Você está na página 1de 8

A TECNOLOGIA VEGETAL DA AYAHUASCA E SUA RECRIAÇÃO NOS

AMBIENTES DA ARTE INTERATIVA CONTEMPORÂNEA

Daniella Villalta
Doutoranda do PPGAV-EBA/UFRJ
Professora no curso de Comunicação Social
Faculdades Integradas Hélio Alonso – FACHA
danvita@gmail.com

RESUMO: O objetivo desse artigo é reunir dados a respeito das possíveis relações
entre a produção das experiências sensoriais da cultura da ayahuasca – recortadas
aqui nas imagens visionárias e na metamorfose do corpo – e sua recriação no
contexto da arte eletrônica. A partir de levantamento bibliográfico inicial e pesquisa
de campo preliminares, supõe-se que as experiências contemporâneas com as
novas interfaces tecnológicas rememoram regimes de percepção nos moldes do
conhecimento da cultura da ayahuasca.

PALAVRAS-CHAVE: ayahuasca, tecnologia vegetal, experiências sensoriais, arte


eletrônica.

A ayahuasca como tecnologia vegetal

A bebida ritual denominada Ayahuasca é amplamente utilizada por diversas


etnias, mas não se restringe ao universo do xamanismo indígena. Conhecida por
populações ribeirinhas, seringueiros, por mestiços e caboclos da região amazônica,
além de ser usada em diversos rituais vegetalistas, ocorre também em cultos
urbanos espalhados pelo Brasil e pelo mundo.
A ayahuasca é tomada aqui como uma tecnologia vegetal, uma potente
interface capaz de favorecer a expansão da consciência e o acesso ao
conhecimento. Existem inúmeras definições acadêmicas para o termo, podendo
significar uma bebida, uma medicina ancestral, definir uma das plantas de sua
composição (cipó ou liana) ou ainda um ritual, mais recentemente vem sendo
cogitada como uma cultura. Na definição de Labate, Goulart e Araújo (2004),

Ayahuasca é uma palavra de origem quíchua e significa liana dos espíritos


ou ainda cipó da alma, dos mortos. O termo é um dos mais utilizados para
designar uma bebida psicoativa preparada geralmente com duas plantas
(pode haver algumas variações): a liana ou cipó propriamente dito, cujo

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


nome científico é Banisteriopsis caapi, e as folhas do arbusto Psychotria
viridis (LABATE, GOULART e ARAUJO,2004. p. 21).

A bebida psicoativa permite experiências visuais e sensoriais muito


complexas e a capacidade de metamorfose do xamã em animal é um caso
privilegiado de emprego da tecnologia para que haja uma ligação eficaz entre os
diferentes níveis da realidade. A isso Pedro Peixoto Ferreira (2005) chama de “o
híbrido resultante (animal em corpo humano/humano em corpo animal), a própria
hierofania antropomórfica de que falam os estudiosos (...) axis mundi capaz de
conduzir à experiência primordial do „tempo mítico‟ (FERREIRA, 2005. p. 9)”.
No domínio da produção de imagens, chamadas também de mirações, Luis
Eduardo Luna1, antropólogo colombiano que realizou um importante estudo sobre o
xamanismo dos ayahuasqueiros mestiços da Amazônia, além de ter produzido em
coautoria com o artista peruano Pablo Amaringo uma valiosa obra sobre a
iconografia da ayahuasca2, esclarece que as plantas visionárias têm sido
fundamentais na concepção do mundo de diversas culturas há milênios. Para o
pesquisador, em muitos casos, as plantas visionárias possuem inteligência e são
consideradas fontes de beleza e inspiração, bem como de profundos e misteriosos
conhecimentos, instrumentos do divino, além de um meio (ritual e simbólico) para
manter a integridade cultural. No memorial de uma exposição de artistas
ayahuasqueiros realizada em 1999, na St. Lawrence University, Luna explica que

Muitas vezes, é por meio do uso ritual de plantas visionárias que os xamãs
se submetem a sua formação e adquirem suas habilidades. Plantas
visionárias também podem gerar mitos e canções de poder que permitem a
comunicação com o que é normalmente invisível e são instrumentos
utilizados para navegar no reino visionário. Entre algumas culturas
ameríndias, plantas visionárias são a fonte de inspiração dos ricos motivos
iconográficos encontrados em pintura corporal e na decoração de objetos
materiais. Canções e visões , assim como visões e sonhos, são reinos
intimamente ligados, sendo a manifestação de experiências sintéticas
3
simultaneamente percebidas em muitos níveis .

1
Ver: Luis Eduardo Luna. Vegetalismo: Shamanism among the Mestizo population of the
Peruvian Amazon. Acta Universitatis Stockholmiensis,1986.
2
Luis Eduardo Luna e Pablo Amaringo. Ayahuasca Visions: The Religious Iconography of a
Peruvian Shaman. North Atlantic Books, 1991.
3
Disponível em https://www.stlawu.edu/gallery/pamaringo.htm. Acessado em 31/03/2014. Tradução
da autora.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


A arte eletrônica e os vestígios das tecnologias vegetais

Outra dimensão desse tema são os domínios da arte eletrônica


contemporânea, especialmente no que carrega de vestígios ou rastros da cultura da
ayahuasca em suas criações atuais e nas experiências sensoriais que propõe.
Há 30 anos, a computadorização, o neoliberalismo e o pós-modernismo
marcaram a sociedade, dando início a uma onda de inovações relacionadas ao
desenvolvimento de vários campos da ciência e imprimindo uma nova forma à base
tecnológica dessa sociedade. A popularização do computador, o advento da internet,
os avanços em circuitos integrados, microchips e redes de telecomunicações
dinamizaram a cultura contemporânea, a economia e os processos de produção
com a integração da eletrônica com a manufatura e também o incremento das
experimentações computacionais na arte.
As interfaces criadas a partir das inovações tecnológicas, cada vez mais,
incluem o corpo nos experimentos, assim, não se trata apenas de criar possibilidades
imagéticas. Segundo Arantes (2005), os cenários da arte na era digital são múltiplos e
se compõem de
Ciberinstalações, cibercenários, ambientes imersivos, sistemas
multiusuários, telepresença, instalações e perfomances digitais, net-art,
robótica, vida artificial, arte transgênica, propostas estéticas que utilizam
comunicação sem fio, trabalhos on-line e off-line são algumas das formas
pelas quais os artistas contemporâneos vêm trabalhando com as mídias
digitais (ARANTES, 2005, p. 68).

Apesar da diversidade de modelos de experimentação, a interatividade


parece ser o ponto promissor da arte eletrônica contemporânea. As interfaces
interativas possibilitam campos de experimentação que vão além do habitual. Diana
Domingues explica que

As interfaces nos dão poder de gerar e provocar mutações em


ambientes virtuais manipulando forças do cosmos. E o caso do calor, ondas
de luz e som, entre outros sinais que entram para os computadores e se
transformam em paradigmas computacionais. Por rede, perfuramos
camadas quânticas, exercitamos o dom da ubiquidade, solicitamos a
agentes virtuais que nos representem e usem seu poder cognitivo, aumento
4
nossa capacidade de processar informações .

4
Diana Domingues. Disponível em www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/diana.htm
Acesso em 19/set/14.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


As novas interfaces exploram também as ações do corpo humano. Através
do gesto, do toque, da voz e da respiração, evidenciam novas relações do corpo
humano com a arte, explorando novas e intensas sensorialidades. O corpo é
convidado a experimentar interagindo e transformando a obra de arte destacando os
trabalhos onde a experiência com a realidade virtual acontece por meio de interfaces
imersivas em um espaço tridimensional5.
Recorrendo ao conceito de percepção digital, segundo Basbaum, é possível
reiterar a ideia de que as experiências contemporâneas ritualizam as
sensorialidades pré-modernas, pré-capitalistas, onde todo o corpo é envolvido pela
poética em questão e onde esse corpo, na sua integralidade, é investido de um
poder que o leva a transcender suas limitações físicas e interpretativas, pois aqui a
linguagem verbal e a racionalidade analítica não figuram como protagonistas no
acesso ao conhecimento. Há, assim, uma aproximação com o êxtase xamânico.

Estamos assim, associando certas propriedades à experiência sinestésica:


ela nos aparece como uma experiência direta, pre-verbal do mundo; uma
imersão na sensação, oposta àquela analítica, racional; uma experiência
específica do tempo, um tempo agórico, uma presença aqui-agora - quase
como uma dilação, um tempo deslocado do tempo linear, diacrônico, da
experiência ordinária. Assim, opondo-se a aspectos determinantes de nossa
consciência analítica, a sinestesia se oferece como um tipo consciência
particular, uma gestalt, uma estruturação do mundo que provê uma
cognição distinta - que o sinesteta experimenta, aprecia, mas não consegue
exprimir. Tais características levam Cytowic - num salto surpreendente - a
comparar a experiência sinestésica ao êxtase espiritual, tal qual descrito por
William James em Varieties of religious experience. (BASBAUN, 2011.
p.14).

O regime de percepção do xamanismo atravessa várias dimensões da


experiência subjetiva. A experiência visionária da ayahuasca não se restringe
apenas à produção de imagens altamente sonoras, luminosas e tridimensionais.
Acontece uma complexa convocação biomolecular luminosa que coloca cada célula
para experimentar e conhecer. A partir das pesquisas de Jeremi Narby é possível
pensar a ayahuasca como tecnologia vegetal, biomolecular. O pesquisador
relacionou a teoria dos biofotons ao DNA e à informação visual.
O termo biophotons foi usado ainda na década de 1970 por Fritz Popp para
indicar um fenômeno quântico de emissão de luz nos sistemas biológicos. Duas
décadas mais tarde, o pesquisador o pensou como a luz presente nas visões

5
Ver Patrícia Arantes. Arte e Mídia. Perspectivas da estética digital. São Paulo: SENAC, 2005.
p.68 e seguintes.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


xamânicas geradas pela ingestão da ayahuasca. Ele propõe pensar a emissão de
luz como sendo a grande chave para compreensão dos modos de percepção e
acesso ao conhecimento vivenciado pelos xamãs.
A informação e acessada a partir da ativação dos fótons, passam a luzir a
partir da ação da DMT - dimetiltriptamina – substância responsável pela emissão de
luz que ativa as visões xamânicas. Essa substância libera a emissão fótons e
também a captação de fótons provenientes da rede mundial formada pelo conjunto
de seres vivos a base da DNA, provendo uma comunicação biomolecular, em fluxos.
Seu estudo trata das ligações entre o DNA e a Serpente Cósmica presente na
mitologia de vários povos, especialmente nos mitos amazônicos, e vê nessa ligação
um código de correspondência que permite o acesso a conhecimentos que se
manifestam através da tecnologia vegetal (NARBY, 2004, p. 99). Para ele os xamãs
conduzem sua consciência ate o nível molecular, ganhando acesso à informação
biomolecular.

A tecnologia como ritual da cultura

Para Laymert Garcia dos Santos, as tecnologias são pensadas primeiramente


nos mitos. Para o sociólogo, é fundamental lembrar que Gilbert Simondon 6 já havia
mostrado, ao examinar as linguagens tecnológicas e ao fazer a crítica à ideia de
progresso tecnológico como uma melhora com relação a um momento anterior, que
o xamã foi o primeiro tecnólogo. Para ele, Elias Canetti também mostrou isso por
outra via. Conforme sua explicação, Canetti dizia algo assim:

Todas as realizações tecnológicas do mundo moderno foram pensadas


primeiramente nos mitos, portanto, a tecnologia moderna é a concretização
daquilo que foi pensado e imaginado através deles. O nosso problema, diz
Canetti, é que não conseguimos imaginar ou inventar mito nenhum
(SANTOS, 2005, p.10).

O sociólogo diz ainda ter superado seus preconceitos com relação ao


conhecimento tradicional justamente quando ouviu, em momentos distintos, de dois
interlocutores diferentes, um pajé Xavante e outro pajé Kaiapó, algo muito parecido:

6
Du mode d’existence dês objets techniques. Paris: Aubier-Montaigne, 1969. Tradução parcial da
obra disponível em www.cteme.sarava.org Acesso em 09/set/13.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


“nós é que inventamos toda essa tecnologia que vocês têm só que não nos
interessamos em desenvolvê-la”. Por isso ele considera o xamã uma figura-chave no
processo que chamou de atualização do virtual a partir da realidade pré-individual,
isso porque na cultura tradicional o xamã é um inventor, um criador de
possibilidades imaginadas, sonhadas ou conhecidas. Quer dizer, ele vive a
tecnologia, ela é um mito e um ritual de sua cultura. A respeito disso, Diana
Domingues afirma que

Todo ritual está relacionado ao desejo humano de aceder a um mundo


espiritual, ganhar forças e aumentar a capacidade sentir e modificar a
condição humana. Quando atuamos em um ritual ou quando interagimos com
tecnologias, sempre repetimos certos comportamentos. Ao nos dispormos a
agir conectados a tecnologias, nos entregamos a um ritual iniciático e
desencadeamos um processo que nos permite viver sensações que
estendem o mundo físico. Interagir pode ser comparado a participar de uma
cerimônia e pela performance ou desempenho do corpo atingir algum
7
conhecimento, significado ou emoção .

Parece que a arte interativa enxerga uma possibilidade de criação de mitos


contemporâneos e novas ritualizações. Na perspectiva de alguns autores, como Roy
Ascott (2004, p. 167), a passagem de um conceito de multimídia para o de mídia
úmida, confere à arte interativa um semblante mais psicoativo, onde a linguagem
deixa de ser apenas um dispositivo de expressão e comunicação do que seja o
mundo e torne-se uma ferramenta capaz de trazer o mundo à existência.
Finalmente, um objeto de estudo dinâmico e complexo como as relações
entre os regimes de percepção da experiência xamânica da ayahuasca e os da arte
eletrônica exige uma abordagem metodológica que acompanhe a abertura desse
objeto. Na visão transdisciplinar a realidade não é somente multidimensional, é
também multirreferenciada. Assim, a abordagem orientadora será a do diálogo
transcultural, já que o termo “designa a abertura de todas as culturas a tudo aquilo
que as atravessa e as ultrapassa (NICOLESCU, 1999. p.8)”.
Para tratar dos componentes múltiplos e ambivalentes que recobrem o objeto,
serão levantados, inicialmente, os dados bibliográficos acerca do xamanismo
ayahuasqueiro amazônico, o significado das imagens visionárias em sua cultura,
além de suas relações simbólicas e pragmáticas com a tecnologia vegetal. Serão
levantados outros dados bibliográficos que tratem da interação da arte e da

7
Disponível em www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/diana.htm Acesso em
19/set/14.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


tecnologia, os processos de criação artística e os resultados estéticos desenvolvidos
na perspectiva da cultura da interface e suas implicações sobre a subjetividade
contemporânea, criando-se assim, um mapa capaz de orientar essa dimensão da
pesquisa.
Com um desenho mais preciso dos percursos da pesquisa, presume-se
participar de rituais xamânicos e desenvolver uma agenda para a visitação e
interação com ambientes de arte eletrônica. Além disso, escutar os xamãs, os
artistas e outros sujeitos interagentes que participem de rituais ou experimentem as
subjetividades da arte telemática e através de seus depoimentos e dos relatos de
suas experiências, consolidar outros dados que irão subsidiar a verificação ou não
das relações possíveis entre as culturas em questão e seus regimes de percepção.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Patrícia. Arte e Mídia. Perspectivas da estética digital. São Paulo:


SENAC, 2005.

ASCOTT, Roy. A arte na vanguarda da Net. O futuro será úmido. Revista do


programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. 2004.

BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia e percepção digital. Disponível em:


www.musicossonia.com.br/aulas/sinestesia_e_percepcao_digital.pdf - Acesso em
02/set/13.

DOMINGUES, Diana. A vida com as interfaces da era pós-biológica: o animal e


o humano. Disponível em
www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/diana.htm Acesso em 16 e
19/set/14.

ELIADE Mircea & COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.

FEREIRA, Pedro Peixoto. Os xamãs e as máquinas: sobre algumas técnicas


contemporâneas do êxtase. Disponível em www.alegrar.com.br/02/02pedro.pdf
Acesso em 12/set/13.

LABATE, Beatriz C.&ARAÚJO, Wladimir S. (orgs.) O uso ritual da ayahuasca.


Campinas: Mercado de Letras/FAPESP, 2004.

LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo: Shamanism among the Mestizo population of


the Peruvian Amazon. Acta Universitatis Stockholmiensis,1986.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248


LUNA, Luis Eduardo; AMARINGO, Pablo. Ayahuasca Visions: The Religious
Iconography of a Peruvian Shaman. North Atlantic Books, 1991.
LUNA, Luis Eduardo. Memorial de Exposição. Disponível em
https://www.stlawu.edu/gallery/pamaringo.htm. Acesso em 27/mar./14.

NARBY, Jeremy. A serpente cósmica. O ADN e a origem do saber. Porto: Via


Óptima, 2004.

NICOLESC, Basarab Reforma da educação e do pensamento: Complexidade e


transdiciplinaridade. Disponível em www.mat.feis.unesp.br/.../Lupasco-
Reforma_da_educacao_e_do_pensamento.pdf - Acesso em 17/set./13.

SANTOS, Laymert Garcia dos. Entrevista concedida ao grupo de pesquisa em


Conhecimento, Tecnologia e Mercado – CTeMe em 30/03/2005. Disponível em
www.ifch.unicamp.br/cteme - Acesso em 12/set./13.

SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence dês objets techniques. Paris: Aubier-


Montaigne, 1969. Tradução parcial da obra disponível em www.cteme.sarava.org -
Acesso em 09/set./13.

Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

Você também pode gostar