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DICIONARIO
DE
EÇA DE QUEIROZ
ORGANIZAÇÃO E COORDENAÇÃO
DE
A. CAMPOS MATOS

2.ª edição
revista e aumentada

TOMB0.:89541

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DICIONÁRIO DE EÇA DE QUEIROZ


(2." edição) DEDALUS - Acervo - FFLCH-LE
R869.364 Dicxinario de Eca de Queiroz /
Organização e coordenação: A. Campos Matos E191d
©Editorial Caminho, SA, Lisboa - 1988 2.ed
Tiragem: 3000 exemplares e.2
Composição: Textype
Impressão e acabamento: Printer Portuguesa lllllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll lllll l/111111
Data de impressão: Outubro de 1993 21300084534
Depósito legal n.º 68 333/93
ISBN 972-21-0870-0

CAMlt\HO
(A) ILUSTRE CASA DE RAMI~ E O SEU CENÁRIO (A) ILUSTRE CASA DE RAMIRES E O ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS

na boca).» A propósito disto, lembremos aspa- mítrofe de S. lreneia, Gonçalo e André partem às dos Peixotos Padilhas etc., para que Eça possa •~Artigo Ramires, Enciclopédia Luso-Brasileira.

lavras de Gonçalo: «Com que autoridade me faz cinco horas para chegar a Oliveira às seis e qua- descrever, inspirando-se nelas, a Casa dos Cunhais, '" Mário Cardoso, O Testamento de Mumadona, Revista de
Guimarães, 1967. Tome 3-4 Vol.? (LXXVll).
el-rei, Marquês de Treixedo? <11 1)) Uma estrada de renta e cinco: «Os três quartos depois das seis, ba- com «a fidalga fachada de doze varandas», e ~1 A Ilustre Casa de Ramires, p. 12.
terra, impraticável em tempo de chuva, leva de tiam no relógio sempre adiantado da Igreja de o «portão baixo, como esmagado pelo imenso ni Ibidem, p. 19.
S. Cipriano a Cárquere. Na época do romance, S. Cristóvão em Oliveira.» escudo de armas», e a moradia de D. Arminda 111 lbidtm, p. 6.
numerosos caminhos de almocreves atalhavam as Às duas horas, Gonçalo recebe a visita inespe- Vilegas com o «pesado brasão na cimalha» e as mlbidtm, p. 34.
"~ Artigo S. Cipriano, Enciclopédia Luso-Brasileira.
distâncias: atinge-se um alto e depois de atraves- rada do visconde de Rio Manso. A visita dura «dez nobres varandas de ferro» <20 1. 111 1 A Ilustre Casa de Ramires, p. 336.
sar os «outeiros suaves de Vai verde» chega-se a cerca duma hora, e às cinco horas ele chega a Oli- Para terminar a evocação, alguns pormenores 11n Ibidem, p. 266.
Cárquere em meia hora. Daí a Resende, que se dis- veira, à casa do cunhado, em caleche. «0 relógio podem eventualmente ter influenciado o roman- "" lbidtm, p. 142.
tingue muito branca, lá em baixo, leva-se menos na sala de espera gemia preguiçosamente as cinco cista. Perto de Lamego abundam os topónimos ""Ibidem, p. 302.
""Ibidem, p. 339.
de vinte minutos a pé ou a cavalo, pois não há es- horas.» <16> Se Eça se dá ao trabalho de nos for- em - im. (Ladim, Ferreirim, Sandim, Mondim), '"' Ibitkm, p. 244.
trada que ligue directamente Cárquere a Resende. necer essas indicações, é porque tem na ideia um frequentes no romance (o abade de Chandim, o 1171 Ibidem, pp. 146, 184.
Assim, da Casa da Torre até Resende, o caminho lugar e distâncias suficientemente precisas. Oli- lugar de Sandim, o solar de Landim, o visconde "" Ibidem, p. l ll.
11 91 Cf. Américo Costa, Diccionario Chorographico de Portu-
percorre-se em pouco mais duma hora. veira, cidade de certa importância, possui uma sé, de Severim). A Capela de Nossa Senhora das gal, VII, pp. 289-290.
A descrição de Vila Clara, no romance, é con- um bispo, a residência do bispo, com a respectiva Candeias< 21 1, à saída de Lamego, tem uma ro- 1201 A Ilustre Casa de Ramires, p. 84.
forme à vista que se tem de Resende. Vindo de biblioteca, um asilo, um quartel, um liceu, e um ... maria anual. Freixomil 122> pode ser a combina- 1211 lbidem, p. 125.
Cárquere, passa-se por um lugar chamado Por- ção de Freigil, aldeia situada a meia hora de ca- 1221 Ibidem, p. 38.
governador civil. A única «cidade» conforme à
tela, onde, sem dúvida, acaba o «atalho da P'.Jr- minho de S. Cipriano com Queixomil, perto de "" lbidem, p. 33.
descrição é Lamego.
tela», e onde Gonçalo encontra o Titó< 121. Pouco De S. Cipriano, pelos atalhos, são precisas duas Santa Cruz.
depois, está o cemitério, «naquele alto da vila, horas a cavalo ou quatro a cinco horas a pé; os Para o Norte, e acima de Santa Cruz, ergue-se BmL: João de Araújo Correia, ol(E.Q. em Resende111, in Horas
donde ao desembocar da Calçadinha se abrange habitantes dos arredores bem o sabem, pois fa- a esplêndida Casa de Agrelos que lembra o nome Morta:;, Imprensa do Douro Ed., 1968, pp. 57-61.
a largueza rica dos campos de Valverde e Cra- zem esse percurso várias vezes por ano por oca- de Monte-Agra, e em frente, a Quinta das Bar-
quede» !1 31. O vale de Valverde, que se atravessa sião das feiras mais afamadas ou das festas de jas lembra o rico barão das Marges. Em redor de
antes de chegar a Cárquere, é disposto em socal- Nossa Senhora dos Remédios no mês de Setembro. S. Cipriano, há três lugares chamados Cerda! e (A) ILUSTRE CASA DE RAMIRES E ORO-
cos cultivados com cuidado: essa encosta do vale Encontram-se em Lamego, como previsto, um os atalhos e caminhos de almocreves são semea- MANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS. Por uma
do Douro voltada para a Quinta da Vila Nova, quartel, um liceu, o bispado, a sé, a biblioteca e dos de humildes tascos onde é possivel beber um ironia da história literária, o romance histórico
E.Q. podia contemplá-la de casa. o asilo. O romance alude à presença de uma im- copo e comer uma omeleta, mas de maneira ne- português mais bem conhecido, hoje, é provavel-
Em Resende está ainda o telégrafo que tem a prensa local importante e cita dois jornais: O Cla- nhuma uma posta de sável, no mês de Agosto, mente a narrativa acerca das façanhas do clã dos
sua importância no romance. Ainda hoje, os te- rim de Oliveira, que sucedeu ao jornal Aurora de como as recordações da sua estada de Fevereiro Ramires incluída por Eça n'A Ilustre Casa de Ra-
legramas são trazidos a S. Cipriano e à Casa da Oliveira. Ora, em Lamego a imprensa sempre foi de 1892... lho fazem escrever< 23 1. mires, cuja acção decorre no Portugal dos fins do
Torre pelo telegrafista que sobe a pé de Resende, muito activa: entre 1855 e 1900, publicaram-se É obviamente impossivel encontrar uma «chave» ·século XIX. Com certeza haverá quem se lembre
pelos atalhos. Aí se encontra o hospital mais pró- cerca de trinta jornais e entre os clâssicos Correio para todos os nomes e todas as situações, e ligar de Eurico (apesar de este não ser, nem de longe,
ximo de Santa Ireneia - S. Cipriano: para o hos- de Lamego, Comércio de Lamego, Gazeta do o artista à realidade prosaica de um guia turístico um romance histórico típico) e d'O Arco de
pital de Vila Clara se leva o Ernesto de Nace- Norte, etc., descobrimos uma Aurora de Lamego seria rebaixá-lo. No entanto, é interessante verifi- Sant'Ana. Mas, mesmo assim, é muito provável
jas <141. em 1881, substituída em 1891 pela Nova Aurora. car que os dois únicos romances «rústicos» foram que o romance histórico mais bem conhecido do
Não houve transformações: desapareceu o con- Lamego, cidade antiga e cidade de arte, sofreu elaborados e publicados quase ao mesmo tempo, público de hoje seja a narrativa retórica e extra-
vento, e a actividade da vila limita-se ao campo várias vezes transformações, para permitir a mo- e inspirados pela paisagem e os elementos de um vagante, supostamente escrita por Gonçalo Men-
de feira, e a algumas modestas lojas, uma farmá- dernização dos bairros antigos que se apinhavam só cenário, o único no qual Eça se tenha sentido des Ramires, acerca dos seus avós remotíssimos
cia, um clube onde se joga bilhar, um notário, em ruas, vielas e becos, em volta da sé. E.Q. foi verdadeiramente arraigado, e em casa dele, isto a e bárbaros de nomes sonoros (quem jamais se po-
uma pensão, e um ou dois cafés. A situação geo- testemunha dessas mutações e alude a algumas de- partir do momento em que teve de administrar derá esquecer de Tructesindo Ramires, herói or-
gráfica em relação a Craquede e Valverde, os tem- las; o coreto substituiu o antigo pelourinho, o Ter- como fidalgo proprietário a herança da mulher, gulhoso e vingativo?), narrativa que acaba grotes-
pos aproximativos dos percursos, parecem, pois, reiro da Louça e a Praça da Prataria perderam o cujo nome o punha em plano de igualdade com a camente com uma morte num lago cheio de
designar Resende como a Vila Clara do Romance, nome< 111, a Rua da Princesa acaba de ser calce- mais antiga nobreza do reino, agarrada a suas ter- sanguessugas famintas. Gonçalo, instigado pelo
que, vista da casa de Eça, parece mesmo «tão as- tada (IB>, o Seminário Novo, reconstruido em ras, à sua história, aos seus títulos e às suas prer- seu amigo João Lúcio Castanheiro, «O patrioti-
seada; sempre tão branca»us1. 1859, substituiu o antigo, incendiado em 1834< 191. rogativas ainda feudais. nheiro», escreveu o seu romance - ou melhor,
Depois da «vila vizinha», o terceiro cenário evo- Perto da sé, na Baixa, ficaram, no entanto, as [E.F.] por causa da sua brevidade, a sua novela - num
cado no início do romance é a «cidade» de Oli- Ruas dos Fornos, dos Ferradores, da Courre- Verão passado na casa ancestral, a sua inspira-
veira. Este topónimo é muito frequente em Por- doura, da Carqueijeira, que convidam Eça a ima- ção fraca reforçada por grandes bules de chá, os
tugal, sobretudo no Norte: Oliveira de Azeméis, ginar a Rua das Tecedeiras, das Brocas, das Ve- (Versão do original: «l 'Jllustre ''maison" de Ramires et son seus conhecimentos acerca da Idade Média, e
de Frades, do Hospital, Oliveira do Douro a 7 qui- cadre», Bu/lelin des Éludes Portugaises ec Bresiliennes, tomes
las ... O número dos conventos e das igrejas é tão 37-38, 1977-1978.) mesmo acerca da história da própria familia, ob-
lómetros, por baixo de Ramires. Não é o nome impressionante no romance como o é na reali- tidos em segunda mão, os seus esforços laborio-
da cidade que nos pode guiar mas a sua impor- dade. E, se, para abrir novas ruas, demoliram mo- NOTAS: Ili João Gaspar Simões, E.Q., ed. Arcádia, Col. «A sos frequentemente interrompidos por bebedei-
tância e as distâncias que a separam dos outros radias antigas, ficam ainda bastantes tais como Obra e o Homemn, p. 110. ras com os amigos, intrigas amorosas de vária
121 Faria de Sousa, Europa Portuguesa, no artigo tiSanta Ma-
cenários de referência. Possuímos duas indicações: a Casa das Brolhas com as suas onze largas jane- ria de Cárqueren, da Enciclopédia Luso-Brasileira. ordem, rixas violentas com os campesinos da re-
de Corinde, propriedade de André Cavaleiro, li- las e o seu brasão, a Casa dos Pinheiros, a Casa ili A Ilustre Casa de Ramires, p. 44. (ed. Livros do Brasil). gião e uma eleição empolgante. Com certeza,
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(A) ILUSTRE CASA DE RAMIRES E O ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS (A) ILUSTRE CASA DE RAMIRES E O ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS

Gonçalo, ao escrever a novela, não pretendia ser Monge de Cister: pai impiedoso, que prefere a tura, impressiona o facto de os dois romances te- se seguiu à subida ao trono de D. Afonso II e as
original, nem tinha grandes ambições como his- morte do filho a uma possível desonra, e depois rem em comum tantos nomes pessoais e de luga- tentativas do novo rei de deserdar os seus irmãos.
toriador. Contudo, fez a novela com cuidado, só pensa em vingar-se no autor desta, Lopo de res. O nome sonoro, nitidamente medieval, de As duas narrativas até começam da mesma ma-
dentro duma tradição literária bem portuguesa Baião. Falta também originalidade ao eslilo que, Tructesindo Ramires aparece nos capítulos 11 e neira, numa sala de armas apinhada de gente, e
- possivelmente mais portuguesa do que a como já foi notado várias vezes, parodia a retó- 12 do romance de Rebelo da Silva. Constitui um ambas têm, como mola do enredo, um acto de
maioria das pessoas imagina. rica empolada de Herculano e os da sua escola. outro exemplo de semelhança de nomes a Honra vingança bem tramada e bem violenta. Com
Gonçalo teve de labutar muito antes de poder Costumavam publicar os seus romances em folhe- de Avelãs, uma ruína referida na parte histórica efeito, o título escolhido por Rebelo da Silva in-
começar o seu livrinho. Mas, quando enfim es- tins, e os cinco capítulos do romance de Gonçalo, d'A Ilustre Casa de Ramires e também na parte dica claramente a natureza da sua obra, pois há
creveu as primeiras linhas, serviu-se duma cena separados uns dos outros pela narrativa das aven- contemporânea, que é um topónimo importante nela não só uma narrativa de vingança, mas vá-
muito familiar aos leitores do romance histórico turas do seu autor, surgem n' A Ilustre Casa de
português novecentista, género literário estabele- de Ódio Velho não Cansa, sendo precisamente o rias, ligadas entre si. Eça não as podia incluir
Ramires com o mesmo ritmo com que O Bobo, castelo do herói da narrativa, o nobre Gomes todas no seu breve romance, evidentemente, mas
cido por Herculano nos anos 30 (sob a influência por exemplo, apareceu no Panorama.
de Walter Scott) e continuado por Almeida Gar- Lourenço. - Exactamente como Tructesindo, certas cenas tinham para ele uma sedução irre-
Não é necessário, porém, ser muito versado no Gomes Lourenço tem, como brasão de armas, um sistível. Vejamos, por exemplo, o capitulo 5 de
rett e por todo um grupo de seguidores, um de- romance histórico novecentista para saber que A
les, Luis Augusto Rebelo da Silva, mencionado vá- açor, e pertence à família dos Viegas de Salzedas, Ódio Velho não Cansa, «A mão direita, ou a es-
Torre de D. Ramires (o titulo da narrativa de clã importante também n'A Torre de D. Rami- querda!».
rias vezes no decurso d'A Ilustre Casa de Ramires. Gonçalo) é um exemplo típico daquele género.
É importante não esquecer que a narrativa histó- res. Um membro da mesma família, Garcia Vie- O capítulo abre com a descrição dum grupo de
Não há nenhuma dúvida a este respeito, já que, gas, o Sabedor, é uma personagem-chave da no- cavaleiros que atravessa um bosque. São D. Ma-
rica incluida naquele romance vem na continui- segundo informa o narrador, Gonçalo, ao escre-
dade duma tradição literária muito fecunda. Não vela de Gonçalo, pois é ele ']Uem concebe a ria Pais e o irmão, Martim (o vilão da peça), com
ver a novela, não deixava de consultar as obras emboscada tramada contra Lopo de Baião e lhe o seu séquito. Ao aproximarem-se da Honra de
é de surpreender, portanto, que a primeira cena de mestres como Herculano, Walter Scott, Rebelo
do romance de Gonçalo, que o levou a exclamar planifica a horrível morte. Outras personagens Avelãs o senhor desta, Gomes Lourenço (inimigo
da Silva, etc., e também os volumes do Panorama. que aparecem em ambas as narrativas são frei tradicional da família), sai ao seu encontro. Com
«Louvado Deus! A pena desemperrara!» (p. 51), Tinha também uma fonte ficticia, uma poesia es-
se localize na sala de armas do Castelo de Santa Múnio, cujo papel é pequeno. n'A Torre de modos corteses, pede a mão de Maria em casa-
crita pelo seu tio Duarte, O Castelo de Santa Ire- D. Ramires mas grande em Odio Velho não mento, mas o irmão rejeita-o com desprezo. Ao
lreneia, naquele momento apinhada de guerreiros. neia, obra felizmente conhecida de muito poucos,
Gonçalo não foi o primeiro autor de romances his- Cansa, e o servente Ermiguiz ou Ermigues. pé duma fonte mourisca os dois homens resolvem
que narrava exactamente os mesmos acontecimen- Mas uma surpresa ainda maior do que esta cu- combater, mas após uma luta breve Gomes Lou-
tóricos a utilizar este meio para emocionar o lei- tos que Gonçalo incluiu no seu romance. Mas, na
tor, no inicio da narrativa. Logo depois vem uma riosa semelhança de nomes aguarda o leitor do ro- renço desarma o seu adversário, obrigando-o a
verdade, não é na poesia romântica do tio Duarte mance de Rebelo da Silva que chega ao capítulo pôr-se de joelhos. Ao escrever a mesma história,
análise algo pedante da situação política portu- (que aliás nunca existiu) que se deve procurar as
guesa no começo do reinado de D. Afonso II, 7, «0 castelo de Santa Olaia». Esse capitulo co- Eça fez uma distribuição diferente dos papéis. Po-
fontes reais d'A Torre de D. Ramires, mas na fic- meça com a descrição do castelo, edifício gasto rém, a história é facilmente reconhecível na des-
muito á maneira de Herculano ou de Rebelo da ção em prosa da mesma época.
Silva, para os quais o romance histórico tinha um pelos anos e pelos homens, do qual, no período crição da cavalgada de D. Violante, filha de Truc-
Quando o narrador d'A Ilustre Casa de Rami- descrito no romance, restava uma única torre: tesindo, que é detida, perto duma fonte mourisca,
fim didáctico. Com efeito, a situação politica da res diz que a novela de Gonçalo se inspirava em
época precisava de clarificação, já que era algo «Em roda caira tudo; por que mistério ela, a única pelo seu pretendente Lopo de Baião, o Bastardo.
outras obras do mesmo género, não mentia. A in- salva da espada dos séculos e do fogo, levantava No combate que se segue, o Bastardo é desarmado
confusa: os anos que se seguiram à morte de fluência de mais de um escritor da época român-
D. Sancho 1 foram de lutas entre o seu sucessor, a negra fronte quase acima das nuvens, donde a pelo primo de D. Violante, que «O manteve um
tica nota-se n'A Torre de D. Ramires, mas a fonte ' águia a contemplava arfando as asas! Os anda- momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua
D. Afonso li, e os irmãos deste por causa da he- mais importante, em que Gonçalo (ou Eça) foi be- ·
rança paterna. Mas Gonçalo passou rapidamente res achatados e massudos, subindo estreitavam- adaga» (p. 121). A diferença entre as duas histó-
ber os elementos básicos do enredo e também mui- -se rematando no eirado, e abrindo nele em cír- rias é que Gomes Lourenço, tendo desarmado o
através desta secção do primeiro capitulo, neces- tos pormenores narrativos e descritivos, foi Ódio
sária mas um pouco fastidiosa, para chegar à parte culo a boca da escada interior», etc. (pp. 81-82). inimigo, consegue raptar a irmã, para ser depois
Velho não Cansa, de Luís Augusto Rebelo da Muito mais antigo do que o próprio reino de Por- traído por esta e assassinado por Martim e o seu
mais importante do livro (e dos de outros auto- Silva.
res de ficção histórica): a narrativa de amores e tugal, o castelo - de que nada existia excepto a parente, D. Nuno. Eça trata Lopo de Baião, o
Rebelo da Silva (1822-1861) foi um escritor ex- torre - era o cenário de toda a espécie de vio- Bastardo, dum modo diferente, porque este he-
vinganças, de mortes, perseguições desesperadas, tremamente fecundo da segunda geração român-
lealdades bárbaras e violentas, que culmina no cas- lência diabólica. Parece muito provável que esta rói, em combate com o irmão de D. Violante,
tica. Foi amigo e discípulo de Herculano, a quem torre chamada «a torre de Caim», onde grande também chamado Lourenço, vinga a sua tenta-
tigo grotesco de Lopo de Baião, para uns o Bas- dedicou Ódio Velho não Cansa, romance escrito,
tardo, para outros o Claro Sol, que morre, des- parte' da acção de Ódio Velho não Cansa se de- tiva malograda de raptá-la, prendendo-o e matan-
segundo o seu autor, quase todo em casa de Her- senrola, tivesse sido fonte da torre solitária d'A do-o diante do castelo de Tructesindo, seu pai.
pido e atado a um poste, no meio duma multidão culano, na Ajuda, e publicado pela primeira vez
- de sanguessugas. Nada disto é original, nem Ilustre Casa de Ramires, «a antiquíssima Torre, Tructesindo depois persegue o assassino do filho
em 1848. A segunda edição de 1852-1853 foi pu- quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar» e mata-o da maneira que conhecemos.
mesmo as sanguessugas, mas com a própria falta blicada no Panorama, pormenor interessante,
de originalidade na construção da novela afirma- (p. 6), que tão grande importância simbólica tem Ao leitor de ambos os romances é dada uma
dado que sabemos quanto Gonçalo apreciava no romance de Eça. narrativa, de amor e de vingança, complicada mas
-se o seu lugar na tradição literária a que pertence. aquele periódico.
As personagens também, pouco originais, exibem Não foram só nomes e pormenores descritivos cheia de pontos em comum. E como são formi-
As semelhanças entre Ódio Velho não Cansa e que Eça descobriu na narrativa do seu predeces- dáveis as vinganças imaginadas pelos romancis-
a violência que, no romance histórico, se associava A Torre de D. Ramires são tão numerosas que é
sempre à Idade Média. Tructesindo Ramires, por sor. Lá foi encontrar também uma estrutura e tas do pacato século x1x! Martim Pais, como
muito possivel que Eça tenha usado a obra de Re- uma época histórica. Ódio Velho não Cansa des- Tructesindo e Garcia de Viegas, o Sabedor, foi
exemplo, não deve nada, em termos de selvaja- belo da Silva como modelo irónico do romance
ria, a Eurico ou a frei Vasco, protagonista d'O creve o mesmo período que A Torre de D. Ra- um especialista em castigos rebuscados. Numa
«escrito» por Gonçalo. Logo numa primeira lei- mires, o período de incerteza e de guerra civil que luta prévia com a família de Viegas de Salzedas
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(A) ILUSTRE CASA DE RAMIRES E O ROMANCE HISTÓRICO PORTUGUÊS (0) IMPERADOR GUILHERME

tinha cegado a sua vítima (o tio de Gomes Lou- Uma ruão do interesse que Eça tinha por uma- exemplo, quando ataca Ernesto de Nacejas com 1científica como a História de Portugal, e de cró-
renço) e, com um ferro em brasa, tinha-lhe escrito obra que não podia ter deixado de considerar o chicote) mas, em termos sociais e políticos, a nicas reais ou eclesiásticas.
na testa as palavras «escravo de Lanhoso». Truc- muito inferior às suas foi, sem dúvida, a necessi- Idade Média é, para ele, uma época remota e ir- - Parece muito provável que o próprio Eça sou-
tesindo e Garcia de Viegas, como sabemos, pre- dade de estabelecer um ambiente bem nacional e recuperável. besse disto, que entendesse que o passado não é
feriram as sanguessugas - um pormenor encon- português n' A Ilustre Casa de Ramires. No livro, O que se exprime, portanto, na novela de Gon· uma realidade simples, mas um mosaico de tex-
trado na História de Portugal de Herculano que, Eça, o grande estrangeirado, voltou não só à terra çalo, em Ódio Velho não Cansa e em outros ro- tos, nenhum deles válido por si só. Por outras pa-
numa nota, narra um incidente ocorrido na época e ao povo rústico de Portugal mas também à tra- mances do mesmo género, é como o passado me- lavras, pode-se dizer que Eça parece antecipar a
descrita nos dois romances (o reinado de dição literária portuguesa. Eça estabeleceu um am- dieval é remoto do Portugal novecentista. E é teoria moderna da intertextualidade. Com efeito,
D. Afonso II), no qual um cavaleiro morre de biente nacionalista em parte por razões irónicas. possível encontrar uma segunda razão para o uso é impressionante o número de maneiras de pen-
verdade num lago cheio destes vermes repugnan- Com efeito, a novela intercalada constitui um pas- feito por Eça da narrativa de Rebelo da Silva pre· sar o passado histórico mencionadas ao longo d'A
tes (pp. 592-593). tiche cujo fim era de ridicularizar a patriotice de cisamente no facto de o passado ser irrecuperável. Ilustre Casa de Ramires. Além da novela escrita
Tanto Eça como Rebelo da Silva - nisto se- nacionalistas como «O patriotinheiro» Casta- Quando Eça escreveu A Ilustre Casa de Rami- por Gonçalo, há o poema do tio Duarte, os ver-
guindo Walter Scott e outros - parecem ter julgado nheiro, que viam no romance histórico uma forma res fez pelo menos uma tentativa, segundo revela sos do fadista Videirinha acerca da história da
que um elemento necessário ao romance histórico de regenerar Portugal. Mas existe, além disso, um a sua correspondência, de estudar directamente a Torre, as investigações mais académicas do padre
era a narração de acontecimentos sobrenaturais. aspecto mais sério da novela de Gonçalo que de- Idade Média portuguesa. Numa carta ao conde Soeiro e do morgado de Cidadelhe, «esse severo
O sobrenatural é mais um acompanhamento do riva também da tradição do romance histórico de Arnoso (20-7-1899), revela o seu interesse por genealogista», além dos livros realmente existen-
que uma parte integral do emedo, introduzido sob português, e que ainda não foi analisado com a «esses grossos fólios, que são o Portugaliae Mo· tes de Herculano, Scott, Rebelo da Silva, etc. E
a forma de narrações independentes, ou de so- devida atenção. --- · numenta Historiem>, por exemplo. Contudo, o estas só constituem as fontes literárias. Eça co-
nhos. Gonçalo sonha, muito vividamente, com os Herculano, Garrett e Rebelo da Silva distin- caso é que grande pane da novela histórica incor- nhecia outros testemunhos, não escritos, do pas-
avós; e durante a visita da sua prima Maria e de guem-se do seu modelo, Walter Scott, na medida porada naquela obra não passa duma re-escrita sado: testemunhos arqueológicos, como a Torre,
D. Ana ao mausoléu familiar dos Ramires, conta- em que exprimem um enorme pessimismo acerca de outro romance histórico. Deve dizer-se que é tantas vezes descrita, que constitui uma ligação
-lhes a história de Gutierres Ramires (ou de Lopo da história nacional. Scott, em contrapartida, ape- uma bela re-escrita, bem realizada, que uma certa directa, mas muda, à pré-história de Portugal, até
Ramires, não se lembra bem) que sai do túmulo sar de ter narrado muitos episódios turbulentos e nota de paródia torna muito mais atraente que a testemunhos psíquicos, como os sonhos e visões
e, montado num cavalo morto, galopa através da violentos da história do seu país, deixa o leitor narrativa pesada e ultra-romântica de Rebelo da dos avós que passam pelo espírito de Gonçalo.
Espanha para entrar na Batalha das Navas de To- com uma mensagem de reconciliação, pois os seus Silva. Mas é também verdade que A Torre de Mas apesar de dispor de tanto material, o pobre
losa (p. 223). Esta pequena história encontra um romances nos mostram como os conflitos políti- D. Ramires é uma re-escrita de outro livro acerca Gonçalo não tinha a mínima confiança n'A Torre
p~ralelo na «I:nd.a do século XI» gu~ é uma espé- cos e religiosos dos séculos XVII e xvm na Escó- da Idade Média, e não uma obra baseada direc· de D. Ramires como reconstrução solidamente
cie de narraçao mtercalada de Ód10 Velho não cia se resolveram sempre num presente mais har- tamente na realidade do passado. Eça ou simples· histórica (p. 326). A única coisa que fez foi es-
Cansa: o protagonista desta lenda, Jnigo Lopes, monioso. É verdade que no seu romance mais mente copia Rebelo da Silva ou altera, à sua ma- crever mais um texto acerca do passado - o que
que vendeu a alma ao diabo, galopa montado conhecido, /vanhoe (livro muito traduzido, lido neira, situações e personagens já estabelecidas por parece ser o que fez o próprio Eça também, cujo
num cavalo mágico, «cor de noite, olhos todos e imitado em Portugal), Scott pôs de lado a his- ele. Tructesindo Ramires, por exemplo, o guer- uso de Ódio Velho não Cansa indica que o ro-
chamas, não correndo, mas voando» da Judeia a tória escocesa dos últimos séculos para se dedicar reiro de barbas brancas de Eça, aparece nos ca- mancista bem sabia que por trás dum texto há
Portugal (p. 102). O paralelismo não é exacto, a um período e a um cenário para ele remotos, em pítulos 11 e 12 de Ódio Velho não Cansa como sempre outro texto, e que o passado é uma visão,
mas a presença do sobrenatural n'A Ilustre Casa termos do tempo e do espaço, a Inglaterra medie- um jovem. É como se Eça tivesse imaginado o fascinante mas inacessível, por trás deles todos.
de Ramires é mais uma indicação de como o ro- val. Mas, mesmo naquele romance, a resolução guerreiro feroz e leal de Rebelo da Silva na ve·
mance de Eça se integra na tradição do romance do conflito racial entre saxões e normandos indica lhice, modificando e melhorando o texto deste, [T.F.i:_.J (
histórico. o caminho para a sociedade racialmente harmo- mas continuando a utilizá-lo como a base da sua . d. _
BIBL: E.Q. , A /luslre Casa de Ram1res. e 1çao organizada
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Quando, em 1916, António Cabral se referiu niosa que foi a Grã-Bretanha no século XIX. reconstrução histórica. por Helena Cidade Moura, Lisboa, Livros do Brasil s/d.; Luis
às fontes d' A Ilustre Casa de Ramires, tinha a Falta por completo, porém, a reconciliação nos Nada disto quer dizer, porém, que a obra de A. Rebelo da Silva, Ódio Velho não Cansa, 3. 1 edição, Lisboa,
vantagem de viver numa época ainda perto da do romances da tradição portuguesa. Para Hercu- Rebelo da Silva capte, ela própria, a realidade his- s/d.; Alexandre Herculano, História de Portugal, edição orga-
nizada por José Mauoso, vai. 2, Lisboa, s/d.; António Cabral,
romance histórico do século passado. Ele conhe- lano, para Rebelo da Silva, para o próprio Eça, tórica directamente. Na dedicatória a Herculano, E.Q., J.' ed., Lisboa, Bertrand, 1945; E.Q., Correspondência,
cia Ódio Velho não Cansa, como indica uma nota o passado medieval é um período de selvajaria e o autor confessa: «Esta obra é fruto do seu exem· edição organiz.ada por Guilhenne de Castilho, vai. 2, Lisboa, Im-
em que chama a atenção para o facto de Tructe- de barbarídade, de destrutivas guerras internas, pio; procurei nela interpretar, pela Arte, um dos prensa Nacional-Casa da Moeda, 1985; Laura Cavalcanle Padilha.
sindo Ramires ser uma personagem daquele ro- que havia de acabar inevitavelmente - como capítulos da sua História de Portugal, nada O Espaço Desejo, uma leitura da J.C.R. de E.O .. Brasília, Edit.
Universitária de Brasília, R. de Janeiro, 1989.
mance e também do de Eça (p. 368). Todavia, não muito bem via Herculano - no controlo absoluto mais.» E diz a seguir que fazia isto com os exem·
levou a sua investigação da obra de Rebelo da exercido por uma monarquia poderosa sobre uma pios d'A Abóbada e d'O Monge de Cister sem·
Silva mais longe, concentrando-se, em vez disso, aristocracia e povo exaustos. Segundo esta con- pre na mente, eles próprios romances baseados em
nos paralelismos, que sem dúvida existem, entre cepção da história portuguesa, não há um desen- outros textos, de Walter Scott, Fernão Lopes e, «(0) IMPERADOR GUILHERME». Crónica
a cena da morte de Lourenço Ramires, diante do volvimento político harmonioso: ao período me- no caso d'A Abóbada, na História de S. Domin- coligida postumamente por Luís de Magalhães nos
castelo do seu pai, e o conto de Herculano, O Cas- dieval sucedeu a época inteiramente distinta do 1-gos de Frei Luís de Sousa. Quem lê o romance Ecos de Paris, 1905, publicada pela 1. • vez no su-
telo de Faria. Para António Cabral, estes para- absolutismo que, por sua vez, cedeu perante o li- histórico encontra, não propriamente o passado plemento literário da Gazeta de Notícias, do Rio
lelismos constituíam um dos supostos plágios de beralismo novecentista. Gonçalo, com efeito, sente em toda a sua realidade mas uma galeria de tex· de Janeiro, em 264-1892. No cap. Bibliografia da
Eça, apesar de Ódio Velho não Cansa ter sido, de vez em quando alguma relação moral ou psi- 1
, tos que tentam descrever o passado, uma varie· ed. do Centenário, Obras de E. Q., vol. IX, lê-se:
para Eça, uma fonte muito mais importante que cológica com o passado, parece-lhe ter o sangue \ dade caleidoscópica de escritas diferentes, deriva- «este admirável artigo foi transcrito durante a
O Castelo de Faria. fogoso de Tructesindo Ramires nas veias (por i das de outros romances, de obras de história Grande Guerra (de 1914-1918) pela grande im-

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