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Contemplação, liberdade e tempo

interior no ato do trabalho1


Autor: Alberto Caturelli

Tradução: Rafael de Abreu Ferreira – www.psicologiadinamica.com.br

Vou insistir em um ponto que para muitos pode parecer incomum, especialmente em
um momento dado a um tipo de ativismo desenfreado que tem todos os sintomas do que
eu chamo mais tarde, de «preguiça ativo». E esse ponto não é outro senão a inerência da
contemplação no trabalho. Já foi visto, de acordo com a opinião comum e, especialmente,
com o praticismo contemporâneo, a recorrência de se opor trabalho e contemplação,
atividade e ócio. Na medida do que foi exposto a esta reflexão, já foi percebido que tal
oposição não existe, pelo menos em um conceito reto do trabalho e do homem como seu
sujeito. Disse anteriormente que o ato de trabalho tem seu início na interioridade da
consciência; precisamente interioridade, donde se mostra o ser participado nos entes,
acontece o primeiro ato de ação humana. Por isso não «trabalham» os irracionais, porque
nenhum deles é um eu, porque eles não têm essa interioridade autoconsciente que faz o
eu «cúmplice» do ser. Embora a explicação desta natureza originária do homem é tarefa
filosófica, realmente existe e atua em todo o homem, seja ignorante ou sábio, trabalhando
ou não com as mãos; nesta interioridade autoconsciente se apresenta ao planejar de um
trabalho, ou seja, a ideia exemplar de uma obra ou uma função, seja para colocar um cano
de esgoto, montar um relógio ou arar o campo para plantar; mas nenhuma dessas ações
pode ser feito sem aquela ideia ou plano exemplar que regula a realização da obra; o
exercício da causalidade eficiente do agente não pode ser exercido sem aquele plano ou
ideia da coisa que começa depois deixar de ser «possível» para ingressar à existência.
Mas aquele momento no qual o agente vê a essencialidade do trabalho, é o momento
contemplativo; sem esta contemplação - que tenho denominado «inicial» - o processo
criativo não poderia ser cumprido. Pode haver - e isso é o principal problema de certas
formas atuais de produção - uma fragmentação do trabalho que aquele momento inicial
seja completamente obscurecido; neste caso, podemos assistir a uma mutilação grave do
agir que exigirá uma consideração especial. O Obscurecimento do momento
contemplativo trará consequências graves.
A partir da contemplação inicial (que é a contemplação originaria do ser na consciência)
se expande o ser no agir já imanente – que é por essência contemplativo já que não produz
o termino de sua atividade que é por essência contemplativo, pois não produz o fim da
sua atividade, mas descobre-o – e transeunte, que é o que me ocupa agora. Esta expansão
do ser no agir põe o agir como ato primeiro e a operação como ato segundo; porém aquele
agir primeiro consiste, também, na eleição primeira que é o ato segundo nas opções
existenciais no tempo. Portanto, trabalhar implica o ato primeiro da liberdade e todas as
operações que envolvem as sucessivas opções da liberdade. Por isso dizia anteriormente
que não é possível o trabalho transeunte sem a liberdade. Assim, uma coerção absoluta

1
Caturelli, A. «Metafisica del Trabajo». Libreria HUEMUL. Buenos Aires. 1982, p. 39.
que obrigue fisicamente a uma determinada operação, não só suprime as opções e a
liberdade, mas, por causa disso, aquela operação deixa de ser tal e não poder ser,
propriamente, trabalho. Em um caso semelhante, quem somente «trabalha» se comporta
como causa instrumental (coativamente instrumental) de quem o dirige e, por isso,
propriamente não exerce uma causalidade eficiente, consciente e livre e, em
consequência, não trabalha em sentido estrito. Mais ainda, não exerce «trabalho» senão
certa atividade emergente não de um homem, mas como uma coisa ou de um irracional.
É o caso da escravidão em todas as suas formas, desde a antiguidade até os atuais nos
campos de concentração, as fazendas e os «trabalhadores» do estado socialista, reduzidos
a funcionários do Estado que, coercivamente, devem exercer por vezes, abominável
atividade que denominam «trabalho». É claro que ponho exemplos extremos porque
mesmo sem recorrer a eles torna-se evidente que o trabalho autêntico é a ação transitória
e criadora que supõe a liberdade inicial e as opções livres durante o processo de efetuação
da obra.
Contemplação inicial e liberdade, condições prévias para que o trabalho exista como
plenamente humano. E eu digo contemplação porque o termo expressa um ato e, por
agora, não digo ócio porque a palavra expressa, em vez disso, um estado. A tensão de
causalidade eficiente se «encontra» com a apetição da causalidade final; o movimento de
uma em algum momento se encontra com o movimento da outra. Porém o ponto de
partida é um presente e, como tal, é momento do tempo interior indiscernível do operar
humano. E é assim porque, efetivamente, ser e tempo aparecem na consciência no mesmo
ato de participação do esse no ente. Isto é, o ser participado (ou “minorado”) no ente
implica, no mesmo ato de participação, o ato primeiro do tempo que é praesente pois
coincide com o mesmo actus essendi do ente, «lugar» da demonstração do ser. Por isso o
tempo é tempo do ser participado e somente não há tempo no Esse imparticipado. Logo,
o tempo é tempo de interioridade; por isso ao aparecer praesente do ser (no ente
autoconsciente) podemos denominá-lo o tempo originário ou inicial que coincide com o
ato primeiro do agir, no qual, por sua vez, coincide com o ato primeiro da liberdade.
Donde se segue que o tempo originário desencadeia o tempo interior cujos momentos,
passado-presente-futuro, se convertem ao presente onde são recuperados os momentos do
passado e antecipados os momentos do futuro. Dado o momento primeiro do tempo
originário – que não tem passado por ser somente presente e pura possibilidade de futuro
- os momentos subsequentes implicam e se implicam no presente no qual o sujeito do
agir põe o ato de sua liberdade e de seu agir. Daí que todo trabalho seja temporal como
ato do sujeito no presente do tempo interior. Quando a interioridade se esvazia pelo
esquecimento de si na exterioridade pura, os momentos morrem na dispersão do
temporalismo exterior e o ócio contemplativo do espirito é substituído pelo «tempo livre»
da vacância interior. Então, o trabalho, como processo desenvolvido no tempo interior,
adquire uma unidade conferida pelo perene presente do momento essencial e todo
trabalho se move, por isso, desde a contemplação inicial do tempo originário para
contemplação terminativa da obra. Assinalemos mais uma vez: 1) O sujeito do trabalho
(esse homem concreto) desencadeia o tempo (interior) do agir transeunte; 2) O ato do
trabalho, que é a ação mesma que considera os meios como uma serie única e através da
qual a causalidade agente se participa em: 3) A obra do trabalho cuja forma manifesta o
valor do efeito. Lá precisamente, no momento terminativo da obra acontece a participação
da espiritualidade na obra mesma e o tempo interior segue aberto para o futuro porque o
tempo não clausura seus momentos, mas que são convertidos ao presente do presente da
consciência. O mesmo processo, visto agora desde a causalidade final, põe em evidência
que o fim do trabalhador ou causa agente (finis operandis) pode incluir (e de fato inclui)
motivo ou motivos subjetivos que não coincidem necessariamente com o fim da obra que
move seu operar; por sua vez, o ato do trabalho (a ação transeunte propriamente dita)
supõe o fim do ato do trabalho (finis operationis) que deve ordenar-se a obra para que
esta tenha realidade como tal obra; finalmente, outro será o fim da obra mesma (finis
operis) já independentemente do fim pessoal do sujeito. Este triplo aspecto do processo
do trabalho, é movimento do tempo interior (ou ao menos deve sê-lo para que o sujeito
do trabalho realize seu fim próprio); mas o tempo interior não se esgota em si mesmo já
que o esse intuído no presente da consciência (tempo originário) não tem fundo, é um
abismo inesgotável; por isso, o fim absoluto do trabalho não pode ser posto na imanência
da história porque todos os bens temporais-históricos somados não podem esgotar a
apetência do sujeito do tempo interior. Daí que todo trabalho, como movimento e
dinamismo do tempo interior, não se esgota na imanência de um temporalismo exterior
(que faria do trabalho um trabalho vazio e sem sentido) mas que tende além do tempo do
ser participado donde o ato do trabalho encontre o ócio absoluto, não ligado já ao processo
temporal do agir transeunte. O dinamismo do homem e, particularmente, do agir humano,
se move, pois, do ócio inicial ou principal ao ócio relativamente final e terminativo como
abertura ao ócio absoluto além do tempo e a história.

PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:


Alberto Caturelli “Contemplação, liberdade e tempo interior no ato do trabalho”, 2017, trad. br. por Rafael
de Abreu Ferreira, Itaboraí, Rio de Janeiro, Brasil, Maio 2017.

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