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Paul B. Preciado TRANSFEMINISH@= eee cera SES cc Parca e eevee |b) SHIRT Pera ug etl) Pets Mei tes Morne cece ey See es eure ces en ene renee a CLisie CIe MOTT USES Lee ee be Boye ATCC) oe) PAs aT ea OCU Le) LL 9) ESO el Umrey fe ieee) sys) ey arte Ber (ele NSFEMINISMO (20:5 Olivier me manda um e-mail, perguntando se eu gostaria de escrever algo sobre o feminismo. Eu acho que nao fiz outra coisa desde que aprendi a escrever. “Estou de saco cheio do feminismo”, digo. Fui feminista quando o feminismo nao era assunto da moda. Eu me tornei queer quando a crise da aids comecou a matar os melhores de nds. Mudei para o movi- mento transgénero quando os horménios se tornaram codigo politico. Nos dltimos oito anos, transicionei lentamente, usando testosterona em gel em pequenas doses para modu- lar meu g€nero transmasculino. Mas, nos tltimos seis meses, decidi me aventurar em uma velocidade diferente. Estou inje- tando testosterona em mim mesmo a cada dez dias. Também mudei meu nome para Paul. Crescem pelos nas minhas per- nas. Enquanto isso, meu rosto esta se transformando no rosto de Paul. Entre linguagem e moléculas bioquimicas, fabrica-se uma subjetividade politica. Mas apenas quando os outros comecam a me chamar de Paul que eu me torno Paul: oe a eles o meu nome. Eu devo a eles a possibilidade de tirar 0 género dos trilhos. Género 6 algo que fazemos, ndo algo que somos - algo que fazemos juntos. Uma relagao entre nés, = uma essén- cia. O género pode ser usado como uma maquina, com uma nica diferenca: em relacdo ao género, vocé (corpo e alma) é Possui. Pe! 0 contrario, € uma maquina viva que vocé incorpora e usa sem possul-la. Género ndo 6 uma questao de propriedade individual. 0 género nos é imposto em uma rede de relacdes sociais, politicas e econdmicas, e é apenas dentro dessa mesma rede que ele pode ser rene- gociado. Eu sinto essa negociagao ocorrendo na minha pele, em situagées de visibilidade e invisibilidade, entre os enun- ciados dos outros e os nomes que me dao. Estou pleno de graca politica. Uma revolugao esta acontecendo. Nao apenas dentro de mim, mas em todo o mundo, Essa revolugao nao aconteceu f nos anos 1960, glamorosos e hippies. Nao vai acontecer E dentro de mil anos. A revolugao esta acontecendo agora, Na sua frente. Vocé esta no meio dela e, consciente ou nao, vocé faz parte dela. “Transfeminismo” é 0 nome dessa revo- lugdo. Se vocé esta cheio do seu género, cansado de binarios (menino-menina, hetero-homo, branco-ndo branco, animal- -humano, norte-sul), além do modelo “casal romantico”, per- dendo as esperangas no capitalismo e vive verdadeiramente a utopia de se tornar outra pessoa, vocé é transfeminista. Transfeminismo nado é pdés-feminismo. Transfeminismo é o feminismo do século XXI reloaded. Nao que o feminismo tenha acabado ou que possamos viver sem ele; ele apenas nao é suficiente. Feminismo como _um movimento pertence a paisagem cultural e politica do é a historia. Talvez vocé nao saiba que “femi- nismo” foi 0 nome que o médico francés Faneau de la Cour deu em 1871 para uma doenga que ele acreditava afetar os homens que sofriam de tuberculose. Segundo ele, a tubercu- lose impedia os homens de desenvolverem os atributos espi- rituais e fisicos masculinos e portanto os tornava “feministas”. ue ano mais tarde, o filho de Alexandre Dumas usou 0 adje- tivo “feminista” para insultar os homens que apoiavam a luta pelo voto feminino. Alguns anos depois, mulheres eleitoras e anticolonialis- tas se apropriaram do insulto para se referirem a sua prépria luta. Elas diziam que eram feministas quando reivindicavam : igualdade legal e social nas democracias emergentes. Reivindicavam 0 direito de votar, trabalhar, ganharseu proprio dinheiro, escrever e publicar. Afirmavam que eram Capazes de cuidar de si préprias e de tomarem decisdes sobre seus pré- prios corpos e sexualidades. Mulheres reivindicando 0 direito de governar a si mesmas pareciam tao bizarras em 1848 quanto parecem hoje as transfeministas reivindicando um Parlamento mundial de que participem os simios. 0 feminismo do final do século XIX objetivava restringir 0 poder patriarcal masculino e exigia que as mulheres fossem reconhecidas como sujeitos plenamente legais na esfera democratica, Durante 0 século XX, o feminismo proliferou em um campo uly eine ‘socialista, feminismo liberal, feminismo Cristao. Mas, se juntéssemos todos na mesma sala, eles aca- bariam se matando UNS aOs outros. Eles tam um problema politico em comum: todos operam sob a l6gica de politi- Cas identitarias. Eles naturalizam a nogao de “mulheres” e, €nquanto brigam pelo sey reconhecimento na esfera publica, tendem a normatizar 0 Sujeito que querem liberar. O femi- nismo cria seus proprios excluidos: mulheres nao brancas, trabalhadoras Sexuais, lésbicas, usudrias de drogas, chicanas, mulheres transexuais e transgéneras, mulheres deficientes, imigrantes. Todos €SSes sujeitos subalternos ao feminismo 9 Produziram os seus proprios movimentos durante o século Xx, — ee 11 Mas, embora a luta pelo reconhecimento das mulheres seja ainda necessaria, ela ndo pode ser feita sob a égide da poli- tica de identidade feminista. O projeto transfeminista: resgatar o “feminismo” de suas proprias amarras para que ele deixe de ser apenas uma tarefa de mulheres brancas heterossexuais colonizadoras boazi- nhas e humanistas. Deslocar-se do feminismo como politica identitaria para uma extensiva politica de desidentificacao. Para resistir as identificagdes normativas, em vez de brigar para produzir identidades. Se o feminismo foi uma resposta as configuracdes de poder do século XIX, 0 transfeminismo busca desfazer o poder neoliberal contempordneo. Depois do movimento feminista negro, depois das lutas de 1969, depois : . Seo fem nismo. pensava que 0 poder estava nas leis e instituigdes, 0 transfeminismo sugere que o poder esta nas logisticas, infraestruturas, redes e técnicas culturais. Nosso acesso as pilulas e 0 uso que fazemos delas -Viagra, testosterona, Prozac, Truvada, Facebook, Google, represen- tagdes em video etc. - sdo mais importantes que as leis do casamento. O sujeito do transfeminismo nao sao as “mulhe- res”, Mas Os usuarios criticos das tecnologias de produgao da subjetividade. Esta 6 uma revolugdo somatopolitica: o surgi- mento de todos os corpos vulneraveis contra as tecnologias de opressao. A figura-chave do transfeminismo, inspirada pelo manifesto de Haraway, nao 6 nem um homem, nem uma orgue, empo 12 mulher, mas um hacker mutante. A questdo nado é: 0 que eu sou? Qual sexo ou qual sexualidade? Mas: como isto fun- ciona? Como podemos interferir no seu funcionamento? E, mais importante ainda: como isso pode funcionar de outro modo? Vamos entrar na caixa-preta e abrir as pilulas. Em tempos de extensdo global do biopoder e de técnicas farmacopornograficas de produgdo de subjetividades sexuais, faz-se necessaria uma nova alianga de movimentos criticos. N6s, os trabalhadores farmacopornograficos da terra, trans, migrantes, animais, indigenas, genderqueers, crips e traba- lhadores do sexo, estamos inventando novas tecnologias de producdo de vida e subjetividade. Nés recusamos a posicao sializada da onc igualdade de género, como SSE extrapolar as Palftcas ae Sener Nés somos a forca de trabalho somatica e sexualizada do pés-fordismo global. Politica-de-género é Politica-da-Terra! Contra a expansado do Estado de Guerra, nds produzimos resisténcia nas redes comuns de afeto, musica, sementes, ecstasy, agua, palavras micrébios, moléculas... O inglés, que tem palavras para o 6dio ao desconhecido e para a rejeigdo ao que é alienigena, ainda nao tem palavras para a revolugao transfeminista. Essas palavras estao por serem inventadas. Mas nao precisamos apenas de uma nova lingua, como reivindicava Virginia Woolf, e sim de uma “nova hierarquia das paixdes”: 0 amor romantico deve ser deixado a SS -”-——— ea de lado, em favor do amor terreno, mundialidade faz as vezes de nacionalidade; e sexualidade se torna heterogénese. Nés somos 0 Parlamento pds-pornd que esta por vir. Eles dizem “representar”. Nos dizemos “experimentar”. Eles dizem “identidade”. Nés dizemos “multitude”. Eles dizem “divida’. Nos dizemos “cooperagado sexual e interdependéncia soma- tica”. Eles dizem “capital humano”. Nés dizemos “alianga mul- tiespécies”. Eles dizem “crise”. Nés dizemos “revolucao”. Quando eu recebi este convite para falar da coragem de ser eu mesmo, meu ego ronronou, como se estivessem propondo aele uma pagina de publicidade da qual ele seria ao mesmo tempo objeto e consumidor. Eu jé me via condecorado, heroico... mas nao tardou para que a lembranca dos subalternos me invadisse e defizesse qualquer concessao. Hoje vocés me concedem 0 privilégio de evocar a “minha” coragem de ser eu mesmo, depois de me terem feito carregar o fardo da exclusdo e da vergonha por toda a infancia. Vocés me oferecem esse privilégio como quem da um trago a um cit-

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