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Morfema Zero

Muitas vezes um morfema zero deixa de estar presente na palavra. Isso não quer
dizer que ele inexista, mas sim que está ausente. Esta ausência tem uma função ou
significação e, por isso, é chamada de ausência significativa.

Vejamos:

a) O plural em português é marcado pelo morfema /-s/: casas, males, jardins,


filtros... Nas formar ourives, lápis, simples, pires etc. não é possível considerar
o /-s/ como índice de plural, uma vez que já existe no singular. Dizemos então
que o plural destas palavras é sinalizado pelo morfema zero, convencionalmente
simbolizado por Ø.
b) Se o nome apresenta uma correspondência de formas (uma para o masculino,
outra para o feminino), é evidente que ambas devem ser marcadas por morfemas
distintos. Como o feminino é formado com o acréscimo do /-a/, este morfema é
seu traço distintivo básico. Já o que caracteriza o masculino é ausência de
morfema, ou seja, o Ø. Assim:

autor + Ø nu+Ø
autor + a nu+a

peru + Ø guri + Ø
peru + a guri + a

freguês + Ø André + Ø
fregues + a Andréi + a

c) Os chamados substantivos comuns de dois gêneros têm o zero como traço do


feminino1:

o estudante ≠ a estudante
o artista ≠ o artista
o doente ≠ a doente
o dentista ≠ a dentista

d) O plural é marcado pelo /-s/. O singular, pela ausência e conseqüente uso do Ø:

tigre + Ø belo + Ø ele + Ø lhe + Ø o+Ø


tigre + s belo + s ele + s lhe + s o+s

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Veremos adiante que, embora o masculino e o feminino dessas palavras, sob o aspecto puramente
mórfico, sejam iguais, o zero do feminino difere do morfema zero caracterizador do masculino. Idêntico
raciocínio será aplicado para a marca zero do plural dos nomes anoxítonos terminados concretamente em
–s no singular. É viável também interpretar ambos esses casos por critérios exclusivamente sintáticos.
Assim, tanto o gênero quanto o número de certas palavras deixam de ser marcados por qualquer oposição
morfológica, mas são identificados pelos morfemas categóricos dos termos que a eles se referem. Esses
termos podem ser artigos (o colegial / a colegial), pronomes ou nomes que funcionem como adjetivos
(minha caneta / lápis pretos).
e) Em muitas formas verbais encontramos o morfema zero em oposição a outros
morfemas:

(tu) estud + a + va + s
(ele) estud + a + va + Ø
(ele) estud + a + Ø + Ø

f) Até mesmo a raiz de um vocábulo pode ser formalmente vazia. É o caso dos
artigos definidos em português:

√¯Ø + o = o

√¯Ø + o + s = os

g) Semelhantemente, não raras vezes, um morfema derivacional deve ser


interpretado como zero. Se quisermos, por exemplo, produzir derivados da forma
primitiva flor, utilizaremos morfemas como.

/-ej/ - √flor + /ej/ + ar


/-esc/ - √flor + /esc/ + er
/-e/ - √flor + /e/ + ar

Mas em florear ou florir, a derivação se processa com o recurso de um zero lexical:

√flor + Ø + ar
√flor + Ø + ir
Outros exemplos:
fim - √fin + Ø + ar
longo - a + √long + Ø + ar
braço - a + √braç + Ø + ar
largo - a + √larg + Ø + ar
capim - √capin + Ø + ar

A terminação verbal nesses casos é constituída de vogal temática e desinência.


Entre a raiz e essa terminação não ocorre nenhum morfema, porém todos os exemplos
apresentados são de formas derivadas. Uma solução será, pois, admitir a existência do
morfema zero no mecanismo da derivação portuguesa (Monteiro, 1978b)

Resta um esclarecimento. O morfema zero é, na realidade, um artifício para dar


mais coerência à descrição de estrutura morfológica. Em inúmeras situações é
demonstrada sua utilidade. Entretanto, é possível desprezá-lo2, desde que se apliquem
procedimentos ou técnicas descritivas também coerentes. Às vezes, sobretudo na flexão
verbal, existe uma superabundância de morfemas zeros, o que parece dispensável.
Todavia, eliminando-os, cria-se um acúmulo de exceções, o que contradiz a própria
feição estrutural da língua.

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Essa a atitude quase geral das gramáticas publicadas no Brasil, contra as quais se denuncia o pouco
aproveitamento das pesquisas e estudos lingüísticos. O morfema zero foi empregado desde Pânini e só
recentemente se tornou conhecido entre nós.
O recurso deve, pois, ser entendido dentro do princípio da coerência descritiva.
Sabemos com Matthews (1976:96) que alguns lingüistas consideram inadequada a
utilização da noção de zero. Mas ainda cremos que, para a morfologia portuguesa, a
técnica traz inúmeras vantagens metodológicas.

MONTEIRO, José Lemos de. Morfologia Portuguesa. 3.ed. Campinas, SP: Pontes,
1991, pp. 17-19.

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