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Assuntos a serem abordados no ENCONTRO CARIRI-GUATTARI 2016:

O que o conceito de ritornelo pode fazer funcionar com o conceito de paisagem sonora, ao
pensar este novo agenciamento da música do século XX até os dias de hoje, criado pelos primeiros
experimentos em música eletroacústica?

Que tipo de desterritorialização, e novos planos de consistência foram traçados para a música pós-
dodecafônica?

O que isto diz sobre a música popular atual, com o uso predominante de efeitos sonoros eletrônicos,
independentemente do estilo? Uma questão ético-política, tanto quanto estética. Novas
territorialidades, novos universos de referência.

Quais os devires desencadeados por esta criação de novos espaços lisos sonoros?

Qual é a potência, ou melhor, qual o momento positivo dessa potência de desterritorialização da


música, enquanto espaço altamente estratificado pelo mercado dos diversos estilos musicais, pelas
exigências estéticas e disciplinares das escolas de música, em suma, por um significante despótico
que ainda nos dias de hoje tem força de fazer da reiteração da consonância uma lei?

Quais os poderes e perigos, diante deste lado não-humano que a nova máquina de converter o som
em sinal elétrico [na verdade, é mais uma passagem de meio, uma transcodificação, eu acho]
trazida pelos avanços tecnológicos, que se impõem ao artista sonoro?

Quebra da representação e da identidade; desterritorializações e reterritorializações não-musicais;


obras sonoras-musicais enquanto hecceidades, não apenas meras imagens-objeto.

Demonstrar a Esquizofonia como um conceito que atravessa o campo da acústica, ou da estética


musical, em direção a questões ético-políticas e propriamente filosóficas. Positivar esse conceito,
para além de uma sobrecodificação fascista do ruído enquanto perturbação da ordem e da
organização musical. Questão atual, presente na conjuntura política de progressiva higienização
social das minorias. O ruido enquanto o som minoritário; o outro silêncio, a contribuição de
John Cage.

Mais do que apenas perguntar o que pode a obra musical enquanto corpo sonoro, o que está para ser
colocado em discussão aqui são os espaços lisos e mistos que ela desencadeia, os ritornelos que
ela agencia.
GUATTARI CARIRI 2016 – PLANO DE ESCRITA

Ritornelos Cósmicos

Quando o som se desterritorializa, sem perder no entanto o seu “pedaço de terra”, que é o
seu motivo: o “tema” aqui não corresponderia a uma forma (esta sendo ainda identificável em seu
desenvolvimento), mas apenas a simples oscilação, sua variação periódica. Uma cançoneta, um
tamborilar de dedos, um canto de pássaros. A molécula sonora viva, na multiplicidade de seus
acoplamentos possíveis – em sua vizinhança com o Cosmos. Estudos recentes a respeito das ondas
gravitacionais nos reportam a um universo que não é mudo – tampouco unissonante. Infra, intra,
interagenciamentos se fazem nas infinitas, quanto mais imperceptíveis, vibrações. Das vespas às
estrelas colapsando sem luz.

Nomadologia Sonora

Precisamente, é o caráter nomádico do “phylum maquínico, que passa pelo som, e faz dele
uma ponta de desterritorialização”, na produção de arte sonora contemporânea, nas hecceidades
engendradas pelos processos de experimentação da música concreta, no minimalismo musical, na
música eletroacústica e eletrônica. Trata-se de percorrer o plano de consistência esquizofônico da
paisagem sonora dos agenciamentos coletivos nas sociedades industriais em que estamos inseridos,
buscando as linhas de fuga que os novos agenciamentos sonoros – sintetizadores, microfones,
conversores analógico-digitais – tornam possíveis. Tanto nas obras já existentes, quanto nos
processos singularizantes da criação, a linha do pensamento e da escuta criativa fazem espaços
dirigidos, lisos e mistos (e até mesmo espaços estriados não-dirigidos), que permite ao som mesmo
(e não apenas aos indivíduos) uma decolagem para além do estriamento do espaço demasiado
cartografado da música romântica (ou tonal), bem como o desvia do autocentramento da
desterritorialização em ruídos indiscerníveis.

(p.136) “Nunca, antes, o som havia desaparecido do espaço para reaparecer novamente, a distância.
A comunidade, que antes havia sido definida pelos sinos e gongos do templo, era-o agora pelo seu
transmissor local.”

(p.138) “O rádio foi a primeira parede sonora, encerrando o indivíduo com aquilo que lhe é familiar
e excluindo o inimigo. Neste sentido, ele tem semelhança com o jardim de castelo da Idade Média,
que, com seus pássaros e fontes, opunha-se ao ambiente hostil da floresta e do deserto [grifo meu).
O rádio, na verdade, tornou-se a canção dos pássaros da vida moderna: a paisagem sonora
'natural', excluindo as forças inimigas de fora” [grifo meu)
(p.141) “O rádio introduziu a paisagem sonora surrealista, mas outros recursos eletroacústicos tem
influenciado a sua aceitação.”

“Um gráfico de nível de gravação em uma estação de rádio popular mostrará como o material
programado é construído para se alcançar o máximo grau permissível, uma técnica conhecida como
compressão porque a tessitura dinâmica permitida fica comprimida em limites realmente estreitos.
Por isso a radiodifusão não mostra nunca nuanças ou fraseados. Ela não descansa. Não respira.
Tornou-se uma parede sonora.”

Schafer procura demonstrar o “fascismo potencial da música” (Deleuze) trazido pela


“Revolução Elétrica”, em seus fenômenos de radiodifusão: há uma perda das características
expressivas do som quando as “paredes sonoras” são construídas. É certo que o desenvolvimento de
técnicas de processamento de som, na consolidação da indústria fonográfica e de radiodifusão -- a
compressão, a saturação (overdrive), os efeitos de atraso do sinal sonoro (delay), indo até a
invenção do sintetizador --, não encontrou necessariamente aí o seu uso enquanto matérias
propriamente expressivas.
No que o autor canadense insiste em dar ênfase, por um lado, é o caráter marcadamente
capitalístico da aplicação massiva dessas técnicas, no intuito de sobrepor, de sobrecodificar,
emissões sonoras concorrentes -- “imperialismo sonoro”. Por outro lado, este fenômeno de
sobrecodificação (da música popular e de concerto) realizado pela indústria fonográfica e
radiofônica gerou uma desterritorialização, nas experimentações trazidas pela música concreta, e
pela eletroacústica, quando as máquinas (os efeitos) sonoras decolaram do território estratificado da
produção musical comercial -- a programação do rádio, ou as gravações altamente especializadas
em salas de concerto.
Por atravessar este plano de consistência, na captação de forças sonoras estrangeiras ao seu
território, partindo da escolha mesma de outros materiais, que a música ocidental encontrou uma
linha de fuga: não na dissolução do sistema tonal, da forma musical estruturada em temas, mas na
criação de outro nomos, um território propriamente não-humano da sonoridade. Cumpre salientar,
no entanto, que a diferença aqui saltou para fora do domínio propriamente mecânico -- da ciência
acústica, acoplada com uma engenharia acústica das grandes empresas que aglutinaram a produção
e emissão sonora em grandes estúdios e em redes de difusão -- para o maquínico, das
experimentações musicais, trazendo uma outra ordem de questionamentos, indagações, desafios
técnicos; um outro povo estava por vir, já no início do século passado. O compositor não mais
enquanto plasmador (bildner) da forma imutável, ou ainda o fundador do tema que aglutinaria as
forças da Terra onde tudo tornaria a cair -- inclusive ele mesmo, ainda que este invente em
cromatismos e modulações um breve exílio dessas forças.
Aqui, é o próprio material sonoro que adiquiriu consistência e decolou do território:
passando à velocidade da luz, procede atravessando as estruturas que asseguravam seu
pertencimento a um bloco de consonância.Isto ocorre, no entanto, sem trazê-las consigo, como
registro de uma terra arrasada (música dodecafônica). “Traz consigo um pouco de terra”, é certo.
Arrasta uma névoa cósmica em sua oscilação.
Tampouco é um porvir na iminência de ser povoado por rostos humanos. Da voz
esquizofônica à microfonia (retroalimentação do sinal); o oscilador elétrico está dado ainda que o
meio acústico não o esteja. O sintetizador é o agenciamento que “torna audível o próprio processo
sonoro, a produção desse processo, e nos coloca em relação com outros elementos ainda, que
ultrapassam a matéria sonora”.
Nenhum desses procedimentos é estranho à vida nômade: “para o nômade, ao contrário, é a
desterritorialização que constitui sua relação da terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização”. O espaço estriado da ciência, especializado ao extremo no domínio da técnica,
secreta um vasto espaço liso dos não-conhecedores.
“Pois só há imaginação na técnica. A figura moderna não é a da criança nem a do louco, e
menos ainda a do artista, mas aquela do artesão cósmico: uma bomba atômica artesanal é muito
simples na verdade, isso foi provado, isso foi feito. Ser um artesão, não mais um artista, um criador
ou um fundador, e é a ´nica maneira de devir cósmico, de sair dos meios, de sair da terra.”, é o que
Deleuze e Guattari nos propõem.

“O século XXI me dará razão” (Roberto Piva, hora cósmica do búfalo, século passado).
O presente escrito não é uma crítica da música erudita européia em seu processo de
fagocitar, nas escolas de música e nas escolas de críticos de música, qualquer som estranho ou ruído
inimigo (o perigo que a criação e a novidade traz). Tampouco é crônica da tão bem proclamada
dissolução do paradigma da arte romântica, no seio de suas criações mais intensas -- refiro-me aqui
a Wagner não menos que a Barnabé. Para tanto, seus melhores ouvintes, de Nietzsche a Schoenberg,
souberam brilhantemente apontar seus respecitvos fins e re-começos.
O estado atual da arte e da política nos remete a um problema antigo, do século passado, no
entanto. Um problema da técnica, que em sua retroalimentação ao infinito, criou desertos e mares,
vastos espaços lisos que atravessam os mais distintos agrupamentos populacionais, e nesta
passagem sugere (quando não é o caso que impõe), alianças novas em outros sentidos, com outros
silêncios.
Trata-se aqui, inicialmente, do conceito de ESQUIZOFONIA, assinado pelo compositor,
pesquisador e teórico da música, Murray Schafer. Diz o autor: “Empreguei esse termo pela primeira
vez em 'A Paisagem Sonora', referindo-me à separação entre o som original e sua reprodução
eletroacústica. Os sons originais são ligados aos mecanismos que os produzem. Os sons
reproduzidos por meios eletroacústicos são cópias e podem ser reapresentados em outros tempos e
lugares. Emprego esta palavra 'nervosa' para dramatizar o efeito aberrativo desse desenvolvimento
do século XX”.
Em um instante, a imagem decalcada no pensamento é evaporada, e com isso, algo que
pertencia a este é desencadeado, ocorre imediatamente em outra parte.
Por uma questão de urgência é que se evita a discussão da possibilidade do conceito de
dissonância de ser motor de uma dialética, ou se seria apenas a consonância mais distante (como a
trata Schoenberg, em seu “Tratado de Harmonia”).
A profusa variedade de reacoplamentos, a criação de novos territórios, da música concreta,
eletroacústica, nas experimentações, minimalismos, e seus entrecruzamentos com as
territorialidades pré-significantes das populações distantes dos grandes centros industriais, nos
exime do cansaço de tipo “fardo do homem branco”, a que poderíamos aprisionarmo-nos.
Está fora de jogo a representação: o problema do ritornelo está aqui para ser pensado, e
ouvido. Também para vosso deleite, quando for o caso. Não sem atentarmos para o que
Deleuze/Guattari chamam de “fascismo potencial da música”: “Os poderes, especialmente, sentem
uma forte necessidade de controlar a distribuição dos buracos negros e das linhas de
desterritorialização nesse phylum de sons, para conjurar ou apropriar-se dos efeitos do maquinismo
musical” (mil platôs IV).
A passagem de um meio a outro, que a onda sonora realiza ao tornar-se sinal elétrico,
reaparecendo em outra parte, e mudando de natureza nesse processo, abriu infinitas constelações
possíveis, a serem povoadas pelo som. Inúmeras criações, conceitos singulares emergiram desde
então, com esta variação na velocidade.
Schafer procura atentar, com o conceito de esquizofonia, dos buracos negros e das
territorializações excessivas que uma tal mudança de meios trouxe consigo. De um lado, a questão
do ruído -- e aqui trata-se de “ruído” enquanto som indesejado E de intensidade quase insuportável
ao ouvido. Em “A Afinação do Mundo”, o autor retrata, com o suporte de dados científicos, as
perturbações causadas nas populações animais que habitam as imediações das grandes cidades. De
outro, ainda o ruído, mas em sua reincidência do significante, na radiodifusão e na indústria
fonográfica; no que o autor canadense denomina como “poluição sonora”, criada pelo ruído
mecânico da industrialização.
A partir dessas observações, ele classificará uma dada paisagem sonora (paisagem sonora
seria o “ambiente acústico”, território povoado por uma multiplicidade de sons, estes sendo
“naturais” ou não, situado da perspectiva do ouvinte). A paisagem sonora teria alta ou baixa
resolução (hi-fi ou lo-fi), de acordo com uma razão matemática entre sinal e ruído. A paisagem lo-fi
seria, portanto, aquela em que a intensidade de ruídos tenderia a igualar-se ou a superar aquela do
sinal (isto sendo “som agradável”, ou informação acústica, “o que nos interessa”).
Seria vã, a discussão a respeito de um pretenso estatuto ontológico deste conceito de “sinal”,
uma vez que a subjetividade capitalística sobrescreveria qualquer noção de pureza do som, ao
recobrir o globo terrestre com as incontáveis órbitas de satélites de comunicação, ondas de rádio,
jingles comerciais a cada. esquina. A paisagem sonora lo-fi é mais que um fato científico: é o plano
de consistência atual a que estamos atados. Procurar uma “ecologia acústica”, tal como Schafer
buscou empreender, seria um rebatimento ainda mais mutilador, estratificante, que recortaria uma
espaço ainda mais estriado que o das palavras de ordem em passeios de campanha, pelas
intermináveis transmissões radiofônicas.

A diferença aqui saltou para fora do domínio propriamente mecânico -- da ciência acústica --
para o maquínico, das experimentações musicais, trazendo uma outra ordem de questionamentos,
indagações, desafios técnicos; um outro povo estava por vir, já no início do século passado.
O compositor não mais enquanto plasmador (bildner) da forma imutável, ou ainda o fundador
do tema que aglutinaria as forças da Terra onde tudo tornaria a cair -- inclusive ele mesmo, ainda
que este invente em cromatismos e modulações um breve exílio dessas forças.
Aqui, é o próprio material sonoro que adiquiriu consistência e decolou do território:
passando à velocidade da luz, procede atravessando as estruturas que asseguravam seu
pertencimento a um bloco de consonância.Isto ocorre, no entanto, sem trazê-las consigo, como
registro de uma terra arrasada (música dodecafônica). “Traz consigo um pouco de terra”, é certo.
Arrasta uma névoa cósmica em sua oscilação.
Tampouco é um porvir na iminência de ser povoado por rostos humanos. Da voz
esquizofônica à microfonia (retroalimentação do sinal); o oscilador elétrico está dado ainda que o
meio acústico não o esteja. O sintetizador é o agenciamento que “torna audível o próprio processo
sonoro, a produção desse processo, e nos coloca em relação com outros elementos ainda, que
ultrapassam a matéria sonora”.
Nenhum desses procedimentos é estranho à vida nômade: “para o nômade, ao contrário, é a
desterritorialização que constitui sua relação da terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização”. O espaço estriado da ciência, especializado ao extremo no domínio da técnica,
secreta um vasto espaço liso dos não-conhecedores.
“Pois só há imaginação na técnica. A figura moderna não é a da criança nem a do louco, e
menos ainda a do artista, mas aquela do artesão cósmico: uma bomba atômica artesanal é muito
simples na verdade, isso foi provado, isso foi feito. Ser um artesão, não mais um artista, um criador
ou um fundador, e é a ´nica maneira de devir cósmico, de sair dos meios, de sair da terra.”, é o que
Deleuze e Guattari nos propõem.
A molécula sonora viva, na multiplicidade de seus acoplamentos possíveis – em sua
vizinhança com o Cosmos. Estudos recentes a respeito das ondas gravitacionais nos reportam a um
universo que não é mudo – tampouco unissonante. Infra, intra, interagenciamentos se fazem nas
infinitas, quanto mais imperceptíveis, vibrações. Das vespas às estrelas colapsando sem luz.

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