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O que o conceito de ritornelo pode fazer funcionar com o conceito de paisagem sonora, ao
pensar este novo agenciamento da música do século XX até os dias de hoje, criado pelos primeiros
experimentos em música eletroacústica?
Que tipo de desterritorialização, e novos planos de consistência foram traçados para a música pós-
dodecafônica?
O que isto diz sobre a música popular atual, com o uso predominante de efeitos sonoros eletrônicos,
independentemente do estilo? Uma questão ético-política, tanto quanto estética. Novas
territorialidades, novos universos de referência.
Quais os devires desencadeados por esta criação de novos espaços lisos sonoros?
Quais os poderes e perigos, diante deste lado não-humano que a nova máquina de converter o som
em sinal elétrico [na verdade, é mais uma passagem de meio, uma transcodificação, eu acho]
trazida pelos avanços tecnológicos, que se impõem ao artista sonoro?
Mais do que apenas perguntar o que pode a obra musical enquanto corpo sonoro, o que está para ser
colocado em discussão aqui são os espaços lisos e mistos que ela desencadeia, os ritornelos que
ela agencia.
GUATTARI CARIRI 2016 – PLANO DE ESCRITA
Ritornelos Cósmicos
Quando o som se desterritorializa, sem perder no entanto o seu “pedaço de terra”, que é o
seu motivo: o “tema” aqui não corresponderia a uma forma (esta sendo ainda identificável em seu
desenvolvimento), mas apenas a simples oscilação, sua variação periódica. Uma cançoneta, um
tamborilar de dedos, um canto de pássaros. A molécula sonora viva, na multiplicidade de seus
acoplamentos possíveis – em sua vizinhança com o Cosmos. Estudos recentes a respeito das ondas
gravitacionais nos reportam a um universo que não é mudo – tampouco unissonante. Infra, intra,
interagenciamentos se fazem nas infinitas, quanto mais imperceptíveis, vibrações. Das vespas às
estrelas colapsando sem luz.
Nomadologia Sonora
Precisamente, é o caráter nomádico do “phylum maquínico, que passa pelo som, e faz dele
uma ponta de desterritorialização”, na produção de arte sonora contemporânea, nas hecceidades
engendradas pelos processos de experimentação da música concreta, no minimalismo musical, na
música eletroacústica e eletrônica. Trata-se de percorrer o plano de consistência esquizofônico da
paisagem sonora dos agenciamentos coletivos nas sociedades industriais em que estamos inseridos,
buscando as linhas de fuga que os novos agenciamentos sonoros – sintetizadores, microfones,
conversores analógico-digitais – tornam possíveis. Tanto nas obras já existentes, quanto nos
processos singularizantes da criação, a linha do pensamento e da escuta criativa fazem espaços
dirigidos, lisos e mistos (e até mesmo espaços estriados não-dirigidos), que permite ao som mesmo
(e não apenas aos indivíduos) uma decolagem para além do estriamento do espaço demasiado
cartografado da música romântica (ou tonal), bem como o desvia do autocentramento da
desterritorialização em ruídos indiscerníveis.
(p.136) “Nunca, antes, o som havia desaparecido do espaço para reaparecer novamente, a distância.
A comunidade, que antes havia sido definida pelos sinos e gongos do templo, era-o agora pelo seu
transmissor local.”
(p.138) “O rádio foi a primeira parede sonora, encerrando o indivíduo com aquilo que lhe é familiar
e excluindo o inimigo. Neste sentido, ele tem semelhança com o jardim de castelo da Idade Média,
que, com seus pássaros e fontes, opunha-se ao ambiente hostil da floresta e do deserto [grifo meu).
O rádio, na verdade, tornou-se a canção dos pássaros da vida moderna: a paisagem sonora
'natural', excluindo as forças inimigas de fora” [grifo meu)
(p.141) “O rádio introduziu a paisagem sonora surrealista, mas outros recursos eletroacústicos tem
influenciado a sua aceitação.”
“Um gráfico de nível de gravação em uma estação de rádio popular mostrará como o material
programado é construído para se alcançar o máximo grau permissível, uma técnica conhecida como
compressão porque a tessitura dinâmica permitida fica comprimida em limites realmente estreitos.
Por isso a radiodifusão não mostra nunca nuanças ou fraseados. Ela não descansa. Não respira.
Tornou-se uma parede sonora.”
“O século XXI me dará razão” (Roberto Piva, hora cósmica do búfalo, século passado).
O presente escrito não é uma crítica da música erudita européia em seu processo de
fagocitar, nas escolas de música e nas escolas de críticos de música, qualquer som estranho ou ruído
inimigo (o perigo que a criação e a novidade traz). Tampouco é crônica da tão bem proclamada
dissolução do paradigma da arte romântica, no seio de suas criações mais intensas -- refiro-me aqui
a Wagner não menos que a Barnabé. Para tanto, seus melhores ouvintes, de Nietzsche a Schoenberg,
souberam brilhantemente apontar seus respecitvos fins e re-começos.
O estado atual da arte e da política nos remete a um problema antigo, do século passado, no
entanto. Um problema da técnica, que em sua retroalimentação ao infinito, criou desertos e mares,
vastos espaços lisos que atravessam os mais distintos agrupamentos populacionais, e nesta
passagem sugere (quando não é o caso que impõe), alianças novas em outros sentidos, com outros
silêncios.
Trata-se aqui, inicialmente, do conceito de ESQUIZOFONIA, assinado pelo compositor,
pesquisador e teórico da música, Murray Schafer. Diz o autor: “Empreguei esse termo pela primeira
vez em 'A Paisagem Sonora', referindo-me à separação entre o som original e sua reprodução
eletroacústica. Os sons originais são ligados aos mecanismos que os produzem. Os sons
reproduzidos por meios eletroacústicos são cópias e podem ser reapresentados em outros tempos e
lugares. Emprego esta palavra 'nervosa' para dramatizar o efeito aberrativo desse desenvolvimento
do século XX”.
Em um instante, a imagem decalcada no pensamento é evaporada, e com isso, algo que
pertencia a este é desencadeado, ocorre imediatamente em outra parte.
Por uma questão de urgência é que se evita a discussão da possibilidade do conceito de
dissonância de ser motor de uma dialética, ou se seria apenas a consonância mais distante (como a
trata Schoenberg, em seu “Tratado de Harmonia”).
A profusa variedade de reacoplamentos, a criação de novos territórios, da música concreta,
eletroacústica, nas experimentações, minimalismos, e seus entrecruzamentos com as
territorialidades pré-significantes das populações distantes dos grandes centros industriais, nos
exime do cansaço de tipo “fardo do homem branco”, a que poderíamos aprisionarmo-nos.
Está fora de jogo a representação: o problema do ritornelo está aqui para ser pensado, e
ouvido. Também para vosso deleite, quando for o caso. Não sem atentarmos para o que
Deleuze/Guattari chamam de “fascismo potencial da música”: “Os poderes, especialmente, sentem
uma forte necessidade de controlar a distribuição dos buracos negros e das linhas de
desterritorialização nesse phylum de sons, para conjurar ou apropriar-se dos efeitos do maquinismo
musical” (mil platôs IV).
A passagem de um meio a outro, que a onda sonora realiza ao tornar-se sinal elétrico,
reaparecendo em outra parte, e mudando de natureza nesse processo, abriu infinitas constelações
possíveis, a serem povoadas pelo som. Inúmeras criações, conceitos singulares emergiram desde
então, com esta variação na velocidade.
Schafer procura atentar, com o conceito de esquizofonia, dos buracos negros e das
territorializações excessivas que uma tal mudança de meios trouxe consigo. De um lado, a questão
do ruído -- e aqui trata-se de “ruído” enquanto som indesejado E de intensidade quase insuportável
ao ouvido. Em “A Afinação do Mundo”, o autor retrata, com o suporte de dados científicos, as
perturbações causadas nas populações animais que habitam as imediações das grandes cidades. De
outro, ainda o ruído, mas em sua reincidência do significante, na radiodifusão e na indústria
fonográfica; no que o autor canadense denomina como “poluição sonora”, criada pelo ruído
mecânico da industrialização.
A partir dessas observações, ele classificará uma dada paisagem sonora (paisagem sonora
seria o “ambiente acústico”, território povoado por uma multiplicidade de sons, estes sendo
“naturais” ou não, situado da perspectiva do ouvinte). A paisagem sonora teria alta ou baixa
resolução (hi-fi ou lo-fi), de acordo com uma razão matemática entre sinal e ruído. A paisagem lo-fi
seria, portanto, aquela em que a intensidade de ruídos tenderia a igualar-se ou a superar aquela do
sinal (isto sendo “som agradável”, ou informação acústica, “o que nos interessa”).
Seria vã, a discussão a respeito de um pretenso estatuto ontológico deste conceito de “sinal”,
uma vez que a subjetividade capitalística sobrescreveria qualquer noção de pureza do som, ao
recobrir o globo terrestre com as incontáveis órbitas de satélites de comunicação, ondas de rádio,
jingles comerciais a cada. esquina. A paisagem sonora lo-fi é mais que um fato científico: é o plano
de consistência atual a que estamos atados. Procurar uma “ecologia acústica”, tal como Schafer
buscou empreender, seria um rebatimento ainda mais mutilador, estratificante, que recortaria uma
espaço ainda mais estriado que o das palavras de ordem em passeios de campanha, pelas
intermináveis transmissões radiofônicas.
A diferença aqui saltou para fora do domínio propriamente mecânico -- da ciência acústica --
para o maquínico, das experimentações musicais, trazendo uma outra ordem de questionamentos,
indagações, desafios técnicos; um outro povo estava por vir, já no início do século passado.
O compositor não mais enquanto plasmador (bildner) da forma imutável, ou ainda o fundador
do tema que aglutinaria as forças da Terra onde tudo tornaria a cair -- inclusive ele mesmo, ainda
que este invente em cromatismos e modulações um breve exílio dessas forças.
Aqui, é o próprio material sonoro que adiquiriu consistência e decolou do território:
passando à velocidade da luz, procede atravessando as estruturas que asseguravam seu
pertencimento a um bloco de consonância.Isto ocorre, no entanto, sem trazê-las consigo, como
registro de uma terra arrasada (música dodecafônica). “Traz consigo um pouco de terra”, é certo.
Arrasta uma névoa cósmica em sua oscilação.
Tampouco é um porvir na iminência de ser povoado por rostos humanos. Da voz
esquizofônica à microfonia (retroalimentação do sinal); o oscilador elétrico está dado ainda que o
meio acústico não o esteja. O sintetizador é o agenciamento que “torna audível o próprio processo
sonoro, a produção desse processo, e nos coloca em relação com outros elementos ainda, que
ultrapassam a matéria sonora”.
Nenhum desses procedimentos é estranho à vida nômade: “para o nômade, ao contrário, é a
desterritorialização que constitui sua relação da terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização”. O espaço estriado da ciência, especializado ao extremo no domínio da técnica,
secreta um vasto espaço liso dos não-conhecedores.
“Pois só há imaginação na técnica. A figura moderna não é a da criança nem a do louco, e
menos ainda a do artista, mas aquela do artesão cósmico: uma bomba atômica artesanal é muito
simples na verdade, isso foi provado, isso foi feito. Ser um artesão, não mais um artista, um criador
ou um fundador, e é a ´nica maneira de devir cósmico, de sair dos meios, de sair da terra.”, é o que
Deleuze e Guattari nos propõem.
A molécula sonora viva, na multiplicidade de seus acoplamentos possíveis – em sua
vizinhança com o Cosmos. Estudos recentes a respeito das ondas gravitacionais nos reportam a um
universo que não é mudo – tampouco unissonante. Infra, intra, interagenciamentos se fazem nas
infinitas, quanto mais imperceptíveis, vibrações. Das vespas às estrelas colapsando sem luz.