “Gostaria que
eles saíssem às ruas como eu.” O presidente falaria outras duas vezes
com exclusividade à CNN. (Em uma coletiva improvisada no final de
abril, com a presença de jornalistas de vários veículos, recusou-se a
responder qualquer pergunta que não fosse da CNN Brasil.)
Preparada para enfrentar a estreia da rival, a GloboNews, primeira
emissora de notícias da tevê paga do país, inaugurada em 1996, ampliou
seu tempo de transmissão ao vivo – e deu um banho na concorrência.
Levou ao ar uma cobertura especial de mais de seis horas ao vivo,
focada na pandemia de Covid-19, com especialistas e serviço, e fez uma
repercussão crítica à atitude de Bolsonaro. Para completar, a emissora do
Grupo Globo, sob a justificativa de prestar um serviço à população,
abriu o sinal para todos os assinantes da tevê paga, mesmo os que não
têm pacotes que a incluam. Naquele domingo, a audiência média da
GloboNews nas quinze principais regiões metropolitanas do país atingiu
1,1 ponto, contra 0,8 da CNN Brasil. Por enquanto, a liderança de
audiência da GloboNews não foi ameaçada, e a CNN Brasil já assumiu a
vice-liderança no nicho, que conta ainda com BandNews e Record News.
A Grande São Paulo, principal mercado do país, é onde a novata se sai
melhor, superando a líder em algumas ocasiões.

Com quase dois meses no ar, a CNN já deu informações exclusivas de


grande repercussão, como o áudio de uma conversa em que o ministro
Onyx Lorenzoni e o deputado Osmar Terra discutem a saída de Luiz
Henrique Mandetta do Ministério da Saúde – ele seria demitido dias
depois. Também foi pela CNN que Bolsonaro acusou o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, de conspirar para derrubá-lo. Entre os
principais veículos do país, a TV Globo e a Globonews foram os únicos a
ignorar os furos jornalísticos da CNN, que, por sua vez, se comportou
com o devido profissionalismo: noticiou e deu crédito ao Jornal Nacional,
quando o telejornal divulgou cópia de um diálogo via WhatsApp em
que Bolsonaro diz ao então ministro da Justiça, Sergio Moro, que uma
investigação policial contra “deputados bolsonaristas” era “mais um
motivo” para trocar o diretor da Polícia Federal. A nova emissora
enfrentou também momentos menos gloriosos. Seus telespectadores, por
exemplo, não receberam nenhuma informação sobre o primeiro panelaço
ocorrido em todo o Brasil contra o presidente, notícia que saiu apenas – e
tardiamente – no site da emissora.
Nada se assemelha, porém, ao barulho causado pelo quadro “O Grande
Debate”, do matinal CNN Novo Dia, em que dois comentaristas com
visões ideológicas distintas são confrontados. A atração começou com a
advogada Gabriela Prioli representando a vertente progressista, e o
bacharel em direito Caio Coppolla como o contraponto conservador.
Prioli deu alguns nocautes retóricos em Coppolla antes que ele precisasse
se afastar do programa por motivos médicos – estava com Covid-19,
soube-se depois. Em seu lugar, entrou o empresário Tomé Abduch,
propagandista do governo Bolsonaro, que sofreu ainda mais nas mãos
de Prioli, que, a essa altura, já era a maior estrela ascendente da nova
emissora, com perfis nas redes que decuplicaram em seguidores. No dia
27 de março, no entanto, uma crise explodiu. Prioli irritou-se ao ser
grosseiramente interrompida pelo apresentador Reinado Gottino,
mediador do programa, e pediu demissão pelas redes sociais dois dias
depois. Com um contrato de três anos e previsão de multa em caso de
rescisão unilateral, acertou permanecer na CNN, que agora prepara uma
nova atração para ela, com estreia prevista para maio.

“O Grande Debate” foi inspirado em quadros semelhantes da CNN


norte-americana. O mais famoso deles era o “Cross-fire”, que acabou
extinto em 2005, depois de ser impiedosamente desconstruído ao vivo
pelo comediante Jon Stewart, ressuscitou em 2013, mas voltou a sair do
ar no ano seguinte. Em que pesem as críticas sobre seu dualismo
caricato, “O Grande Debate” fez sucesso com o público e levou a
emissora a ampliar o espaço do formato em sua programação. Agora,
além do duelo da manhã, do qual Prioli saiu, há um quadro semelhante
no começo da noite, fixo, e outros ocasionais espalhados pela grade.

Lançada num momento econômico de profunda incerteza, a CNN Brasil


teve a sorte de estrear num ambiente em que a imprensa em geral
ganhou audiência, diante da avidez com que o público passou a buscar
um noticiário confiável sobre a pandemia. A emissora adaptou sua
programação à nova realidade. Criou um programa especial, batizado
de O Mundo Pós-Pandemia, em que convida entrevistados para
especular sobre o futuro. Na esteira da crise, também criou outro
especial, o CNN Todos Juntos, em que exibe, como sintetizou uma nota
da própria emissora, “notícias positivas do combate à pandemia”. Gestos
de solidariedade (vizinhos fazem festa-surpresa em condomínio),
filantropia (ONG distribui alimentos a crianças carentes) e superação
(doentes vencem a Covid-19) inundaram a tela. Exatamente como pediu,
dias depois, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz
Eduardo Ramos, quando reclamou que a imprensa só noticiava mortes e
caixões. Exatamente como queria Menin, o filantropo das boas notícias.

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