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Capítulo V

A estrutura das normas de direitos fundamentais

§ 1. Sistema aberto e sistema fechado

Num Estado de Direito há que duas conceções de sistema jurídico?


• O Constitucionalismo,
• O Legalismo.

2. A primeira, o constitucionalismo, assenta numa diferente conceção de


sistema jurídico.
O sistema jurídico não compreende unicamente regras jurídicas, mas também o quê?
Princípios jurídicos.

Esta é uma distinção operada no interior do quê?


Da classe das normas jurídicas que assumem a configuração ou de regras ou de
princípios jurídicos.

3. Como se reconhecem os princípios jurídicos?


Através da interpretação. Trata-se, pois, de um problema de conhecimento da norma e da
sua aplicação.

4. Conclusão: a ordem jurídica compõe-se tanto de:


• Regras,
• Como de princípios jurídicos.

5. ≠ O legalismo: um “modelo puro de regras”.


Encontra-se vinculado e é produto de que escola?
Da escola positivista de análise e aplicação do Direito e do sistema jurídico.
Afirma um único postulado de racionalidade. Qual?
A segurança jurídica.
Mas e são consideradas a justiça e outras considerações de ordem moral e política?
Como elementos extrajurídicos, isto é, não fazem parte do sistema jurídico. E por isso estão
“fora” do sistema jurídico.
Deste modo: O legalismo apresenta-se como um sistema de que tipo?
Como um sistema fechado por contraposição aos sistemas abertos de regras e de princípios
jurídicos.

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6. Os princípios, que correspondem na terminologia de Dworkin, a “argumentos a
favor de direitos fundamentais”, são absolutamente necessários numa ordem constitucional
livre e democrática. Correspondem a uma “força categórica”, no sentido que lhe dá Kant, já
que a ordem jurídica não se justifica por si própria. Necessita do recurso aos princípios
jurídicos.

7. Este sistema aberto de regras e princípios jurídicos é visto como um modelo


“alternativo” ao método clássico de aplicação substantiva e/ou silogismo da justiça.
Este corresponde a uma jurisprudência mecanicista.
Exemplificando: RxF=D.
O que significa R/regras, F/factos, D/decisão.
Assim, temos:
(a) premissa maior (R) que corresponde à regra geral (do Código Civil, do Código
Penal, etc);
(b) a premissa menor (F) que corresponde aos factos ou situação de vida real que
deve ser subsumida à regra geral (R); e,
(c) por último, a decisão (D) de aplicação do Direito, pelo juiz ou autoridades
administrativas, que corresponde a uma aplicação acrítica e mecanicista segundo o modelo
citado — RxF=D.

8. O sistema aberto de regras e princípios jurídicos representa uma alteração ou


mudança de paradigma na aplicação do Direito.
E traduz-se, ainda, numa pretensão de equilíbrio entre o “Império do Direito” (:
Estado de Direito) e a “Democra-cia” (: auto-governo democrático) a funcionar como
contra-poderes (countervailing powers).

9. Como sabemos, segundo o modelo de Kelsen, o sistema jurídico é “piramidal”,


representado por uma pirâmide de normas jurídicas hierarquizadas: Constituição, lei,
regulamentos, etc.

10. Kelsen define uma “conceção estática” de sistema jurídico, as normas em


repouso — as normas prescritas e estatuídas, v. g., no Código Civil, Código Comercial, etc
— e uma “conceção dinâmica” de sistema jurídico, o direito como “processo”, isto é, o

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“direito em ação”, o direito criado e aplicado pelo juiz, mas também aplicado pela
administração e autoridades administrativas.

11. E define, ainda, a tese da proeminência ou primado do princípio dinâmico sobre


o princípio estático, já que este sistema piramidal hierarquizado corresponde a uma “ordem
de habilitação”: o legislador tem competência para legislar porque assim está habilitado
pela Constituição; o Governo/Administração regulamenta, porque assim se encontra
habilitado pela (Constituição) e a lei, etc.
Este sistema de habilitação é, obviamente, um sistema hierarquizado de delegação.

12. O sistema aberto de regras e princípios jurídicos implica uma diferenciação


entre os conceitos de “sistema” e “ordem” jurídica.

13. O conceito de “sistema jurídico” é mais amplo que o conceito de “ordem


jurídica”. Representa uma sucessão de ordens jurídicas.

14. Tomando como exemplo o sistema português: este comporta normas


provenientes do direito ordinário anterior à Constituição de 1976 (artigo 290º da CRP),
normas de Direito Internacional (artigos 8º e 16º da CRP), incluindo normas provenientes
da União Europeia (artigo 8º/2 e 4 da CRP).

15. O sistema é:
• um mecanismo de redução da complexidade do real, ou
• uma ordem de conhecimento segundo um ponto de vista unitário

16. Como se distingue o sistema de uma ordem jurídica? É um problema de


interpretação e de sistematização do Direito e dos seus modelos paradigmáticos de
aplicação.

17. Daí a tensão entre o “constitucionalismo” e o “legalismo” e a criação de um


“sistema de direitos” (rights theory) como critério último de validade da ordem jurídica e
que deve ser levado a sério por parte dos poderes públicos.

18. A isto denomina Dworkin a “metáfora do ordenamento escrito em cadeia”, um


romance ou narrativa escritos em cadeia.

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Exemplificando: capítulo I, as fontes clássicas de produção jurídica, capítulo II, as
decisões judiciais (: standards jurisprudenciais), capítulo III, os princípios jurídicos, e assim
sucessivamente, como “obra de um único autor”, a “comunidade jurídica personificada”,
isto é, a República (: todos nós).

19. Nisto consiste o “direito como integridade”: a busca de uma conceção coerente e
racional de Justiça, o que nos remete para um “direito em acção”, vivente, quando aplicado
aos casos práticos e reais da vida vivida. Um “case law” ou “Fallnorm”. Mais do que um
“direito da regra”, um “direito do caso”.

20. O sistema “democratiza-se”. Não lhe basta já a obediência (: autoridade). A paz


jurídica depende ainda da efetividade das suas regras e princípios ordenativos básicos. Quer
dizer, depende da “aceitação racional” dos seus destinatários.

§ 2. O modelo de regras e princípios proposto por Dworkin

Aonde foi proposto?


Por Ronald Dworkin no seu livro “Taking Rights Seriously”, publicado em 1977, em crítica
ao modelo positivista (: sistema fechado) da escola analítico-semântica de Hart.
A crítica de Dworkin, que compreende três teses, e apoia-se essencialmente no quê?
Na teoria dos princípios jurídicos.
A que diz respeito a 1ª tese?
A primeira tese diz respeito à estrutura e limites do sistema jurídico: este não
compreende apenas regras jurídicas, mas também princípios jurídicos.
A que diz respeito a 2ª tese?
A segunda tese afirma que em caso de conflito entre duas ou mais regras jurídicas a
solução não pode ser encontrada no quadro da ordem jurídica, mas sim NO
SISTEMA, isto é, nos princípios jurídicos (caso Riggs v. Palmer, 115 N.Y. 506 (1889) —
Tribunal de Nova Iorque).
A que diz respeito a 3ª tese?
A terceira tese afirma que esses “casos (constitucionais) difíceis” (hard cases) não podem
ser decididos com base única na discricionariedade ou autoridade (: competência) do juiz.

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Assim sendo, qual é para Dworkin a “melhor teoria jurídica” (the soundest theory of
law)?
Aquela que dá “directivas” ou “pontos de apoio” (guidelines) e a “resposta correcta” (right
answer) ao juiz para a resolução dos “casos difíceis” (hard cases) é a que permite passar da
ordem para o sistema jurídico, segundo um modelo composto não apenas de regras, mas
também de princípios jurídicos.
O que compreende Dworkin por “princípios jurídicos”?
Os “argumentos a favor dos Direitos Fundamentais”.

Como são estes formulados?


Com “independência” e “anterioridade” às regras que os corporizam (: concepção dos
direitos e liberdades como pré-originários e pré-estaduais; ver capítulo anterior — “direitos
enumerados” e “direitos não enumerados”).

Como é que não deve ser vista a dinâmica do modelo de regras e princípios
jurídicos?
Não deve ser vista em abstrato. Compreende-se melhor em caso de conflito ou colisão
prática.
Assim:
- Conflito de regras
as regras apelam a uma vinculação jurídica geral; correspondem a um mandato definitivo,
casos de aplicação de tudo ou nada (all or nothing fashion);
Como se resolve o conflito entre duas regras jurídicas?
Resolve-se pela declaração de validade/invalidade jurídica.
E se uma regra legal se mostrar desconforme com uma norma constitucional?
Prevalece a NORMA CONSTITUCIONAL e a regra legal é declarada inválida.
Aplicam-se aqui que critérios de resolução do conflito de regras?
Os gerais: critério hierárquico, critério da especialidade, critério temporal.
O método de aplicação geral das regras é a subsunção segundo o esquema RxF=D.

• conflito de princípios —em caso de conflito entre princípios jurídicos, que


correspondem a argumentos a favor de direitos fundamentais, não nos podemos socorrer do
critério da validade/invalidade de regras, já que o órgão chamado a decidir (: o juiz) não
pode invalidar nenhum dos direitos em conflito; os direitos vêm protegidos por normas
(constitucionais) de idêntico estalão e nenhum deles poderá ser recusado ou invalidado.

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A solução do conflito entre princípios jurídicos, que correspondem a direitos
fundamentais, implica não um “mandato definitivo”, de vinculação jurídica geral, mas um
“mandato de optimização”, isto é uma “diferente dimensão de peso” no caso prático a
decidir.
Em consequência, a solução no caso de conflito entre princípios jurídicos apela não
a um método subsuntivo, mas a uma ponderação (ou diferente dimensão de peso) entre os
princípios em conflito e que jogam em sentido contrário.
Por exemplo, entre a liberdade de imprensa e o direito geral de reserva de
privacidade. Nenhum pode ser anulado e esvaziado de conteúdo. Devem é ser
contrapesados, isto é, ponderados no caso prático a decidir de forma a obter-se uma
“optimização” de resultados.
Nenhum princípio pode ser invalidado, mas reconhece-se, em alguns casos, o
estabelecimento de sistemas de “precedência prima facie”. Por exemplo, o recurso ao
princípio “in dubio pro libertate” ou “direito preferente” (preferred freedoms approach).
Em caso de conflito prático os direitos de liberdade devem prevalecer sobre os bens
colectivos gerais.

6. A questão complica-se porque tanto podem existir direitos baseados em regras


jurídicas (rule based) como direitos baseados em princípios jurídicos (principle based).

7. E podem existir ainda princípios contidos em regras jurídicas ou com forma de


proposições normativas (por exemplo, o princípio de igualdade, reconhecido, inter alia, no
artigo 13º da CRP) e princípios sem forma de proposição jurídica, isto é, que não contêm
nenhuma regra aplicativa, mas que não deixam por isso de fazer parte do sistema jurídico. E
que resultam da interpretação constitucional. Por exemplo, o princípio da
proporcionalidade, da confiança legítima, etc.

§ 3. O modelo puro de regras, modelo regras/princípios e modelo


regras/princípios/procedimentos

1. O modelo puro de regras, que corresponde ao método positivista, imperante no


final do século XIX e princípios do século XX, identifica-se como um sistema
autossuficiente e fechado. Afirma como princípio básico de racionalidade o postulado da
segurança jurídica.

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2. Para muitos é também um modelo não democrático porque não se abre a outro
tipo de argumentos (v.g., os princípios e valores do sistema jurídico tomado como um todo),
sujeitando-se a controle da publicidade crítica.

3. O modelo alternativo é o modelo de regras e princípios jurídicos, proposto, entre


outros, por Dworkin, a que já se fez referência.
Assenta num conjunto de princípios jurídicos, corporizados ou não em regras
jurídicas, detendo ou não uma regra aplicativa, como o princípio da dignidade da pessoa
humana, da liberdade, da igualdade, do Estado de Direito, da Democracia, do Estado Social,
etc.

4. E fornece “pontos de apoio” (guidelines) ao juiz e às autoridades de aplicação do


Direito.

5. Esses “pontos de apoio” ou “guidelines” formam os chamados “conceitos-chave”


de Direito Constitucional em sede de aplicação dos direitos e liberdades fundamentais.

6. E promovem uma melhor ligação entre o micro-nível (: o nível da acção


individual) e o macro-nível (: o nível da acção do sistema).

7. O modelo de regras/princípios/procedimentos, que corresponde à integração do


chamado “status activus proces-sualis”, é destacado, entre nós, por Gomes Canotilho.

8. A razão da individualização deste modelo tem a ver com as diferenças no sistema


jurídico anglo-americano, centrado na figura do juiz (é um sistema “judiciocêntrico”),
baseado em precedentes judiciais, e os sistemas jurídicos continentais de Direito codificado,
centrados no legislador e nos códigos, sendo por isso sistemas “legicêntricos”.

9. O modelo pretende chamar a atenção para a circunstância de que a todo o direito,


sejam os direitos, liberdades e garantias ou os direitos económicos, sociais e culturais, deve
corresponder uma dimensão processual/ procedimental.

10. Afirma, ainda, a subjectividade de todos os direitos, sejam estes direitos,


liberdades e garantias ou direitos económicos e sociais, no sentido de predizer a sua própria

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justiciabilidade, isto é, a sua capacidade de ser feitos valer em Justiça mediante reclamação
ou queixa junto dos tribunais,

11. E não apenas a necessidade de compreender nesse “status activus processualis”


os procedimentos judiciais, mas também os procedimentos administrativos e fácticos (v.g.,
em matéria de defesa do ambiente e qualidade de vida, de acesso e defesa da saúde, etc.) e
exigir do Estado e das autoridades públicas a criação e manutenção das instituições e
organizações através das quais esses direitos possam ser concretizados e realizados.

12. Como escreveu RAWLS, à “justiça procedimental” deve também corresponder


uma “justiça substantiva”. Não interessa unicamente o “procedimento”, mas também o
“resultado” desses procedimentos.

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