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nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/9138bb1bb8699d2a80258
4fc00432ea7?OpenDocument

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra


Processo:
2037/19.7T8VIS.C1
Nº Convencional:JTRCRelator:MARIA JOÃO AREIASDescritores:EXONERAÇÃO DO
PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO MÍNIMO DISPONÍVEL
CRITÉRIOS PARA A SUA FIXAÇÃO Data do
Acordão:01/14/2020Votação:UNANIMIDADETribunal Recurso:TRIBUNAL JUDICIAL DA
COMARCA DE VISEU – JUIZO DE COMÉRCIO DE VISEUTexto Integral:S Meio
Processual:APELAÇÃODecisão:CONFIRMADALegislação Nacional:ARTºS 235º E 239º,Nº 3 DO
CIRE. Sumário:1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se
como limite mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima
nacional garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal, atentas


as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado familiar, não
são de atender as concretas despesas alegadamente suportadas pelo
insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a assegurar uma
vivência condigna.

3. Na fixação de tal valor haverá que ter em consideração a capacidade do


outro progenitor para contribuir para o sustento de cada um dos menores
que façam parte do agregado familiar.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A..., divorciada, veio apresentar-se à insolvência, formulando pedido de


exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a
concessão deste benefício e requerendo que lhe seja fixado um rendimento
disponível no valor equivalente a 1.450,00€, com base no seguinte
condicionalismo sócio-económico.
Declarada a insolvência da Requerente, o Administrador da Insolvência
pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.

Notificados os credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração


do passivo restante,

- o credor E... deduziu oposição à concessão do benefício, alegando, em


síntese, que o instituto é contrário à lei fundamental por desonerar a devedora
das obrigações que assumiu e pôr em causa o princípio da igualdade, que o
seu crédito resulta de contrato resolvido em 2012, que a insolvente absteve-se
de se apresentar à insolvência “nos seis meses seguintes à verificação da
situação de insolvência sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave,
não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica” e
que se encontra impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas desde
2012;

- o Banco ..., S.A. também deduziu oposição à admissibilidade do mesmo,


alegando, em síntese, que a admissão do pedido causa-lhe prejuízos e que o
instituto traduz-se num “benefício desmedido a devedores sobreendividados e
conscientemente colocados em tal situação”.

O Juiz a quo proferiu despacho a declarar encerrado o processo de


insolvência, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo
restante, determinando a cessão do rendimento  disponível que a insolvente
venha a auferir, com exclusão do montante mensal correspondente a 1,9 do
salário mínimo  nacional que para cada ano seja legalmente determinado.

Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpôs recurso de apelação,


concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

Termos em que deve ser julgada procedente, porque provada, a presente


alegação, alterando-se o valor do rendimento indisponível da recorrente de 1,9
salários mínimos nacionais para 2,2 salários mínimos nacionais.

Não foram apresentadas contra-alegações.


Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo
657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões
das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de
conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo
Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que excluiu do rendimento disponível o
equivalente a 1,9 do salário mínimo nacional, por se afigurar insuficiente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a
decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação:
1) A insolvente nasceu no dia 15 de janeiro de 1971, é divorciada e do
respetivo assento de nascimento não consta que já beneficiou da
exoneração do passivo restante (págs. 3 a 5 do requerimento com a
ref.ª ...).
2) M... e A..., nascidas respetivamente a 25 de julho de 2008 e 9 de julho
de 2010, estão registadas como filhas da requerente e de M...,
encontrando-se regulado o exercício das responsabilidades parentais
nos termos do qual ficaram a residir com a mãe, ficando o pai obrigado
a pagar a pensão de alimentos de duzentos euros para cada uma das
filhas (docs. 3, 6 e 7 da p.i.).
3) A requerente e filhas vivem em casa arrendada em (....) , cuja renda
mensal é de €350,00 (doc. 11 e 12 da p.i. e relatório do A.I.).
4) A insolvente é professora do ensino secundário, exerce funções no ...
e aufere o vencimento mensal líquido de cerca de €1.400 (doc. 8 da p.i.
e relatório do A.I.);
5) O incumprimento do crédito de que é titular o credor E... ocorreu
em 2012 (relatório do A.I. e falta de oposição ao alegado pelo credor).
6) O endividamento da insolvente resulta maioritariamente das
responsabilidades assumidas enquanto fiadora/avalista da sociedade
V..., Lda. e de contrato de mútuo com hipoteca, contraído juntamente
com o ex-cônjuge (relatório do A.I.).
7) O Sr. Administrador da Insolvência apresentou a lista de créditos
reconhecidos junta ao apenso A que não foi impugnada, cujo teor se dá
por reproduzido.
8) A insolvente não tem antecedentes criminais (ref.ª ...).
O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa
legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objeto
de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e
à Restschuldbefreiung da lei alemã[1], traduzindo uma ideia de “fresh start”
em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a
que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade
económica.
Os diferentes regimes de tratamento do sobre-endividamento da pessoa
singular podem agrupar-se em duas categorias: i) o modelo (puro) do fresh
start e ii) o modelo derivado do earned start ou da reabilitação.
“O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento
das dívidas devem ter lugar ter lugar no curso do processo de insolvência,
sendo que, uma vez concluído, restem ou não dívidas por pagar, o devedor
deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida.
O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um
raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em
quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir
(pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por
uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é
afetada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e
tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá
ser-lhe concedido o benefício[2]”.
Temos assim alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão
imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais
penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um
período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu
salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de
insolvência[3].
O artigo 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)
[4] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular, a possibilidade de lhe vir
a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem
integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores
ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os
créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha
conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor
pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos,
findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do
cumprimento do remanescente[5]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[6] do modelo do fresh
start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período
probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu
rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram
integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido
tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a
exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o
Código da Insolvência[7], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe,
portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça,
durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda
adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido
integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras
obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no
Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao
pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado
um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres
que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o
devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se
esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não
integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efectiva cedência do
“rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº 3 do art. 239º do
CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo
de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do
devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à
obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem
motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando
desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário,
quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” –
als. b) e c), do nº4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto,
passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante
à determinação dos rendimentos a ceder durante o período de cinco anos de
“provação”.
Alegando auferir um vencimento bruto mensal de 1.982,40 € como professora
do ensino secundário, vivendo com as suas duas filhas menores, e suportar
despesas ordinárias no valor de 499,20€, a que acresce a quantia de 10€ no seu
almoço diário, alegando, ainda, que o pai das menores não paga a pensão de
alimentos no valor de 200,00€ fixada para cada uma das filhas, concluiu
necessitar um rendimento, para si, não inferior a 750€ e de 350,00€, para cada
filha.
A decisão recorrida, considerando ser de considerar que o salário mínimo
nacional corresponde ao montante mínimo necessário a assegurar a
subsistência com um mínimo de dignidade, que há que atender ao custo
marginal de uma pessoa extra no agregado familiar, e que as despesas
reconhecias pelo administrador de Insolvência no seu relatório são
desproporcionadas, que o pai está obrigado a contribuir para o sustento das
menores, determinou que o rendimento disponível a ceder pela devedora será
integrado por todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título
(nomeadamente os subsídios de férias e de natal), com exclusão de montante
equivalente a 1,9 do salário mínimo nacional[8].
Insurge-se a Apelante contra o decidido, sustentando dever ser-lhe fixado o
correspondente a 2,2 o salário mínimo nacional, argumentando, em primeiro
lugar, que a sentença não fundamentou “devidamente” a determinação do
rendimento disponível.
Relativamente a tal fundamento nada mais haverá que acrescentar para além
de que a decisão recorrida expôs, ao longo de três páginas, os motivos pelos
quais determinou a exclusão da cessão dos rendimentos que a insolvente
aufira em montante superior a 1,9 salário mínimo nacional, e não os valores
peticionados pela requente. De qualquer modo, a Apelante também não extrai
qualquer consequência de tal alegação.
Mais alega que o tribunal ignorou o alegado na P.I. e no relatório do A.I.,
relativamente às despesas suportadas pela recorrente, o que não corresponde à
verdade. A sentença recorrida não “ignorou” o por si alegado e o referido pelo
A.I. relativamente às despesas suportadas pela Insolvente. A decisão recorrida
apreciou os montantes das despesas referidos nos autos, concluindo que o
valor de 1.900€ de despesas lhe parece “desproporcionado”, até porque “são
superiores a rendimento da insolvente”.
Segundo a apelante, não se pode considerar que a recorrente tem a faculdade
de exigir o pagamento coercivo das pensões das pensões de alimentos das
menores do pai destas, porquanto, independentemente de tal pensão, a
Requerente terá sempre de garantir a subsistência das menores.
Também nesta parte não podemos dar razão à apelante. Se o tribunal fixou (ou
o Requerido acordou) uma pensão alimentar a cargo do progenitor no
montante de 200€ para cada menor, tal significa que será o montante
adequado face ao vencimento deste, ou seja, que o progenitor terá condições
para arcar com tal despesa mensal. Como tal, a despesa a considerar pelo
tribunal como necessária para o sustento de cada um dos menores terá de ter
em consideração a capacidade do outro progenitor de contribuir para o
sustento daquelas[9].
Por fim, insurge-se a apelante contra o facto de o juiz a quo não ter excluído
dos rendimentos a ceder o montante necessário a satisfazer as despesas por si
invocadas e cuja existência terá sido reconhecida pelo A.I..
A análise de tal questão e a necessidade de assentar nalguns critérios gerais
para a determinação do montante a excluir ao abrigo da alínea levar-nos-á a
um olhar mais atento sobre o modo como a doutrina e a jurisprudência têm
vindo a tratar tal questão.
Encontrando-se em causa a decisão que defere liminarmente a cessão do
rendimento disponível que o devedor venha a auferir no prazo de cinco anos
para efeitos da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, a
única questão controvertida passa pela determinação de quais os rendimentos
a excluir da cessão, por via do ponto i), alínea b), do nº 3 do artigo 239º do
CIRE.
Segundo o nº 3 do artigo 239º do CIRE, por rendimento disponível entende-se
o conjunto de todos os rendimentos que provenham, a qualquer título, ao
devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiros, pelo período
em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e dos seu agregado familiar,
não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três
vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento
posterior, a requerimento do devedor.
A razão de ser da exclusão de certos rendimentos [como é o caso da prevista
no ponto i)] assenta na designada função interna do património (base ou
suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função
externa (garantia geral dos credores)[10].
Sendo o rendimento disponível integrado por todos os rendimentos que o
devedor aufira, a qualquer título, dele será excetuado “o que seja
razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e
do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada
do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Se o legislador estabeleceu um limite máximo para a exclusão do rendimento
disponível a ceder pelo insolvente (o equivalente a três vezes o salário
mínimo nacional, coincidente com o valor máximo de impenhorabilidade
previsto no nº 2 do artigo 824º do CPC[11]), optou por não fixar qualquer
limite mínimo, em nosso entender, pelo facto de não nos encontramos perante
uma prestação coativamente imposta por lei, assentando a cedência do
rendimento disponível num ato inicial voluntário do insolvente, como
contrapartida de um benefício a que o mesmo pretende aceder[12] – o perdão
das dívidas, com a extinção do passivo sobrante.
Não indicando o artigo 239º, nº 3, al. a), i), qualquer limite mínimo, fazendo
apenas referência ao referido conceito geral e abstrato – “o montante
razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e
do seu agregado familiar –, é deixado ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas
as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar esse
mesmo conceito[13]”.
Remetendo-nos o legislador para um conceito aberto e indeterminado – o
direito a um mínimo de sobrevivência que radica no princípio da dignidade da
pessoa humana –, haverá que proceder à sua objetivização, de modo a evitar
desigualdades no tratamento da questão.
O apelo do legislador ao conceito do rendimento necessário para o
sustento minimamente digno do devedor e dos seus membros do agregado
familiar remete-nos para o valor constitucionalmente protegido da salvaguarda
da pessoa humana e da sua dignidade pessoal (princípio com acolhimento, não
só, nos arts. 1º, 13º, 59º, nº1, e 67º, nº1 da CRP, mas ainda nos arts. 1º e 25º,
nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
A jurisprudência maioritária[14] vem assentando na ideia de que, se a lei
alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da
cessão do rendimento disponível, também se deverá atender[15] a esse salário
mínimo nacional para, no caso concreto, determinar, a partir dele, qual o
quantum que deve ser considerado compatível com o sustento minimamente
digno do devedor e do seu agregado familiar[16].
Também a doutrina[17] sustenta que não se deverá, nunca por nunca, fixar um
quantitativo inferior ao salário mínimo nacional que esteja em vigor.
No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também
tidos em consideração os interesses dos credores a verem os seus créditos
satisfeitos, buscando-se um ponto de equilíbrio entre tais interesses e o direito
do insolvente e do seu agregado a ter um sustento que lhe permita viver com
um mínimo de dignidade[18].
Um olhar pela jurisprudência permite-nos ainda assentar nas seguintes ideias
que constituirão um denominador comum na definição do concreto montante a
excluir do rendimento disponível a ceder pelo insolvente:
1. Na fixação do rendimento disponível, deve ter-se em consideração
as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de
saúde, situação profissional, rendimentos), pelo que o valor a excluir não
poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado
familiar e respetivos rendimentos, auferidos independentemente da sua
natureza. Alguma jurisprudência[19] recorre a fórmulas matemáticas,
nomeadamente a escala de Oxford, fixada pela OCEDE, para a determinação
da capitação dos rendimentos do agregado familiar – em que o índice 1 é
atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7, para os restantes
adultos, atribuindo 0,5 por cada criança. Outras decisões partem do valor
equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada
criança (atendendo-se, ainda, no caso de insolvência de só um dos
progenitores, à capacidade do outro progenitor de contribuição para o sustento
dos filhos)[20].
2. A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção
do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma
vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial
condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível
de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se
encontra[21]. Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa
humana, este encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à
subsistência e custeio das necessidades primárias e não assente em referências
grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível
de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou
atividade ou hábitos de vida pretéritos[22].
3. Não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente
alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é
razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que,
eventualmente, tenha a seu cargo[23]. Quanto a eventuais despesas
extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto
i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de “outras
despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor[24]”.
No caso em apreço, partindo destes critérios, tenderíamos a considerar
adequada a exclusão do rendimento disponível de um montante mensal
equivalente a 1,50 do salário mínimo mensal[25] – considerando-se que o
progenitor também assumiu a obrigação de concorrer para o sustento da
menor –, encontraríamos um valor mínimo de 900,00€.
Auferindo a insolvente a remuneração líquida mensal de 1.400€, e tendo a
decisão a quo determinado a exclusão da cessão do equivalente a 1,9 da
remuneração mínima garantida – o que equivale à exclusão do montante
de 1.140 € mensais face ao rendimento mínimo em vigor –, teremos de
concluir não ter ocorrido qualquer violação do disposto no artigo 239º, nº3, al.
b), do CIRE.

A apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a


apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante, sem prejuízo do disposto no artigo 248º


CIRE.           

                                                                            Coimbra, 14 de janeiro de


2020

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se como limite


mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima nacional
garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal,


atentas as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado
familiar, não são de atender as concretas despesas alegadamente
suportadas pelo insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a
assegurar uma vivência condigna.

3. Na fixação de tal valor haverá que ter em consideração a capacidade


do outro progenitor para contribuir para o sustento de cada um dos
menores que façam parte do agregado familiar.

***

[1] Tal modelo é expressamente referenciado no ponto 45 do Preâmbulo do


Dec. Lei nº 53/2004, que aprova o CIRE.
[2] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina 2019-
Reimpressão, p. 559. Em igual sentido, Catarina Serra e Maria Manuel Leitão
Marques, segundo as quais a filosofia do fresh start, encara o sobre-
endividamento como um risco natural da economia de mercado,
particularmente associada à expansão do mercado do crédito – o crédito é uma
atividade que se faz com risco e, por isso, o sobre-endividamento é um risco
antecipado e calculado pelos credores: “o consumidor que ousa recorrer ao
crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e,
sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo
– “Regular o sobreendividamento” in “Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”,
Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora,
Outubro de 2004, pp.88-91.
[3] Catarina Serra e Maria Leitão Marques, dando como ex. do primeiro o
norte-americano e, em certa medida o inglês, e integrando o segundo, a
Alemanha e a Áustria – artigo e local citado, p. 94-95, nota (5).
[4] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de
origem.
[5] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in
THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina,
pág. 167.
[6] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, estudo
citado, pág. 94.
[7] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o
Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e
Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[8] O que, face ao valor do rendimento mínimo mensal em vigor, daria um
valor de 1140,00 €.
[9] Neste sentido, foi proferido, entre outros, o Acórdão do TRC de 15 de
outubro de 2019, relatado por Maria Catarina Gonçalves e no qual a aqui
relatora foi adjunta.
[10] Cfr., neste sentido, Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do
passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares”,
2009, pág. 19, disponível in www.repositório-aberto.up.pt., e José Gonçalves
Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, pág. 91, e
quanto à distinção entre a função interna e a função externa do património,
cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na
Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de
Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295.
[11] No sentido de que se trata de um limite máximo, se pronunciam Luís A.
Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das
Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a
Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295, e Assunção Cristas, “Exoneração do
Passivo Restante”, artigo publicado na revista THEMIS, da Faculdade de
Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 174.
[12] Embora a doutrina venha entendendo que a cessão não tem fonte
negocial, mas legal, no sentido em que a cessão não depende da vontade do
devedor, logo de qualquer ato seu, salvo, naturalmente, pelo que respeita ao
facto de a exoneração ter sido por ele pedida – cfr., Luís Carvalho Fernandes,
estudo e local citados, p. 294.
[13] Acórdão do TR de Guimarães, relatado por Maria Rosa Tching,
disponível in www.dgsi.pt.
[14] Cfr., entre muitos outros, Acórdão do STJ de 02-02-2016, relatado por
Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[15] A ele se recorrendo como mero referencial, não serão, nesta sede, de
aplicar automaticamente as regras de impenhorabilidade de salários e outros
rendimentos consagradas no artigo 738º do NCPC – anterior 824º –
(impenhorabilidade de 2/3 do vencimento ou outros rendimentos periódicos,
ou de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida), juntamente
com a avaliação dos gastos necessários à subsistência e custo das necessidades
primárias do devedor e do seu agregado familiar.
[16] Como já se pronunciou inúmeras vezes o Tribunal Constitucional, “o
salário mínimo nacional, contendo em si a ideia de que é a remuneração
básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas
pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o
“mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que
seja o motivo, assim como, também uma pensão de invalidez, doença, velhice
ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não
pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao
mínimo considerado necessário para a subsistência do respetivo beneficiário –
Acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2002, de 23.04, relatado por Maria
dos Prazeres Beleza.
[17] José Gonçalves Ferreira, “A exoneração do passivo restante”, Coimbra
Editora, p.94.
[18] Cfr., Mafalda Bravo Correia, “Critérios de Fixação do rendimento
disponível no âmbito do procedimento de exoneração o passivo restante na
Jurisprudência e sua conjugação com o dever de prestar alimentos.”, in Julgar
– nº 31- 2017, p.118. No sentido da inexistência de qualquer
inconstitucionalidade material na ponderação dos interesses em jogo do
devedor insolvente e dos credores na previsão do instituto da exoneração do
passivo restante, se pronunciou Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo
restante: Fundamento e constitucionalidade”, in “III Congresso de Direito da
Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp.175-195.
[19] Cfr., entre outros, Acórdão do TRL de 11-10-2016, relatado por Carla
Câmara, Acórdão do TRG de 08-05-2015, relatado por Manuela Fialho,
disponíveis in www.dgsi.pt.
[20] Na determinação de tal montante, o Acórdão TRL de 20-09-2012, propôs
ainda como critério orientador que o rendimento per capita do agregado
familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferir a ¾ do indexante dos
apoios sociais, de acordo com o disposto no artigo 824º, nº4, do CPC, na
redação do DL nº 226/2008, de 20 de Novembro, norma esta que foi
eliminada pelo atual Código – Acórdão relatado por Tomé Ramião, disponível
in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão TRE de 04.12.2014, relatado por Cristina Cerdeira, e Acórdão
TRG de 19-03-2013, relatado por António Santos, disponível in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do TRC de 31-01-2012, relatado por Carlos Marinho, disponível
in www.dgsi.pt.
[23] Como se afirma no Acórdão do TRC de 31.01.2012, não pode existir
qualquer correspondência entre o valor a fixar e o montante global das
despesas indicadas pelo devedor, por falta de suporte legal – relatado por
Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt.
[24] Onde se inserirão despesas extraordinárias por doença aguda ou crónica,
incapacidade, etc.
[25] Fixado pelo DL nº 117/2018, de 27 de Dezembro, para o ano de 2019, no
valor de 600,00 €.

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