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ARTIGO
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir o familismo no acesso aos serviços públicos de saúde no
Brasil. Baseia-se na revisão de literatura acerca do familismo na política social e em sua expressão nas traje-
tórias assistenciais de usuários de serviço de saúde. Estas são tomadas como processos e identificadas como
preconizadas, por combinação simples e combinação múltipla. Nessas trajetórias, através de suas diversas
configurações, as famílias articulam diferentes práticas e recursos para garantir o acesso a serviços de saúde
ou para suprir as próprias deficiências dos serviços. A lógica familista manifesta um nó crítico dos sistemas
de proteção social e demonstra que a efetivação da atenção às necessidades ocorre somente com a disponibi-
lidade de distintas redes.
Palavras-chave: Familismo. Política Social. Trajetórias Assistenciais. Saúde.
Abstract: The article aims to discuss the participation of the family and its decisive role in access to brazilian
public health services. It is based on familism literature review on social protection and its expression in the
assistential paths of health service users. These are taken as processes and identified as recommended by
simple and multiple combination. There, through its various settings, families articulate different practices
and resources to assure access to health services or supplement its deficiencies. The familist logic expresses a
critical node of social protection systems and demonstrates that the effectiveness of attention to the needs
occurs only with the availability of distinct networks.
Keywords: Familism. Social Policy. Assistential paths. Health.
1 Assistente Social. Mestre em Serviço Social e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil). Assistente Social do Hospital Universitário da
Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: <francialves@hotmail.com>.
2 Assistente Social. Doutora em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil).
O
presente artigo tem como objeti- inicialmente, introduz o debate sobre o
vo discutir o familismo no acesso familismo no campo da política social e,
aos serviços públicos de saúde no em seguida, traz evidências sobre a parti-
Brasil. Parte do levantamento de trajetó- cipação decisiva da família nas trajetórias
rias assistenciais de usuários de um servi- de acesso aos serviços de saúde e sobre as
ço eletivo de alta complexidade do Siste- formas como se configura tal participação.
ma Único de Saúde (SUS) e apreende o Finalmente, delineiam-se algumas consi-
acesso nos termos de Cohn et al (1991), ou derações em torno da questão levantada.
seja, na sua formulação pelos usuários no
cotidiano e na vinculação com as condi- Família, proteção social: a tônica do fami-
ções mais imediatas de disponibilidades lismo
nos serviços. Para os autores, a população
monta uma “cesta básica” de serviços a O familismo é uma expressão que vem
partir dos conhecimentos e da percepção ganhando força no contexto do debate da
que possui, e dela tentará usufruir. Sob a política social, particularmente, a partir
ótica da expressão concreta do direito à dos anos de 1990, e caracteriza-se pela
saúde na vida dos usuários, a participação máxima designação de obrigações à uni-
da família nas estratégias desenvolvidas e dade familiar. A constituição e a oferta de
nos recursos utilizados para o acesso tor- recursos e serviços pressupõem a respon-
nam-se objetos dessa discussão. sabilidade primeira e máxima às famílias
na organização do bem-estar de seus
Assim, este trabalho problematiza um dos membros em correlação com a falta de
aspectos estruturantes das políticas sociais provisão de bem-estar estatal (ESPING-
do Estado capitalista, que, como aponta ANDERSEN, 2000). Cabe refletir o fami-
Souza (2000), assume a incapacidade de lismo como elemento organizativo da po-
resposta da satisfação das necessidades lítica social, que admite a gestão pública
pela compra e venda de bens e serviços no de riscos atrelada ao desempenho domés-
mercado e confirma a dependência da so- tico/familiar (FRANZONI, 2008), e pelo
ciedade sob sua égide de distribuição de estabelecimento de diferentes possibilida-
trabalho e de recursos entre seus membros des – ou impossibilidade – de correspon-
a partir de normas de solidariedade. Nes- dência entre as necessidades a serem
se contexto, Estado e família “[...] possuem atendidas pelas famílias e as condições
um papel extremamente relevante no sis- efetivas para atendê-las quando inseridas
tema, pois normatizam a vida dos indiví- em diferentes contextos sociais, econômi-
duos, definindo e impondo direitos de cos, culturais e de classe. Assim, a família
propriedade, poder e deveres de proteção é componente fundamental das políticas
e assistência.” (SOUZA, 2000, p. 2). O sociais, na produção e no usufruto de bens
mesmo autor, parafraseando Offe (1990), e serviços.
aponta que família e o Estado são organi-
zações sem as quais o sistema capitalista
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Tal como expõe Campos (2012), o “casa- plano político e institucional; o segundo,
mento” entre política social e família não é alimentado pela tese neoliberal, reduz a
novo e foi institucionalizado em âmbito política social à questão do combate à po-
estatal na criação das primeiras formas de breza. Apresenta-se como argumento cen-
seguro social no século XIX. O familismo, tral a promoção do crescimento econômi-
como produto dessa combinação, tem in- co com base em mercados competitivos
fluências da doutrina social católica e do como única forma de melhorar o padrão
princípio de subsidiariedade, de forma a de vida dos mais pobres (MIOTO, 2008;
“[...] limitar la interferência pública a GOLDANI, 2004). Dessa forma, continua-
aquellas situaciones en las que fracasen las se insistindo na família como principal
redes sociales primarias – léase família.” responsável pela provisão de bem-estar.
(ESPING-ANDERSEN, 2000, p. 74), com Expressões dele podem ser buscadas, por
base em protótipos de arranjos familiares exemplo, no conteúdo de algumas legisla-
e de trajetória vital, os quais, cabe ressal- ções ou programas que compõem as polí-
tar, não garantem autossuficiência em re- ticas de seguridade social brasileira. Na
lação à produção de serviços pessoais e Política Nacional de Assistência Social
sociais necessários ao bem-estar. Como (2004), é evidente o lócus privilegiado que
expõe Souza (2000, p. 1), “[...] antes de ganha a família. Segundo Rodrigues
alcançar os indivíduos, os benefícios con- (2011), ela é tomada nas suas possibilida-
cedidos pelo Estado passam por um “filtro des de proteção e também da opressão.
redistributivo” do bem-estar, que é a famí- “Mais que alvo da proteção, a família é
lia – regras familiares realocam recursos e demandada e considerada como sujeito
responsabilidades à medida que o bem- ativo e imprescindível para a proteção.”
estar de seus membros é alterado.” (RODRIGUES, 2011, p. 120-121). Desafios
estão na ordem de romper a prevalência
No Brasil, o caráter familista da política do entendimento da família como a prin-
social pouco se abalou ao longo de sua cipal responsável pela proteção, que con-
história, embora se reconheça a existência diciona a intervenção pública à situação
de disputa entre projetos que firmam a de falência na provisão do bem-estar para
família como parceira na condução das os seus membros (MIOTO, 2011).
políticas sociais, marcados ora pela “des-
familiarização”3, ora pela “familiarização”. No que tange à política de saúde, Mioto e
O primeiro movimento, sinalizado pelas Dal Prá (2012) discutem a relação entre
perspectivas da Constituição Federal de família e serviços sociais com foco em
1988, mostra-se com “fôlego” limitado no programas nacionais recentemente im-
plantados (Brasil Carinhoso e Melhor em
Casa), avaliando sua tendência familista a
3
A desfamiliarização é lógica de orientação das
partir de três aspectos: a) o objeto dos
políticas públicas para redução da dependência
individual da família, “[...] que maximizan la
programas, baseados em serviços, que,
disponibilidade de los recursos económicos por respectivamente, se voltam às famílias
parte del individuo independientemente de las com crianças e em condição de miséria e à
reciprocidades familiares o conyugales.” (ESPING- normatização da participação das famílias
ANDERSEN, 2000, p. 66).
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[...] que não compreende apenas a com- Para Sposati (2011), as condições de acesso
pra e eventual transformação de bens, estão entre os desafios à universalização
mas também o trabalho necessário para
de políticas sociais tradicionais em contex-
utilizar adequadamente os serviços pú-
tos de desigualdades sociais. No âmbito
blicos e privados que hoje constituem
uma parte importante dos recursos fa-
da operação da política, a autora afirma a
miliares. (SARACENO; NALDINI, 2003, necessidade de se atentar para
p. 277).
[...] as condições objetivas de vida dos
O trabalho da família no acesso e no uso usuários dos serviços para que possam,
de fato, contar com os procedimentos
dos serviços ganha outra conotação quan-
desses serviços. Não existem condições
do se avaliam as diferenças nas suas con-
para que indivíduos ou famílias sejam
dições materiais e culturais, ou seja, quan- provedores de pré-condições de políti-
do se avalia a desigualdade social. Essas cas sociais. (SPOSATI, 2011, p. 109).
diferenças fazem com que as possibilida-
des de usufruírem dos serviços também Essas pré-condições para o acesso e o uso
sejam desiguais. Ainda assim, quem esti- de um serviço (como, por exemplo, trans-
ver desprovido dessa rede, ou a tiver de porte escolar, alimentação, uniforme para
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