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questões midiáticas
O switcher, a sala de onde se controla tudo o que vai ao ar: o dono da CNN, Rubens Menin, também é austero em casa. Ele e a
família têm um grupo de WhatsApp para discutir cortes nos gastos domésticos. O grupo chama-se Tesoura CREDITO:
RICARDO FROTA_2020
C
om luzes vermelhas projetadas sobre toda a circunferência da sua
cúpula de concreto, a Oca parecia uma nave futurista de seriado
antigo. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer como uma
homenagem modernista à habitação indígena que lhe empresta o nome,
o prédio, localizado dentro do Parque do Ibirapuera em São Paulo,
estava em festa na noite de 9 de março passado. Na entrada, um enorme
letreiro, também vermelho, berrava o nome do anfitrião: CNN. Lá
dentro, havia mais de 1 300 pessoas, às quais ao final da noite garçons
ofereceram espumante francês La Roche Brut (40 reais a garrafa),
canapés, porções de massa e cuscuz marroquino, enquanto um
saxofonista que recorria ao auxílio do playback tocava músicas de
elevador. Estavam ali políticos, empresários, banqueiros, publicitários,
jornalistas, cinco governadores de estado e a elite dos três poderes da
República.
A
notícia de que Menin se associara ao jornalista Douglas Tavolaro
para trazer ao Brasil a franquia da CNN veio a público em 14 de
janeiro de 2019. Até então, Tavolaro ocupara o cargo de vice-
presidente de Jornalismo da TV Record, emissora do bispo Edir Macedo,
fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Deixava a
empresa, na qual trabalhara por dezessete anos, para liderar a
implantação do novo canal de notícias na tevê paga brasileira.
A
saída de Tavolaro da Record pode ter sido amigável, mas
fomentou uma versão prejudicial para seu novo negócio – a de que
o bispo Edir Macedo seria, na verdade, sócio oculto da CNN Brasil,
e Tavolaro, seu testa de ferro na nova emissora. A suspeita é tão
incômoda que os representantes da CNN introduzem o assunto sem que
o interlocutor o mencione. Argumentam que um empresário do porte de
Menin não precisaria de investidor oculto, e nem uma empresa do porte
da WarnerMedia toleraria um negócio dessa natureza.
A
pesar de sócios gigantes e tarimbados, nem tudo na CNN Brasil
saiu conforme as práticas mais ortodoxas do mercado, a começar
pelo seu nascimento formal. A pessoa jurídica da nova empresa, no
início, era uma certa NK 047 Empreendimentos e Participações S.A.,
uma “empresa de prateleira”, como são chamadas as pessoas jurídicas
que estão devidamente constituídas mas não têm qualquer atividade.
Quem as adquire costuma ter pressa e quer evitar a burocracia embutida
na abertura de um novo negócio. É uma prática comum, mas não é das
mais recomendáveis, uma vez que os sócios-fundadores da pessoa
jurídica podem, por exemplo, ter problemas judiciais que respinguem
nos compradores. No dia em que anunciaram o projeto, os novos donos
da NK 047 trocaram o nome da empresa. Passou a chamar-se Novus
Mídia S.A. e sua composição acionária ficou assim: Menin tinha 99% das
ações e Tavolaro, 1%. O quadro acionário foi alterado logo depois.
Menin ficou com 64% e Tavolaro, com 35%, por ter idealizado e
implantado o negócio. Leonardo Guimarães Corrêa, diretor financeiro
da MRV, ficou com 1%. A mudança na divisão das ações, segundo os
sócios, decorreu da situação de Tavolaro: na primeira composição,
quando tinha apenas 1% das ações, ele ainda não havia se desligado da
Record, onde era funcionário estatutário e, nessa condição, não podia ter
participação expressiva em outra empresa. Menin foi apontado como
presidente do Conselho de Administração da Novus Mídia.
N
ascido em Belo Horizonte em 12 de março de 1956, filho de um
casal de engenheiros civis, Rubens Menin Teixeira de Souza, 64
anos, formou-se na mesma carreira dos pais na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Junto com os primos Mário Lúcio
Pinheiro Menin e Homero Mattos de Andrade e Silva, montou a MRV
(M de Mário, R de Rubens e V de Vega Engenharia, a firma de Andrade
e Silva), em 1979. Dois anos depois, Andrade e Silva deixou a sociedade.
Em 2006, foi a vez de Mário Lúcio Pinheiro sair, e Rubens Menin ficou
como único dono.
M
enin é um governista contumaz. Em 2010, apoiou a eleição de
Dilma Rousseff e até apareceu no programa eleitoral elogiando a
candidata: “O que me impressionou muito na ministra Dilma,
quando eu trabalhei junto com ela no programa Minha Casa Minha
Vida, foi o quanto ela conhece do Brasil, o quanto ela conhece dos
problemas brasileiros.” Quando Dilma começou a balançar no cargo de
presidente em 2015, Menin subiu no muro (“Nós não temos interesse em
defender governo, mas também não temos interesse em atacar”), mas
chegou a sugerir um “acordão” que evitasse o trauma do impeachment.
Em julho de 2017, com Michel Temer no lugar de Dilma, elogiou a
diretriz econômica do novo presidente. Em dezembro de 2018, quando
Jair Bolsonaro já estava eleito, Menin deu uma entrevista ao Correio
Braziliense dizendo que ele e outros tantos empresários estavam
“eufóricos” com as perspectivas do novo governo. Entre os aspectos que
lhe deixavam tão otimista, estavam os três filhos do presidente. “Alguns
gostam de criticar os filhos do Bolsonaro. Poxa, os caras apresentam
comportamento 100% ético […] Foram eleitos e têm demonstrado grande
capacidade de ajudar […] Vamos parar de criticar.” Um dia depois de
Menin dar essa declaração, o jornal O Estado de S. Paulo, publicou a
notícia sobre as suspeitas de rachadinha no gabinete de Flavio
Bolsonaro. Mas, antes disso, Eduardo Bolsonaro já tinha provocado uma
torrente de críticas ao dizer que, para fechar o STF, bastavam um
soldado e um cabo.
A
de que a nova emissora seria um canal chapa-branca. Bolsonaro é
simpático à ideia de mudar a lei brasileira segundo a qual
empresas de telecomunicação e empresas de produção de conteúdo
não podem ter mais de 30% do capital uma da outra. Em 2016, a AT&T
comprou a Time Warner, conglomerado de mídia que engloba HBO,
TNT, Cartoon Network e, claro, CNN, consumando assim uma fusão
acima dos percentuais que a lei brasileira permite para empresas que
operam em território nacional. Atendendo pedido do seu colega Donald
Trump, Bolsonaro vem tentando destravar o negócio desde o ano
passado. Eduardo, seu filho, gravou um vídeo criticando as restrições da
lei brasileira, concebida para evitar a concentração de mercado na
indústria audiovisual. Em parte graças ao lobby da família do
presidente, a fusão já foi aprovada em duas instâncias de controle e
regulação (Cade e Anatel), mas ainda depende de uma terceira
aprovação (Ancine) e, finalmente, da alteração da lei pelo Congresso
Nacional. Se Bolsonaro conseguir de fato mudar a lei, será um benefício
inesquecível para a AT&T e a WarnerMedia – e, por extensão, à CNN de
lá e daqui.
Tavolaro afiança que não existe risco de que a CNN Brasil se torne
porta-voz informal do governo. Ele faz menção ao contrato de
licenciamento, pelo qual a franqueada se compromete a aderir às
normas e práticas da franqueadora e a manter um Conselho Editorial
“autônomo”. É um modo de dizer que o Conselho de Administração,
presidido por Menin, não tem ingerência sobre o que vai ao ar, mas a
autonomia parece duvidosa: dos oito integrantes do Conselho Editorial,
sete são empregados da própria emissora. São seis jornalistas e um
advogado – a oitava conselheira, Shasta Darlington, é uma jornalista
norte-americana radicada no Brasil, que foi correspondente da CNN no
país e hoje é consultora da CNN IC. Tavolaro aponta outra razão, essa
mais pragmática, para fugir de uma cobertura favorável a um governo
tão estridente. “O mercado privado que nos sustenta não gosta de
radicalismos”, disse. “Querem o caminho do equilíbrio. É o que vamos
buscar. Não é discurso. Tenho o apoio da CNN americana para isso”,
disse, para arrematar com uma frase de efeito. “Governos e partidos
passam. A CNN vai ficar.”
A supervisão da CNN norte-americana, porém, não é garantia de
equilíbrio editorial. O caso da Turquia é exemplar. A CNN chegou ao
país em 1999 e, com o tempo, começou a se aproximar do autocrata
Recep Tayyip Erdoğan, primeiro-ministro desde 2003 e presidente
desde 2014. Em 2018, a CNN Türk trocou de mãos e passou a adotar
uma linha editorial francamente governista. “A venda mudou tudo”,
disse o jornalista Emre Kızılkaya, dirigente do comitê turco do
International Press Institute e ex-editor do Hürriyet, um dos principais
jornais independentes até ser comprado pela Demirören Holding, a
mesma que adquiriu a CNN Türk. “A família Demirören comprou o
grupo de mídia para afagar o governo em troca de benefícios. Embora os
veículos do grupo estejam deficitários, o governo concedeu-lhes contratos
lucrativos em várias áreas, como energia, construção, na loteria nacional
e em apostas de futebol”, contou Kızılkaya. Quando a guinada editorial
da CNN Türk virou notícia mundial, sites turcos informaram que a
CNN International Commercial estava analisando o caso, havia
notificado a franqueada e poderia até romper o contrato de
licenciamento. Kızılkaya disse que nada aconteceu. “A CNN IC deveria
ter cancelado o contrato há muito tempo. Mas parece que eles gostam
mais de dinheiro do que da segurança e credibilidade da sua marca.”
Indagada pela piauí sobre sua inação, a CNN IC respondeu: “A CNN
Türk nos deu garantias e evidências de que estão fazendo todos os
esforços para realizar uma cobertura equilibrada, e estamos em contato
regular com a CNN Türk em relação às práticas editoriais e de
produção.”
A
o contrário do que ocorre nos Estados Unidos, as emissoras abertas
sempre dominaram o mercado no Brasil. A tevê por assinatura
chegou no final da década de 1980, mas só se tornou amplamente
acessível em meados dos anos 2000. A melhor fase durou dez anos, de
2005 a 2015. “O Brasil era o mercado mais pujante da tevê paga na
América Latina, o crescimento foi explosivo. Nesse período, todo mundo
veio bater na nossa porta em busca de parcerias”, lembrou Alberto
Pecegueiro, que dirigiu por 25 anos a Globosat, unidade de tevê paga do
Grupo Globo, até se aposentar, em fevereiro passado – ele permanece
como consultor do grupo e seu representante em joint ventures. “Mas [os
investidores estrangeiros] propunham: você pega minha marca, vende
publicidade para mim e eu fico com o dinheiro. Então não deu negócio.”
A
CNN Brasil ocupa dois andares de um prédio empresarial na
Avenida Paulista, a 200 metros do Masp, o Museu de Arte de São
Paulo. O letreiro gigante que decorou a entrada da Oca fica no saguão
do edifício – no dia da festa, foi transportado de caminhão – e virou
ponto de selfies de quem passa no local. No primeiro andar, com uma
decoração típica de ambientes corporativos compartilhados, estão a
redação e os estúdios, também com janelas voltadas para a Paulista. Nos
corredores, um painel instiga: The pen is mightier than the sword (A
caneta é mais poderosa do que a espada). Outro reproduz um manifesto
da CNN chamado Facts First (Fatos em primeiro lugar): “Fatos são fatos.
[…] Eles são indiscutíveis. Não há alternativa para um fato. […] Fatos
não são interpretações. Uma vez que os fatos já estão estabelecidos,
opiniões podem ser formadas. E, embora opiniões importem, elas não
mudam os fatos. É por isso que, na CNN, nós começamos com os fatos
primeiro.” Os dirigentes da área de jornalismo ficam próximos: as salas
dos vice-presidentes são contíguas à redação, em cujo centro se sentam os
diretores. No segundo andar, decorado com painéis fotográficos de
coberturas históricas da CNN norte-americana, estão as ilhas de edição,
os setores administrativos e de tecnologia, a principal sala de reuniões e
a sala de Tavolaro. E, de novo, um painel com o manifesto Facts First.
A
que o canal iria ao ar no início do segundo semestre de 2019.
Depois, Menin disse que gostaria que a data fosse 7 de setembro.
Em seguida, falou-se em novembro. Finalmente, definiu-se a
estreia para março deste ano. A corrida para cumprir o prazo foi
dolorosa. Os equipamentos importados atrasaram, as obras dos estúdios
foram iniciadas só em dezembro, as jornadas de trabalho se tornaram
exaustivas. Na última hora, para assegurar que os estúdios em São Paulo
funcionariam bem na estreia, a CNN transferiu para a sede o diretor de
Brasília, André Ramos, tido como um resolvedor de problemas. Para seu
lugar na capital federal, foi contratado às pressas o jornalista Roberto
Munhoz, outro egresso da Record.