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KARL MARX diferenca entre a filosofia da natureza de Democrito ea de Epicuro ,¢ Seria o leitor capaz de imaginar Karl Marx como um erudito Feenstra Oe wie Ente Mer er Ieee Orit ciclo das filosofias helénicas? Creio que dificilmente, dada Pies Cee Te conrte ie St Mine Nee nme cate cete er ene litante da revolugao comunista. Mas é esse Marx que, a0 menos em parte, vemos surgir neste volume, originalmente sua tese de doutorado sobre a Diferenga entre a filosofia da Di er ee a eee vere e eee Men TNT sidade de Jena em 1841. OTS eNom nec leur Mt mcecmete ene Ca nO Re CRT DCU CC Rer Lo mecse nese se ieia Rote oF Pe eRe reno le ORC M eRe ee Taney Er acerca rer oe Sten lono oc RU a matéria, buscando tirar as consequéncias de cada uma CoE one eae cree eee Reon) Exe utorrent ere Rtn comme Teae ne} enero Ons Oem CeO mM On Toc Lean eee auspicios do amigo e incentivador Bruno Bauer, que ja ern See Foe Meret outer Wine Te Meee aL ete Tey tese foi a perspectiva de uma carreira universitaria, seu significado mais Pere once esate een teen suo men melS atic POL eons Coates CCRC Tod Ce cre Tec ence taco Roar Mean tr Rese TeL) Dec Caw esate Cs ROPE rte ease seer ta NCC Os CECE CROs Treen eee TC steomeny Porter Mn s ene oie sa CEO meen et Oe rected Fearne reece Ts Tectete eco Dem oma eltes io eee Ne ENE Eman toc) ERO tote ee MCP rer) eR et eae enn CMC trae Peco nen nerOey Cee einen sc aka Seratese OSLO Peat} OB eevee mM Cerca EY OnE eer eee ores hon ete eet econo ae Mer Crea ee eats B Tce or como a divindade suprema”. E, medida em que recusa toda autoridade acima do homem, faz da “liberdade da Eee ers te MO ene eT ee realidade. Do mesmo modo, a negagao da divindade nao Ronen eset eterna not corec) filosofia (ou do pensamento livre) contra “o entendimento Erte ert e a Celera Nee Les OMe ccc ms CeO U CMS CEC Peete mec Mls eee mata Sete cones! PRE ose Cuno em ORCI saree Mea eet! Peston ieee teen te RR eR ec) prot eeetar Gree vieN eet em aoe et ane t CRY Cee cr me Rn Ce inteiramente frustradas. Com 0 acitramento da repressao PO te Mes eee eee ec rMensrU One Merri acd sidade e proibidos de exercer a docéncia. Perdia-se assim um eminente professor de filosofia helenista, mas abria-se © caminho para o grande projeto de compreensao e critica eRe este teem etre coe rae Tartu Karl Marx DIFERENCA ENTREA FILOSOFIA DA NATUREZA DE DEMOCRITO E A DE EPICURO Tradugéo Nélio Schneider Apresentagao Ana Selva Albinati © Boitempo, 2018, ‘Traduzido do original em aleman Differene der demokritschen-und epibereisehen Naturphilesophie nebst einem Anbange, em Katl Marx, Werke, Artikel, Literurische Versuche bis Mare, 1843 (MEGA-2 U/1, Berlim, Diete, 1975), p. 5-92 (texto) e 879-962 (aparato). Direedo editorial Tvana Jnkings Pigdo Bibiana Leme Coardenagio de produsio Livia Campos Asistencia editorial Uhaisa Burani Trudugéo Nélio Schneider Preparagdéo Thais Risakus Revicéa Thafs Nicoleti Capa Antonio Kehl (sobre ilustraeio de Gilberto Maringoni) Diageamagto Crayon Editorial (p. 2: detalhe de “Karl Marx conversa com trabalhadores franceses em 1844”, pintura a éleo de Hans Mocznay, 1961) Camargo Equipe de apoin: Allan Jones; Ana Yumi Kajili, André Albert, Artur Renzo, Camilla Rillo, Eduardo Marques, Elaine Ramos, Frederico Indiani, Heleni Andrade, Isabella Barboza, Isabella Marcatei, Fearn Oliveira, Kim Dotia, Marlene Baptista, Mauricio Barbosa, Renato Soates, Thais Barros, Tulio Candiorto CIP-BRASTL. CATALOGACAO NA PUBLICAGAO SINDICATO NAGIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Massa Mars, Kar, 1818-1883, Diferenga cinre as flosofis da narunezs em Deméerlto © Epicuro / Kael Heintich Mare; * traducio Nélo Schneider. 1 ed. - Sto Paulo : Hoitempo, 2018. (Mare Engels) ‘Tradupio de: Diflerens dee domoleitischen nd eplureachen natusphilasophic Inclu cronologia ISBN 978.85-7559.603.6 1, Filosofia da nares 2, Democritus, >. Epicurus |. Schneider, Néio I. Teo. I. Séxe 17.46853. epp:113 cpu: 133, E vedada a reprodugao de qualquer parte deste livro sem a expressa auorizacio da editors, Pedigto: janeiro de 2018 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda, Rua Percira Leite, 373 (5442-000 Sao Paulo SP Tel/fax: (11) 3875-7250 J 3875-7285 éeditor@boicem pocditorial.comn.br | www-boitempoedicorial.com.br wiv blogdaboitempo.com,br | wi. lacebook.com/boitempo ywmvctwittercom/editoraboitempo | www youtube com/wboicempa SUMARIO Nota da edic&o.... Apresentagio & edigao brasileira - Ana Selva Albinati .. DIFERENGA ENTRE A FILOSOFIA DA NATUREZA DE DEMOCRITO E A DE EPICURO. Prefacio. sei RE Prefacio. PRIMEIRA PARTE: Diferenga entre a filosofia da natureza de Demicrito e a de Epicuro em termos gerais... |, Objeto do tratado....... Il. Pareceres sobre a relagdo entre a fisica de Demécrito € ade Epicuro Ill. Dificuldades quanto 2 identidade da filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro.. IV. Diferenga fundamental geral entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro]....... IV. Resultado]... SEGUNDA PARTE: Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro em termos especificos..... Capitulo |: A declinagao do atomo da linha reta.. Capitulo Il: As qualidades do tomo... Capitulo Ill: “Atopor dpyai e tetonta oroueeta..... Capitulo IV: O tempo... Capitulo V: Os meteors... Apéndice: Critica a polémica de Plutarco contra a teologia de Epicuro.....127 1. A relagao entre ser humano € Deus...... [I A imortalidade individual. Cronologia resumida de Marx e Engels... Colegio Marx-Engels.....setesee NOTA DA EDIGAO Esta obra, a 24¢ que a Boitempo publica pela colecéo Marx-Engels, tem algumas caracteristicas que a diferenciam do conjunto dos escritos de Karl Marx. Em primeiro lugar, trata-se de um trabalho rigorosamente académico, que se aprofunda no estudo critico das bases da filosofia grega antiga; em segundo, trata-se de um volume incompleto, do qual grandes trechos se perderam com o passar dos anos. Escrito de agosto de 1840 até marco de 1841, apés estudos preparatérios no decorrer do ano de 1839, 0 texto que o leitor agora tem em maos foi aceite como tese de doutoramento de Karl Marx pela Universidade de Jena. O autor fez duas tentativas de publicd-lo na forma de livro, como se vé pelos preféicios, mas, por razGes que se desconhecem, 0 projeto permaneceu inconcluso e, com isso, seu suporte material sofreu pelas condicées pre- cdrias de conservagio. O texto de que dispomos atualmente é baseado em COpia feita por alguém descanhecido com base em um manuscrito de Marx que nao se conservou. Essa cépia foi revisada e complementa- da pelo proprio Marx. Mesmo com lacunas, a obra € de grande relevan- cia para a compreensao do pensamento de Karl Marx, no que diz res- peito tanto ao seu método como a sua formagao intelectual e filosofica. Traduzido por Nélio Schneider, especialista nao apenas em alemao, mas em latim e grego, 0 texto 6 uma pequena obra de arte da filologia. A fim de preservar da melhor forma possfvel todo seu rigor, junto com sua versao para o portugués foram mantidas as citagGes originais. Sera possivel ao leitor perceber algumas divergéncias entre a traducao pro- posta por Marx para citagées de autores antigos no texto principal e a traducao moderna apresentada nas notas de rodapé. Ocorre também que 0 préprio Marx, em varios momentos, traduz a mesma passagem Nota da edigao do grego ou do latim com palavras diferentes, opcao que se optou aqui por respeitar, como de praxe nas obras da colecdo Marx-Engels. Q res- tante dos critérios de edigao segue igual aos dos outros volumes da cole- Gao: as notas do autor estado numeradas; as da edigdo alema, “(N. E.A.)”, do tradutor, “(N. T.)”, e da edigao brasileira, “(N. E.)”, sao indicadas com asteriscos ou, caso complementem uma nota do autor, aparecem como acréscimos entre colchetes. Também entre colchetes aparecem os acrés- cimos editoriais ao longo do texto principal de Karl Marx. Por falar em “Karl Marx”, o leitor atento perceberé um detalhe curioso & pagina 17: a tradicional grafia do nome do autor acrescenta- -se desta vez um nome do meio, “Karl Heinrich Marx”. De acordo com 0 estudioso alem&o Michael Heinrich, autor de uma biografia de Marx que em breve sera publicada pela Boitempo, “no registro de nascimentos da cidade de Trier consta simplesmente ‘Carl Marx’. As- sim como na certidéo de casamento e no regime matrimonial de bens, assinado com sua esposa, Jenny”. O “K” em vez do “C” em “Karl” foi a opcao mais usada pelo autor ao longo de toda a vida (em- bora com variagées), porém “Heinrich” s6 foi utilizado por ele em seus anos de estudo universitério. Ainda segundo o biégrafo, © pai de Karl se chamava Heinrich e, quando Karl Marx se matriculou na Universidade de Bonn, em 1835, para estudar direito, ele indicou o nome Karl Heinrich Marx. Nao sabemos se ele queria, com isso, homenagear 0 pai. Karl Marx, que nessa época era muito mais interessado por postica do que por direito, queria, na verdade, tornar-se poeta. Talvez o mero “Karl” Ihe fosse simples demais, “Karl Heinrich” tinha um pouco mais de forca. Com esta edigao, que apresenta, portanto, quase um outro Marx, colaboraram os professores de filosofia Ana Selva Albinati, autora da apresentacao a edigiio brasileira, e Rodnei Nascimento, autor do tex- to de orelha, além do ilustrador Gilberto Maringoni, autor do jovem Marx que estampa a capa deste volume. A Boitempo agradece a eles ea todos que, de uma forma ou de outra, participaram desta publiga- Gao: tradutor, revisoras, diagramacloras e sua sempre aguerrida equipe interna. A editora é grata ainda A equipe da MEGA-2, em especial a seu diretor-executivo, Gerald Hubmann. 8 APRESENTAGAO A EDIGAO BRASILEIRA Ana Selva Albinati Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro foi 0 titulo dado por Marx a sua tese de doutoramento, em 1841, quando tinha apenas 23 anos. Encontrado incompleto, este trabalho mantém sua importancia tanto pela abordagem original da filosofia pés-aristotélica quanto pelo que revela das inquietudes da jovem Marx frente ao seu tempo e & filosofia pds-hegeliana. O interesse do autor pelas escolas pés-aristotélicas se dé pelo re- conhecimento de que, em seu conjunto, elas contém a “construgao completa da autoconsciéncia”!. Observa Marx: Parece-me que, ao passo que os sistemas mais antigos sio mais significa- tivos e mais interessantes pelo contetido, os pés-aristotélicos - sobretudo co ciclo das escolas epicurista, estoica e cética — 0 so pela forma subjeti- va, pelo cardter da filosofia grega. $6 que, até agora, justamente a forma subjetiva, suporte espiritual dos sistemas filos6ficos, foi quase totalmente esquecida em fungao de suas determinacdes metafisicas.* Enfatizando tais sistemas como arquétipos que migraram para Roma, 0 autor chama a atengao para o fato de que “o proprio mundo modemo foi obrigado a thes conceder cidadania intelectual plena”*, numa alusdo ao principio da subjetividade que caracteriza a moderni- ' Ver, neste volume, p. 31 2 Idem, 2 Ver, neste volume, p. 30 Apresentagiio @ ediefo brasileira dade. Para Marx, longedeserem “um suplemento quase inconveniente”* da filosofia aristotélica, esses sistemas filosdficos sao passiveis de uma real compreensao apenas na modernidade: “S6 agora chegou a época em que serd possivel entender os sistemas dos epicuristas, dos estoicos e dos céticos. Trata-se da filosofia da autoconsciéncia’’, que assume uma grande relevancia nesse primeiro momento da trajet6ria intelec- tual de Marx, marcado pela atmosfera tedrica do idealismo ativo. A propria sugestao do tema teria sido, de acordo com varios comenta- dores, de Bruno Bauer. Tal projeto nao teve o desenvolvimento previsto, limitando-se o autor ao estudo da relacao entre a fisica de Democrito e a de Epicuro, instigado pela questao de como esses pensadores poderiam ser perso- nalidades tao distintas entre si e apresentar compreensoes da realidade t4o diversas, se partiam do mesmo principio, 0 atomismo. Analisando a concep¢ao de étomo em ambos os autores, Marx foi capaz de re- construir dois blocos filosdficos distintos, sistemdticos e coerentes, num trabalho notavel de escavacao dos principios. Distinguindo em tragos largos as duas filosofias, na primeira parte da tese Marx nos revela um Demécrito angustiado e cético e um Epi- curo dogmitico e satisfeito, tragos de personalidade compreensiveis pela maneira como concebiam a realidade e 0 conhecimento. Na segunda parte, Marx adentra nas diferencas especificas na concepgaio dos 4tomos e contesta a leitura consolidada segundo a qual o epicu- rismo seria um mero plagio da filosofia de Demécrito que nao trazia maiores contribuigd Nesse empenho, joga luz nos elementos distintivos do pensamento e que, inclusive, deturpava 0 modelo original. de Epicuro, cujo coroamento é a afirmagao da autoconsciéncia como principio supremo. A questo em foco 6a da relacio entre autoconsciéncia e mundo — questo que, no idealismo ativo, é tratada de forma a privilegiar a autoconsciéncia como elemento reclamador do principio da razdo + Ver, neste volume, p. 29. ° Ver, neste volume, p. 25. 10 Diferenga entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro contra a positividade do real. Nesse sentido, 0 interesse por Epicuro pode ser compreendido por ser esse 0 autor que, ao trabalhar a con- traditoriedade do tomo em sua determinagao natural — a queda em linha reta — e em sua autodeterminagao, através do movimento da declinagao, introduziriaa liberdade na prépria natureza, contrapondo- -se ao materialismo mecanicista de Demécrito. A afirmacao da declinagao como “alma do dtomo” é 0 conceito da particularidade abstrata; é 0 principio da autonomia que, ao se con- trapor ao movimento da queda em linha reta, possibilitaria 0 encon- tro dos atomos e a formacdo do mundo’. Marx analisa que, em rela- cao & linha reta, “a particularidade abstrata s6 pode operar seu conceito, sua determinacao formal, 0 puro ser-para-si, a independén- cia em relagao a existéncia imediata, a supressdo de toda relativida- de, abstraindo da existéncia com que ela se depara"”. A diferenga patente em relacdo ao atomismo de Demacrito é que a necessidade nao reina sozinha na natureza do 4tomo, abrindo espa- G0 para 0 acaso € para a vontade. Na medida em que o movimento da declinacio, introduzido por Epicuro, permite a passagem da ne- cessidade a liberdade, também fica garantido 0 transito da fisica & ética, questées caras aos jovens hegelianos de esquerda. No entanto, a autodeterminagdo nao reina sozinha e, para que se dé a repulsao, ou seja, 0 encontro dos atomos e a constituigéo do mundo, é necessario considerar o principio material, a determinagao natural da queda em linha reta. Donde a realizagao da declinagao, a0 ser posta em termos positivos, se dé em meio também a necessidade e ao acaso, de modo que, na repulsao, “estado sinteticamente reuni- ‘A doutrina do clinamen, segundo |o30 Quartim de Moraes, foi formulada por Lucrécio em De Rerum Natura. © autor sustenta “que o atomismo de Epicure nao precisa do clinamen para negar o império da necessidade, nem para explicar a jungao dos dtomos no vazio"; ver joao Quartim de Moraes, Epicuro: sentencas vaticanas (Sav Paulo, Loyo- la, 2014), p. 20. Sem entrar em detalhes, apenas referiremos aqui que isso nao passa desapercebide por Marx, que afirma, em passagem do cademo | de anotagoes, a res- peito do clinamen: “Lucrécio pode ter tomado ou no essa explicagio do proprio Fpicuro. Isso ndo afeta em nada a questa"; ver Karl Marx ¢ Friedrich Engels, Marx: escritos de juventud (Cidade do México, Fondo de Cultura Econémica, 1987), p. 78. Ver, neste volume, p. 79; grifos do original. 11 Apresentacio & edicao brasileira das, portant, a materialidade deles, da queda em linha reta, e sua determinagao formal, posta na declinacao”’. Exposta a diferenca fundamental dos principios do atomismo de Demécrito e de Epicuro, salientam-se dois aspectos na filosofia epi- curista: a apreensdo da “alma contradit6ria” do mundo e a emergén- cia da autoconsciéncia como prine{pio de todas as coisas. O primeiro aspecto serd aprofundado na andlise das qualidades dos 4tomos e na compreensao de Epicuro da contraditoriedade do Atomo como prin- cipio e como elemento material, cuja realizagaio da esséncia & “de- gradada 4 condicéo de matéria absoluta, de substrato amorfo do mundo fenoménico”®. Acrescente-se a esse desenvolvimento a andli- se do tempo como o elemento devorador do fenémeno, que nos re- vela a esséncia. Tudo isso faz com que Marx reconhega Epicure como “o primeiro a conceber a manitfestagdéo como manifestacao, isto é, como estranhamento da esséncia, sendo que ela prépria se torna atuante em sua realidade como tal estranhamento”"”. O segundo aspecto é mais bem determinado no capitulo sobre os meteoros, quando Marx encontrard desnudado o principio da auto- consciéncia como fundamento da filosofia epicurista. Isso porque é 0 grega no que se refere a perfeic&o dos corpos celestes, o faz no propésito de afirmar a supre- ali que Epicuro, ao contrariar toda a tradi macia da autoconsciéncia. A autoconsciéncia se manifesta na contra- digdo entre ess€ncia e existéncia. Nao existindo essa contradicao, haveria uma conciliacdo entre autoconsciéncia e mundo, com a ab- sorcao da primeira pelo segundo, abrindo caminho para o misticismo eo especulativo. Segundo Marx, é coma se, nesse momento, o princi- pio da autoconsciéncia se afirmasse plenamente na teoria de Epicuro, que leva até as tiltimas consequéncias uma consciente oposicao da individualidade abstrata 4 universalidade. Essa autoconsciéncia, ins- talada na natureza do dtomo pela declinagao, seria caracterizada Ver, neste volume, p. 82. * Ver, neste volume, p. 101; grifas do original © Yer, neste volume, p. 105. 12 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro steriormente por Lucrécio como “aquele algo em seu Amago que é paz de contra-atacar e resistir”" Nao se pode deixar de situar tais escavagées do autor no tempo ‘le e de pensd-las em meio aos debates de ent&o. Marx se refere ao Jenismo como uma época titanica, de separacao, sem conciliagio tre a filosofia e a realidade. Nesse contexto, a tinica ventura é 0 fato que essas filosofias se voltem contra a positividade do real. Em ‘seus cadernos de anotacées, Marx dird de uma “necessidade histéri- 2" que permite a compreensao de como, depois de Aristételes, pode sair 8 luz um Epicuro. A ruptura da pélis e da totalidade ética explica por que “as filosofias epicurista e estoica foram a ventura de seu tem- po; assim como a mariposa noturna, que busca a luz da lampada particular quando jé se pds 0 Sol universal” Ao se referir a Antiguidade, porém, o que Marx tem em vista é seu proprio tempo. Nas notas ao capitulo IV da primeira parte, referindo- -se 8 cisdo entre os discipulos de Hegel, ele mencionaré duas tendén- cias que se opdem, a liberal e a positiva: A primeira retém como determinacao principal 0 conceito e o principio da fi- losofia, enquanto a outra retém como tal seu nao canceito, 0 fator da realidade. Essa segunda tendéncia é a filosofia positiva. O ato da primeita é a critica e, portanto, exatamente o voltarse para fora da filosofia, sendo o ato da segunda a tentativa de filosofar ¢, portanto, 0 voltarse para dentro de si da filosofia, a0 tomar ciéncia da deficiéncia como algo imanente & filosofia, ao passo que a primeira a compreende como deficiéncia do mundo a ser tomadbo filos6fico.” Tomando partido da tendéncia liberal, Marx nao deixa, entretanto, de apontar suas limitagGes, na meciida em que cinde a totalidade do sistema hegeliano, compreendendo seu carater conciliatério como uma conces- sao por parte de Hegel 4 realidade politica de sua época. Nessas notas, Marx questiona o teor moral da critica enderegada a Hegel, ressaltando Ver, neste volume, p. 76. 2 Ver Karl Marx e Friedrich Engels, Marx: escritas de juventud, cit,, p. 132. © Yer, neste volume, p. 58-9 13 Apresentagiio a edicao brasileira que o que deveria ser mais bem examinado 6 0 principio do sistema, a fim de encontrar nele as insuficiéncias. Tal adverténcia é interessante na medida em que j4 revela a natureza da investigagdo que o autor desen- volvera em toda a sua obra. No entanto, essa investigagao do principio hegeliano ainda nao é desenvolvida na tese doutoral. O que se percebe claramente é a refutacao da histéria da filosofia apresentada por Hegel, a partir da contraposigao da leitura acerca de Epicuro, valorizando neste 0s aspectos criticados por aquele - quais sejam, o abandono da teologia e da teleologia em prol da liberclade da vontade, a modalidade em que a filosofia se comporta como consciéncia subjetiva frente a realidade. No entanto, uma vez que a categoria de totalidade, herdeira do he- gelianismo, 6 referéncia para a tese doutoral, 0 que se observam sao indicagGes elogiosas do procedimento epicuriano de confrontagaio da necessicade, ao mesmo tempo que indicagées criticas do principio da particularidade abstrata que se comporta frente & objetividade como uma exterioridade. Ao tratar da duplicidade do atomo como principio, existindo no vacuo, e do dtomo como elemento, existindo na realidade, Marx afirma a respeito do procedimento de Epicuro: Como seu principio é 0 tomo, também o modo de seu conhecimento € atomis- ta. Cada momento do desenvolvimento de imediato se transforma sub-repticia-~ mente em uma realidade fixa, separada do contexto como se fosse pelo espago vazio; toda dleterminagao assume a forma de uma particularidade isolada."* Essa caracterizagao feita por Marx nos remete a sua inten¢do inicial de fazer um estudo da filosofia helen{stica. Como tal projeto no se com- pletou, nao hé elementos que possam indicar, com certeza, 0 rumo pelo qual Marx encaminharia a questao da autoconsciéncia a partir do epicu- rismo. No entanto, a indicagao, por diversas vezes repetida, do carater da autoconsciéncia singular em Epicuro aponta para sua limitagdo: “A par- ticularidade abstrata é a liberdade da existéncia, nao a liberdade na exis- téncia”, Se atentarmos a esse trecho, observaremos que 0 entendimento ‘4 Ver, neste volume, p. 99. "Ver, neste volume, p, 102. 14 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro do dtomo enquanto particularidade abstrata s6 pode desembocar numa atitude de desvio do existente, 0 que corresponde ao ideal da ataraxia. José Américo Pessanha pondera a esse respeito: ‘Ao escrever a tese sobre os materialistas antigas, Marx reconhece que a liberdade alcangada no epicurismo é aquela possivel numa filosofia da auloconsciéncia: uma liberdade somente interior. £ a liberdade compati- vel com uma filosofia do individuo isolado, da declinacdo do étomo —e que se amplia apenas até as dimens6es da solidariedade dos pequenos grupos privilegiados pela sabedoria, as dimensées da serena e prazerosa amizade, como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklub."* A tese doutoral suscita ainda hoje ricas polémicas quanto a seu lugar na obra de Marx. Alguns intérpretes enxergam nesse texto uma primeira aproximacio de Marx com o materialismo. E, por exemplo, a posigdo de Denis Collin no artigo “Epicuro e a formac&o do pensa- mento de Karl Marx’”, em que sugere que a tese seria 0 ponto de partida para o materialismo de Marx. Também John Bellamy Foster, em A ecologia de Marx: materialismo e natureza"*, acredita que a critica materialista de Hegel ja est4 presente na tese, 4 qual se sobre- ps posteriormente a influéncia de Feuerbach. Mesmo Gyérgy Lukdcs, em “O jovem Marx", identifica na tese doutoral os germes do que seria o pensamento do autor, na medida em que ja se encontraria ali 0 intento de descobrir e superar as insuficiéncias do hegelianismo. Ja Auguste Cornu, em Del idealismo al materialismo histérico”®, e Mario Rossi, em La génesis de! materialismo histérico”', sustentam, a nosso ver, de forma correta, o cardter idealista da andlise que Marx José Américo Motta Pessanha, “Apresentacao", em Karl Marx, Diferencas entye as filo- sofias da natureza de Demdcrito ¢ Epicuro ($30 Paulo, Global, s/d), p. 13. "Trad. Rita de Cassia Mendes Pereira, Politeia: Histdria e Sociedade, Vitoria da Conquis- ta, Uesb, v. 6, . 1, 2006, p. 15-27; disponivel online. Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 2005. © Q jovem Marx e outros escritos de filosofia (Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2007}. © Buenos Aires, Platina’ Stilcograf, 1965. * Madri, Alberto Corazén, 1971. 15 Apresentacio A edicao brasileira faz do materialismo epicurista. No entanto, enquanto Cornu sublinha © avango que Marx realiza em relagéo aas limites do pensamento especulativo e de seu desdobramento no neo-hegelianismo de es- querda, Rossi assume uma cautela maior na avaliagdo do texto, na medida em que o projeto original se encontra incompleto, o que compromete a elucidagao da posigao do autor frente ao idealismo. Marx parece se mover, a um s6 tempo, em meio & recusa do reco- nhecimento do real como racional (Hegel) e ao questionamento da efetividade da particularidade abstrata em sua relagéo com o mundo (Epicuro). No epicurismo, encontra 0 germe dessa consciéncia que deve ser elevada a juiz do mundo. Porém, critica a forma atomistica que pensa a subjetividade e a objetividade como determinacées abs- tratas uma em relacao 4 outra. Como nao temos a continuidade do estudo da estrutura completa da autoconsciéncia, o que nos resta de elemento para a compreensdo do pensamento do autor e sua relagao com a filosofia hegeliana so os textos imediatamente posteriores a tese, os artigos da Gazeta Renana. Se no tempo de Epicuro rompe-se © liame entre filosofia e politica, de tal forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maxima “Vive ignorado”, em Marx essa con- cepcdo da consciéncia que se retrai ao jardim é apenas germe de uma consciéncia ativa, que vai do jardim ao mundo. Esse movimento se torna mais claro nos artigos para a Gazeta Renana nos quais ele exerce 0 principio presente em sua tese de que “é a critica que mede a exis téncia individual pela esséncia e a realidade especifica pela ideia”””. Esse periodo, que engloba a tese doutoral e os citados artigos, quando Marx convive criticamente com os jovens hegelianos de esquerda, cons- titui seu perfodo juvenil. Para além dele, o autor opera uma inflexdo em seu pensamento que 0 levaré a recolocar as antinomias esséncia-aparén- cia, subjetividade-objetividade, pensamento-mundo, possibilidade real- -possibilidade abstrata, sobre bases teéricas absolutamente distintas. Belo Horizonte, dezembro de 2017 Ver, neste volume, p. 57, 16 DIFERENGA ENTREA FILOSOFTA DA NATUREZA DE DEMOCRITO E A DE EPICURO com um apéndice por Karl Heinrich Marx doutor em filosofia A seu caro e paternal amigo, Conselheiro do Governo, Senhor LUDWIG VON WESTPHALEN, em Trier, o autor dedica estas linhas, em sinal de amor filial. O senhor me perdoe, meu caro ¢ paternal amigo, por apor se nome, que me ¢ to caro, a uma brochura tao irrelevante. Minha impaciéncia é grande demais para aguardar outra oportunidade de Ihe dar uma singela demonstragao de meu aprego. Queria que todos aqueles que pdem em ditvida a ideia tivessem a mesma sorte que eu: a de admirar um anciao dotado de vigor ju- venil, que satida cada progresso deste tempo com 0 entusiasmo ea lucidez da verdade e que, munido daquele idealismo claro como a luz do sol — advindo de uma conviegao profunda, o unico que tem ciéncia da verdadeira palavra, diante do qual comparecem todos 0s espiritos do mundo -, nunca recuou diante das sombras projetadas pelos fantasmas retrogrados, diante do céu toldado pelas nuvens tantas vezes tenebrosas deste tempo, mas sempre vislumbrou atra- vés de todas as dissimulagoes, com energia divina, olhar enérgico e certeiro, o empireo que arde no coracao do mundo. O serthor, mew paternal amigo, sempre foi para mim um vivido argumentum ad oculos [argumento dbvio] de que 0 idealismo nao é coisa da imaginagao, mas a pura verdade. Nao preciso rogar por seu bem-estar fisico. O espirito ¢ o grande médico milagreiro a que o senhor se confiou. A toe Folha de rosto original da tese Diferenica entre a filosofia da nattereza de Deméerito ea de Epicuro — com: wen apéndice. PREFACIO A forma deste tratado teria sido, de um lado, rigorosamente cientifica e, de outro, bem menos pedante em algumas exposicées, se ele nao estivesse originalmente destinado a ser uma tese de doutorado. K Por razées de ordem exterior que, ainda assim, 0 entrego prensa nesta forma. Ademais, acredito ter resolvido um problema até entio insoldvel da histéria da filosofia grega. Quem entende do assunto sabe que ndo existem trabalhos pre- paratorios sobre 0 objeto deste tratado a serem aproveitados. O que Cicero e Plutarco tagarelaram é papagaiado no mesmo tom até hoje. Gassendi*, que livrou Epicuro do interdito que Ihe fora imposto pelos Pais da Igreja e pela Idade Média inteira, dpoca da irracionalidade realizada, oferece apenas um momento interessante em todas as suas exposigdes. Desperdicando esforgos, ele procurou acomodar sua consciéncia catdlica a seu conhecimento pagao e Epicuro a Igreja. Foi omesmo que cobrir 0 corpo esplendoroso de uma Lais grega com um habito de freira crista. Gassendi aprendeu de Epicuro mais filosofia do que poderia nos ensinar sobre a filosofia de Epicuro. Considere-se este tratado como precursor de um escrito maior, em que apresentarei extensamente 0 ciclo da filosofia epicurista, estoica © cética em conexao com a especulacdo grega como um todo, Os defeitos aqui presentes em termos de forma e afins serao suprimidos nesse citado préximo escrito, * Pletre Gassendi, Animadversiones ii decimum librum Diogenis Laerti, qui est ile vita, morious placitisque Epicuri (Lugduni [Lyon], 1649). (N. E. A.) ™ Marx nao chegou a realizar esse plano. (N. B. A.) 21 Karl Marx Em termos globais, Hegel chegou a definir de modo correto 0 ca- rater geral dos sistemas em questao. No entanto, no grande e ousado plano, digno de toda a admiragao, de sua Histéria da filosofia*, que constitui o momento em que se comega a datar a histéria da filoso- fia, foi em parte impossivel entrar em minticias; ao mesmo tempo, sua visio daquilo que ele chamou de especulativo par excellence im- pediu, também em parte, o titanico pensador de identificar nesses sistemas a grande importancia que tém para a historia da filosofia grega e para o espirito grego em geral. Esses sistemas sao a chave para a verdadeira histéria da filosofia grega. Sobre sua conexao com a vida grega, encontra-se uma alusdo mais profunda no escrito de meu amigo Képpen intitulado Frederico, o Grande, e seus adversirios™. Acrescentou-se como apéndice uma critica da polémica de Plutar- co contra a teologia de Epicuro ~ isso foi feito porque essa polémica no constitui assunto isolado, mas é representativa de uma espéce [espécie], ao apresentar de modo muito acertado a relacao entre o entendimento teologizador e a filosofia. Na critica, nao se toca, entre outras coisas, no quanto é erréneo 0 ponto de vista de Plutarco ao arrastar a filosofia ao foro da religiao. Em vez de um arrazoado sobre isso, basta citar uma passagem de David Hume: Trata-se, certamente, de uma espécie de desonra para a filosofia, cuja autori- dade soberana deveria ser universalmente reconhecida, obrigé-laa estar sem- pre pedindo desculpas por stias conclusdes e se justificando perante todas as artes e ciéncias particulares que possam se sentir ofendidas por ela. Isso ‘nos faz pensar emt win rei acusado de alta traigao contra seus proprios siiditos.** * Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Vorlesungen iber die Geschichte der Philosoplie lll (ed. Karl Ludwig Michelet, edigao completa das obras pela Associagao de Amigos do Eternizado, Berlim, 1833, v. 13 e 14; Berlim, 1836, v. 15). Sobre epicurismo, estol- cismo e ceticismo, cf. especialmente v. 14, p. 423-586. (N. E. A.) Carl Friedrich Képpen, Friedrich der Grosse und seine Widersacher (Leipzig, 1840). Képpen dedicou este livro “a seu amigo Karl Heinrich Marx de Trier”. (N. E. A. ‘** Edigdo usada por Marx: David Hume, Uber die menschliche Natur (trad. e comentarios Ludwig Heinrich Jakob), v. 1: [iher den menschlichen Verstand (Halle, 1790), p. 485. (N.E.A.) ed. bras. Tratado da natureza humana (trad. Déborah Danowski, 2. ed., S30 Paulo, Editora Unesp, 2009), p. 282. Grifus de Marx. (N.'T.)}. 22 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro Enquanto pulsar uma gota de sangue em seu coragao absoluta- mente livre, dominador do mundo, a filosofia sempre clamaré a seus opositores as seguintes palavras de Epicuro: *Aoefiig d& Oty, 6 tos THY TOARDY Beods dvaipdv, GAR’ 6 tas TOV TOAMOV d6EaC Deots xpadrTwW. [impio nao é quem elimina os deu- ses aceitos pela maioria, e sim quem aplica aos deuses as opinides da maioria.|* A filosofia nao esconde isso de ninguém. A confissao de Pro- meteu — “Eth hoy, Tos meevtas €x0aiow Oeovg [numa palavra, odeio todos os deuses]’** - é sua propria confissao, seu proprio dito contra todos os deuses celestiais e terrenos que néo reconhecem a autoconsciéncia humana como a divindade suprema. Nao pode haver nenhum outro deus ao lado dela. Porém, as tristonhas lebres de margo*** que se alegram como apa- rente agravamento** da posicao cidada da filosofia, esta responde, reiterando aquilo que Prometeu disse a Hermes, o servical dos deuses: * Didgenes Laércio, De vitis philosophorum, X, 123 [ed. bras.: Vidas e dotitrinas dos filéso- fos ilustres (trad. Mério da Gama Kury, 2. ed., Brasilia, Editora da UnB, 1977), p. 311]. WT) Esquilo, Prometeu acorrentado, verso 975. Em carta a Marx datada de 12 de abril de 1841 (MEGA-2 III/1, p. 357), Bruno Bauer Ihe pede que nio acolha na dissertagao 0 verso de Fisquilo que “transcende o desenvolvimento filoséfico” para nao pér em isco a cadeira docente que ele tinha em vista na Universidade de Bonn. (N. F. A.) ** Alusdo a uma expresso idiomética inglesa da era vitoriana~"louco como uma lebre de marco" ~ que posteriormente foi convertida por Lewis Caroll em personagem de Alice no pais das maravilhas. (N.T.) ‘em Marx evidentemente se refere & discussao em torno da represso sofrida pelos jovens hegelianos por parie do Estado prussiano, que se agravara muito no inicio de 1841. As universidades e © governo se recusaram a nomear os jovens hegelianos Bruno Bauer, David Strau e outros como professores. No mesmo periodo, veto a piiblico que estava em preparacao um decreto do governo para transferir'o local de impres- so dos Hallische Jahrbiicher [Anzis de Halle], porta-voz dos jovens hegelianos, de Leipzig para Halle, a fim de coloca-los sob a censuira do Estado prussiano, Nao sé as instancias oficiais mas até os jornais liberais se posicionaram contra os jovens hege- lianos. Além disso, é de se supor que Marx se refira também aos velhos hegelianos, que assumiram postura neutta em relagdo a repressao dos jovens. (N. E. A.) 23 Karl Marx Tis fig Aatosiag tiv guy Svorpag lov oadds éxlotac’, ob dv GAdEauy’ Ey. Kpetooov yup ola Tide AatpEter zETPE, ii marl piven Zavi meatdy teyyelov. [Por tua serviddo minha desventura eu com toda certeza jamais trocaria. Acho bem melhor ser escravo daquela pedra, do que a Zeus pai servir de fiel mensageiro.]* Prometeu é 0 mais ilustre entre santos e martires do calendério filosGfico. Berlim, marco de 1841 * Esquilo, Prometen acorrerstada, versos 966-9, (N. B. A.) 24 PREFACIO* O tratado que aqui torno puiblico é um trabalho antigo e deveria encontrar lugar em uma exposigao geral das filosofias epicurista, estoica e cética, em cuja execugao nao posso pensar no momento devido a ocupacées politicas ¢ filoséficas de natureza bem diferente. $6 agora chegou a época em que sera possivel entender os sistemas dos epicuristas, dos estoicos e dos céticos. Trata-se das filosofias da autoconsciéncia. Estas linhas deixarao claro, no minimo, que pouca coisa dessa tarefa foi concluida até aqui. * Este fragmento de um novo prefacio é um indicio de que Marx teve a intengao de publicar a tese algum tempo depois de obter o titulo de doutor, talvez.jé no periodo em que se mudou de Berlim pata Bonn, depois de julho de 1841. O prefécio datado de margo de 1841 mostra que Marx jé fez uma versdo para impress durante a confeccio da tese ou antes de receber o titulo, mas, por razdes que se desconhecem, nao chegou a publicé-la. (NT) 25 ra pase i UIC LEPTERARU UNIVEnSIrAT FERDINANDO I CAROLO FRIDERICO RICO BACHMANNO as PUILOSOPNORUM CAROLO HENRICO maRXx Diploma de doutorado de Kar! Marx, PRIMEIRA PARTE Diferenga entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro em termos gerais I Objeto do tratado Parece suceder a filosofia grega 0 que nao deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso. Com Aristoteles, 0 Alexandre maced6- nio da filosofia grega, parece cessar a histéria objetiva da filosofia na Grécia, e nem mesmo os viris estoicos conseguiram fazer 0 que os espartanos lograram em seus templos: acorrentar Atena a Hercules para que ela nao fugisse dali. Epicuristas, estoicos e céticos so encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidaveis premissas*. A filosofia epicurista seria um agregado sincretista com- posto de fisica democritica e moral cirenaica; 0 estoicismo, uma fusao 4 Bpicuristas, estoics e céticas tomaram como ponto de partida concepsoes filoséticas mais antigas — a saber, as filosofias da natureza de Heraclito, Parménides e Demé- crito ea ética de cirenaicos e cinicos. Pouco se referiram aos sistemas imedialamente anteriores de Platdo e Aristoteles e, quando o fizeram, foi em tom critico. Por essa razio, a histdria da filosofia anterior e posterior a Hegel encarou essas tres tendéncias filosoficas antigas como ccleticismo ¢ retrocesso no desenvolvimento da filosofia. Hegel, em contraposico, expés tais sistemas como estigio essencial na evolucao da historia da filosofia. Apds a publicacdo de suas Prelesdes sobre a histéria da flosofia, isso levou historiadores influentes da filosofia a polemizar com ele. E de se supor que Marx se tenha ocupado com esses criticos, principalmente com as concepgoes de Heinrich Ritter e Christian August Brandis, que, influentes alunos de Friedrich Schleiermacher, estavam publicando seu legado. Eles difundiram uma visto idealis- ta de cunho religioso do epicurismo e do ceticismo, que, na condicao de “seitas", representariam uma “degeneracao" da filosofia, ¢ o ponto de partida em concepgoes anteriores As de Aristételes foi avaliado como restauragdo de resquicios de uma “formagio inferior”. Epicuro é visio como filésofo da fruico sensual, e 0 teor de verdade da filosofia epicurista é questionado em termos gerais (ver Ritter, Geschichte der Philosephie alter Zeit (Hamburgo, [F. Perthes,] 1837), v.3, p. 427, 436 ¢ 727; Brandis, Handbuch der Geschichte der griechiscit-rdmischen Philosophie (Berlim, [G. Reimer,] 1835), p.35¢ 51; Schleiermacher, Geschichte der Philosophie (ed. Ritter, Berlim, 1839), p. 17-9 e1277.(N.EA) 29 Karl Marx de especulagio heraclitica sobre a natureza, de cosmoviséo moral cinica ¢ talvez também de ldgica aristotélica; e, por fim, o ceticismo, omal necessario com que se defrontaram esses dogmatismos. Assim, essas filosofias sao inconscientemente associadas a filosofia alexandri- na, © que as converte em mero ecleticismo unilateral e tendencioso. A filosofia alexandrina*, por fim, é vista como sentimentalismo e desconcerto totais — uma confusdo em que se poderia aceitar, quando muito, a universalidade da intencao. Ora, trata-se de uma verdade bem trivial: originar-se, florescer e fenecer constituem um ciclo brénzeo, ao qual tudo o que é humano estd fadado e que se deve percorrer. Assim, nada haveria de notavel se afilosofia grega tivesse murchado depois de atingir seu florescimento maximo em Aristoteles. Ocorre que a morte dos heréis se assemelha ao pér do Sol, e nao ao estouro de uma ra que inflou demais. E mais: originar-se, florescer e fenecer so representacées bem gerais, bastante vagas, nas quais tudo pode ser enquadrado e com as quais, no entanto, nada se compreende. O préprio fenecimento ja esta pré-formado no que vive; sua forma deveria, por conseguinte, ser captada na mesma peculiaridade especifica com que se capta a forma da vida. Por fim, se langarmos um olhar para a historia, epicurismo, estoi- cismo e ceticismo sao mesmo fenédmenos particulares? Nao sao os arquétipos do espirito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma**? Nao é sua esséncia tao plena de carater, intensa e eterna que © proprio mundo moderno foi obrigado a thes conceder cidadania intelectual plena? Ressalto isso apenas para trazer & membria a importancia histérica desses sistemas; aqui, porém, nao se trata de seu significado universal para a formacao de modo geral, mas de sua conex4o com a filosofia grega mais antiga. Expresso com que Marx e também Hegel se referem ao neoplatonismo. (N. E. A.) Essa concep¢2o foi formulada por Hegel, Vorlesungen ilber die Geschichte der Philosoplnie Hill, ct, v.14, p. 426 ¢ 429, (N.E. A.) 30 Diferengn entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro Quanto a essa situagdo, nao deveria ter instigado a investigagao vera filosofia grega terminar em dois grupos diferentes de sistemas ecléticos, um dos quais constitui o ciclo da filosofia epicurista, estoica ecética e 0 outro é reunido sob o nome de especulagao alexandrina? Além disso, nao é um fenémeno no minimo curioso que, tempos depois das filosofias platénica e aristotélica que se expandiram rumo a totalidade, tenham emergido novos sistemas que nao se basearam nessas ricas formas de pensamento, mas, com um olhar retrospec- tivo, voltaram-se para as escolas mais simples — para os fildsofos da natureza no tocante a fisica, para a escola socratica no tocante a ética? Ademais, por que razdo os sistemas que surgiram depois de Aristdteles encontraram seus fundamentos praticamente prontos no passado? Por que Demacrito se associa com os cirenaicos, e He- raclito, com os cinicos? Sera por acaso que, em epicuristas, estoicos e céticos, esto representados de modo completo todos os aspectos da autoconsciéncia, sé que cada um como uma existéncia especifica? Sera por acaso que esses s istemas, em conjunto, formam a construgao completa da autoconsciéncia? Por fim, 0 carater com que a filosofia grega inicia miticamente nos sete sdbios* e o modo como se encarna em um centro, em Socrates, que é seu demiurgo, quer dizer, o cardter do sdbio — do copéc -, seria mesmo afirmado apenas casualmente naqueles sistemas como a realidade da verdadeira ciéncia? Parece-me que, ao passo que os sistemas mais antigos sio mais sig- nificativos e mais interessantes pelo contetido, 0s pés-aristotdlicos —so- bretudo o ciclo das escolas epicurista, estoica e cética— 0 sao pela forma subjetiva, pelo carter da filosofia grega. $6 que, até agora, justamente a forma subjetiva, suporte cspiritual dos sistemas filoséficos, foi quase totalmente esquecida em fungao de suas determinagées metafisicas. Reservo para uma andlise mais detalhada o projeto de expor as filosofias epicurista, estoica e cética em sua totalidade e em toda a sua relago com a especulacao grega mais antiga e posterior. * Ognupo dos sete sshios era formado por Tales de Mileto, Pitaco de Mitilene, Bias de Priene e Solon de Atenas, além de Quilon de Esparta, Periandro de Corinto e Cles- bulo de Rodos. (N. EA.) 31 Karl Marx Aqui basta explicitar essa relagdo com base em um exemplo - e isso inclusive apenas quanto a um aspecto, o da relacéo com a espe- culagao mais antiga. Escolhi como exemplo a relacao entre a filosofia da natureza* de Demoécrito ea de Epicuro, Nao acredito que se trate do ponto de partida mais cémodo, pois, por um lado, ¢ preconceito antigo e arraigado identificar a fisica democritica com a fisica epicurista, de modo a ver as mutagdes de Epicuro apenas como ideias que Ihe ocorreram arbitrariamente; por outro lado, no nivel do detalhe, sou forgado a abordar aparentes micrologias. E, por ser o referido preconceito tao antigo quanto a historia da filosofia, por serem as diferengas tao escondidas que praticamente so se revelam ao microscépio, tanto mais importante sera demonstrar uma diferenca essencial, que chega & minticia, entre a fisica democritica e a epicurista, apesar de sua in- terconexao. O que se pode demonstrar no detalhe é ainda mais facil de apresentar quando as relagées so apreendidas em dimensées maiores; inversamente, andlises muito gerais p6em em duvida se o resultado se confirmara no detalhe. * A filosofia da natureza (fisica) 6a disciplina historicamente mais antiga da filosofia grega. Ela surgiu no século VI antes cesta era, nas cidades gregas economicamente fortalecidas da regiao costeira da Asia Menor. Seus representantes mais destacados (ales, Anaximenes, Anaximand:o) romperam com a cosmovisao mitica tradicional Oséculo V presenciou 0 florescimento da ordem escravista da Antiguidade. Nessa época, surgiua filosofia da natureza de Leucipo seu aluno Demécrito. Este colocou no centro de sua filosofia da natureza a teoria dos étomos. Essa doutrina materialis- ta proclamou a similaridade fundamental e a equivaléncia completa de todos os componentes do cosmo, explicando o mundo a partir de si mesmo, e excluiu a inter- feréncia de um ser superior. O movimento dos dtomos geraria todos os fendmenos do mundo e obedeceria tao somente av principio de causa ¢ efeito. Leucipo e Demé- crito sustentavam, portanto, um determinismo rigoroso. Deméerito nao se tornou fundador de uma escola, e sua teoria parecia ter sido definitivamente refutada pelos argumentos de Aristételes. Depois deste, Epicuto recorreu a Letcipo ¢ Demécrito e separou a filosofia da natureza da ciéncia natural empitica, subordinando a form lacio filoséfico-natural a seu problema principal, que era obter a felicidade do indi- viduo a partir do conhecimento da natureza do ser humano e de sua posicag no proceso natural global. A concepc3o da declinacao dos dtomos foi uma critica a0 determinismo unilateral de Demécrito. Ela servi em primeira linha & fundamenta- do natural da liberdade da vontade e, simultaneamente, introduziu um fator dialé- tico na concepsao materialista da natureza. (N. E. A.) 32 Il Pareceres sobre a relac4o entre a fisica de Democrito e a de Epicuro Minha opiniao geral sobre as opinides mais antigas saltara aos olhos ao passar em revista por alto os juizos dos antigos sobre a relagao entre a fisica democritica e a fisica epicurista. Posidénio, o Estoico, Nicolau e Sétion acusam Epicuro de ter se apropriado da autoria da teoria democritica dos 4tomos e da teoria do prazer de Aristipo'. O académico Cota pergunta em Cicero: “O que haveria na fisica de Epicuro que nao pertence a Demécrito? Algumas coisas ele até modifica, mas de modo geral diz as mesmas coisas”?, Assim, 0 proprio Cicero diz: “Na fisica, da qual Epicuro mais se gloria, ele 6 um estranho completo. A maior parte pertence a Demiécrito; no que se desvia deste, no que quer melhorar, ele estraga © piora’®. Embora Epicuro seja acusado por muitos de ter proferido Didgenes Laércio, cit, X, 4: “AARtLkal ob xepi Toaeidéviov tov Exaiikoy kal NikoAOS tal Solow [...] Te d8 Anuorptrou xepl éetdoov kal Apiotixaov meph doviig, ds Va déyew CExixovpov)” [“Mas também os adeptos de Posidénio, o Estoico, bem como Nicolau e Sotion [o difamaram, dizendo’] Ele (Epicuro) dizia serem suas a teoria de Demécrito sobre os dtomos e a de Aristipo sobre o prazer”) Cicero, De natura deorut: libri IIL, 1, 26: "Quid est in physicis Epicuri non a Democrito? Nant etsi quaedam commutacvit (...] tanten plerague dicit eadem” ["O que hana fisica de Epicuro que nao provém de Demédcrito? Pois, mesmo que tenha modificao algo, [...] em geral ele diz a mesma coisa”] 8 Idem, De finibus bonorum et malorin libri V, 1, 6: “Ita, quae mutat, ea corrumpit; quae se- quitur, sunt toa Democriti” [“Assim, ele distorce o que modifica; as teorias que adota 880 todas de Demécrito”]. Idem: “...] in physicis, quibus maxime gloriatur, primum totus est alienus. Democrito adjicit, perpauca mutans, sed ita, ui ea, quae corrigere vult, mihi quidem depravare videatur [...1 in quibus sequitur Democritusn, non fere labitur” {"|...] na fisica, onde mais se gloria, ele é, primeiro, wt estranho completo. Ele se orienta por De- mécrito, mudando pouca coisa, mas 0 faz de tal modo que, a meu ver, relurpa 0 que pretende corrigir[...], nes pantos em que segue Demécrito no comete erros”, 33 Karl Marx insultos contra Demécrito, em contrapartida, Leonteu afirma, segun- do Plutarco, que ele teria honrado Demécrito por este ter professado antes a verdadeira doutrina, por ter descoberto antes os principios da natureza*, No escrito De placitis philosophorum [Sobre as opinides dos filésofos], Epicuro é descrito como alguém que pratica a filoso- fia segundo Demécrito®. Plutarco vai ainda mais longe em Adversus Colotem [Contra Colotes]. Depois de comparar Epicuro na sequéncia com Demécrito, Empédocles, Parménides, Platao, Socrates, Estilpo, os cirenaicos e os académicos, ele procura extrair 0 resultado: “Epicuro se apropriou do que é falso em toda a filosofia grega e nao entendeu o que é verdadeiro”*. O tratado De co, quod secundum Epictirum nor beate vivi possit [Sobre Epicuro ter dito que nao se pode ter uma vida feliz}* est eivado de insinuacdes hostis similares. Essa opiniao desfavoravel emitida pelos autores mais antigos nao se modifica nos pais da Igreja. Cito em nota apenas uma passagem de Clemente Alexandrino’, um pai da Igreja que merece ser men- cionado preferencialmente em relagao a Epicuro, porque reformula a adverténcia do apéstolo Paulo contra a filosofia em geral como adverténcia contra a filosofia epicurista, que como tal nao teria fan- tasiado nem mesmo sobre providéncia e coisas desse tipo®. O autor + Phutarco, Adversus Colotem liber (ed. Xylander), p. 1.108: “Acovtedc [...] TyoBal yor Tov ANHAKPITOV id ExLEOGpOV 8141) xpSteooV CajeroOar tig Spbig yrebacing [...] Dua 28 mepiaeariv caitay mpdtepov tals doyats mepi dplaee,” [“Leonteu [...] diz que De- mécrito é apreciado por Epicuro por ‘er chegado antes dele ao conhecimente correto [..-] por ter alcangado primeiro os principios da natureza"}. CE. ibidem, p. 1.111. [Idem] De placitis philosophorum libri V, p.235 (ed. Tauchnitz): "Exixovpos, Neorhéous, ‘APqvalog, rate AMuSKPLTOY HLAOG9raag” ["Epicuro, filho de Neocleo, ateniense, seguiu a filosofia de Deméctito”}. © Idem, Adversus Colotemt, p. 1111-2, 1.114-5, 1.117, 1.119-20 ¢ seg. * Idem, Commentarius Ne suaviter quidem vivi posse secundum Epicuri decreta, docens. (N.E.A) Clemente de Alexandria, Stromatum libri VILL fem Opera graece et lutine quae extant], v. VL, p. 629 (ed. Coloniae, 1688): “ARLI kal "Extkoupos wape Anuoxpirow tit aponyodpeva soxeudonrat dSynera”. ["Mas também Epicuro roubou de Demécrito as principais doutrinas."] 5 Thidem, p. 295: “Bhéete ob, uri tig Lora {yds [6] ovhayayidy dud THis drhocopias ral ceviie deretng, kare TV napddoow Tay avOpdrony, Katét Te oTOKZEL TAD KOOROL, 34 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro que mais chamativamente mostra quanto estava propenso a atribuir plagios a Epicuro é Sexto Empirico, que pretende imprimir a algumas passagens totalmente descabidas de Homero e Epicarmo 0 carimbo de fontes principais da filosofia epicurista’. E de conhecimento geral que os autores mais recentes, em conjun- to, igualmente convertem Epicuro, enquanto fildsofo da natureza, em mero plagiador de Demécrito. O juizo desses seja representado aqui, em termos gerais, por um dito de Leibniz: “Nous ne savons presque de ce grand hamme (Démocrite) que ce qu’Epicure en a emprunté, qui n’etait pas capable d’en prendre toujours le meilleur" (“Nao sabemos desse grande homem (Demécrito) praticamente nada além do que tomou rab od Kate Xpiotdv” [Colossenses 2,8]. “rhooodlav uty ob aacay, iki Ty “Emcoupetoy, ig ral uduvyten ev tuis apaeow tay Anootéiew 4 IaiAog, Stapdddov apdvouy dvaipodoay, Kall el 61 tis Gdn [ta] ovometa Evrecipneey, Hh éeuorrjaaca Thy courtuty aitley tobtOLs {INDE EpavtdoON TOY SnLovpydy". [“Estejam atentos para que nao venha alguém vos arrebatar com filosofia ¢ artimanhas vazias, confor- me a tradicao humana, conforme os elementos do mundo, ¢ nao segundo Cristo” [Biblia, Novo Testamento, Colossenses 2,8]. “Nao € toda filosofia que Paulo rejeita, mas {0 somente a epicurista, que ele também menciona nos Atos dos Apdstolos [Biblia, Novo Testamento, Atos dos Apéstolos 17,18], porque suprime a providéncia, qualquer outra filosofia que, em vez. de colocar a causa criadora acima dos elemen- tos, presta honra a eles e nao faz.ideia do criador.”] Sexto Empirico, Adversus mathematices[, em Opera quae extant, p. 54] (ed. Coloniae Allobrogum [Genebra], 1621): “O 88 "Extcoupos bospairat tée kpdtiota THY SoyRAtOY Taps ROUNTOY AvypxUKLAs: Tov dE yUp Spov tod weyEOOUs TOV Povey, ti Hf caved tort Tod dhyotvtog imekalpents, & évds orizou dédeurtan hapa aatttip éxel adorog kal edn thos & Eoov Evto. Tov d8 Odvarov, 611 ofdéy Eat APOS Tas, Extaouos abt roosenttvurcy, elmby écrolavety j tevaven, off por duaupépeL. “Qc atts dé Kal Ta vEXp’r TOV GORETOV dvaLoBnreiy, Nap’ ‘Opiipow nEKhode ypdcpovtos kai yap 51) yalay deuciger pevectivery”. (’No entanto, Epicuro comprovadamente roubou suas melhores teorias de poetas; pois a sentenca de que o limite da intensidade dos prazeres ¢ a eliminago de tudo 0 que causa dor foi tirada por ele, como foi mostrado, do seguiinte verso: ‘Porém, depois que o desejo de comer e beber fora saciaco’ [Homero, Iliad, I, 469]. Ea sentenca de que a morte ndo nos diz respeito foi-lhe inspirada por Epicarmo, que diz: ‘Morrer ou estar morto me 6 indiferente’. Do mesmo modo, a sentenca de que os mortos nao sentem nada foi roubada por ele de Homero, que diz: 'Pois enfurecido maltrata a terra impassivel’ [Homero, Iliada, XXIV, 54.” 35 Karl Marx emprestado dele Epicuro, que nem sempre foi capaz de captar 0 que ele tinha de melhor”]"°. Portanto, enquanto Cicero faz com que Epicuro piore a teoria democritica, concedendo-lhe, no entanto, pelo menos, a vontade de melhoré-la e a acuidade Para ver seus defeitos, © enquanto Plutarco Ihe atribui incoeréncia" e uma predisposicao Para piorar as coisas, colocando, portanto, também a vontade dele sob suspeicao, Leibniz Ihe nega até mesmo a capacidade de citar Demécrito com competéncia, Ao mesmo tempo, todos concordam em que Epicuro tomou sua fisica emprestada de Demécrito, “Lettre de Leibniz & Mr, des Maizeaux, contenant éclaircissements sur lexplication etc, (Carta de Leibniz ao sr. de Maizeaux contendo esclarecimentos sobre explicacdo etc v.2, p. 66[-7] (ed. Dutens [Opera omnia Leibniti,t 2). " Plutareo, Adoersus Colotem, p. 1.111: “Eychnréoc oby 6 AsusKoutos, obyt Ta ouupalvovte Tals dpyais Guodoyay, didn doupiven dpxac, ais ratra cuppep [..-Lel utv of 18 08 Aéyew TowOTAV éott, oby Spokoyet (Emixoupos) rey elicigviow Te auel. Kal vip tiv npdvouay rvaipioy, ebveBetav dacolumely afer el tic ovis Even til oudiay alpatuevos, iaép wav didi tas peyioras Ghyndovus devedéyeo0e. kal 16 ev 2 woov imotiOroOa, 16 dt tiv kati Kétw Ui} GvaipetV” ["E preciso riticar Demécrito ndo por aceitar as consequéncias de seus principios, nas por acolher prineipios que tém tais consequéncias. [..] Mas, quando a refutacso [das Foetuenclas] & dessa natureza, ele (Epicuro) nao admite fazer algo a que jd est habituado? Peis, ao mesmo tempo que suprime a providéncia, ele ais que mantém renga nos deuses; ele buscaria a amizade em funcdo do prazer, mas pelos amigos tomaria sobre si as maiores dores; por fim, considera o universo infitito, mas exe suprime 0 em cima e 0 embaixo”], 36 III Dificuldades quanto a identidade da filosofia da natureza de Demdcrito e a de Epicuro Além dos testemunhos histéricos, muitas outras coisas falam a favor da identidade da fisica democritica e da fisica epicurista. Os principios - étomos e vacuo — so inquestionavelmente os mesmos. Somente em determinagées individuais parece reinar a discrepancia arbitraria e, por conseguinte, nao essencial Isso nos confronta com um enigma curioso, insohivel. Dois fild- sofos ensinam exatamente a mesma ciéncia, do mesmo modo, mas — que incoeréncia! — em tudo se posicionam de maneira diametralmen- te oposta no que se refere a verdade, 4 conviccio, a aplicaco dessa ciéncia, no que diz respeito a relagio entre ideia ec realidade de modo geral. Digo que se posicionam de modo diametralmente oposto e procurarei provar isso agora. A) Aparentemente ¢ dificil apurar qual foi 0 juizo de Demécrito sobre verdade e conviceiio do saber hmano. Ha passagens contraditérias — ou melhor, nao sao as passagens, mas as opinides de Demécrito que se contradizem. Pois nao corresponde aos fatos a afirmacao que Tren- delenburg fez no Comentario @ psicologia aristotélica, dizendo que 36 autores posteriores tiveram conhecimento dessa contradicao, ndo Aristételes*. E que, na Psicologia de Aristételes, consta o seguinte: “Para Demécrito, alma ¢ entendimento sao a mesma coisa, pois o fenémeno * Q comentario de Trendeleriburg, Commeniar zur aristotelischen Psychologie, consta em sua edigia de Aristételes, De anima libri tres. Ad interpretum graecorum aucto- ritatem et codicum fidem recogn. commentariis ill. Frider. Adolph, Trendelenburg (lena, 1833). Sua afirmagao se refere a passagem citada por Marxna nota 1, a seguir (NEA) 37 Karl Marx Seria 0 verdadeiro”!. Na Metafisica, por sua vez, ele diz: “Demécrito afirma que nada seria verdadeizo ou que isso estaria oculto a nds”? Essas passagens de Aristételes nao se contradizem? Se 0 fendmeno é 0 verdadeiro, como Pode 0 verdadeiro estar oculto? A ocultagao sé comesa quando fendmeno e verdade divergem. Porém, Didgenes La- ércio relata que Demécrito fora incluido no grupo dos céticos. Cita-se 0 seguinte dito: “Na verdade, nada sabemos, Porque a verdade jaz no fundo do pogo”, Algo similar se encontra em Sexto Enpirico’, Essa concepedo cética, indecisa e internamente contraditéria de Demiécrito passa ser desenvolvida quanto ao modo como se determina @relagto entre o dtomo eo mundo que se manifesta aos sen tidos. Porum lado,a manifestacSo sensivel nao competiria aos atomos em Si. Bla nao é manifestagio objetion, mas aparéncia subjetion. “Os verdadeiras Principios sio os Atomos e 0 vacuo; tudo o mais é opinito, aparéncia’’s, Aristételes, De anima, 1p. 8. (ed. Trendclenburg, cit): ““Bkelvos (isto & Aeuéxputog) uv vip orks, rad yuziy eel voy: 73 yep GaAs elvan 76 peuvspevov" ["Aquele {isto é Demécrito) simplesmente diz que alma e entendinente so a mesma coisa; Pois o verdadeiro seria o fenémeno’ | Idem, Metafisica, IV, 5 fed, estereotipada Leipzig, Tauchnitz}: “Ais AeuiSKouds YE naw, thtox oti civ cinQis, Hiv déehov. “Ohune OF bitrv3 ‘tmrohauBévew ppdvnowy piv ay Fotnow, erbrqy 88 eiva dicholinny, z6 Gauysyievov carte ri aloBnowy, €8 Gveryeng dente elvai daoty, “Ee tovray yup kati "Eumedordic kab Acoxputos, kal tay GAa, € Eos, ebrety Geaotos tourtraus Sdkaus yerevnyte. Evoou” [E Por isso que Demécrito afirma due nada é verdadeiro ou ests oculto de nds, De modo geral, porém, diz-se que os fend- Rordue @ percepgio dos sentilos, que, por sua vez, provoca una mudanea [do corpo}, @considerada arazdo pensante. Exatamente por isso, Empédocles, Demécritoeos demais, como enuncia cada uma de suas sentencas, estavam sujeitos a ais opinides" |. Alids, essa Passagem da propria Metafsien articula a contradigio. Didgenes Lacrcio, cit, IX, 72: “On wiv ddAds cc, ‘woods Kal Zaivenw 6 Eedtens not AeuOrottos kat’ atrois oxemtucol twyyevavowy, AeUSEOUCOS [...] kad ddey, atin D8 obdéy Tbojtew" &v Bu8@ yup # Oe” [’Mas também Xenéfanes, Zenao de E! Demicrito foram considerados céticos por cles Demécrito [...J, ademais, diz que de tato nada sabemos, pois a verdade est nas profundezas”| CE Ritter, Geschichte der alien Philosophie, patte L P. 579 e seg. [Ritter cita Sexto Em- Pirico, Adversus mathematicos, VIL, 137. (NE. A) Didgenes Laércio, cit,, IX, [43-44; “Aaxet SF abtO (isto é, Aeuoxpirap) tad— choxars elven, TOY Shao cetuous kad nevoy" tee" tia adore vevowtioBau, d084Ze00U1” ["Ele (isto & Deméctito) pensa que os principios do universo sto ox tomas ¢ o vacuo; tudo o mais, porém, seria suposi¢do, apaténcia” 38 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro “0 frio 6 existe na suposicao, o calor sd existe na suposigao; o que existe de fato sAo os Atomos e 0 vacuo.”* Em consequéncia, dos muitos Atomos na verdade nao advém um sd, mas, “pela uni&o dos 4tomos, cada qual parece se tornar um s6””, Por conseguinte, por meio da ra- zo, devem-se contemplar exclusivamente os principios que, jé por causa de sua pequencz, sio inacessiveis ao sentido do olho; eles até se chamam idejas®. Por outro lado, a manifestac&o sensivel é 0 unico objeto verdadeiro, ¢ a aia@nars [percepeto dos sentidos] é a doovna.c [razfo]; esse verdadeiro, no entanto, é mutante, instavel, fenéme- no. Porém, é contraditério dizer que o fendmeno é 0 verdadeiro” Portanto, ora um lado, ora 0 outro é convertido em subjetivo e em objetivo. Desse modo, a contradigao parece se manter apartada ao ser distribuida por dois mundos. Demécrito converte, por conseguinte, a realidade sensivel em aparéncia subjetiva; no entanto, a antinomia, banida do mundo dos objetos, passa a existir na autoconsciéncia de Demécrito, na qual 0 conceito do atomo e a intuic4o sensivel se defrontam como inimigos. Tbidem, 72: "Aeuskpitos 68 tag noidtntas eahdv: twa oni, NowD Yrxedv, wou GepUs' altly BF Grou Kai xevSv" [“Demécrito, porém, [seria um cético porque] rejeita as qualidades, dizendo: ‘O frio sé existe na suposigdo, o calor s6 existe na suiposigdo; 0 que existe de fato so os étomos e 0 vacuo’.”| Simplicio[, “Comentério a Arist6teles”, em Aristoteles, Opera, v. 4:] Scholia in Aristo- teler: (Collfegit Christianus Aug,] Brandisf, Berolini [Berlim], 1836)), p. 488: “iow névr01 play & deelvow keer (Dafferay, O08" fptwva odv yevvG (isto, AubKprTOs) KODA, “yap etnBes eiven té duo # 1h Thelova ylveoBut iv nore Ey" [“Na verdade, ele (isto to) de modo nenhuim permite que surja daqueles [isto é, dos dtomos] uma ia Unica, pois totalmente maluca seria a opiniéo de que duas on muitas coisas possam algum dia se tomar uma 56"; p. 514: “tal. 612 toto 08d" & fvog mohddt ‘yiveobur Eheyov (isto é, AenOxpitos kal Actus) [..] oftte fk toh Ady Ey Kat’ deere ouvert, kk 1h oNjUTtho«f taY drs Beaatoy Fy dort yiveoBa.” [“E por isso (isto 6, por causa da indivisibilidade dos corpos originais) cles (isto 6, Demdcrito ¢ Leu- cipo) disseram que nem de uma coisa s6 surgem muitas [,..] nem de muitas surge uma s6 verdadeiramente coesa, mas cada coisa una parece devir do entrelagamento dos étomos’]. Plutarco, Adversus Cololem, p. L.1LL: “tits Gropous légag ba’ abr00 (isto é, AeuoKpttov) cahovnewac” [“Os atomos que sao denominados ideias por ele (isto ¢, Demécrito)”| ° Cf Aristételes, cit 39 Karl Marx Portanto, Demécrito nao escapa & antinomia. E este ainda nao é o lugar para aclaré-la. Basta saber que sua existéncia nao pode ser negada Em contraposic&o, oucamos Epicuro. Ele diz que a sdbio se comporta dogmdtica, e néo ceticamente”. Sua vantagem em relago a todos é justamente esta: ele sabe com con- viccdo"'. No Cfnon, consta isto: “Todos os sentidos séo arautos do verdadeiro”™. “Nada existe que possa contradizer as sensacées; tampouco uma sensagéo homogénea pode contradizer outra sensagdo homo- génea, porque uma e outra sio equipolentes, nem uma sensaco heterogénea pode contradizer outra heterogénea, porque os objetos de seus juizos nao so os mesmos, nem o conceito pode contradizer as sensagGes, porque o conceito depende totalmente das sensagoes.”? Porém, enquanto Demécrito converte 0 mundo sensivel em aparéncia subjetioa, Epicuro o transforma em manifestacio objetiva. E, nesse ponto, ® Didgenes Laércio, cit.,X, 120: “Soypaticty te (isto é, aopdv), kal on (isto &, 0 sabia) sustentard teses e nao aporias” J. © Plutareo, Adversus Coloiem, p. 1.117 “ev yép go71 tv "Etcospou doynGtwv w mde auetareiotos nemetoba undéve, ship tov copy” [“Pois uma das teses de Epicuro é que ninguém além do sébio esta irredutivelmente persuadido de algo” ]. ® Cicero, De natura deorum, I, 25: “Omneis sensus veri nuntios dixit (isto 6, Epicurus) esse” [“Ele (isto é, Epicuro) diz que todos os sentidos sito arautos do verdadeiro”). CE. Idem, De finibus bonorum e¢ malorumi, I, 7 [judicia rerum in sensibus port, ou Os juizos sobre as coisas atribui aos sentidos. (N. E. A.)}. (Plutarco,) De placitis philosophorunt, TV, p. 287: Emtkxoupog miaav aiadnowv kolxdoay pavtaciay éanBi7’ [Para Epicuro, toda percepgio sensivel c toda representacao so verdadeiras” ¥ Didgenes Laércio, cit, X, 31-2: "Ev totwwy 10 kavéwt Aéyet 6 "Emtkoupos, kouttiout tig GnQetag eiven tag atodrigers kal thg rpctafipers tet e.-tGOn, [...] 88" owt 1) Suvepevov qiirdss dtehéyEau. Oiite yuo fj Sporoyeviis aloPnors THY Guoroyers, dude Thy looaBEvEWwV 088" 1 Gvouotoyeviic Ty dvonoroyerf. O8 ydo TOY witay eiot KpLTiKal. OF" f érépa tily Erépay: xtouis yop MeOAEZoUEY. OitE phy 6 Kbyos: ag yhip Adyos dtd TOY cloBioewy ijoyrat" ["Portanto, no Cition, Epicuro diz que os critérios da verdade s30 as percepgdes dos sentidos, as prolepses {conceitos resultantes de miiltiplas percepgoes de um objeto] e 03 sentimentos [sensacdes de agrado ou desagrado como critério do que deve ser buscado ou evitado], [...] Nao hé nada que possa refuta-las [isto é, as percepgées das sentidos}. Pois uma percepgdo sensivel nao refuta uma percepcio sensivel do mesmo género, dado que s40 equivalentes, nem refula uma de género diferente, dado que nao emitem juizo sobre os mesmos objetos. Portanto, uma nao refuta a outta; atemo-nos a todas, Tampouco o pensamento légico pode fazé-lo, pois todo pensamento légico depende des percepgGes dos senticos”). Toprigew” [“Ele 40 Difere entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro ele se diferencia conscientemente, pois afirma que compartilha os mesmos principios, mas que nio converte as qualidades sensiveis em apenas opinadas"*, Portanto, sendo a percepcao sensivel 0 critério de Epicuro, corresponde-Ihe a manifestagio objetiva; assim, s6 podemos con- siderar consequéncia correta aquilo que Cicero desdenha. “Para Demécrito, 0 Sol parece grande porque ele é um homem da ciéncia sumamente versado em geometria; para Epicuro, ele teria o tamanho de dois pés, pois julga que cle ¢ tao grande quanto parece ser. m5 4 Plutarco, Adversus Colotem, p. 1110-1: “Td ytp wun ooviy etvat, kal vow) haved all véuey avryepiow [indouy. Erefj 88 1 eevdy kal] tes Atowous elonpévov ¢pnciv fxd Anuorptton [ude{eodui] toig alo®rjaect [...] apdg Tootoy Gvreraety uev OBEY Ee TV ASyoN, einety 68, Bru tabta TOV Exveowoou boynton otttias Gydowotd gor, ds 1 oniue rat 18 Beipog axkrol tig Gtduov Ayovawy. Ti yup héyeu AnHSKPITOG: ovolas Enelpovs 15 aAAPog, dToMoUs Te Kal [UIdadooous [ou Gdrop>B4pous]. Et 6E datolovs kal arabes dv TH eevd €Peo0UL SieamupuEvas, Srav dé TeRdowaw EdPars, fh ovnagowony, # repiThanshor @atveobat TOY GOpoiGonEvey 70 wey stip, TA € {ep, 1 8E qurdy, 1H 58 fivOparov- elvan d8 mdytas Tee Ur uors Ldéas ta” endto? KaowEvEC, Erepov 58 jinB, de pév yap T08 ph Svtoc ove elvan yeveow dx 88 ty [Bvtov] unBev GV yyiveaBou, 1 uniee aoe, ye UeTaRAAAALY Tes dvdyous Oixd ovedhSTHTOs, HBev ofite ypdav & dgodowwy, vite dsow f puxtiy & datolaw [...] tadpyety. "Evekmréos of 8 ‘AMpSKOITOS, Ody) Te ovupaivovre Taig APZATc jlo oyOY, GAM MeuBewwr dozic, als ratraomppeBnier.[...]‘O Exixoupds onan, dozas uév imoriBeoban ras iris, ob AE yely bé vnc Zoouiy [...] ral rag Gddas coudrnrac” [*Pois, a respeito do que disse Demé- tito, a saber, que existe cor apenas por suupasigao, o doce apenas por suposicio e toda combinagao de coisas apenas por suposicao, [mas o que existiria de fato ¢ 0 vacuo el os dtomos, ele [isto é, Colotes] diz. que isso [contradiz] as percepgbes dos sentidos.[...] Nao tenho nada a objetar a tal argumento, mas preciso dizer que essas coisas s&0 t30 inseparaveis das teorias cc Epicuro quanto, pelo que eles mesmos dizem, a forma eo ‘4tomo, Pois © que diz, Demécrito? As substncias em quantidade ilimitada, e [in|distintas [ou: indestrutiveis], ademais destituidas de qualidades sensacao, vagavam esparsas pelo vacua; mas quando elas se aproximavam umas das outras ou colidiam ou se ligavam umas as outras, o que surgiu dai ganhou o aspecto de fogo ou de 4gua ou de planta on de ser humano; mas tudo nao passaria de étomos, por ele chamados de ideias, e nada além disso, pois ndo haveria génese a parti: do nao texistente; do [existente] tampouco susge algo, porque os dtomos, em virtude de sua consisténcia, nao sofrem [incidéncia] nem se modificam e, por isso, ndo existenem uma cor que teria de |... surgir do incolor nem um ente ou uma alma de algo destituido de qualidades. E preciso criticar Demécrito no por aceitar as consequéncias dos seus principios, mas por acolher prinefpios que tem tais consequéncias. [..] Bpicure diz que ge baseia nos mesmos prinefprios, mas nega que a cor [...] ¢ as demais qualidades existiriam sb conforme suposicio" | © Cicero, De finibus, |, 6: “Sol Dernocrita magnus videtur, quippe homini erudito in goome- trinque perfecto; lnc (isto &, Epicuro) bipedalis fortasse; iantum enim esse censel, quarttus 41 Karl Marx B) Essa diferenca entre 0 juizo tedrico de Demécrito ¢ 0 de Epicuro sobre a certeza da ciéncia e a verdade de seus objetos se efetiva na disparidade da energia cientifica e da préxis desses homens. Demécrito, para quem 0 principio nao ingressa na manifestacao, permanecendo sem realidade e existéncia, depara-se, em contraposicao, com o mundo da percepciio sensivel como real e pleno de contetido. Ele, de fato, 6 aparéncia subjetivae, justamente porisso, dissociada do prinefpio, mantida em sua realidade auténoma; sendo, ao mesmo tempo, tinico objeto real, é como tal que ele tem valor e significado. Em consequéncia, Demécrito ¢ impelido para a observaeao empirica. Insatisfeito na filosofia, langa-se nos bragos da ciéncia position. Jé ouvimos que Cicero o chama de vir eruditus [homem erudito]. Ele é versado na fisica, na ética, na matemética, nas disciplinas enciclicas*, em toda arte"®. O catdlogo de livros em Didgenes Laércio ja atesta sua erudic&io”. Porém, por ser carter da erudigao almejar a amplitude, colecionar coisas e buscar no exterior, vemos Demécrito percorrer meio mundo para trocar experiéncias, conhecimentos e observagGes. Ele se vangloria nos seguintes termos: De todos os meus contemporaneos, fui eu que percorri a maior parte da Terra, explorando os lugares mais remotos, vi a maioria dos quadrantes e dos territérios e ouvi a maior parte dos homens cultos; na composicao literdtia com demonstracdo, ninguém me superou —nem aquele egipcio chamado Arsepedonapten’."" videtur” [“O Sol parece grande para Demécrito porque ele é um homem erudito e formado em geometria; para este (isto 6, Epicuro), ele teria o tamanho de dois pés, pois julga que ele ¢ tao grande quanto parece ser”. Cf. (Plutarco,) De placitis philoso phorum, Ul, p. 265|: “Exixovpds [...] pnoiv, [...] ij mdaxobtoy, iAikos patverat, i] nucp@ weiter, ij Ehérw” ["Epicure [...] diz que [...] ele é to grande quanto parece ser ou um pouey maior ou um pouco menor”. (N, E. A.)] * Gramatica, dialética, retérica, mtisica, aritmética, geometria e astronomia. (N. E. A.) 1 Didgenes Laéreio, cit,, IX, 37: “Ta dip puauxds tell Te Oust, GAG kak a poner cee eal tos Eyeuchlog hoyous eal xeph rezveovardioay elev (isto é, AnpOxprtos) Eyeteipla”* [Ble (isto 6, Demécrito) era versado nos campos da fisica e da dtica, bem como na matemética, nas disciplinas periddicas e nas técnicas" Ct. ibidem, § 46-9]. Eussbio, Praeparatio evangelica {(ed. Franciscus Vigerus Rothomagensis, Paris, 1628)], X, p. 472: “Kai mo convuvdpevos aepl écrvtod nowy (isto & AnpoKptos): Ey OF 42 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro Demétrio, nos ‘Quoviwols [Homénimos], e Antistenes, nos Auadoyctis [Diddocos], contam que ele teria viajado ao Egito para aprender geo- metria com os sacerdotes, ido até os caldeus* na Pérsia e, inclusive, chegado ao mar Vermelho. Alguns afirmam que se teria encontrado também com os gimnosofistas na India e que teria pisado 0 solo da Etiépia®. Por um lado, é a sede de saber que nao Ihe dé sossego; ao mesmo tempo, é a insatisfagao causada pelo saber verdadeiro, isto é, filo- séfico, que © impele para o vasto mundo. O saber que ele considera verdadeiro é desprovido de contetido; o saber que Ihe confere con- tetido é desprovido da verdade. Pode até ser uma fabula, mas uma fabula verdadeira, por descrever 0 contraditério de sua esséncia, esta anedota dos antigos: Demédcrito teria cegado a si proprio para que a luz sensivel aos ollios do obscurecesse a acuidade do espirito®. Toy Kat’ Euavrdy avOpdxov mhelomny YAY Stemavmatuny, lovoege ce prfeLotet, kal agpag nal yaiag ahelotac doy, cal Lovin dvOpdmoy mheloTwy Eafrovow Kab yooppéay awvO€ovos per’ arodelZeins odes, que, naptf\Acgev obte Aiyuatlov oi Kakospevor AouEMedovamrar, ols Ext maow Ex’ Hea GydorKovta Ext EEvNS dyevriOny. "Exihde yap Kal ob tos Bapudavé: te cat ty Hepaida ral Atyumtoy, tots, Alywmriotc cal toe Lepetor waBnredww” [“E em algum lugar ele (isto é, Demécri- to) diz, em termos clogiosos, sobre si mesmo: ‘Entre meus contemporaneos, quem percorren a maior parte da Terra fui eu; explorei os lugares mais remotos, vi a maior parte dos quadrantes e dos paises 2 ouvi a maioria dos homens eruditos; na argumentagio baseada em provas, ninguém até hoje me superou—_nem mesmo os egipcios chamados de arsepedonaptas [provavelmente “arpedonaptas”, os agri- mensores egipcios|, entre os quais residi como estrangeiro durante oitenta [texto incerto; provavelmente “cinco”] anos’. Pois ele também foi até a Babilénia e a Pérsia ¢ a0 Egito, onde aprendew com os egipcios [texto incerto: provavelmente “magos”] e os sacerdotes”]. No mundo greco-romano, sindnimo de astrilogos e astronomos orientais. (N. E. A.) & Didgenes Laéreio, IX, 35: “byot BE Anuryrows Ev duwvouors, Kei. Avtrodevng é Sradoyats, éerooderoc ubroy (isto é Anudeprtov) kat els AtyurTov pds Toil Lepdas, ‘yeometpicry 1abnoduevoy, Kal mpos Xabulovs els rv Tepoida nal ets viy Epwopiw Béhasody yevéoOa. Tois d€ Mywosogrotais daat twee ovwulEc adrov ev Ivdie, eat elc Al6tomiay £hOeiv" [“Demeétrio, no escrito Homértimos, e Antistenes, em Diidocos, contam que ele (isto ¢, Demecrito) também viajou até o Egito para aprender geome- tria com os sacerdotes, foi até os caldeus na Pérsia ¢ chegou ao mar Vermelho. Ha quom afirme que ele também esteve com os gimnosofistas na India ¢ teria ido até a Etiopia”). % Cicero, Quaestiones tusculanae [Tusculanarum quaestionum libri V, em Opera phi- losophica ad exemplar Londinense edita (Berolini [Berlim], 1745)], V, 38: “Demo- critus, luminibus amissis, [.,... Algue hie vir fmpediri animi etiam aciem udspect oculoruan 43 Karl Marx Eo mesmo homem que, como diz Cicero, percorreu meio mundo. Ele, porém, nao encontrou o que procurava. A figura oposta aparece diante de nds em Epicuro. Epicuro esta satisfeito e feliz na filosofia. Ele diz: “Deves servir a filo- sofia para que alcances a verdadeira liberdade. Nao precisa protelar nada aquele que se submeteu ¢ se entregou a ela; de imediato, vai se emancipar. Pois isto mesmo, servir & filosofia, é liberdade’”!. Por conseguinte, ele ensina: “Nenhum jovem deve demorar a filosofar ¢ nenhum velho deve parar de filosofar, pois nunca € cedo nem tarde demais para a satide da alma. Afirmar que a hora de filosofar ainda no chegou ou jé passou é a mesma coisa que dizer que a hora da felicidade ainda nao chegou ou ja passou’”. Ao passo que Demacrito, arbitrabatiir, et, quum alii saepe, quod ante pedes esset, non viderent, ile infinitatem peregri- ‘nabatur, ut mulla in extremitate consisieret” [“Demdcrito, tendo perdido a luz dos olhos [J Beste homem até acreditava que a actiidade do espfrito ¢ prejudicada pela visto ©, ao pasco que outros muitas vezes nao veem 0 que estd diante dos seus pés, ele per corria o infinito endo se detinha diante de nenhum ponto extremo”]. Idem, Dejinibus, V,27:""Democritus [...] qui [-.] dicitur oculis se privasse, certe wt quam minime animus @ cogitationibus abduceretur” [’Demécritg |...) de quem [...]sediz se privou dos olhos, decerto para que o espirto fosse desvindo o minim possivel pelas reflexdes” |. 2 Ltico Aneu Séneca, Opus If, epistola oitava, p. 24 ["Ad Lucilium epistolae”, em Opera quce extant, t, 2,] ed. Amstelodami [Amsterdi], 1672): "Adhuc Epicurum replicantus (1 philosophiae serviae oporiet, 1 tbi contingat vera libertas, Non differtur in diem, qui se il subjecit et tradidit; statin circurnagitur. Hoc enim ipsum, philosophine servire, libertas est” [’Ainda consultamos Epicuro|...]. Deves servir a fllosofia para que te caiba a verda- deira liberdade. Nao sera postergado para o dia seguinte quem se sujeitou ese entregou ‘a cla;imediatamente a alcancara, Pos liberdade € justamente isto: servir & filosofia”} % _Didgenes Laércio, cit, X, 122: "Mace véos tis dv nei).Are prhocogety prteyepxoy tendo Komudr OOTOHaW. OlitE to Ganv0s Obdelc EoTW, ofite ad pmpos sTPG TO Kart purity dynatvew. (ODE Myc, Hrs TOD guADGObeLY txkipzerv Hoow, fj xapedz—arOKven Ty Gna. Buowds dor TH MFYaovEL, pds EBAALOVLEY ji wi aPETvEH TH Spay, H KET eT, “ove eddocodmtéov kal “foovTL Kal vé—pL! 1 LNT. Sens yPdtaceo vediy rots yA, Da TI {Gow tay yeyorStow" TH 48, Emig véos Gua cai nodaids fi, di thy dpoplay TOY 1edsévtw” [“O jovem nao hesite em querer pratica a fllosofia nem o velho se canse de fazt-Jo, pois para ninguém é cedo demais nem tarde demais para ter uma alma saudavel. Porém, quem diz. que ainda nao ¢ hora de filosofar ou que a hora de fazer isso passou é semelhante a quem afirma que a hora de ser felizja passou ou ainda nfo chegou. Portan- to, 6 preciso que tanto o velho quanto o jovem filosofem ~ aquele para que mesmo na vvelhice permaneca jovem em virtude das coisas boas em gratidao pelo que passou, este para que sejajovem e velho ao mesmo tempo, porestarlivre de medio das coisas futures") Cé. Clemente de Alexandria, cit, IV, p. 501. [Clemente cita a passagem mencionada e também a Carta a Moncceu, de Epicuro. (N. E. A.) 44 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro insatisfeito com a filosofia, langa-se nos bragos do saber empirico, Epicuro despreza as ciéncins positions, pois elas nao contribuem com nada para 0 verdadeiro aperfeicoamento®. Ele € chamado de inimigo da ciéncia, desdenhador da gramatica®. Ele chega a ser acusado de ignorncia; “mas”, diz um epicurista* em Cicero, “nao faltou erudi- ¢40 a Epicuro, incultos s4o aqueles que acreditam que ainda se deva dizer a respeito do anciao aquilo que é vergonhoso para 0 menino nao saber”. Enquanto Demécrito procura aprender sobre sacerdotes egipcios, ealdeus da Pérsia e gimnosofistas indianos, Epicuro se vangloria de nao ter tido nenhum mestre, de ser autodidata®. Segundo Séneca, ele diz que algumas pessoas se empenham pela verdade sem nenhuma 2 Sexto Empitico, Adversus mathematicos, p.1: “Div mpdc tog dd ty adnjdtov dwt(Onow KoWdtepoV uev BiaTeBetoBAL DoKOBor ol EPL TV EiKOUPOY Kai ot dexd Tob MidHovoc od and tig atic SvaOoeus, GA’ of uEv AEpi tov "Exixowpoy, ds TOV WaOHUCeTIOY IMdEY GUVEDYOBVTOY APS GOHias TEs{woW” [A contestacao contra 08 representantes das ciéncias exatas é feita pelos adeptos de Epicuro e pelos de Pirro, mas no pela mesma razao, pois 0s de Epicuro o fazem porque as ciéncias exatas em nada contribuiriam para o aperfeigoamento da sabedoria”. 4 Ibidem, p. 11: “év of Oeréoy kal tov “Extkoupoy, eh Kat SoKed [toic] dnd [rv] atnpdroy dieyGpaivew” (“Entre esses precisa incluir Epicuro, mesmo que ele hostilize os [representantes] das ciéncias exatas”]. Ibidem, p, 54: “tong [...] ypannorurtic katmySpous, Thieves te kai Exixoupov" [“os [.. eriticos da gramé: tica Pirro e Epicuro”). Cf. Plutarco, De eo, quod secundum Epicurum non beate vivi possit, p. 1.094. [Plutarco, “Commentarius Ne suaviter quidem vivi posse secundum Epicuri decreta, docent”, its Ommistm, quae extant, operum tomus secundum, continens ‘Morelia (Gulielmo Xylandro interprete, Francofurti [Frankfurt], 1599. (N. B. A.)] » Lucius Manlius Torquatus. (N. E. A.) = Cicero, De finibus, I, 21: "Non ergo Epicurus ineruditus, sed if indocti, qui, quate pueros non didlicisse tuirpe est, ea putent usque ad senectutem esse discenda" [“Portanto, nao é Epicu- To que é inculto; indoutos so aqueles que acham que é preciso ensinar até a idade avangada aquilo que ¢ vergonhoso que os meninos nao tenham aprendido” J % Didgenes Laércio, cit., X, 13: “Todtov (isto: 6, Emlkoupoy) Axo2A05upoc Ev ypovuKots, Avorpavous ducotaar gnoi kal Tipaktpdvous: witds BE od nai, WA’ savros, &v tf) xpos Etptducov ématonf” [’Apolodoro diz, na Cronica, que ele (isto é, Epicuro) owviut Lisifano [em edigdes modemas, Nausifano] e Praxifano; porém, ele mesmo afirma, na carta a Euridico [em edicGes modermas, Eurilocho}, que é autodidata’’}. Cloero, De natura deorum, 1, 26: "Quant quidem gloriaretur (isto é, Epicurus), se magistrumt habuisse nullum, quod et non praedicanti tamen facile crederem” “Quanto a gloriar-se de nio ter tido nenhumi mestre, eu facilmente creria se ele (isto é, Epicuro) nao fizesse tanto alarde”], 45 Karl Marx ajuda. Entre esses, ele prdprio teria aberto seu caminho. E os auto- didatas sS0 os mais elogiados por ele. Os demais seriam cérebros de segunda categoria”. Ao passo que Demécrito é impelido a todas as regides do mundo, Epicuro deixa seu jardim, quando muito, duas ou tr8s vezes para ira Atenas e viaja 4 Jénia nao para fazer pesquisas, mas pata visitar amigos. Por fim, enquanto Demécrito, perdendo as esperangas depositadas no saber, cega a si proprio, Epicuro, ao sentir que a hora da morte se aproxima, toma um banho quente e deseja beber um bom vinho, recomendando aos amigos que se mantenham fidis a filosofia”. ©) As diferencas recém-explicitadas nao devem ser atribuidas individualidade casual dos dois fildsofos; encarnam-se neles duas tendéncias opostas. Vernos como diferenga entre as energias praticas o que jé se expressou como diferenca entre as consciéncias tedricas. ‘Analisamos, por fim, a forma de reflexdo que representa a relaciio entre a ideia eo ser, 0 relacionamento de ambos. Ao atribuir ao mundo Y Seneca, Epistola 52, p. [176-]177: “Ouosdam, ait Epicurts, ad veritatem sine ullo ndjutorio contenclere; ex iis se fecisse sibi fpsum vian, Hos maxime laudat, qreibus ex se érppetus fut, Jui se ipsi protulerunt. Quosdaya indigere ope aliena non ituras, si nemo praecesserit, sed tone secuturos. Ex his Metrodorum ait esse. Egregiuim hoc quoque, sed secundae sortis ing niu” (“Epicuro diz que hé os que se empenham pela verdade sem qualquer auxilio; entre esses, cle proprio teria aberto seu caminho. Ele louva aoméximo os que possuem tum impulso a partir de si mesmos, que avangaram por si mesmos. Hé os que preci- sam de ajuda de outros e nao iriam se ninguém os precedesse, mas entao seguem com vontade. Entre esses, diz ele, esta Metrodoro. Este também teria uma mente excelente, mas de segunda categoria” % Didgenes Laércio, cit, X, 10: “Kal yatexordteoy 38 eaupay Karaogsvtwy Tivueaira iy “Edhdba, cxitd0r KapaprOvat. bg i] kal tpis Evi robs mepl thy "Tovey vous diadpayovea nods Toi: PONS, of acl AavTAZADEY Ods eitdY doLEVOOVTD, HA ouveplovy tind Ev to ast, a4. NGL Ka ArtoAOduOS: Sv ent. dydor|KavTEL wy mpiao8av” [“E, embora tempos dificeis tenham sobrevivido & Grécia, cle passou sua vida ali; ele teria ido duas ou trés vezes até a Jénia para visitar amigos, os quais também saiam de tadas.as partes para encontré-lo e conviviam com ele no jardim, segundo diz, também Apolodoro; este [a saber, ojardim] ele teria comprado por oitenta minas”]. ® bidem X, 15-6: “Ore nat gnow “Eouutmos éupdvta attroy els arbehov yahefiy, kexpapeyny Hatt O¢pUd, Kai airfoayta Spatov fopfeat. Tots te oihoug ropuyyelhavra Tov Soydton epvfobar, TedeuTH}oaL” ["Entéo Hérmipo também diz que cle teria entrado em uma banheira de cobre, cheia de égua aquecida, pedido vinho puro e que o bebera. Fm seguida, recomendando aos amigos que guardassem nna meméria suas doutrinas, teria falecido”}. 46 Diferenca entre a filosofia da naturezn de Demécrito e a de Epicuro ea ideia uma relacao geral reciproca, o fildsofo somente torna ob- jetivo 0 modo como seu consciente especifico se relaciona com 0 mundo real. Ora, Demécrito emprega como forma de reflexao da realidade a necessidade®. Aristoteles diz que ele deriva tudo da necessidade™. Didgenes Laércio relata que a voragem dos atomos, causadora da génese de tudo, é a necessidade democritica*. De modo mais satis- fat6rio, fala sobre isso o autor de De placitis philosophorum: a necessi- dade seria, segundo Demécrito, o destino e o direito, a providéncia ea criadora do mundo. Porém, a substancia dessa necessidade seria a antitipia, o movimento e o entrechoque da matéria®, Ha passagem parecida nas Eclogas fisicas de Estobeu™ e no livro VI da Praeparatio ® Cicero, “De fato liber singularis” [em Opera philosophica ad exemplar Londinense edita (Berolini [Berlim], 1745), 10: “Epicurus vitari fati necessitatem, Democritus aceipere maluit, necessitate omnia fieri” [“Epicuro acteditava que se pode evitar o destino da necessi- dade, enquanto Demécrito preferia acreditar que tudo acontece por necessidade”]. Idem, De natura deorum, 1, 25: “Invenit, quomodo necessitatem effugeret, quod videlicet Democritum fugerat” [Ele achou um modo de escapar 8 necessidade, 9 qual pelo visto nao ocorrera a Demécrito”]. Eusébio, Praeparatia evangelica, 1, p. 23 © seg.’ “acusepitos 6 ABaNoLITE [...] derwBev dé Bug €B darcipov ypsvou xpokaréxecbou aii eveeyen adorta dathdde Th yeyovdra Kal Svta Kai Zoduevar” [“Demédcrito, o abderi- ta [...]: desde o inicio e hd tempos ilimitados, pura e simplesmente tudo o que acon= feceu, o que acontece ¢ o que acontocerd é determinado pela necessidade”). Acistételes, De generalione animalium, V,8:“Aewdxpitos [...] 7evte. doveeyer el Cevdeyey” [’Demécrito [...] deriva tudo da necessidade”]. © Didgenes Laércio, cit,, IX, 45: "Mévra te sac’ diveryeny yiveodat, rig divas atrias otiane Tig yevdoews mavtiny, flv Gvedyeny héyet (isto 6, Aenoxpitos)” [“Tudo acontece por necessidade, sendo a voragem a causa do surgimento de todas as coisas, a qual ele (isto &, Demécrito) chama de necessidade”. % [Phtarco,] De placitis philosophorum, L, p. 252: “Tappevidng Kal Aeudkpttos xévte kav’ dveiyeny, thy” eaitiy elvan educouevav ead dtenv ech Zodvoiav Kal KoouosTOLSV” [“Parménides e Demaécrito: tudo acontece por ecessidade; ela mesma serla 0 destino eo direito, a providéncia e a criadora do mundo”). Estobeu, Eclogarumt physicarunt [et etiicarum libri duo (Aureliae Allobrogum [Genebra], 1609)], I, 8: “Tlaouevidou kal Agworpltou: obra. aavta kat’ déveeyeny, viv 8° aviv elvan eiopuévny kal diznv nal spdvoiay, Aeueismou névtet katt’ dvetyeny, vay 3 caimy trdipzew efyeuevay. Abyet yap [...] ObbEY yofiua udeHV yoyveTaL, GdAe neve x héyou te Kal. On” dveeyene” [De Parménides e Demdcrito: tudo acontece por nie- cessidade; cla mesma seria 0 destino ¢ 0 direito e a providéncia, De Leucipo: tudo acon- tece por recessidade; ela mesma seria o destino. Pois cle diz [...] que nada acontece espontaneamente, mas tudo por uma razao e por necessidade 47 Karl Marx evangelica [Preparacao evangélica] de Eusébio™, Nas Eclogas éticns de Estobeu, foi conservada a seguinte sentenca de Demécrito™, que no livro XIV de Eusébio é repetida quase nos mesmos termos'™: os seres humanos simulam para si a imagem iluséria do acaso-manifestacao de sua propria perplexidade, pois 0 acaso conflita com um pensartentto consistente. Na mesma linha, Sinplicio interpreta como sendo de De- mécrito uma passagem na qual Aristételes fala da doutrina antiga que suprime o acaso*. Em contraposicao, Epicuro diz: * Eusébio, Pracparatio evangelica, VI, p. 257; “Elyopuévns nenpayévy [...] 1 (isto & Aenoxpiti) df & rig TOV uiKpOv delay ooMdton, TOV deponEvon Kero, Kal devaredhonévov tives, kak TepUTACKONEVOY Kal StadvonevaY kai dworapEvov kai apattOenéveny 85 Avéerenc” [’O desting, que |...] para 0 outro (isto é, Demécrito) Gestabelecido por aqueles pequenos corpos que por necessidade so conduzidos para baixo e de novo carregados para cima, que se interligam e voltam a desligar-se, que se dispersam e voltam a juntar-se”] % Estobeu, Eclogarum (physicarum et] ethicarum, I [p. 198]: “AvOpenoe vhyng eldwhoy Emhdoayto, aodHuoW Ling aBoudinc: Bed yep Qpovyser TWN wdyetaL” [As pes- soas moldam para si uma figura da fortuna, a pretexto de sua propria perplexidade, pois a fortuna conflita com a inteligéncia escassa” J. Eusébio, Praeparatio evangelion, XIV, p. 782: "Kal vi wigay tv uby eadbAoU Kal toy Oelov decrnowvary épuatir (isto é AELOKPITOS) Kal BAOLALOG, Kal maveE yoveaBaL Kun cbt drcospaduevos: Tob d¢ toy éevOpdora adrhy daxoenpirtan Blov, Kot [tO¥s] xpeoBetovtas criniv Génie dyviuovac, taw y' otiv taofnKGy dipysuievos Meyee "AvOowor thyng lowhov Ehécavto APSpaaw lding évoing: doe yp yveoun THT udyetat, cai tiy 28iocmy th doovrioes taurny city Eaoay Kpateiv: yaArov 3? Ket restmy Gpany cevaipodvtes kal dapavicovtes Exsivyy GvruRaBlotaow abriis. OF Yep ebtwyii thy opdvnow, dA? guopoveardreny buvobo. viv vixny” (“Ble (isto é, Demo- crito), que algou a fortuna condigao de senhora e rainha do universal e do divino © afirmou que tudo acontece por meio dela, mas a manteve afastada da vida huma- nae chamoui seus proclamadores de ignorantes, disse no inicio de suas exposigoes que as pessoas moldam para si uma figura da fortuna, a pretexto de sua propria perplexidade; por sua naturera, a raz8o conflita com a fortuna, ¢ foi dito que essa grande inimiga da inteligéncia a subjuga — ou melhor, eliminando-ae descartando-a por completo, a fortuna toma seu lugar. Pois nao louvam a inteligéncia como afor- tunada, mas a fortuna como sumamente inteligente” ]. [Euséhio cita o escrito Mei. @boews [Sobre a naturezal, do bispo alexandrino Dionisio, no qual este combate teorias atomistas. (N. E. A.)] % Simplicio, cit, p. 381: “TO koOdatep 6 wakads Abyos cvaupdy vi Tien xpdS Annokpitoy Fourev eipfoOuv” [’A passagem ‘segundo a antiga palavra que eliminow a fortuna’ parece referit-se a Demécrito”]. [Simplicio comenta a passagem de Aris- tételes, Fisica, 196 a 14. (N. E. A.)] 48 Diferenea entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro A necessidade, introduzida por alguns como a senhora de tudo, nfo 0 é; algumas coisas sao fruto do acaso, outras dependem do nosso arbitrio. A necessidade nao pode ser persuadida; 0 acaso, em contraposi¢ao, ¢ in- constante. Seria melhor, realmente, aceitar 0 mito sobre os deuses do que aceitar ser escravo da eiuapuévn [heimarméne] dos fisicos. Pois aquele permite ter esperanga na misericérdia por causa da honra dos deuses, e esta, porém, é uma necessidade inflexivel. Mas o que se deve pressupor é 0 acaso, ndo Deus, como cré a multidao” Huma desgraca viver na necessidade, mas viver na necessidade ndo é uma necessidade. Estao abertos em toda parte os caminhos para a liberdade, que sao muitos, curtos e faceis. Agradecamos, pois, a Deus que ninguém pode ser detido na vida. E permitido domar a propria necessidade.© Oepicurista Veleio fala algo parecido em Cicero sobre a filosofia estoica: “O que pensar de uma filosofia para a qual, a exemplo de mulheres dissolutas e indoutas, tudo parece acontecer por meio do fatum? {...] Foi Epicuro que nos redimiu ¢ nos deu a liberdade”*. > Didgenes Laércio, cit, X, 133-4: “riy 8 elpapuevny, fa16 twvey Beomdtty eloayopevny ivi, deyyhovtos (isto é to coqod), pn elvan GAA The wey dad vigns, Te DE MA" shn@y, Oi 79 ty pey dyéyeny dwurenduvoy clvat, Thy dé Tigny flowatoy OpGy. To 5& map’ hudv ddgonoroy: kal TO wepsttdv kai. tO évervtioy TaparohovBelv mepuKEV. “Brel Koetrrov fv 1 aepl Ged uly Koraxckoniety, F Th TOY dvouRdy eluapwevn, bovnetew, 0 nev yp Ehatld napartiioeug tmoypaoer Hedy dues turfs, #1 5€ GorapatrytoOy Byer tiv devezyiny. Thy 58 Thgny, oilte Gedy, ths of sro?.Aot vopizoval, txro).ayéven" ["O destino, porém, que é apresentado por alguns como déspota sobre tudo, nao existe, prociama ele (isto é, 0 sabio); mas algumas coisas seriam casuais, outras, feilas por nds, porque ele ve que a necessidlade ¢ irresponsdvel e a fortuna ¢ instavel. Porém, as caisas feilas por nés nao sto forcadas; delas decorrem naturalmente também a re~ pteensdo e o louvor. De fato, seria melhor aderir a0 mito sobre os deuses do que servir a0 destino dos fisicos. Porque aquele admite a esperanca de misericérdia pela venera- ‘sao dos deuses, ao passo que a necessidade é tida como inexoravel. Mas ele tampouco considera a fortuna uma deusa, como faz.o povo de modo geral...”] © Seneca, Epistola XII, p.42:“Matum est, in necessitate vivere; sed in necessitate vivere, nulla necessitas est. [...] Patent undique ai libertatem vine multne, breves, facies. Agamis Deo gratiam:, quod nemo in vita teneri potest. Calcare ipsus necessitates, ficel. Epicurus [...] dixit” [“E ruim viver na necessidade, mas ndo ha necessidade de viver na necessidade.[...] Em toda parte, ha caminhos abertos para a liberdade, que so muitos, curtos, faceis Demos gracas a Deus porque nao se pode segurar ninguém na vida, Podem-se sub- jugar as proprias necessidades. Epicuo [...] disse iss0”]. 8 Cicero, De natura deorum, I, 20: "Quanti autens haec philosophia (isto é, Stoica) acstimanda est, cui, tanguam aniculis, e its quidem indocts, fato fier’ videantur omnia? [...] ab Epicuro 49 Karl Marx Assim, Epicuro nega inclusive o juizo disjuntivo, para nao ter de reconhecer nenhuma necessidade*. Até se afirma que também Demdcrito teria empregado 0 acaso; s6 que, das duas passagens que se encontram sobre isso em Simplicio®, uma coloca a outra sob suspeicéio, pois mostra que evidentemente nao foi Demécrito que usou a categoria do acaso, que ela lhe foi im- putada por Simplicio como consequéncia. Pois ele diz. que Demécrito nao mencionou, em termos gerais, nenhuma razdo para a criagdo do mundo; parece, portanto, que ele fez do acaso a raziio. Nessa passagem, nao se trata da determinacio do contetido, mas da forma, que Demécrito empregou conscientemente. Algo similar se da com 0 relato de Euscbio: Demécrito teria transformado 0 acaso em dominador do universal e divino e afirmado que, nesse plano, tudo acontece por meio dele, ao passo que o teria mantido afastado da vida humana e da natureza empirica, chamando seus proclamadares de insensatos"., solut et in libertatent vindicatt [...)” [Mas como avaliar essa fllosofia (sto &, a estoica), para a qual - como para mulheres velhas e ainda por cima indoutas — tudo parece suceder por meio do destino? {...] soltos e postos em liberdade por Epicure [a]. 2 Tbidem, cap, 25: “Idem facit (isto &, Epicurus) contra dialecticos. A quibus quum traditim sit, in omnibus disjunctionibus, in quibus ‘autetiam, auton’ porteretur, alterutrum very ese: pertinauil, ne, si concessum esset iujusmodi aliquid ‘Aut vivet eras, aut non vivet Epicurus’, alterutrum fieret necessarium,; tolum hoc ‘aut etiant, aul non" negavit esse me~ cessarium” (“Ele (isto 6, Epicuro) fez 0 mesmo contra os légicos. Visto que estes en- sinam que, em todas as sentengas disjuntivas, nas quais constasse ‘sim ou no’, um dos dois juizos seria verdadeiro, ele temia muito que, caso se admitisse uma senten- ga como ‘Epicuro viverd aman ou ele nao viverd, uma das duas coisas se tornaria necessaria; assim, ele negou que todo esse ‘sim ou nao’ seja necessirio”) Simplicio, cit, p.351: “ADAd Kal Aendxput0s, Ev ole Qnol, dety [ler: divov] Gerd maytag amoxpiveobat navrolwv eidgov, ms d& kal ind Tivos aitiac pn AéyeL, Eouwev dnd TabtoWdtOV Kall TéxNs yEVVREY OTA” [Mas também Demécrito, ao dizer que miilti- plas formas devem se separar do todo [ler: uma voragem de miltiplas formas se separou do todo], parece fazer com que sejam geradas por si sds € por acaso, sem dizer como nem qual &a causa”). Ibidem, p.351: "Kal yp ofit0s (isto é, Aewoxpit0s) liv Ev TH Koqnomoule. rf] Thyn Kéypntau” [“Pois também este (isto 6, Demécrito), ‘mesmo que aplique a fortuna a criagio do mundo”). “Cf Busébio, cit, XIV, p. 781 e seg: “Kec rabta péetny exh deveutiong oitwohoyOy (isto é ‘Aaudérprtoc) dic Gv éexd Keviig GpiZc, ka TroOfeIag ThavUnévyg SpH|.evos, rath Thy Bicav ral viv Rowily avdyeny Tis "Ov SvtoV dpaeins aig Spay, dolar dé weylorny fiyotnevog tiy tHV Gadus ouRPawsvewv kaTavénony" ["E isto, embora ele (isto 6, Demécrito) procure em vao ¢ infundadamente por causas, visto que parte 50 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro Em parte, vemos nisso mera dedugao de consequéncias do bispo sto Dionisio, mas, em parte também, onde principia o universal e divino, o conceito democritico de necessidade deixa de ser distinto io acaso. © que estd, portanto, assegurado do ponto de vista histérico é isto: Demdcrito emprega a necessidade; Epicuro, o.acaso; e cada um deles rejeita a concepeaio oposta com exasperagao polémica. A principal consequéncia dessa diferenca se manifesta no modo de explicar os fendmenos fisicos individuais. A saber, a necessidade se manifesta na natureza finita como ne- cessidade relativa, como determinismo. A necessidade relativa so pode ser deduzida da possibilidade real, isto é, essa necessidade é mediada por um entorno de condigdes, causas, razées etc. A possibilidade real 6a explicacio da necessidade relativa. E constatamos que esta ¢ empregada por Demicrito. Citamos algumas passagens comproba- térias extraidas de Simplicio. Quando alguém tem sede, bebe algo e fica bem: Demécrito nao citaré como causa disso 0 acaso, masa sede, pois, mesmo que aparen- temente tenha empregado 0 acaso na criacio do mundo, ele afirma que este nao é causa de nada em particular, mas deriva tudo de outras causas. Assim, por exemplo, 0 ato de cavar é a causa da descoberta do tesouro ou 0 crescimento € a causa da oliveira®. de um principio vacuo e de um pressuposto vacilante e ndo vislumbra a raiz nem a necessidade comum da natureza das coisas, considerando como suprema sabedoria © conhecimento de coisas que sucedem sem sentido”. [Eusébio cita Dionisio. (N. E. A.)] * Simplicio, cit, p. 351: “Aupijous Zp Kol may tis Yprzpay Hcp yéyovey tye Toug od, dor Acndeortos, vy voz aitiay elvan, GAké TO dupfioa” [’Supondo que alguém tem sede, bebe dgua fria ¢ fica bem, lalvez a causa disso, diz Demécrito, nao seja a fortuna, mas a sede”). Idem: “éxetvos (isto é, Aewdeprtoc) yoo Kay Ev Tf Kommorotig duet tH THxn Zorivba” 42.’ Ev TUT wepLKURepors OvBEvds dpyoww elver tiv tiny altiay, dvagpay eis Gdkag aitlas, olov Tob Onoaupdy ebpeiv 16 oxczttew i ny outeiay tis éhaiac” [“Pois mesmo que este (isto ¢, Demodcrito) pareca ter aplicado a fortuna a criagao do mundo, ele afirma que no caso das manifestacdes particulares nenhuma teria como causa a fortuna, mas as deriva de outras causas; por exemplo, 0 ato de cavar seria a causa de achar 0 tesouro, e 0 ato de plantar, a causa da oliveira”], Idem: “cah’ 8v Tois nertés puepoc ofdEvOs GNATY (isto é AeydroLtos) ivan thy tiny [altiay)” [Ele (isto é Demécrito) afirma que, no caso das manifes- tacdes particulares, nenhuma teria [como causal a fortuna”) 51 Karl Marx O entusiasmo e a seriedade com que Demécrito introduz essa modalidade explicativa na anélise da natureza, além da importancia que ele atribui a tendéncia fundamentadora, externam-se de modo ingénuo na seguinte confiss4o: “Prefiro descobrir uma nova etiologia a obter a dignidade real persal’“*. Epicuro, mais uma vez, assume uma posicao diretamente oposta a de Demécrito, O acaso é uma realidade que s6 tem valor de pos- sibilidade. Mas a possibilidade abstrata 6 justamente 0 antipoda da real. Esta ultima estd restrita a limites precisos, como 0 entendimento; a primeira ¢ irrestrita, como a fantasia. A possibilidade real procura fundamentar a necessidade e a realidade de seu objeto; a possibi- lidade abstrata nao trata do objeto que é explicado, mas do sujeito que explica. O objeto s6 precisa ser possivel, pensavel. Aquilo que é abstratamente possivel, aquilo que pode ser pensado, nao constitui impedimento para o sujeito pensante, no representa um limite para ele, nao é pedra de tropego. Nao importa se essa possibilidade também se torna real, pois nesse ponto 0 interesse nao se estende ao objeto como objeto. Por conseguinte, Epicuro adota um procedimento tremendamente desleixado na explicagao dos fenémenos fisicos individuais. Isso ficard bem mais claro a partir da carta a Pitocles, que analisa- remos adiante. Basta chamar a atenc&o aqui para sua relacao com as opinides de fisicos mais antigos. O autor de De placitis philosophorum e Estobeu, ao citar as diferentes concepgdes dos fildsofos sobre a subs- tancia das estrelas, o tamanho ea figura do Sol e coisas semelhantes, sempre dizem isto de Epicuro: ele nao rejeita nenhuma dessas opi- nides, todas poderiam estar corretas, ele se atém ao possivel”. Epicuro % Eusébio, cit, XIV, p. 781: “Aenéxpuros yoov atitads, ds gaow, Ereye BothecOu pahov piav [ebpety] cimiokoyiay, i tiv Hepodv of Baotdelay yivea8ax” [“O proprio Demé- crito teria dito que preferiria [encontrar] a explicagio de uma s6 causa ase tornar rei dos persas”], [Eus¢bio cita Dionisio. (N. E.A.)] . 7 (Plutarco,) Deplacitis philosophorum, TI, p.261: “Eateovpos ofdéy coroyivdaret TOUT, [Eouevos] to# évdeyoutvou" [“Epicuro nao despreza nenhuma delas (isto ¢, as opinides dos fildsofos sobre a subs!ancia das estrelas), [ao ater-se] ao que é possivel”]. Ibidem, p. 265: “Exteoupos aCkwv nol évdézeo0ur ve mpoEinneva névTa” 52 Diferenca entire a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro polemiza até mesmo contra a modalidade explicativa que determina de forma racional a partir da possibilidade real e que, justamente por isso, ¢ unilateral. A Epicuro afirma que todas aquelas causas poderiam existir; além disso, experimenta ainda varias outras explicacdes e repreende aqueles que afirmam a ocorréncia de uma explicacao bem determinada, visto que seria arriscado emitir um juizo apoditico sobre algo que s6 se infere de conjeturas®, sim, Séneca diz, nas Quaestiones naturales [Quest6es naturai: Vé-se que nao ha interesse em examinar as razdes reais dos ob- jetos: trata-se meramente de uma tranquilizagao do sujeito que ex- plica. Ao admitir todo 0 possivel como possivel, o que corresponde ao carater da possibilidade abstrata, evidentemente o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar. A Gnica regra que Epicuro prescreve, “a explicaco niio pode contradizer a percepcao sensivel”, € dbvia, pois o abstratamente possivel consiste justamente em estar livre da contradigao, que, portanto, deve ser prevenida”. Por fim, Epicuro admite que sua modalidade explicativa visa tao somente [’Epicuro volta a dizer que todas as opinides anteriormente mencionadas so possiveis"]. Idem: “Emlkoupos évdézeo0u. 1% apoenpéva xévta” [“Epicuro con- sidera possiveis todas as opinides anteriormente mencionadas” |. Estobeu, Eologarum physicarum et ethicarum, I, p.54:“Exixoupos ovdey datoytvdoes Totty, ELonEvos tod évéexousvov" [“Epicuro nao despreza nenhuma dessas, atendo-se ao que 6 possivel”] Seneca, Naturales quaestiones [Ad Lucilium naturalium quaestionum libri VII, em Opera, quae extant, t.2 (Amstelodami [Amsterda], 1672], VI, 20, tT, p.802:“Onnes istas esse posse causas, Epicurus ait, pluresque alias tenttat, et alios, qui aliquid unum ex istis esse affirmaverunt, corripit, quum sit arduum, de iis, quae conjectura sequenda sint, aliquid certi promittere” ['"Todas essas causas seriam possiveis, diz Epicuro, que tenta acrescentar ainda outras; ele censura os que afirmam que alguma dessas 6 correta, pois seria dificil dar como certo algo a respeito daquilo que decorre de uma conjetura”). * Cf parte TI, cap. 5. Didgenes Laércio, cit, X, 88: “Td pévtor odytaonG éxdotoY anpirtoy, col éxt 1h cuvaardueve tovte dicipeTéoy. ‘A ov dvemaptupettar toig zap’ Hiv ywousvors theovaxis ouvteheioBat, [...] Meevtayids yltp éndéxerca tov AP Hawonévov oddéy dvrytoptupet...” [“Contudo, é preciso observar o feitio de cada manifestacao individual e distingui-la do que se associa a ela. O fato de isso suceder de muilas formas nao é contradito pelas coisas que acontecem entre nés. [...] Pois é possivel de todas as maneiras; nenhum dos fendmenos contradiz isso..." 53 Karl Marx A ataraxia da autoconsciéncia, no ao conhecimento da natureza em sie para si®. Decerto nao ser preciso detalhar quanto ele se posiciona de modo diametralmente oposto a Demécrito também nesse ponto. Vemos, portanto, os dois homens se contrapondo, passo a passo. Um deles é cético, 0 outro é dogmético; um considera o mundo sensivel como aparéncia subjetiva, 0 outro, como manifestacdo objetiva. Aquele que considera 0 mundo sensivel como aparéncia subjetiva apoia-se na ciéncia natural empirica e em conhecimentos positivos e representa a inquietude da observacao experimentadora que aprende em toda parte e que digressa para a vastidao. O outro, aquele que considera como real o mundo que se manifesta, despreza a empiria; ele corporifica a tranquilidade do pensamento satisfeito consigo mesmo, a autonomia que ex principio haure seu saber de dentro de si mesma. Porém, a contradicao atinge um plano ainda mais elevado. O cético e empirico, para o qual a natureza sensivel é aparéncia subjetiva, analisa-a do ponto de vista da necessidade e pro- cura explicar e apreender a existéncia real das coisas. Por sua vez, 6 fildsofo e dogmiitico, para 0 qual a manifestacio é real, vé em toda parte apenas acaso; sua modalidade explicativa tende, muito antes, a suprimir toda a realidade objetiva da natureza. Parece haver certa distorcdo nesses antagonismos. Porém, dificilmente se poderia supor que esses homens, que em tudo se contradizem, seriam adeptos da mesma doutrina. E, ainda assim, eles parecem acorrentados um ao outro. A tarefa da préxima segao sera captar sua relacdo em termos getais. “Diogenes Laércio, cit., X, 80: ” Kal ob det vopitery, tiv tatp tobtwv xpelas penjwareta (dirpiBeiay] jul dxevnpevan, Gon spog 16 derdpazov Kak waxdpr0v Hwy ouvteivel” [“E nao se deve achar que a investigagao sobre esses assuntos nao tenha alcancado [exatidao] suficiente para nossa ataraxia ¢ nossa bem-aventuranga”]. 54 [IV Diferenca fundamental geral entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro]* 1. Essa afetagao moral aniquila todo o altruismo tedrico e pratico; um exemplo historico intimidador disso é fornecido por Plutarcoem sua biografia de M dos cimbros, é dito que a quantidade de cadaveres era tanta que os massaliotas*** puderam adubar seus vinhedos com eles. A chuva caiu sobre tudo, e aquele teria sido o ano mais fecundo em vinho e frutas. E quais sao as reflexGes que o nobre historiador comete dian- te do trégico fim daquele povo? Em termos morais, Plutarco acha que é coisa de Deus ter deixado morrer e apodrecer todo um povo numeroso e nobre para proporcionar aos filisteus de Marselha uma farta colheita de frutas. Portanto, até mesmo a transformacao de um. povo em um monte de esterco propicia a desejada oportunidade de deleitar-se com divagag6es morais. 2. Também no que diz respeito a Hegel, ¢ pura ignorancia de seus io, Depois da descrigao da terrivel aniquilagao alunos**** quando eles, por mera comodidade etc., explicam esta * Qcorpo principal das sesdes IV e V desta parte Tse perdeu, restando apenas as notas explicativas situadas originalmente depois do texto principal. Essas nolas serao re- produzidas no corpo da pagina, nao no radapé. (N. E.) “* Plutareo, Vitae parallelae. Marius, 21,7-8. (N. E. A.) > Moradores da cidade de Massdlia, fundada por fcios jGnicos no ano 600 antes da nossa era, onde hoje se situa Marselha. (N. E. A.) #4 Naquela época, eram considerados alunos de Hegel, além dos jovens hegelianos, dos velhos hegelianos e do centro da escola hegeliana, também aqueles que foram apos- trofados por Karl Rosenkranz de “vacuo” e por Ludwig Michelet de “pscudo- ~hegelianos”. No inicio da década cle 1840, todos eles falavam — claro que por razdes muito diferentes - da acomodagao de Hegel ao Estado e a religiao, tema que ja fora discutido no tempo em que Hegel ainda estava vivo e deu o que pensar aos 55 Karl Marx ou aquela determinac&o de seu sistema, numa palavra, moralmente. Eles esquecem que aderiram entusiasticamente a todas as suas uni- lateralidades antes de decorrido um lapso de tempo, o que se pode evidenciar a partir de seus proprios escritos. Se eles de fato estavam tio deslumbrados pela ciéncia que rece- beram pronta a ponto de se entregarem a ela com confianca ingénua e acritica, entao quanta falta de escriipulos é imputar uma intengao oculta atrés da nogao do mestre, para quem nao se tratava de uma ciéncia recebida, mas de uma ciéncia em formacao, imbuida de sua propria forca vital espiritual até o tiltimo capilar. Muito antes, ao fa- zer isso, eles poem a si mesmos sob suspeita, como se anteriormente nao 0 tivessem levado a sétio, e combatem essa propria condicéo anterior, atribuindo-a a Hegel; porém, nesse mister, esquecem que ele se encontrava em uma relacéo imediata e substancial com seu sistema, ¢ eles, em uma relagdo refletida E concebivel que um filésofo incorra em uma ou outra aparente inconsequéncia em decorréncia desta ou daquela acomodagao; pode até ser que ele mesmo tenha consciéncia disso. S6 que ele nao tem cons- ciéncia de que a possibilidade dessa aparente acomodagao tem suas raizes mais profundas em uma deficiéncia ou em uma formulacgao adversarios declarados da filosofia de Hegel. Marx refere-se, a seguir, evidentemen- te aos jovens hegelianos, sobretudo Aqueles que tinham afinidade com Arnold Ruge 0s Anais de Halle, Em seus escritos publicados nos Anais de Halle até inclusive o ano de 1840, Ruge havia aprovado a filosofia hegeliana ¢ sua relagio com 0 “Estado prussiano protestante” ¢ a defendera nao s6 contra 03 ataques reacionarios da Igreja, mas também contra a critica moralizante de Wolfang Menzel (ver A. Ruge, Prewssen und die Reaktion. Zur Geschichte unserer Zeit (Leipzig, 1839), p. 29, 30-1, 36 etc.). Em 1840, Ruge mudou seu juizo no sé a respeito do Estado prussiano, mas também a respeito da filosofia hegeliana, sobretudo quanto & relaséo com o Estado prussiano e com a politica (ver Ruge, “Philosophie und Politik", Hallische Jahrbiicher, 1840, p. 2.332). Nas farmulagdes de Marx jd estd contide © ponto de partida de sua critica nao sé a Hegel, mas também aos jovens hegelianos. Marx explica a acomodagao de Hegel ao Estado a partir do principio da filosofia hegeliana, razao pela qual a critica 2 filosofia de Hegel Ihe parece scr 0 pressuposto de toda critica ulterior. Marx se pronuncia sobre a acomodagao da filosofia de Hegel, em 1843-1844, no artigo “Cri- tica da filosofia do direito de Hege! ~ Introdugao”, em Deuttsch-Franzésische Jakrbiicher [Anais Franco-Alemies| (Paris, 1844), p. 77 (ed. bras.: Critica da filosofia do direito de Hegel (S30 Paulo, Boitempo, 2005), p. 145-56]), ¢ no livro Manuscritos econémtico- Jiloséficos [trad. bras.: S40 Paulo, Boitempo, 2010). (N. E. A.) 56 Diferenca entre a filosofia da natureza de Deméerito e a de Epicuro deficiente de seu proprio prinefpio. Portanto, se um fildsofo realmente tivesse se acomodado, seus alunos teriam de explicar, a partir de sua consciéncia interior essencial, aquilo que para ele préprio assumira a forma de um consciente exotérico. Desse modo, o que aparece como progresso da consciéncia é, simultaneamente, um progresso da ciéncia. Nao se poe sob suspeita a consciéncia particular do filsofo, mas a forma es- sencial de sua consciéncia é formulada, elevada a determinado formato e significado e, desse modo, concomitantemente transcendida. Alias, eu considero essa virada nao filoséfica de grande parte da escola hegeliana uma manifestagao que sempre acompanharé a transigao da disciplina pata a liberdade. ‘Trata-se de uma lei psicolégica: o espirito teérico liberto em si mes- mo converte-se em energia pratica e, na condigo de vontade, emerge do reino espectral de Amentes, voltando-se contra a realidade mun- dana que existe sem ele. (Do ponto de vista filoséfico, é importante especificar mais esses aspectos, porque do modo determinado dessa reversio se podem tirar conclusées sobre a determinidade imanente eo carater histérico mundial de uma filosofia. Vemos aqui seu cur- riculum vitae bem de perto, em seu ponto alto subjetivo.) $6 que a propria priixis da filosofia 6 tedrica. E a critica que mede a existéncia individual pela esséncia e a realidade especifica pela ideia*. S6 que, em sua esséncia mais intima, essa realizagiio imedinta da filosofia esta marcada por contradigées, e essa esséncia toma forma no fenémeno e Ihe imprime seu selo. No momento em que a filosofia na condigao de vontade se volta contra o mundo fenoménico, o sistema se rebaixa a condigao de totalidade abstrata, isto é, ele se torna um aspecto do mundo que se confronta com outro. Sua relacio com o mundo é reflexiva. Inspira- da pelo impulso de realizar-se, ela entra em tensdo com 0 outro. A autossuficiéncia interior e a rotundidade foram rompidas. O que era Fssa ideia era defendida por todos os jovens hegelianos agrupados em torno de Bruno Bauer. Este formulou tal visio em carta a Marx, datada de 31 de marco de 1841: “A teoria tornou-se agora a praxis mais efetiva, e ainda nem podemos predizer em que medida ela se tomara pratica” (MEGA-2 III/1, p. 355). (N. E. A.) 57 Karl Marx juz interior tornou-se chama devoradora que se voltou para fora. A consequiéncia disso que o torner-se filoséfico do mundo € concomi- tantemente um tornar-se mundano da filosofia, que sua realizacéo é, a0 mesmo tempo, sua perda, que aquilo que ela combate fora dela é sua propria deficiéncia interior, que precisamente na luta ela incorre nos danos que combate como danos no opositor e que ele sé consegue suprimir esses danos na medida em que neles incorre, Aquilo com que se depara ¢ o que ela combate sempre ¢ 0 mesmo que ela é, mas com claves invertidas. Esse é um dos lados, se analisarmos 0 assunto de modo puramente objetivo, como realizagao imediata da filosofia. $6 que ela tem um lado subjetivo, que nao passa de outra forma do anterior. Fa relagio entre o sis- tenia filoséfico que esta sendo concretizado e seus portadores intelectuais, as autoconsciéncias individuais em que aparece seu progresso. Ela resulta da relag&o que, na realizagao da propria filosofia, se defronta com o mundo, a saber, 0 fato de que essas autoconsciéncias indivi- duais sempre vém com uma exigéncia de dois gumes, um dos quais se volta contra o mundo e 0 outro contra a propria filosofia. O que, no assunto, aparece como uma relacao voltada para si mesma nessas consciéncias aparece como exigéncia e ago duplas que se contradi- zem. Seu livramento do mundo da nao filosofia é simultaneamente sua propria libertacao da filosofia, que as mantinha algemadas em um sistema bem determinado. Em razao de ainda estarem pessoal- mente envolvidas no ato e na energia imediata do desenvolvimento e, portanto, de ainda nao terem superado aquele sistema em termos tedricos, elas apenas sentem a contradicao com a identidade plastica do sistema consigo mesmo e nao sabem que, ao voltar-se para esse sistema, s6 realizam dele os momentos individuais. Por fim, essa duplicidade da autoconsciéncia entra em cena como tendéncia dupla, contraposta de modo extremo — uma, 0 partido liberal*, como podemos chama-lo de modo geral, retém como de- terminagao principal o conceito e 0 principio da filosofia, enquanto + Referincia aos jovens hegelianos. (N. EA.) 58 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro a outra retém como tal seu mio conceiiv, o fator da realidade. Essa segunda tendéncia é a filosofi« positioa*. O ato da primeira é a critica e, portanto, exatamente o voltar-se para fora da filosofia, sendo o ato da segunda a tentativa de filosofar e, portanto, o voltar-se para dentro de si da filosofia, ao tomar ciéncia da deficiéncia como algo imanente 8 filosofia, ao passo que a primeira a compreende como deficiéncia do mundo a ser tornado filoséfico, Cada um desses parti- dos faz exatamente 0 que o outro quer fazer e 0 que ele proprio nao quer fazer. Porém, a primeira tendéncia, em sua contradicao interior, tem consciéncia do principio em geral e de sua finalidade. Na segun- da aparece a distorgdo e, por assim dizer, o desvario, como tal. Em termos de contetido, apenas o partido liberal, por ser 0 partido do conceito, est4 em condigGes de produzir progressos reais, ao passo que a filosofia positiva s6 consegue apresentar exigéncias e tendéncias cuja forma contradiz seu significado. Portanto, 0 que aparece primeiro como uma relagao distorcida eum rompimento hostil da filosofia com 0 mundo converte-se, em segundo lugar, em um rompimento da autoconsciéncia filoséfica consigo mesma e aparece, por fim, como divisao e duplicagao filo- s6ficas da filosofia, como duas tendéncias filoséficas contrapostas. E compreensivel que, além disso, venha a tona uma quantidade de formages de segunda categoria™, lacrimosas e sem individualidade, * A filosofia positiva, surgida na década de 1830, considerou, em contraste consciente com 0s jovens hegelianos, a religiio como a forma maxima da autoconsciéncia e os dogmas cristaos como o “saber positivo”. Ludwig Feuerbach a caracterizou como “a filosofia da arbitrariedade absoluta”, que, tendo a arbitrariedade de Deus como funda- ‘mento, constitui “o antagonismo mais direto & filosofia” (Ludwig Feuerbach, “Zur Kritik der ‘positiven Philosophie”, Hallische Jakrbiicher, y. 289-93, 3-7 dez. 1838, p.2.312). Feerbach considerava como representantes da “filosofia positiva” Joachim Sengler, Anton Giinter e Franz Xaver von Baader, enquanto Bauer citava Christian ‘Hermann Weisse, Immanuel Hermann Fichte, Joachim Sengler e Carl Philipp Fischer (ver Bruno Bauer, Die Posaune des Jiingsten Gerichts iiber Hegel den Atheisten ted Anti- christen. Ein Ultimatum (Leipzig, 1841), p. 15. (N. E. A.) ** Marx se refere aos numerosos filésofos que, a partir do inicio da década de 1830, almejavam um reavivamento da filosofia de Aristoteles, visando a utilizar essa filo- sofia como fonte histérica de renovagao da filosofia, colocando-a a servigo da supe- ragao da filosofia hegeliana. O representante mais importante dessa tendéncia foi 59 Karl Marx que se postam atrés de um gigante filosdfico do passado ~-mas logo se percebe o jumento na pele do leao; ouve-se 0 choramingar da voz lacrimosa de um mannequin [boneco] de hoje e de ontem, contrastan- do comicamente com a voz potente, por exemplo, de um Aristateles, que retumba por séculos, da qual ela se fez rgao indesejado; como se um mudo quisesse ganhar voz usando um megafone de enormes proporgées - 0u, entio, munido de dculos duplos, algum liliputiano se postasse sobre um minimum [area minima] do posterius [traseiro] do gigante e anunciasse ao mundo, muito admirado, o novo panorama que surpreendentemente se oferece a partir de seu punctum visus [ponto de vista], empenhando-se ridiculamente para deixar claro que nao é no coragao catidaloso, mas no territério sélido e substancioso em que esté postado, que teria sido encontrado o ponto arquimédico, 0 n00 ot [onde me parar, em que se apoia o mundo". E assim que surgem 05 fildsofos dos cabelos, das unhas, dos dedos dos pés, dos excrementos e outros que tém de desempenhar um papel ainda pior no ser humano mistico universal de Swedenborg**. No entanto, por ‘Adolf Trendelenburg, que, a partir de 1833, lecionou na universidade de Berlim e a ‘quem Marx evidentemente se refere aqui. Em lroestigacoes légiens, publicadas em 1840, Trendelenburg se baseou em Aristiteles nao so para criticar a filosofia hegelia- na—e, sobretudo, o método dialético -, mas também para fundamentar sua filosofia teista, que ele proprio denominou cosmovisio organica, Nessa filosofia, as concepcoes teleoldgicas de Aristoteles foram valorizadas. Trendelenburg se reportou aos estudos antropoldgicas e fisioldgicos de sua época, que investigavam a correspondéncia de fim e meio na natureza, como as formas especificas das partes dos pés-dedos, unhas, tenddes, muisculos — em animais carnivoros. Ver Adolf Trendelenburg, Logische Un tersuchungett {Berlim, 1840), v. 1.2, p. 8-10. Possivelmente Marx aludia a isso ao falar de [ildsofos dos cabelos, dos dedos dos pés, das unhas e dos excrementos. Ele tinha a intengao de debater com Trendelenburg, mas provavelmente nao realizou esse plano (cf. Carta de Bruno Bauer a Marx, de31 de marco de 1841, ¢ de Friedrich Képpen a Marx, de 3 de junho de 1841 [MEGA-2 III/L, p. 354e 361)). (N. E. A.) © Alusio & exclamago de Arquimedes que se tornou proverbial: “Ads jiot, TO OT. tl nw niyy yfiv" [“Da-me onde apoiar o pée moverei a Terra” | (Pappus, Collectio, ‘VII, 1060, 1-4). (N. E. A.) Marx evidentemente se refere ao “homo maximus”, conceit mistico que aparece na ‘obra do naturalista e tedsofo sueco Emanuel Swedenborg, publicada em yatios vo- jumes em meados do século XVII. Swedenborg dividiu o universo inteiro em corpos materiais finitos e espfritos eternos. Todos os espiritos estariam em conexao univer sal, da qual o espirito humano participaria apenas inconscientemente durante a vida do set humano. O mundo dos espiritos em seu conjunto, que corporifica 60 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito ea de Epicuro sua natureza, 0 elemento em que vivem todos esses moluscos so * as duas tendéncias jé citadas. No que se refere a elas, explicitarei de maneira completa em outro lugar* a inter-relacao dessas tendéncias e também a relagdo entre elas ¢ a filosofia hegeliana, bem como cada um dos momentos histéricos em que esse desenvolvimento se manifesta. 3. Didgenes Laércio, cit., IX, 44: “Mndtv te ée Tod wh Svtos yiveoOat, und elg tO wi) Ov Hbetpeoar” [“Nada surge do nao existente e nada se desfaz em nao existente”] (Demdcrito), ibidem, X, 38-9: "Hp@rov pév, obdév yivetou ék Tod yh Svtos. Tétv yop be mavtds éylvet’ tiv [...]. Kai i. égeipeto 5& 1d doavitduevov cic 10 ut dv, méyta Gv GmohdAeL Ta Mpdywata, obk Svtwv Toy, sls & SteWeto. Kal wiv kai td thy del tovobtov jy, otov Kal viv got, Kal det toroBtov Kota. OvGEv yap gotwy, sig 6 petapdddcr” [“Em. primeiro lugar, nada surge do nao existente. Pois, se fosse assim, tudo surgiria de tudo [...]. E, se aquilo que se desfaz desaparecesse jd teriam perecido, j4 que aquilo em que se dissolveram seria nao existente. Ademais, 0 universo no nao existente, todas as cois; sempre foi como agora é e sempre sera assim. Pois no hé nada em que possa se transformar”]. (Epicuro) 4, Aristételes, Physica [Fisica], I, 4: “El yup mév utv 19 yevouevov avéyen yivea0ar i & Svtwv ¥ ék wi Svtov- tobtany df TO ev 2k pn) dbytev yiveodar Gdivatov: Tept yop TadTNS SuoyvoOvotoL TAS SdENs ‘uma unidade universal do universo inteiro, constitui, para ele, o “homo maximus” (ser humano maximo”), cuja cabeca, tronco e membros representam diferentes e: feras qualitativamente diversas do mundo espiritual (ver Swedenborg, De coclo ee) mirabilibus, et de inferno, ex auditis et visis (Londini [Londres], 1758), § 29, 31, 65 ete. Ele fundamentou suas visdes dizendo que fora eleito para participar ainda em vida da conexdo com 0 mundo dos espiritos e que tetia estado em conexao com Aristéte- les, entre outros, Kant e mais tarde Herder condenaram a mistica de Swedenborg. Na primeira metade do século XIX, muitas publicacdes voltaram a ocupar-se de sua doutrina, o que foi causado pelo reavivamento da mistica na filosofia de Franz. von Baader, do velho Schelling e outros fildsofos de menor expresso, que se reportaram acle, pela publicacio de seus escritos na Alemanha entre 1823 e 1842, bem como pela rapida disseminacio do movimento da “nova Igreja”, que edificou sobre a doutrina de Swedenborg. (N. E. A.) Marx nao chegou a executar esse plano. (N. B.A.) 61 Karl Marx dmavtes” [“Sendo que tudo o que vem a ser surge ou do existente ou donao existente; mas o surgir do nao existente é algo impossivel. Sobre essa questdo todos estao de acordo”]. 5, Temistio, (“Comentario a Aristételes”, em Aristoteles, Opera, v. 4:] Scholia in Aristotelem (Collfegit Christianus Aug.] Brandis[, Berlim, 1836]), £. 42, p. 383: ““Qomep yap Tod pdevos ovdepia goth Sagopa, odtw Kal ToD Kevod- TO yap Kevov pr) Sv TL Katt otépnow “yet k. 1, Ae” [Do mesmo modo que no nada nao existe diferenca, tampouco existe no vacuo; pois ele [Demécrito] chama o vacuo de nao existente e de privacio ete." ]. 6. Aristateles, Metafisica, 1, 4: “Aewxut7og 8t Kal 6 étalpos adtod Anwokpttos otouyeta [Lev 10 TAfipEs, Kal tO Kevov elvat pact, déyovtes olov TO Uev dv, TH dE i Sy" TOUTED dé 10 hfjoes Kal TO otepedv tO by, TO dé Kevov ye kal wavov TO pa) Ov. Aud Kot odbdéy pddroOv 1 by TOD jh Svtos elvar aot, StL oBdé Td Kevdy Tod odpatoc” [“Leucipo e seu companheiro Demécrito dizem que os elementos so 0 cheio e o vacuo, chamando aquele de existente e este de no existente; desses, 0 cheio e o firme sao existentes, 0 vacuo e o solto, nao existentes. Por isso dizem também que o existente nao mais existente do que o nao existente, ja que o vacuo existe tanto quanto 0 corpo”. 7. Simplicio, cit., p. 326: “Kal Anudkpttos 10 maAfipes Kal TO Kevoy, Gy 16 wav dc by, 16 8 dg ObK BV elval @now” [“E Demécrito [tem como principios] o cheio e o vacuo, dizendo que o primeiro ¢ exis- tente eo segundo é nao existente”] [Simplicio cita Aristételes, Fisica, 1888, 22-3. (N.E. A.)] Temistio, cit,, p.383: “TO yap kevov wh Sv Tt Kat orépnow Adye Anpokprtos” [“Pois Demécrito chama o vacuo de algo no existente e de privacao”]. 8. Simplicio, cit, p.488: “ Anudkottos tyettat tiv TOV didiov pbaw elvat wuKpiig otoiac, «Afilos neipoug: totais 6 témov GAAov ‘AmortGnow Sreipov tH peyéber, mpocayopetier dé Tov uév TémOV roicde [tots] Svdnaor tA Te Kevo Kal TO otdevi kal th dteiow, Tav dt odordy ExdoTHY TH THI Kal 1 vaotd Kal. td) Ovi” [“Demécri- to acredita que a substncia do eterno consiste de uma quantidade 62 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demdcrito e a de Epicuro ita de pequenas entidades. Assume para elas outro lugar de anho infinito e designa esse lugar com as seguintes expressdes: vacuo, o nada e o infinito; cada uma das entidades chama assim: isto, o firme e 0 existente” |. 9. Cf. Simplicio, cit., p. 514: “Ev kal 0X4” [Um e muitos”. 10. Didgenes Laércio, cit., § 40: “el wi fv, 5 Kevov Kai ydpav Kal vat] pvow dvoudtopev” [’Se nao houvesse o que chamamos de vd- cuo © espago e stibsténcia intocdvel”’}. Estobeu, Eclogarum physicarum et ethicarum, I, p.39:’Emixoupos Ovopacw ahow TapGARGttELW Kevov, zéxov, yoouv” [“Epicuro usa alternadamente todas as expressdes: vacuo, lugar, espaco”]. 11. Estobeu, Eclogarum physicarum et ethicarum, |, p. 27: “Eipntat 88 Gropos, oby Stu gotlv éaylotn” [“Chama-se atomo nao por ser a menor coisa”). 12. Simplicio, cit., p. 405: “Ol dt tis én’ Gmeipov Touts dateyveakdtes, Os ob Suvapevov HOy éx’ Cererpov téwveww, Kal Ek Tovbtov mothoadOar 1 akatédnKtov tig Topic, E ddvapéetov theyov dplotacdOa ta odpata. Kal ei¢ Gdralpeta diraipetoban atkty Stu Aeveisutog Kal Anpoxprtog ob pwOvov Ti GxGGerery aitiav Tolg TPATOLS GdpaoL Tod pi StatpetoDar vouZouow, GAG Kab TO OMLKPOV Kai TH dpEpes, "Em(koUpOS 6é Botepov duEpi] Od, ipyettan, arouor dé abta Sis Tiv Grd0eLav elval now. Kal sod).axo pév ui Acuoxpitov dd€av Ket Aevktaou 6 Aptototéhns dufaeysev, kal. 8u' ece(voug tows tos EXeyyous Mods TO dpepés EvLaTapLEVoUS 6 Emlkoupog botepoy yevouevos, ovpmaOOy dé tf Acuokpltov Kal Aevetsov S6Ey mepi TOV TPdPOV OaLdtOY, dstabH EV EpvAaEev attér..” [’Porém, aqueles que rejeitam a divisibilidade ao infinito, por nao sermos capazes de dividir infinitamente e, desse modo, de tornar crivel que a divisibilidade é incessante, afirmam que os corpos so constituidos de unidades indivisiveis e que podem ser divididos em unidades indivisiveis. No entanto, Leucipo e Demécrito nao consideram apenas a insensibilidade como causa da indivisibilidade dos corpos originais, mas também o fato de serem pequenos e incom- postos. Mais tarde, porém, Epicuro nao os considera incompostos, 63 Karl Marx mas diz que seriam indivisiveis por causa de sua insensibilidade. Repetidamente, Aristételes havia refutado a opiniéo de Leucipo e Demécrito, decerto por causa das provas levantadas por ele contra 0 carater incomposto, Epicuro, que viveu depois, simpatizando com a opinido de Demécrito e Leucipo sobre os corpos originais, até man- teve a da insensibilidade...”]. 13. Aristoteles, De generatione et corruptione [Tibri II (ed. estereotipada, Leipzig, Tauchnitz)], 1, 2: “Aitov 68 108 és’ Ekkartov dbveaNat ve Suohoyowpeva cvvepsy, 1 dsteipla. ALd, Scot cuvenktKaot WtAbov av Toig uoucoic, PAAAOV S¥vavtaL ttoTiBEGBat ToLaTas apyas, at émutom Shvavtan ovve(pety. OLS’ ék TOV TOhAOY Adyar GBedpntor tov tnapyovtwy Svtes, Tds Sdlya EmBAEpavtes, dscopalvovrat doy. "Idot 5° dv tig Kal &k Tottov, Scov diadgoovow ob puoucdg kal LoyiKde oKomBvtes. Hepl yop tod drone elvat jeyéBn of pev oaow, Stt TO adtoTpiywvoy TOAAG Eotar. AnwKprtos &° tiv Cavett oiKetog Ketl puarKots AGyous mtemetoba” [“Porém, a razao pela qual se fem uma visio de conjunto menos acurada daquilo que é conhecido de modo geral é a falta de experiéncia pratica. Por isso, os que esto mais familiarizados com as cigncias naturais tm mais condigdes de propor principios que podem ser coerentes. Mas aqueles que, por causa das muitas especulagoes, ficam cegos para as coisas existentes examinam poucas coisas ¢ se manifestam levianamente. Também do que segue se pode ver em que consiste a diferenga entre os que ana- lisam as coisas da perspectiva das ciéncias naturais e os que o fazem do ponto de vista especulativo: quanto as grandezas indivisiveis, uns dizem que o triéngulo em si existe de muitas formas. Demécrito, porém, parece orientar-se por razes objetivas e cientifico-naturais”]. 14, Didgenes Laércio, cit. IX, 7, 8 [§ 40]: “Aptotd&evos, 8 &v tol fotopikois trouviuact @not, Mhdtwva Gedfjoa ovppresar th Anuoxoitov ovyypduata éxdou HSuviOy ovvayayely, Awirhav dé Ka Khewiery tots Miayopucods Kwhdoan abroy, dg obdsv Sdehos: maps morhots yap elven [te] BuBAla Hr. Kal Sif.or Sé TdvtoV eto axeddv tO dpyalow UeuVnudvos 6 MAdtwv, obdayod Anoxpltov dtapvjpovedet, Gad’ Ode EvOa avreimety TL anit d€ou SHAOV eldas 64 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito en de Epicuro c mpog Tov Gprotov ott Thy Pidocdpwv goowto” (“Em suas Me- sirias histéricas, Aristoxeno diz, que Platéo quis queimar todos os critos de Demécrito que pudesse reunir, mas que os pitagéricos Amiclas e Clinias 0 demoveram, porque de nada adiantaria, dado que os livros ja se encontravam em poder de muitas pessoas. De fato. Platio menciona quase todos 0s fildsofos antigos, mas nao faz mengao de Demécrito nem onde deveria contestar alguma opiniao dele. Pelo visto, ele sabia que, a0 fazer isso, se posicionaria contra o melhor de todos os filésofos”] 65 [Vv Resultado] 67 SEGUNDA PARTE Diferenga entre a filosofia da natureza de Democrito e a de Epicuro em termos especificos CAPITULOI A declinagao do atomo da linha reta Epicuro assume um movimento triplo dos atomos no vacuo’. Um dos movimentos é 0 da queda em linha reta; 0 outro consiste em que 6 Atomo se desvia da linha reta; e 0 terceiro é posto pela repulsio dos muitos étomos, Demécrito tem de comum com Epicuro a assuncao do primeiro e do altimo movimento, diferindo dele quanto & declinagdo do dtomo da linha reta’. Muito ja se zombou desse movimento declinante. Cicero, mais que todos, 6 inesgotavel quando toca nesse tema, Assim, ele diz, entre outras coisas: Epicuro afirma que os dtomos sao impelidos para haixo por seu peso em linha reta; esse seria 0 movimento natural dos corpos. Mas, entdo, 0 que chamou a atencao é que, se todos fossem inrpelidos dessa forma de cima para baixo, jamais um Atomo poderia se chocar com outro. Diante disso, ohomem buscou refagio numa mentira. Ele disse que 0 étomo se desvia um pouquinho, o que, no entanto, € totalmente impossivel. Isso 1 Estobeu, Eclogarsim physicarum et ethicarum, T, p. 33: Exkroupos [...] revelotan 3 tél frou Tore wev eeetd OTABUNY, Were HF Kath meinéyRAIOIY, Te BE leven KEvOGHEveE eae axknyiiy kal bd nahudv” [’Epicure: [..] em parte os étomos se movern verticalmen- te, em parte se desviam dessa linha; o movimento para cima ocorre devido ao choque e ao ticochete”]. Cf. Cicero, De finitute, I, 6; [Plutarco,] De placitis philosophorunt, p- 249; Estobeu, cit, p. 40|: “Emikoupos, d¥0 eldy rig xwvijoews, tO Kor’ oTABunY Kel 1 nine. tapeyemuawv” [“Epicuro assume dois tipos de movimento: a queda ver- tical e a declinagao”]. (N. E. A.)] > heero, De natura deorum, |, 26: “Quid est in Physicis Epicuri non a Democrito? nam etsi Guaedam commutavit, ut, quod paullo ante de inclinatione atomorum dixi [..J" ['O que hana fisica de Epicuro que nao provém de Demdcrito? Pois, mesmo que tenha modi- {ficado agama coisa, como aquilo que acabei de dizer sole a declinagto dos dtomos[...)"| 71 Karl Marx faria surgir complexdes, copulacdes e adesdes dos dtomos entre si, ¢ a partir delas teria surgido o mundo e todas as partes do mundo e tudo 0 que ha nele. Além disso, como tudo isso nao passa de uma ficgao juve- nil, ele no consegue o que quer? Encontramos outra formulac3o de Cicero no livro I de Sobre a natureza dos deuses: Percebendo que, se 0s dtomos fossem impelidos para baixo por seu pro- prio peso, nada poderfamos fazer, porque seu movimento é determina- doe necessario, Epicuro inventou uma maneira de escapar 4 necessida- de, algo de que Demécrito nao se dera conta. Ele diz que, embora seja impelido de cima para baixo pelo peso € pela gravidade, o atomo se desvia um pouguinho. Afirmar isso é mais indecoroso do que nao con- seguir defender o que quer.* 3 Idem, De finibus, 1, 6: “Censet (isto 6, Epicurus) enim, eadem illa individua et solida corpora jervi suo deorsum pordere ad Fiore: kame raturlem esse omnia corporuim motu, Deine ‘bidem homo acutus, qu: illud occurreret, si omutia deorsiim e regione ferrentur et uit dixi, ad ineora, raunsuuara fore, ut alomusalteraaltcran posset attingere itaque attulit rem: commentitiant: deciranre dixit alomums perpaciliunt (quo nit posse fer? minus), ita efici complexiemes et copu- iationes et aahcesitationes atomnortan titer se, ex quo effceretur mundus onmesque partes musi, qaeque in eo essen. [Quae cum res tota ficta sit pueriliter, stim ne efit quidem quod vulfl” ["Poisele (isto 6, Epicuro) afizma que justamente aqueles corpos indivisiveis e sdlidos si0 cartegados em linha reta para baixo por seu peso; esse seria o movimentonatural de todos as corpos. Mas logo ocarreu a esse home perspicaz que, se acontecesse isso, se todos fossem impelidos de cima para baixo e, ademais, em linha reta, jamais um atomo poderia tocar em outro; em consequéncia, recoreua uma mentira: ele disse que o étomo se desvia bem pouco (o minimo possivel), 0 que ocasionaria interconexdes, unis e ligagives de tomos enlze si, do que surgitia o mundo e todas as partes do mundo e tudo 0 que hé niole. [Tudo isso ¢ incentado de maneria puerl e niio produz.o efeito por ele desejado]’). 4 Cicero, De natura deorum, |, 25: “Epicurus, quum videret, si atomi ferrentur in locum in- feriorem suopte pondere, nihil fore in nostra potestate, quad esset enrum motus certs et inecessarius, invenit, quo modo nevessilalem effugeret, quod videlicet Democritirm fugerat; ail, alonsum, qurint pondere et gravitate directo deorstins fevatur, declinare paullulun. Hoc dicere, turpius est, quar ilu, quod vuli, non posse defendere” "Quando Bpicuro viu que, se os jtomos fossem impelidos para baixo por seu peso, nada poderfamos fazer, ja que seu movimento seria certo e necessario, descobriu: um modo de fugir a necessi- dade, 0 qual, pelo visto, escapara a Demécrito: ele diz que, embora seja impelido para baixo pelo peso e a gravidade, o étomo se desvia um pouquinho. Dizer isso & mais vergonhoso do que nao poder defender © que se quer”). CE, idem, De fato, 10[: “Sed Epicurus, declinatione atom vitar’fatinecessitatem putat. Teque tertius quidem motus oritur extra pondus et plagam, cur: declinat atonmus interoallo minimo). 72 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demeécrito e a de Epicura Pierre Bayle emite um juizo similar: Epicure) on wirvait admis dans les atomes que le mouvement de Avant lui (ci pesantement ct celui de reflexion. Epicure supposa, que meme at mitiew du vide les atomes déclinaient un peu de la ligne droite; et de la venait la liberté, disail il, L...] Remarquez en passant, que ce ne fitt [pas] le seul motif, qui le porta @ inven ter ce mouvement de déclinaison; il le fit servir aussi & expliquer la rencontre des atoms, car il vit bien, qu’en supsposant, qu’ils se mouvaient avec une égale vites- se par des lignes droites, qui tendaient toutes de haut en bas, il ne ferait jamais entendre, quills eussent pu se rencontrer, et qu‘aussi la production du monde urait 8 impossible. IL fallut donc, qu’ils sécartaient de la ligne droite. [Antes dele (isto é, de Epicuro) s4 se admitiam nos dtomos 0 movimento da gravidadee o da reflexao. Epicuro admitiu que, mesmo no vacuo, os étomos declinariam um pouco da linha reta; ele dizia que disso provinhaa liberda- de, [...] Observe-se de passagem que esse nao foi o tinico motivo que o le- vou a inventar tal movimento de declinagao; este Ihe servia também para explicar 0 encontro dos 4tomos, pois ele percebeu muito bem que, supondo que eles se movessem com a mesma velocidade em linhas retas, tendendo todos de cima para baixo, jamais se poderia fazer entender que tivessem podido se encontrar e que, se fosse assim, a produgao do mundo teria sido imposetvel. Portanto, foi necessario que eles se afastassem da linha reta.F Por ora, deixo estara concludéncia dessas reflexées. Cada qual sera capaz. de perceber de relance que o mais recente critico de Epicuro, Schaubach, entendeu mal Cicero quando disse: De acordo com Cicero (De natiira deorum [Sobre a natureza dos deuses], 1, 25), os étomos scriam todos impelidos para baixo pela gravidade e, portanto, por razGes fisicas, paralelamente; ganhariam, contudo, outro movimento pela repulsdo reciproca, um movimento obliquo devido a causas contingentes, e isso desde a eternidade© > [Pierre] Bayle, Dictlionairel histforiqueet critique (3.ed., Rotterdam, 1720), t.2, p. LO851, v. Epicure! % [JK] Schaubach, Ueber Epikur’s astronomische Begriffe[, nebst einem Nachtrage zu Nr. 195 des A. Anz. d. D. 1837, Neue Jairbitcher fiir Philologie und Paedagogik orter 73 Karl Marx Na passagem citada, Cicero, em priméiro lugar, nao faz da repul- so a razio da direcio obliqua, mas, muito antes, a direcio obliqua como razao da repulsaéo. Em segundo lugar, ele nao fala de causas contingentes, mas, bem antes, reclama do fato de causas nem mesmo serem indicadas, bem como também seria por si sé contraditério assu- mir ao mesmo tempo a repulsdo e, nao obstante, causas contingentes como razao da dirego obliqua. Quando muito, ainda se poderia falar de causas contingentes da repulséo, mas nao da diregio obliqua. Alias, uma peculiaridade das reflexdes de Cicero e Bayle é tio evi- dente que nao se pode deixar de ressalta-la de imediato. A saber, eles imputam a Epicuro motivacdes que se anulam reciprocamente. Epicuro teria assumido a declinac&o dos Atomos ora para explicar a repulsao, ora para explicar a liberdade. Porém, se os 4tomos nao se chocarem sem declinagio, a declinagao sera supérflua como fundamentacio da liberdade; 0 oposto da liberdade sd comega, como constatamos a partir de Lucrécio’, com o entrechoque determinista ¢ violento dos étomos. Porém, se os Atomos se chocarem sent declinagao, esta sera supérflua como fundamentagao da repulsdo. Digo que essa contradicao surge quandoas razoes da declinacao do atomo da linha reta sao concebidas de modo tio superficial e incoerente como em Cicero e Bayle. Encon- traremos uma exposicio mais proftnda em Lucrécio, 0 unico de todos os antigos que compreendeu a fisica epicurista. Voltemos nossa atengao agora a andlise da prépria declinacao. Como 0 ponto ¢ conservado na linha, também cada corpo em queda é conservado na linha reta que ele descreve, Nao se trata aqui de uma qualidade especifica. Uma maca descreve, ao cair, uma linha Kritische Bibliothek fitr das Schul-und Unterrichtswesen (ed. Gottfried] Seebode, [Johann Christian] Jahn e [Reinhold] Klotz. [Suplemento ao] v. 5, cad. 4 do Archiv ftir Philo- logie und Paedagogik{, Leipzig, 1839}), p. 549. Lucrécio, De rerum natura [libri sex (ed. Hen. Car. Abr. Fichstidt, Lipsiae [Leipzig], 1801) v. 1], IL, 251 e seg.: “Denique si semper motus connectitur ommnis,/ Et vetere exoritur semper novus oriine certo! [...l/ Unde est haee, inquami, fatis avolsa volurttas?” [“Ademais, se um. movimento sempre se encadeia em outro,/ e se de um movimento anterior sempre surge um novo numa ordem certa/ [.../ De onde provém, pergunto, a vontade arre- batada ao destino?”]. 74 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro vertical tanto quanto um pedaco de ferro. Cada corpo, na medida em que ¢ concebido no movimento de queda, nao passa, portanto, de um ponto em movimento, mais precisamente, um ponto sem autonomia, que renuncia a sua particularidade em uma existéncia bem determi- nada —a linha reta que ele descreve. Logo, Aristételes observa, com razao, contra os pitagéricos o seguinte: “Dizeis que o movimento da linha é a superficie, que o do ponto é a linha; portanto, também os movimentos das ménadas sao linhas”*. A consequéncia disso, tanto no caso das ménadas quanto no dos atomos, seria, portanto, que eles esto em constante movimento’, que no existem nem aménada nem o dtomo, mas, muito antes, desaparecem na linha reta; pois a solidez do tomo ainda nem existe enquanto ele for compreendido apenas como caindo em linha reta. Em primeiro lugar, quando o vacuo é representado como vacuo espacial, 0 tomo é a negacdo do espaco abstrato; é, portanto, wm ponto espacial. A solidez, a intensidade, que se afirma contra 0 para-fora-de-si [Aufer-einander] do espaco dentro de si s6 pode advir de um principio que nega toda a esfera do espaco, como sucede com o tempo na natureza real. Além do mais, mesmo que nao se queira assumir isso, 0 Atomo, na medida em que set movimento for uma linha reta, é determinado puramente pelo espaco, sendo-lhe prescrita uma existéncia relativa, e sua existéncia é puramente material. Porém, vimos que um dos aspectos no conceito do dtomo é pura forma, negagao de toda relatividade, a de ser toda relacdo com outra existéncia. Ao mesmo tempo, percebemos que Aristételes, De artima, I, 4, 16-7: “TOs yiip zon vofiaat povdida KivounEvyy Kat Ord Tivos Kel TAC, CyUpA Katt GOLUGOPOV oboaY- el Yeo Bort EevT}TUET} ark KwvAFT), BLewps pec dei. “Er. 3" Exe’ qaor cevndetacey yocuunly Extaedov motel, oteyptiy 8E yocupry weal ai Tay uovddov Kivijoes ypoujai Eoovrat” [Como se deve conceber uma ménada em movimento? Pelo que e de que modo seria ela posta em movimento, dado que ¢ incomposta e indiferenciada? Pois, se for capaz. de movimento ¢ estiver em movi- mento, ela deve ter uma diferenga, Davo que eles [isto &, 08 pitagéricos], além disso, afirmam que, quando é movimentada, uma linha gera usa superficie e que um ponto gera uma linha, tambén os movimentos das ménadas serdo links") + Didgenes Laércio, cit, X, 43: "“Kivointal te auveqdc al Uéromou” ["Os dtomos se movimentam constantemente”]. Simplicio, eit., p. 424; “[ol wept] “Enlkoupoy [...] viv reiynotv didtav’ [’Os adeptos de Epicuro [...] dizem que o movimento ¢ eterno” 75 Karl Marx Epicuro torna objetivos os dois aspectos que se contradizem, mas residem no conceito do atomo. Ora, como Epicuro pode realizar a pura determinagao formal do 4tomo, o conceito da pura particularidade, que nega toda existéncia determinada por outra? Dado que ele se move no campo do ser imediato, todas as deter- minacGes sao imediatas. Portanto, as determinagoes antagGnicas sao contrapostas umas as outras como realidades imediatas. Porém, a existéncia relativa com que se depara 0 tomo, a existéncia queele tem de negar, 6 linha reta, A negacdo imediata desse movimento 6 outro movimento e, portanto, igualmente concebido como espaciala saber, a declinagfo da linha reta. ‘Os Atomos sao corpos puramente auténomos ou, muito antes, corpos pensados como tendo autonomia completa, como os corpos celestes. Por conseguinte, eles também se movimentam, no em linhas retas, mas em linhas inclinadas. O movimento da queda é 0 movimento da néo autonomia. Portanto, quando represeniou a materialidade do étomo em seu movimento em linha reta, Epicuro realizou a determinagso de sua forma na declinacao da linha reta; essas determinag6es contrapostas so representadas como movimentos frontalmente antag6nicos. Por conseguinte, Lucrécio afirma, com razao, que a declinagao rompe com 08 fati foedera [lagos do destino}”; e, por aplicar isso de imediato ao consciente!!, pode-se dizer do tomo que a declinacao seria aquele algo em seu Amago que é capaz de contra-atacar e resistir. Entao Cicero critica Epicuro nestes termos: Ele nem mesmo logrou aquilo que pretendia ao inventar isso; pois, se todos 03 dtomos declinassem, jamais algum se uniria com outro ou “ Lucrécio, De rerum natura, Il, 251 e seg: “[---] sé [-../) Nec declinando faciunt primordia mots! Principia quoddam, quod faci foetera rumpat,/ Ex infinite me causam causa seq tur” [“Loo] se [--V/ Ao declinarem, [os étomos] nao fizerem um primeiro movimento/ Algum comeco que rompa os lacos do destino/ Para que nao decorra infinitamente uma causa de outra causa”). 1 Thidem, Il, 279 ¢ seg. “[...] esse itt pectare nostro! Quiddam, guod contra pugnare obsta- reque possit” ["[...] que haja em nosso peito algo que possa contra-atacar e resistir”]. 76 Diferenga entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro alguns se desviariam e outros seriam imrpelidos em linha reta por seu movimento. Seria preciso, portanto, como que designar aos dtomos determinados postos quais deveriam se movimentar em linha reta e quais obliquamente.? Essa objecao tem sua razao de ser no fato de que os dois aspectos que residem no conceito do atomo sao representados como movi- mentos bem diferentes e, portanto, também deveriam ser atribuidos a individuos diferentes — incoeréncia que, no entanto, é coerente, pois a esfera do atomo é a imediatidade. Epicuro percebe bem a contradigao nisso. Por esse motivo, procura representar a declinagio tanto quanto possivel como nfo sensivel. Ela nao esta “nec regione loci certa, nec tempore certo [mem em um lugar preciso nem em um tempo preciso}”®, acontecendo no espaco mais diminuto possivel™. Além disso, Cicero’ e, de acordo com Plutarco, varios antigos’® criticam o fato de a declinacao do 4tomo acontecer sem causa; e isso, segundo Cicero, é a coisa mais ignominiosa que pode acontecer a 2 Cheer, De finibus, I, 6: “Nec tamen id, cujus causa haec finxerat, assecutus est; nam, si omnes atom declinabunt, rullae unquam cohaerescent, sive alive declinabunt, aliae suo 1itu recte ferentur. Prinum erit hoc quasi pravincias alomsis dare, quae reese, quae oblique ferane tur” [“Ele, contudo, ndo conseguiu aquilo, por que ele inventara isso; pois, se todos 05 dtomos declinarem, nenhum jamais se ligar a outro; ou uns declinarao e outros serao impelidos para baixo por Seti peso; Nese caso, sera preciso designar primeiro aos atoms certas areas em que devem se movimentar em linha reta ¢ outras em que devem se movimentar obliquamente”], Lucrécio, cit, 293, Cicero, De fatum, 10: “Declinat alomus intervallo mininio, id appellat Bhdguatov’ [°O tomo deciina no menor intervalo possivel, que ele [Epicuro] chama de elichiston [minimo]’]. 1 Idem: “Quam declinationem sine causa fieri, si minus verbis, re cogitur confiteri” ("Que a declinacao acontece sem uma causa, isso ele tem de admitir de fato, mesmo que nao tanto em palavras” }. 's Plutarco, De anime procreatione [e Timaeo, em Varia Scripta, quae moralia vulgo vo- cantur (ed. estereotipada, t. 6, Lipsiae [Leipzig], 1815/1820/1829)], p. 8: “Exueotipy nay yop oB88 dxapés eyrhivery tiv Grouov ouyzmpobow, dg dvainioy émeLgtyovtl rlvnoty é to8 ut) Suto” [Porque eles [isto é os estoicos] nae concedem a Epicure que o tomo declina, mesmo que seja bem pouco, porque desse modo ele introduzi- ria um movimento nao causado a partir do ndo existente”] 77 Karl Marx um fisico!”, $6 que, em primeiro lugar, uma causa fisica, como a que Cicero quer, jogaria a declinagéo do atomo de volta para as fileiras do determinismo, para fora das quais ele justamente quer algé-la. Em segundo lugar, porém, 0 dtomo ainda nem esta completo antes de ser posto nadeterminaciio da declinagio. Perguntar pela causa dessa determinagao significa, portanto, perguntar pela causa que converte o atomo em principio — pergunta que evidentemente absurda para quem consi- dera o atomo a causa de tudo, sendo, portanto, ele préprio sem causa. Por fim, apoiado na autoridade de Agostinko', segundo o qual Demécrito atribuiu aos 4tomos um principio espiritual — autoridade que, alias, diante da oposicao a Aristételes ¢ aos demais filsofos antigos, é totalmente irrelevante -, Bayle” critica Epicuro por ter in- yentado a declinacdo em lugar desse princtpio espiritual; nesse caso, ao contrario, o que se ganhou com a alma do atomo nao passa de mera palavra, enquanto na declinacdo est representada a verdadeira alma do dtomo, o conceito da particularidade abstrata. ‘Antes de passarmos para a andlise da consequéncia da declinagao do atomo da linha reta, é preciso ressaltar um aspecto sumamente importante, que até agora passou despercebido. ‘A saber, a declinagéo do dtomo da linha reta nao é uma determinagao especial que casualmente ocorre na fisica epicurista. Pelo contrério, alei que Cicero, De finibus, I 6: "Nam et ipsa declinatio ad Uibidinem fingitur (ait enim declinare atomum sine causa; quo nihil turpius physico, quam, fier sine causa quidquam, dicere), et dum motum naturalem onnium ponderum, ut ipse constituit, e regione inferio rem locum petentium, sine causa eripuit atomis” |“Por um lado, a propria declinacao: é uma invencao arbitréria (pois ele cliz que 0 dlonto declina sem enusa nfo kd mada pior para um cientista da natureza do que dizer que algo acontece sem uma causa); por outro lado, privou sem causa os dtomos daquele movimento natural de todos os corpos pesados que, conforme sua prépria afirmacdo, tendem de cima para baixo"] 18 Agostinho, Epistola 56. [Marx cita cf. Bayle, cit, p. 984: “Democritus hoc distare in na- turalibus quaestionibus ab Epicure dic'tur quod iste sentit, inesse concursioni atomorumn vim quandam animalem et spiritualem. [...] Epicurus vero reque aliquid in principits rerum ponit, praeter atomos” [’Demécrito teria se diferenciado de Epicuro no campo da cién- ia natural também por pensar que no entrechoque dos atomos reside certa forga psiquica c espiritual. [..] Epicuro, porém, coloca entre os principios das coisas nada além dos Atomos’]. (N.E. A.)] » Bayle, cit, p. 984]. 78 Diferenca entre a flosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro la expressa percorre toda a filosofia epicurista, mas obviamente de modo que a determinidade de sua manifestagao seja dependente da esfera em que éaplicada. A particularidade abstrata s6 pode operar seu conceito, sua de- terminaco formal, o puro ser-para-si, a independéncia em relacio 4 existéncia imediata, a supressao de toda relatividade, abstraindo da existéncia com que ela se depara; para superd-la verdadeiramente, ela teria de idealizé-la, 0 que s6 é possivel a generalidade. Portanto, do mesmo modo como 0 atomo se liberta de sua existén- cia relativa, da linha reta, abstraindo dela, declinando dela, também todaa filosofia epicurista declina da existéncia limitadora sempre que sua intencao é apresentar a existéncia do conceito da particularidade abstrata, da autonomia e da negacio de toda relagao com outra coisa. Assim, a finalidade do fazer é abstrair, declinar da dor e da perturbacdo, ou seja, a ataraxia®”, Assim, aquilo que é bom cons- titui a fuga diante daquilo que é mau, assim, o prazer é declinar do sofrimento”. Por fim, onde a particularidade abstrata aparece em sua suprema liberdade e autonomia, em sua totalidade, conse- quentemente a existéncia da qual se declina ¢ toda a existéncia; por conseguinte, os deuses declinam do mundo e nao se preocupam com ele, morando fora dele®. 2 Didgenes Laércio, cit,, X, 128: "Tottov yap xdipwy Gaavta modrtowey, Smug pre Gayauey ite TapBOuev” [’Pois a finalidade de todo o nosso fazer é nao padecer de dor nem de perplexidade”] 21 Phutarco, De eo, quod secundum Epicurutn non beate vivi possit, p. 1.091: '“Opout 8& kot ta Enixotoou Méyovtes, TY To? AyaBot drow é& avriis Tis buyiis To0 KaKod” [’Porém, a opiniao de Epicuro é similar, ao dizer que a esséncia do bem consiste em: fugir do que é mau”). 2 Clemente de Alexandria, Stromateis, Il, p.415:""0 88 "Enikoupos kat Til Tig Ghyndovos finezalpeawy ABoviy Elva” [“Epicuro, porém, diz que também a supressio da dor seria prazer”]. Séneca, [Ad Aebucium liberalent] de benefictis [libri VIL, em Opera, quae exiant, t.1 (Ams- telodami [Amsterda], 1672)], IV, p. 699: “Itaque non dat deus beneficia, sed securus et negligens nostri, aversus a mundo; nec magis luna beneficia, quam injurive iangunt” ["Por conseguinte, deus nao proporciona beneficios, mas, despreocupado ¢ sem dar a minima para nds, volta as custas para o mundo; nd o tocam nem as boas agoes nem as injirias”). 79 Karl Marx Zombou-se desses deuses de Epicuro, que, semelhantes a hu- manos, residem nos intermundos do mundo real, nao tém corpo, mas algo como corpo, nao tém sangue, mas algo como sangue™, e, mantendo-se em repouso bem-aventurado, nao escutam nenhuma stiplica nem se preocupam conosco e com o mundo; além disso, sendo adorados por sua beleza, sua majestade e sua natureza excelente, nao visam a obter nenhum ganho. No entanto, esses deuses nao sao ficgo de Epicuro. Eles existi- ram. Sfo 0s deuses plasmados pela arte grega. O romano Cicero os satiriza com razio™; por sua vez, 0 grego Plutarco esqueceu toda a intuigao grega quando opinou que 0 temor e a superstic¢ao suscitariam essa doutrina dos deuses, que nao traz alegria nem 0 favor dos deuses, mas estahelece entre nés e eles a mesma relacao que temos com 0s peixes de Hircano, dos quais nio esperamos nem dano nem proveito nenhum®. O repouso tedrico é um dos principais aspectos do cara- 4 Cicero, De natura deorunt, I, 24: "ita enine dicebas, non corpus esse in deo, sed quasi corpus, nce samguinem, sed quasi sanguine” [pois disseste que dewss nao tem corpo, mas algo parecido com um corpo, nem sangue, mas algo parecido com sangue”], Tbidem, |, 38-9: “Quem: cif igitur, aut quas potiones, aut guias vocunt aut floret varie fates, aut qos facius, quos odores adiuibebis ad Deos, ut eos perfundas voluptatibus? [..] Quid est enim, cur Deos abs iominibus: colentdos dicas, quum Dii non modo homines non colant, sed ommnine nihil curent, will agant? At est eorum eximin quaedam praesiansque natura, ut ea debeat ipsa per se ad se colendam elicere sapieitem, An quidquam eximinm potest esse in ea natura, quae, sua voli tate lactans, nibil nec actura sit unquam, neque aget, neque egerit?” ["Portanto, que alimentos, ou que bebidas, ou que variedade de tons ou flores, ou que sensacdes téteis ¢ que odores usards para cumular os deuses de prazeres? [...] Por que razo dizes que os humanos tém de cultuar os deuses, visto Que os deuses nao cultuam os humanos, antes ndo se preocupam com nada nem fazem nada? Porém, eles de certo modo tém uma natureza tao extraordinaria e pri- morosa que ela necessariamente seduz o sibio 2 cultud-los. Mas 0 que pode haver de fo extraordinario em uma natureza, a ponto de deleitar-se em seu proprio prazer e nunca ter feito, nao fazer nem vir a fazer nada?” > Plutarco, De eo, quod secundum Epict runt non beate vivi possi, p. [1.100-]1.101: “0 26yos aabtav GSPov aQape? Kai SeLordaipoviey, eigoootvny dE tai apd dnd tev BeGv otk EvBidaaty GA otttux tzewv ore! mpbs aitods TH 4h TaparTeDBar, unde xaloerr, fg Apdg TOBE fipcavoils UOTE Exouev [eonjectura: Hpravoris H L~Ovoodyous}, ott ypnotdy obdév olite aiov dar’ adtéy apocdox@vrec” [“Seu ensino acaba com o temor @ a supersticao, nao infundindo, porém, contentamento ¢ alegria da parte dos deuses, mas, livrando-nos da perplexidade e da alegria, proporciona-nos para com 0s deuses ‘a mesma relacao que temos com os peixes de Hircano [conjectura: os hircanos ou co- medores de peixes], dos quais nao esperamos nada de bom nem nada de ruim”]. 80 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demdcrito e a de Epicuro ter dos deuses gregos, como também diz Aristételes: “O melhor nao necessita agir, pois ele mesmo jd é a finalidade””. ‘Analisaremos agora a consequéncia direta da declinagao do ato- mo. Nela esta expresso que 0 dtomo nega todo movimento e toda relago em que é determinado por outro como existéncia especifica. Isso ¢ representado de tal modo que o atom abstrai da existéncia com que se depara c escapa a ela. Porém, 0 que esta contido nis- so, sua negacao de toda relacio com outra coisa, precisa ser realizado, posto em termos positivos. Isso s6 pode acontecer na medida em que a existéncia a que se refere nio for diferente de si mesma e, portanto, for igualmente um dtomo e, dado que ele mesmo € imediatamente determinado, muitos dtomas. Assim, a repulsao dos muitos dtomos é a realizagio necessdria da lex atori [lei dos atomos]*, que é como Lu- crécio denomina a declinagao. Porém, pelo fato de que aqui toda determinacao é posta como existéncia especifica, a repulsao seria acrescentada como terceito movimento aos dois anteriores. Lucrécio diz com toda a razao que, se os 4tomos nao costumassem declinar, nao teria havido nem contragolpe nem entrechoque deles, e 0 mundo jamais teria sido criado*. Pois os dtomos sao 0 tinico objeto de si mesmos, 86 podendo se referir a si mesmos e, portanto, em termos espaciais, chocar-se, negando toda a existéncia relativa deles, na qual eles se refeririam a outro; e essa existéncia relativa é, como vimos, seu movimento original, o da queda em linha reta. Portanto, eles 2 Aristdteles, De coelo [libri IV (ed, Tauchnitz)], IL, 12: “TO 38 Hs Gipuarat Exover ov dei mpdseuc Eowt yip ait tO of Evexa” ["O que se comporta da melhor maneira nao necessita de prética, pois constitui sua prépria finalidade”}. * Essa expressio nao ocorre em De rerum natura, de Lucrécto. © conceito deve ter sido introduzido pelo préprio Marx, pois ele o empregou na formulacdo “a lei do 4tomo", ao estudar as concepcdes de Lucrécio nos Caderuos sobre a filosofia epicurista a fim de definir a declinatio atom a recta via de Epicuro. Ao elaborar a dissertagao, ele aproveitou esses trabalhos prévios e traduziu a expresso para 0 latim. (N. B.A.) % Luerécio, De rertim natura, II, 221 e seg.: “Quod nisi declinare solerent (isto &, atonti):/ [...] Nec faret affensus natus, nec ploga creata/ Principits, ita nil wnguam [wabura) creas- sei” [’Se eles (isto 6, os atomos) nio costumassem declinar;/ [...] Nao teria havido golpe nem chogue/ para os corpos originais, e assim a [natureza] jamais teria Griado algo”. 81 Karl Marx s6 se chocam por declinagao desse movimento. Nao se trata aqui da simples fragmentaco material”. Na verdade, a particularidade imediatamente existente 86 se realiza, segundo seu conceito, na medida em que se refere a outro, diferente de si mesma, quando ela se depara com o outro também na forma de existéncia imediata. Assim, o ser humano sé cessa de ser produto da natureza quando o outro a que ele se refere nao é uma existéncia diferente, mas igualmente um ser humano indivi- dual, mesmo que ainda nfo seja 0 espirito. Para que o ser humano enquanto ser humano se torne seu nico objeto real, é preciso que ele tenha rompido dentro de si com sua existéncia relativa, com a forga do desejo e da simples natureza. A repulsdo é a primeira forma da auto- consciéncia; ela corresponde, por conseguinte, 4 autoconsciéncia que se concebe como imediatamente existente, abstratamente individual. Na repulsao, portanto, também é realizado 0 conceito do Atomo, segundo o qual ele éa forma abstrata, mas também o oposto desta, ou seja, a matéria abstrata; aquilo a que ele se refere de fato so atomos, mas otitros Atomos. Se eu me comporto em relagiio a mit mesmo como se eu fosse um imediatamente outro, meu comportamento é material. Eamé- xima exterioridade que pode ser pensada. Na repulsao dos atomos, estdo sinteticamente reunidas, portanto, a materialidade deles, da queda em linha reta, e sua determinacéo formal, posta na declinagio. Em contraposigao a Epicuro, Demécrito converte em movimento violento, em ato da necessidade cega, o que para aquele é realizagao do conceito do dtomo. JA ouvimos que ele aponta como substancia da necessidade a voragem (8tvn), que surge da repulsao e do entrecho- > Thidem, 284 e seg: “Quare in seininibus quoque [idem] fateare necesse est! Esse aliam praeier plagas et pondera causam/ Motibus, unde haec est olleis inmata potestas.)[...] ne plageis omnia fiantl Externa quasi vi, sed ne mens ipsa necessum! Intestinum habeat cunctis: in rebus agendis,/ Et, devicta quasi, cogatur ferre patique:/ Id facit exiguacm clinamen prin cipiorum” [Por essa razo, deves admitir [o mesmo] para os étomos/ Que além de choques e pesos ha outra causa/ para seus movimentos, da qual provém a forga que hes é inatay/ [...] que nem tudo acontece por choques e,/ portanto, por forca externa, mas para que a propria mente nao tenha uma necessidade/ interior ao fazer todas es coisas,/ Endo tenha de suportar e tolerar tudo como alguém que foi derrotado:/ E isso 0 que efetua 0 desvio minimo dos corpos originais”}. 82 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro _ que dos tomos. Ele apreende, portanto, na repulsio, apenas 0 lado material, a fragmentacio, a mudanga, mas nao o lado ideal, segundo o qual nela € negada toda relacao com outro eo movimento € posto como autodeterminacao. Isso se pode depreender claramente do fato de que ele pensa, de modobem sensivel, um 6 eomesmo corpo dividido em muitos pelo espago vazio, como 0 oUro partido em pedagos”. Na pratica, ele nao coneebe o uno como conceito do étomo. ‘Com razio, Aristételes polemiza com ele: Por isso, Leucipo e Demécrito, por afirmarem que os primeiros corpos sempre se movem no vacuo e no infinito, deveriam dizer que tipo de movimento é esse e qual seria o movimento adequado a sua natureza. Pois, se cada um desses elementos for movido violentamente pelo ou- tro, entdo é necessario que cada um também tenha um movimento na- tural, além do violento; e esse primeiro movimento nao pode ser vio~ Iento, tem de ser natural. Caso contrario, ocorre 0 progresso infinito.* ‘A dtclinagao epicurista do 4tomo modificou, portanto, toda a construcdo interna do reino dos atomos, na medida em que, por meio % Aristételes, De cvelo, I, 7: “El 88 ii owveyéc 1d ma, GX’, Hgmep Meyer AnjwOxprtos rail ACORUTTOS, SUNPLOLEVE TH KEV, wav dvayKatoy wévTaY elvan tiv eivrouy: THY BE qiow adrdw elvas wlay, Bcrep dy, ei zov9ds Exaotov ein Kexwpraévos” [“Se 0 universo nao é coeso, mas, como dizem Demécrito e Leucipo, algo separado pelo vacuo, o movimento de todas as coisas tem de ser um 86; sua substancia seria uma 86, come ouro partido em pedacos"] 3 Thidem, IM, 2: "Aw cai Aeveina@ cal Annoxpire, tots Aéyouow del kwveloBar 1 pire odpata dv 70 Kevd kad 1) darelow, dextéov, tha kévnow rah alg A ners guow aitay eivnois. El yao Bo tim’ Ukhov Kivetuan Pig tv oroysion, GAA kat card oiiow évdoyen tive elvat Kévmaw éxotou, map" fv # Blauds fori: kak det Tity moctiy Kwotady, ii Big. raveiv, Gad Katie qbow: els Gmeipov ap clow, eb wri th Zora Kart Gow Kwodv MoTOV, GAA’ dct 1 Modrepov Big kwvorwevoy KevHoeL” [Por isso, Leucipo e Demécrito, que cizem que os corpos originais se mevem sem= pre no vacuo e no infinito, deveriam dizer também de que tipo de movimento se trata e qual ¢ o movimento adequado a sua natureza. Pols, se cada um dos elemen- tos é posto em movimento por meio da forea, entao é necessdrio que cada win deles também tenha um movimento natural, contra 6 qual se volta 0 movimento forcado; 0 primeiro movimento nao pode ser pela forga, mas tem de mover naturalmente, pols instaura-se o progresso infinito se no houver algo que ocasione naturalmente 0 primeiro movimento e se tudo 0 que causar movimento tem de ser antes movido pela forca”). 83 Karl Marx dela, ganhou relevancia a determinagao da forma e foi realizada a contradic&o que reside no conceito do atomo. Por conseguinte, Epi- curo foi o primeiro a captar, ainda que de forma sensivel, a esséncia da repulsio, ao passo que Demécrito tomou ciéncia apenas de sua existéncia material. Por essa razo, encontramos em Epicuro a aplicagao de formas mais concretas da repulsao; no plano politico, 6 0 contrato®, no social, aamizade, enaltecida como a coisa mais elevada!™. 8 Didgenes Laéreio, cit,, X, 150: “bau toy Caw ph ovato ovvéricas woretobe. Tis ‘texep tod ph Phdareery Gadayher, ymde PheartoaDav apd ara. ove dtey oribe diecoV. orid€ Gdrcov. dacattug dé kal TGV Zvay Soe i} iSrivorto, ¥ wi EBoWLeTO thes owners xorstodar, Tas drtp too pil Bhdortew GAvPous, nde PrarrenBar. ove Hy Th Kad" faut ducstoabyn, GRR’ ij gv Toic Her’ GkAtPAwv GuotpOpatic, Lad" OLKlas d4| ore fet tonovs ouvdijeny Twe noKiObaL fakp Tob jx PAiocrew, fj Phécrreodau" ["Para todos 0s seres vivos que ndo tiveram a capacidade de firmar acordos para no se prejudicar mutuamente nem se deixar prejudicar, para esses nito hd justica nent injus- tiga. O mesmo vale para todos os povos que no puderam ou ndo quiseram firmar acordos para nao se prejudiear uns aos outros nem se deixar projudicar. A justica nfo 6 uma coisa em si, mas uma espécie de acordo para nao se prejudicar mutuamente nem permitir que seja prejuidicado, acordo que resulta da inter-relacdo reeiproca em regies, independentemente do tamanho delas”] * [Sem conteido. (N. T)] 84 CAPITULO II As qualidades do tomo qualidades é algo que contradiz 0 conceito do atomo; pois, mo diz Epicuro, toda qualidade ¢ mutavel, mas os atomos nao sudam', Nao obstante, trata-se de consequéncia necessdria atribuir- thes essa qualidade, pois os muitos 4tomos da repulsao, separa- dos uns dos outros pelo espaco sensivel, tem de estar diretamente separados uns dos outros e ser diferentes de sua pura esséncia, isto 6, devem possuir qualidades. Por conseguinte, nem levarei em consideragio a afirmacgio de Schneider e Niirnberger de que “Epicuro nao atribuiu qualidades aos atomos e que os §§ 44 e 54 da carta a Herédoto em Didgenes Laércio sdo-imputados a ele”. Se fosse realmente assim, como se poderiam declarar sem valor os testemunhos de Lucrécio, de Phutarco, e mes- mo de todos os autores que narram a respeito de Epicuro? Ademais, Didgenes Laércio menciona as qualidades do 4tomo — e nao faz isso em apenas dois, mas em dez pardgrafos, a saber, §§ 42, 43, 44, 54, 55, 56, 57, 58, 59 e 61. A razao alegada por aqueles criticos, a de que “no saberiam coadunar as qualidades do tomo com seu conceito”, Didgenes Laércio, cit., X, 54: Towdens yup m&ou perapdarrer ai d& tirapot ofdev jetapérAovow” [“Pois toda qualidade sofre mudancas, mas os atomos nio mudam”]. Luerécio, De rerum naturam, TI, 861 e seg.: “Omnia sint a principiis sejuncta, necesse est,/ Immortalia si volumus subjungere rebus) Fundamenta, quibus nitatur sumnca salutis” ['"Todas elas [isto é, as quialidades perceptiveis com 0s sentidos] precisam ser dife- renciadas dos corpos originais,/ se quisermos pér na base imortais/ fundamentos sobre os quais apoiar o supremo bem-estar”]. * Provavelmente citagao indireta a partir de J. K. Schaubach, Ueber Epikur's astronomi- sche Begriff cit, p. 550. (N. E. A.) 85 Karl Marx é bastante rasa. Spinoza diz que ignorancia nao é argumento*. Se cada qual quisesse riscar as passagens dos antigos que nao consegue entender, muito em breve teriamos tabula rasa! Por meio das qualidades, o 4tomo adquire uma existéncia que con- tradiz seu conceito, é posto como existéncia exteriorizada, diferenciada de sua esséncia, E essa contradicdo que constitui o interesse principal de Epicuro. Por conseguinte, assim que cle pde uma qualidade e, desse modo, tira a consequéncia da natureza material do dtomo, ele contrapée, ao mesmo tempo, determinagdes que de novo aniquilam essa qualidade em sua propria esfera e, em contraposi¢ao, fazem valer 0 conceito do atomo. Logo, ele determina todas as qualidades de tal maneira que elas se contradizem. Demdcrito, em contraposigao, em lugar nenhum analisa as qualidades referentes ao préprio atomonem objetiva a contradigao entre o conceito e a existéncia que nele reside: Muito antes, seu interesse esta todo voltado para expor as qualidades em relagao a natureza concreta que se quer formar a partir delas. Para ele, elas sdo meras hipéteses a explicar a multiplicidade fenoménica. Por conseguinte, o conceito do atomo nao tem nada a ver com elas. Para demonstrar nossa afirmacao, é preciso que primeiro entremos em um acordo com as fontes, que parecem se contradizer nesse ponto. No escrito De placitis philosophorum, consta: "Epicuro afirma que aos dtomos competem estas trés coisas: tamanho, forma, peso. Demacrito assumiu apenas duas: tamanho e forma; Epicuro acrescentou a estas © peso como terceira coisa”. A mesma passagem se encontra repetida na Praeparalio evangelica de Lusébio’. * Citacdo livre de Baruch de Spinoza, Etica demonstrada it maneira dos gedmetras, parte I: De Deus, proposicao XXXVI, Apéndice (Sao Paulo, Martin Claret, 2002), p. 122. (N. T.) [Plutarco,] De placitis philosophorum, (1, p. 235-6]: ““Exixoupos [.-.] £m [..-] auypiBefnie ven tots auctor tole tara: oyfpa, UeyeBOS, Bépos. AnpoKpLTOS uEV YP dbo" weyed0g ral oxfua" 6 3° "Extxoupos TovTOIS KUL tpltoy 1 Bapos éxétineeY devdryen yiip eovetoan Te oduate Tf 109 Bapoug ahnyii” ["Epicuro [...] disse [...] estas trés coisas sao proprias dos corpos: forma, tamanho ¢ peso. Porque Demécrito [havia falacio] de duas coisas: tamanho e forma. Mas Epicuro falou dessas duas ¢ acrescentou o peso, pois seria necessario que os corpos fossem movidos pelo choque produzido pelo peso”. Cf. Sexto Empirico, Adversus mathematicos, p. 420. Eusébio, Pracparatio eoungelica, XLV, p. 749, 86 Diferenca entre a filosofia da niatureza de Demécrito e a de Epicuro Ela 6 confirmada pelo testemunho de Simplicio e Filopono’, se- indo 0 qual Demécrito atribuiu aos Atomos apenas a diferenga de anho e forma. Contrapée-se a isso diretamente Aristdteles, que, livro | de De generatione et corruptione, atribui peso diferenciado aos dtomos de Democrito’. Em outra passagem (no livro I de De coe- Jo), Aristiteles nao decide se Demécrito conferiu peso aos 4tomos ou no, pois diz: “Assim, nenhum dos corpos seré simplesmente leve, se todos tiverem peso; se, porém, tiverem leveza, nenhum teré peso”. Em sua Historia da filosofia antiga, Ritter, apoiando-se na reputagao de Aristételes, rejeita as informagées dadas por Plutarco, Euscbio e Estobeu® e nao leva em consideracao os testemunhos de Simplicio e Filopono, Queremos verificar se as passagens realmente se contradizem tanto assim. Nas citacdes mencionadas, Aristoteles nao fala ex professo [manifestamente] sobre as qualidades do dtomo. Em contraposi¢ao, no livro VII da Metafisica, consta o seguinte: “Demécrito estabelece Simplicio, cit, p.362: "Thy durgopd adTOY (isto é, rd rwy) Kore weyeOOS Kal OY ANG. riOeis (isto é, Anpdxprtos)” [“sendo que cle (isto é, Demdcrito) estabelece sua (isto é, dos atomos) diferenciagao por tamanho e forma”. Filoponol, “Comentario a Aristételes”, em Aristételes, Opera, v. 4: Scholia in Aristote- om (Collegit Christianus Aug. Brandis, Berclini [Berlim], 1836): “lay uevror kowviyy bow iAOTIOHOW (isto é AnudxpLTos) depts Tois oAALATL Rov TooTOD dE udpLa elvan Tite GrGpous weyEOeL Kai aziaTL SLag_potaac CAPO: Ob ROvoV yap G.A0 rat (ho ome 2youow, Gd. [eloiv] adtay ai pév petLous, al 88 ekdetous" [“mais precisamente, ele (isto 6 Demécrito) baseia todas as formas em uma tinica substan- cia comum do corpo; as partes desse corpo seriam os datomos que se diferenciam uns dos outros em tamanho ¢ forma; cada um deles ndo s0 tem uma forma, mas hé uns que sao maiores e outros que so menores" |. 6 Aristdteles, De generatione et corruptione, 1, 8: “kato. Bapdtepdy (isto , drouey) ye karti tiv daepoxiy now elvav” [“e também diz. que ele (isto 6 9 dtomo) ¢ mais pesado na proporcao do excedente [de tamanho]"). Idem, Decvelo, 1, 7: “Tout O&, KUBGTED héyoney, Gvaycatoy eval Ty cebriy Kivnow. [.-]"Qete oifte Kotpov datas ovdiv Lota TGV GoUdreDy, et mievt’ Exe Bipog: el DE Kovpéryta, otdiv Paps. "Ent, eb Adpos Eat H Kovporyra, Foran H Foxarsy TH Tod navtds, i uéoov (...]” [’Como dizemos, seu movimento precisa ser 0 mesmo. [...] ‘Assim, nenhum dos corpos seré simplesmente leve, se todos tiverem peso; se, porém, tiverem leveza, nenhum teré peso. Além disso, se tiverem peso ou leveza, 0 universo terd um fim ou um centro [...]"] 5 Ritter, Geschichte der alten Philosophie, parte I, p. 568, nota 2. 87 Karl Marx trés diferencas dos 4tomos. Pois 0 corpo que esté na base seria um s6 eo mesmo segundo a matéria; mas ele se diferenciaria pelo pvopdc, que é a forma, pela toom), que é a posicao ou pela duabiyi, que é a ordem”?. Dessa passagem, decorre de imediato que 0 peso nao émencionado como qualidade dos atomos democriticas. Os estilha- cos da matéria separados pelo vacuo precisam ter formas especificas, e estas sAo acolhidas de modo bem exterior a partir da andlise do espaco. Isso decorre ainda mais claramente da seguinte passagem de Aristoteles: Leucipo e seu colega Demdcrito dizem que os elementos seriam o cheio eo vacuo, [...] Estes seriam a base do existente como matéria. Do mesmo modo que procedem os que poem uma tinica substancia basica e geram o outro a partir de suas afeccoes, supondo o ralo € © denso como princi- pios das qualidades, aqueles também ensinam que as diferencas entre ‘os dtomos seriam as causas do outro, pois o ser que esta na base se dife- rencia tao somente por Svoude, dtabryi| e Tomy), [...] X se diferencia de Y pela forma, XY se diferencia de YX pela ordem e Z se diferencia de N pela posicao.”” © Aristételes, Metafisica, VIL (VID, 2: “Anuoxpitos pv obv tpets Siapoperg Fourey olougva ivan. To ev yap drocel evo aduce My Hiny by Kai tO anit, dter@xpety DE i Ov0pa, 6 gow offuc, H xpoms, 6 ow OEers, H SLaBeys, 8 gow Tete” [“Ora, De- mdcrito parece assumir que existem trés diferencas. Pois o corpo subjacente seria um 56 ¢ 0 mesmo quanto & matéria, mas seria diferenciado quanto & estrutura, que é a forma, ou quanto & evolucdo, que é a posigao, ou quanto ao toque, que é a ordem”. © Thidem, I, 4: "Acinutmog 8& kal 6 éraipos arto AnnéKoUtOs toUsEIa peV 1D AAfoes kali TO Kevov eival gaat, Ayovtes olay 16 wey Sv, 7 bE uit Sy" toute OF th aAfipes eal TO atepeby TO Sy, TH d€ KEVSY ye KA UaVOY TO fo} Sv, ALO Kal ODGEY paAAGY Td BV TOR i} Svtos elven pact, Bre o86E TO Kevdy Tod ducttos. Altia dE TOY SvtwY TatTC, Gs Uy. Kal caBérep of Ev nouobvtes Tiy taoKeiérny obotay, Ti Hike Toi maDeoty aniriig yervGat, 7 avd neti TH muKVoY Gpyxiig THELEVOL TOV TAOHLGTON TOv avTdv TpdmoVv Kal obtot Tas Suamopas altiac Ta tikho elvat nor. Tadtos uévror tpels elvat A€youct’ oyfud Te Kal THEW Kal Ofow, dtaggpewy yap act Te By AvapH kai daOryA Kai TOMA [Wor TowTInN dé} NEV Huda arAfmeet éereeY. ‘bE dtabey!} TEL, 1} OE TpOM HE cic, Suacpeper yeip TO pay [A] TOO N ayrerts, TO dE AN 100 NA tdEet, 16 dé Z tod N Hgoe” [“Leucipo e seu companheiro Demécrito dizem que os elementos so 0 cheio e © vacuo, chamando aquele de existente © este de ndo existente; deles, o cheio ¢ 0 firme sao existentes, 0 vacuo € 0 solto, nao existentes. Por isso dizem também que o existente no ¢ mais existente do que o 88 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro Dessa passagem resulta de forma evidente que Demécrito analisa as qualidades dos 4tomos somente quanto & formacao das diferengas no mundo fenoménico, nao quanto ao proprio 4tomo. Resulta, ade- mais, que Demécritondo ressalta o peso como qualidade essencial dos Atomos. Para ele, é uma coisa Obvia, porque todo corporal tem peso. Do mesmo modo, para ele, o tamanho tampouco é uma qualidade basica. Trata-se de uma determinagao acidental dada aos atomos ja coma figura. Somente a diferenca das figuras — pois nada além disso est contido na forma, na posicao e na ordem ~interessa a Demécrito. Tamanho, forma, peso, ao serem justapostos ao modo de Epicuro, constituem diferencas proprias do dtomo em si; forma, posic&o e ordem — diferengas que Ihe cabem em relagao a outro. Portanto, en- quanto em Demécrito encontramos meras determinacées hipotéticas visando a explicagio do mundo fenoménico, apresenta-se anés em Epicuro a consequéncia do préprio prinefpio. Analisaremos, por con- seguinte, em detalhes suas determinagoes das qualidades do 4tomo. Em primeiro lugar, os dtomos tém famanho". Em contrapartida, o tamanho também é negado. Pois eles nao tém um tamanho qual- quer; devem-se assumir apenas algumas variagdes de tamanho entre nao existente, j4 que 0 vacuo existe tanto quanto © compo. Estes seriam a causa dos existentes enquanto matéria. E, assim como aqueles que assumem uma tinica substan- ia basica, que outros derivam das paixdes desta, pressupando 0 ralo ¢ o denso como principios das paixdes, do mesmo modo também eles [isto &, Leucipo ¢ Demécrito] dizem que as diferengas [entre os Stomos] seriam as causas dos outros [existentes]. Eles, entao, dizem que ha tds diferencas: forma, ordem e posicio, pois o existente se diferenciatia apenas por estrutura, toque e evolucao. Sendo que estrutura significa forma, toque significa ordem c evolucio significa posicéo, pois [A] se diferencia de N pela forma, AN se diferencia de NA pela ordem e Z se diferencia de N pela posicéo”. 1 Didgenes Laércio, cit., X, 44: “unde moudtntd tive. epi Tas Grouous elvan, av oxgfqucerog co weyéBove nal Bapows:[...J Hav te péyeOs i} elven epi abtas: obdéoTe yoby dtououg dn cioBrjoe” ("os étomos nAo teriam qualidades além da forme, do tamartho ¢ do peso; [...] nem todo tamanto Ihes seria proprio, pois até agora os dtomos ainda nao foram percebidos pelo sentido da visio”). 2 Ibidem, X,56:“TT@v8t utyeBoc Evumtipxov obte xoroursy dow mpds Tas Tay ToLOTHITOY diagopic, cepixOal [te] Gudder Kal mpdc Huds Spariis ardpous: 6 ot Oecpetrar yivdutevor, 80" Sag dv yévouto Cpa) Grdwovs, oly étvof|eaw” [“Assumir toda lamunho nao contribui em nada para [explicar] as diferengas entre as qualidades, [=] certamente nos terfamos deparado com dtomos visiveis; no entanto, isso nao pode ser observado e é inconcebivel camo étamas poderiam se tornar visiveis”| 89 Karl Marx eles". Deve-se atribuir a eles apenas a negacao do tamanho grande, mas nao do pequeno' nem do minimo, pois isso seria uma deter- minagao puramente espacial, mas também [deve-se atribuir a eles a negacio] do infinitamente pequeno que expressa a contradicao™. Nas Adnotationes sobre os fragmentos de Epicuro, Rosinio traduz mal uma passagem e ignora totalmente outra, quando diz: “Hujusmodi autem tenuitatem atomorum incredibili parvitate arguebat Epicurus, utpote quas nulla magnitudine praeditas ajebat teste Laertio X, 44" {“E Epicuro acusou nos atomos incrivelmente pequenos uma tenuidade tal que, de acordo com o testemunho ce Laércio X, 44, chegou a dizer que no teriam tamanho nenhum"]'*. Nem quero levar em consideracéo que, segundo Eusébio, Epicuro foi o primeiro a atribuir aos 4tomos pequenez infinita””, mas Demécrito teria assumido também os maio- res dtomos possiveis — Esfobew chega a dizer"* do tamanho do mundo. Por um lado, isso contradiz 0 testemunho de Aristételes"; por outro, Eusébio, ou melhor, 0 bispo alexandrino Dionisio, de quem ele extrai © fbidem, X, 55: “AAA yd Set vowtitery, maw weyeAog Ev Tats derdpoig tinpyew [...] mapakhaydig dé twirs peyeBibv vowwatéov élvan” [Mas ndio se deve pensar que todo ta~ manhoé prdpriodos atomos. [...] Oqueé preciso pensar é que existem alguns tamanhos”) 4 Tbidem, X, 59: ““Emcelatep Kul Gur weyeog Cet # ropos ward Thy évtaGBa dvadoyiew katqyoprjoauey, ugoby tt HSvov, paxpdy EBUMovtEs" ["De acordo com essa ana- logia, deduzimos também que 0 étomo possui tamanho, ainda que seja pequeno; um tamanho grande estd excluido”). 1 Chibidem, X, 58 [provavelmente X, 59. (N.E. A.J]. Estobeu, Eelogarunt phtysicarnan [ot ethicarum), 1, p.27. Epicuro, Fragmenta [librorum let XI] se natura [(commentario illusts. a Carole Rosinio. Ex tomo Il, volummum Herculanensium emendatius ed. suasque annotationes ads- cripsit J. Conradus Orellus, Lipsiae [Leipzig], 1818)], p. 26. © Fusébio, Praeparatio evangelica, XIV (Paris), p. 773: “tovodtoy 6t dueddivyouy, Soo 6 (isto &, "Emtcoupos) jtév @azlotas mous kul Bd toOto dvenaobjtous, G bE Anuidprtos kat j.eylarrag civak twas éréuous iméaapiev” [’Neste ponto, diferiam, na medida em que ele (isto ¢, Epicuro) supds que todos fossem diminutos e, por isso, impercepliveis aos sentidos, mas Demécrito supds que houvesse também alguns atomos muito grandes”], [Eusébio cita Dionisio. (N. E. A.) © Eetobeu, Eclogarum physicarum et ethicarum, 1, 17: "Andxprtos ¥¥ snot [...] Suvardy elvea, roopalay fudpyew éronov” ["Demécrito, no entanto, diz [...] ser possivel que exista tim tomo do tamanho do mundo”. Cf. (Plutarco,) De placits philasophorum, I, p. 235 e seg. Atistételes, De generation et corruptions, 1, 8: “spare dw wixpdtmta. Taw Syxcov” [‘invisivel por causa da pequenez dos volumes”). 90 Diferenca entre a filosofia da natureza de Demécrito e a de Epicuro 98 trechas em questio, contradiz a si préprio, pois no mesmo livro “consta que Demécrito teria assumido como principios da natureza corpos indivisiveis, contemplaveis pela razio*. Mas esta claro que Demécrito nao toma consciéncia da contradigao; ela nao 0 ocupa, ao passo que constitui o interesse principal de Epicuro. A segunda qualidade dos atomos epicuristas é a forma. $6 que também essa determinacao contradiz 0 conceito do atomo, e é preciso estabelecer seu oposto. A particularidade abstrata ¢ 0 abs- tratamente igual a si mesmo e, por isso, sem forma. As diferencas de forma dos 4tomos sao, por conseguinte, indetermindveis®, mas n&o infinitas em termos absolutos”. Muito antes, trata-se de uma quantidade determinada e finita de formas pelas quais os atomos s40 diferenciados*. Disso decorre naturalmente que nao existe amesma 2 Busébio, Praeparatio evangelica, XIV, p. 749: “Anpdnowtos [...] dpxas tov Sveoy o@pata Etowe Ady Sempnta”. [“Demécrito [...] que os principios dos existentes so corpos indivisiveis, que podem ser vistos pela razio”. CE. (Plutarco,) De placi- tis philosophorum, I, p. 235 e seg. [Nessa passagem, Fusébio nao cita Dionisio, mas um exemplar corrompido do escrito De placitis philosophorum, em que uma opiniao de Fpicuro foi atribuida a Demécrito, Em De placitis philosophorim, 1, p.235 consta: “Exixoupos [...] Kon ts dpyts tbv Sviww, shpata A6y~o Beupnté.” [“Epicuro [...] diz que os princfpios dos existentes sdo corpos que podem ser vistos pela ra- zao"]. (N. E. A.)] 4 Didgenes Laércio, cit, X, 54: “Kal mniy nal the drdyous, vouworéoy, ndeioy outta tHv owouevey npocdépeabat, Thijy uxrjuatos Kai épous Kat neyéBovg, cal Goa & averrens ozruatos auppvs éotw” ["Ademais, € preciso pensar que nao se pode atribuir aos 4tomos nenhuma das qualidades dos fend- menos, exceto forma, peso e tamanho e aquilo que de resto necessariamente é inerente a forma”). Cf. § 44. 2 Ybidem, X, 42: “Tpdg te Tottors ta terope [...] dareptanata Eore tats dtaopaic TOV oynudrew” ["Além disso, os dtomos ...] possuem um numero inabarcdvel de dife- rengas de formas") Tdem: "ruts 58 Suahopdite ob Gav. firewpor, At udvov dareoianettoW” [“mas as diferencas nao so simplesmente infinitas, apenas inabarcaveis”. % Tucrécio, Il, 513 e sega: “fateare, necesse est,! Materiem quoque finiteis differre figureis” [‘Deves concordar/ que também a matéria se diferencia em uma quantidade finita de formas”). Fusébio, Praeparatio evangelica, XLV, p. 749: ““Exleowpos [...] elvan [...] Ti opiucra cata derdpaoy aepudsgrrt, od daveypa” ["Epicuro [diz] que |...] as formas dos atomos sao abarcéveis, ¢ néo infinitas”]. Cf. (Plutarco,) De placitis philosophorum, cil. [Nessa passagem, Eusébio cita 0 escrito De placitis philosophorum, o qual contém um etro que distorce 0 sentido. Em ver. de mepikngrnt [apreensivel] lé-se deptunrrec [inapreensivel], isto é, inconcebivel. (N. E. A.)] 8 91 Karl Marx quantidade de figuras que de Atomos%, ao passo que Demacrito es- tabelece uma quantidade infinita de figuras*. Se cada atomo tivesse uma forma especifica, deveria haver atomos de tamanho infinito”, pois eles seriam infinitamente diferentes, portando a diferenca dos demais como tais, como ocorre com as ménadas leibnizianas Por conseguinte, inverte-se a afirmagao de Leibniz de que nao hé duas coisas iguais*; ¢ ha uma quantidade infinita de 4tomos com a mesma forma’, o que evidentemente leva, uma vez mais, a negacio da determinagao da forma, pois uma forma que nao se diferencia de outras nao ¢ forma. Didgenes Laéreig, cil, X, 42: “Kel mal! gxdomyy 88 orpdetony detiig Hinerpot elowy &ropor [e1”[" Ea quantidade de dtomos com a mesma forma é simplesmenle infinita"]. Luerécio, De rerum natura, cil, 525 e seg. “elerin distntia quorn sil) Formarum finite: mecesse est, quae similes sint,! Esse infiritas, aut surmmam materiel! Finitam coustare, id quod non esse probavi" [dado quea quantidade/ das formas ¢ finita, é necessario que as que sio similares/ sejam infinitas, sendo a totalidade da matéia/ seria finita, o que ja provei que nao 6"), % Aristételes, De coclo, I, 4: “GDL yriv OF, de Erepok Teves real Anpéxprtag b ABdepiTyg eWhoye Te omPalvovte [...] ke mpg TorTOLG, fei Gucwppet Ta coat oyfuaow, Zoreipa. 38 tH ocr, femerpee kal re eA oxdarett eae elvan. Tlotov 88 rxal 11 Eedorov 1 ofa. Tay oToysioy, ofdev EmBudpLad, G2 "Svoy 1 arupl THY odaipay dtédunKey, dpe d2 roi rée Gd. [...]” [”Mas nem o que alguns outros, aexemplo de Leucipo e Demécrito de Abdera, dizem torna os acontecimentos louvaveis 1, além disso, como os corpos se diferenciam pelas formas ¢ estas so infinitas, eles dizem que também a quantidade dos corpos simples ¢ infinita. Porém, de modo nenhum definiram como eles si0 ¢ qual a forma de cada um dos elementos, apenas atribuiram 20 fogo a forma de esfera, bem como ao ar ¢ as outras coisas [...}"]. Filopono, cits “ob pdvov @do ext dO gue Eovow [...1’ [’cada um deles nao 36 tem forma diferente [...]"] * Luerécio, De rerum natura, cit, 479 e seg.: “primordia rerum! Finita variare figurarum ratione.! Quod si rion ita sit, rursum jam sensina quaedamt! Esse infinite debebunt corporis ‘uctu;! Nam quod eadem wna quojusvis in brevitatel Corporis, inter se multum wariare figu- 1av/ Non posstiat [I [--] Siforte voles variare figuras,/ Addendum parteis alias erit./ Ergo formarum novitatem corporis augment Subsequitur; quare non est, ut credere possis,) Esse infiniteis distantia semina formeis" (“que as coisas primordiais/ aparecem apenas em ‘uma quantidade finita de formas,/ Se ndo fosse assim, deveria haver alguns dtomos/ de tamanho corporal infinito,/ pois, no caso de haver uma ¢ a mesma pequenez/ do corpo, nao pode haver muita variagao entre/ as formas [...J/[-.] Se por acaso quise- res variar as formas,/ teras de adicionar outras partes./ Portanto, o aumento dos corpos da novidade de formas/ advém; por isso, nao podes cter/ que as atomos ‘existem em uma quantidade ilimitada de formas”, * Gottfried Wilhelm von Leibniz, Opera omnia. Nune primum collecta... (Genebra, Lu- dovici Dutens, 1768), t.2, p. 21. (N.E. A.) * CE nota25. Adpouar, oloy Aeviatnds te 92 Diferenca entre a filosofin da natureza de Demécrito e a de Epicuro Sumamente importante é, por fim, que Epicuro tenha citado 0 peso ‘como terceira qualidade®; no centro de gravidade a matéria possui a particularidade ideal que constitui uma das determinacdes principais do atomo. Portanto, uma vez que os atomos foram transpostos para ‘9 reino da representagao, eles precisam também ter peso. No entanto, 0 peso contradiz diretamente 0 conceito do dtomo, uma vez que ele constitui a particularidade da matéria como ponto ideal que se situa fora dela mesma. O proprio atomo € essa particu laridade, como se fosse o centro de gravidade, representado como existéncia individual. Por conseguinte, 0 peso existe para Fpicuro apenas como peso diferenciado, e os proprios atomos sao centros de gravidade substanciais, como os corpos celestes. Quando aplicamos isso ao cancreto, resulta ao natural o que o velho Brucker acha tio maravilhoso®, e Lucrécio nos assegura™, a saber, que a Terra nfo “tem um centro para o qual tudo ruma e que nao ha antfpodas. Dado que, ademais, 0 peso sé compete ao dtomo diferenciado de outros e, portanto, exteriorizado e dotado de qualidades, entende-se que, quando os atomos nao so pensados como muitos, diferenciados entre si, mas apenas em relagao ao vacuo, a determinagao do peso é exclufda. Os Atomos, por mais diferenciados que sejam em termos de massa e forma, movem-se, por conseguinte, com a mesma velocidade no espaco vazio®. E por isso que Epicure emprega 0 peso somente % Didgenes Ladreio, cit,, X, 44 e 54, % [Jakob] Brucker, nstitutiones historiae philosophicne|, (Lipsiae [Leipzig], 17471, p. 224|: ““Terram medinent mundi parten esse, ct nor habere centrum, versus quod porsdera divigantur, ideoque novi dari antipodas, (A Terra seria o meio do mundo, mas ela nao teria um centro para 0 qual se dirigem os corpos pesados e, por isso, tampouco haveria antipodas]]. 1 Lueréein, De rerum natura, I, 1.051 [e seg, “Ilud in his rebus longe fuuge credere, Memmi,/ In medincm sumtmae, quod dicunt, omnia nit” “Nessa questdo, evita a todo custo, Mémio, eter que tudo rama, como se diz, para um centro do universo”}. % Didgenes Laércio, cit,,X, 43 e 61: “Kul looraydds abuts civetioan, Too KevOO THY T Suoiav napexousvou eal 1 KovootaTn Kal vf Boouréey ets tov aldva. Kal juiv kal igotayels éverycatoy This detdpous ivan, Grav dit Tod Kevod elsmépeovrar, impevis dvtucdnrovtos. Otte rip Ta Bape Hiecoy vioGrgerar rdY weepar set ovo, Stay ye di |UPeV Genaved aitoig: otite th wuepa THY LeyGhoov, néwea pov ornuietpov Eyovea,, Sxaw [nov Ide ékelvorc dovtucdarmy” [“e se movem com a mes~ ma velocidade, dado que o vacuo proporciona tanto ao leve quanto ao pesado o 93 Karl Marx na repulsao e nas composicdes que se originam da repulsao, o que deu ensejo a afirmacéio de que s6 os conglomerados de atomos, nao cles préprios, seriam dotados de peso®. Gassenili chega a elogiar Epicuro por ter antecipado, unicamente com 0 uso da razo, a experiéncia de que todos os corpos, embora possuindo peso e carga distintos, sio igualmente répidos quando caem de cima para baixo. A anélise das qualidades dos atomos nos fornece, portanto, 0 mesmo resultado que a andlise da declinagao ~a saber, que Epicuro objetiva a contradigao, presente no conceito do atomo, entre esséncia e existéncia e, assim, inaugura a ciéncia da atomistica, ao passo que em Demécrito nao acorre nenhuma realizacio do principio em si, apenas é registrado o lado material e so apresentadas hipéteses em fungao da empiria. mesmo curso para sempre. [...] Além disso, os dtomos necessariamente tém a mesma velocidade quando se movem pelo vacuo sem encontrar resisténcia. Pois hem os pesados se deslocariio mais rapido do que os pequenos leves, quando nada atraves- sa seu caminho, nem os pequenos mais ripido que os grandes, pois todos lém o mesmo caminho livre para si, quando nada Ihes oferece resisténcia"), Lucrécio, De rerum natura, U1, 235 ¢ seg: “At corti mui [...1/ [...] inane potest oacuum subsistere rei) Quin, [sua quod natura petit, concedere pergai./ Onmia] qriapropter debent per inane quietum! Aeque, ponderius nor aequeis concita ferri” “A nada [...1/[...] pode 0 vacuo inane re- sistir,/ sem que [ele, conforme pede sua natureza, continue cedendo. Tudo] deve, por isso mesmo, pelo vacuo silencioso/ mover-se com igual velocidade, nao sendo iguais 08 pesos’ CE. cap. 3. [Ludwig] Feuerbach, Geschichte der neuern Philosophie [von Bacon von Vertilan bis Be= nedlict Spinoza] (Ansbach, 1833). Gassendi, cit., XXXIU, 7: “Epicurus, tametsi forte de iaac experientia nunquam cogitarit,ratione ductus, illud censuit de atomis, quod experientin nos nuper docuit, seilicet ut corpora ontnia, tametsi sint [tam] pondere quar mole sutiine inne qualia, aequivelocia tamen sint, quum superne deorsum cadunt, sic ille censuit, alomos ommes, licet sint magnitudine gravitaieque inaequales, esse nihilominus inter se ipsas suo Motu aequiveloces” ["Mesmo que Epicuro talvez nunca tenha refletido sobre essa ex- periéncia, supés, guiado pela raz3o, aquilo que recentemente a experiéncia nos en- sinou ~a saber, que todos os corpes, a despeito de serem extremamente desiguais emtermos de peso e massa, caem de cima para baixo coma mesma velocidade; assim, ele opinou que todos os dtomos, mesmo desiguais em tamanho e peso, no obstante se movem entre si & mesma velocidade”]. 94

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