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O PASSEIO NO DOMINGO Quando naquela manha de abril a primavera chegou, ligeira- mente atrasada mas em toda a sua pujanga, havia j4 muitos meses que Marcelino Ramos, um dos dois empregados da firma H. Silva & C.*, nao tinha um dia de descanso, A semana, levava-a ele na pequena sala mal iluminada e sem ar, onde os Silvas, primeiro 0 pai, depois 0 filho, agora o neto, tinham, havia mais de cem anos, 0 seu modesto escritorio de revenda, sob o olhar vigilante, suspeitoso, sempre obliquo, do patréo, que parecia eternamente desconfiado de que os empregados Ihe estavam a roubar o quer que fosse de muito pre- cioso ¢ muito seu: chamadas telefénicas, papel de cépia ou aquele tempo que lhe pertencia a ele, Silva, porque o comprava ao més. Os domingos passava-os Marcelino em casa, as voltas com uma escrita que conseguira arranjar «para tapar um buraco», como ele dizia, enquanto a mulher passajava a roupa ou transformava algum vestido tao fora de moda que ja era uma vergonha leva-lo pela manha as compras ~ sua unica diversdo. E 0 olhar dela sobre o trabalho, ou, quando nao podia deixar de ser, nos olhos dele, era sempre triste e a sua Voz seca e extremamente amarga. Nunca lho dissera, talvez mesmo julgasse que ele o ignorava — nao o considerava muito esperto — mas atribuia-lhe todos os seus males e a faléncia total das esperangas que tivera. Levara anos a amaldigoar o dia em que tinha posto a sua vida inteira nas maos MW TANTA GENTE, MARIANA daquele homem quieto e trabalhador, mas tao inutil para a vida como a mais passiva das suas reses. Devorava-o o patrao, havia vinte anos, no escritério onde continuava a pagar-lhe o mesmo ordenado do dia em que 14 entrara, devorava-o ela com os seus olhares tristes e acusa- dores que o faziam baixar os olhos. Devoravam-no todos um pouco, os que riam, os que sofriam, os que lutavam por um sonho impossi- vel. E isso parecia-lhe intoleravel. Sentia-se ferida nado por ele mas através dele. O marido era a vidraga que deixava passar os raios de sol que a queimavam. Por isso estava velha aos quarenta e cinco anos ¢ havia muitos — perdera-lhes 0 conto — que nao cantava e que nao ria. Sorria s6, as vezes, a uma ou a outra pessoa que encontrava, mas isso nao passava de um gesto de delicadeza. Como estender a mao ou baixar a cabega a alguém. Embora nela nada recordasse tal coisa, também fora uma rapa- riga fresca e desejavel, com muitas esperancas no futuro e 0 coracdo grande de sonhos, que julgava realizdveis porque, pensava cla, nao eram ambiciosos. Entre eles figuravam o de uma casa bonita, de um amor eterno e de um ou dois filhos, dois seria o ideal. Nao os tivera, porém, a esses filhos que sonhara, o amor foram-no corroendo o tempo e¢ os desejos nado conseguidos, e a casa, onde moravam por ser de renda antiga, era velha, himida, desconfortavel, ¢ chovia 14 den- tro no inverno. Era uma pobre mulher atraigoada por um marido fiel e que um dia — uma noite —, em frente dele a trabalhar na sua escrita, dera consigo sé no mundo incapaz de lhe dizer uma frase qualquer, dessas que se dizem para encher o siléncio. Nao, os ressentimentos acumulados haviam-lhe secado a voz, ¢ as frases que tinha para Ihe dar eram todas elas curtas e estritamente necessarias. Ele sabia isso tudo, embora nunca tivesse descido a profundi- dade da sua dor. Era um homem simples, suficientemente otimista para pensar que os grandes softimentos exigiam sempre gran- des desgostos. Sabia-a infeliz, mas nunca pensara que ela o fosse tanto. Atribuia-lhe em siléncio mau feitio e inadaptabilidade as 2 © PASSEIO NO DOMINGO circunstancias. Que ela o considerava o grande culpado da sua frus- tragao, nado era mistério para ele. Sabia, naturalmente, que era de certa maneira assim, e que ela tinha razao — a seu modo —, embora, por outro lado, estivesse certo de que ndo poderia jamais ter feito outra coisa, A primavera tinha sido pois quase pontual e chegara naqueia quinta-feira de abril pelas onze horas da manha. Um sol agradavel, moro ¢ reconfortante, cobria as ruas com o seu manto ligeiro. Mas a atmosfera do escritorio era desagradavel, e 0 sol que atravessava as janelas mal lavadas parecia sujo e poeirento, um sol velho como 0 proprio escritério, tao deteriorado como a atmosfera que ali se respi- rava € onde havia um misto de po, papéis velhos e brilhantina barata, essa brilhantina que o Alberto usava com exagero. Hermes Silva, talvez solicitado pelo sol (tudo era possivel), tinha ido ao bengaleiro buscar o chapéu, olhara para os empregados com um olhar penetrante ¢ diss tenho de ir ali adiante falar com o Alves & Alves», com a intonacdo com que teria dito: Meus senhores, nao fagam cera enquanto eu aqui nao estou. E bateu a porta com forga. O Alberto largou automaticamente a maquina e passou a mao gorda de dedos curtos pelos cabelos lustrosos. Depois disse com convicgao: — Parece que sempre chegou! Ja nao foi sem tempo!... —O qué? Quem é que chegou? Marcelino estava enfronhado numa complicada historia de dever e haver e nem tinha ouvido sair 0 patrao. Ficou por isso sur- us dois ‘a: «Meus senhores, preendido quando o nao viu na secretaria em frente. A primavera, homem! —Ah! Era uma exclamagao desinteressada. Que era para el a primavera? Ou 0 verao? Ou mesmo o inverno? Horas iguais, dias monétonos ¢ longos, que se seguiam uns aos outros como contas de TANTA GENTE, MARIANA um rosario. De verao havia calor e ele tirava 0 sobretudo; de inverno havia fiio e ele vestia-o. Que podia significar para ele aquela prima- vera recém-nascida? Era o escritério de semana, a escrita ao domingo, os olhares da mulher, a grande solid&o da sua existéncia. Encolheu os ombros. O outro, porém, olhava-o e sorria a um pensamento que lhe viera de stibito. — Ouve ca, pa. Marcelino olhou-o e 0 Alberto voltou-se, preocupado, para a porta por onde o patrao tinha saido havia pouco. Baixou a voz: ~No domingo tenho combinada uma pandega. Queres vir? — Eu nao, homem, tenho a escrita. — Um dia nao s&o dias, pa. Uma pessoa precisa de vez em quando de variar, pa. —A minha mulher nao ha de querer — disse Marcelino. O outro riu-se. — Nao compreendeste. Nao se trata de levar mulheres, as nos- sas, em todo o caso. Olha, a minha, por exemplo, vai passar um dia com a irma, porque eu disse-lhe que ia fazer companhia a um amigo doente. —Aum amigo doente? —Nem mais. Tu. Ria, contente do seu achado. — Sabes la as vezes que tens estado doente, pa. Sempre ao domingo, estas a ver! E como nao tens quem te trate... ~ Ah, eu nao tenho... —Pois nao, pa. Es solteiro. Chegou-se mais para ele, falou ainda mais baixo: — Podes fazer 0 mesmo. No sdbado dizes 4 tua mulher que tens de ir acompanhar o teu pobre colega Alberto que nao tem ninguém em Lisboa, ¢ pronto! Costumo ir aos arredores com a minha rapa- riga, a Arlete, e com uma amiga dela, a Lurdes, que é uma mulher 114 © PASSEIO NO DOMINGO. de estalo. O meu primo também vai, mas desta vez nao pode, tem de ir ao Porto por causa dumas partilhas, enfim, aborrecimentos, uma macada... Vamos sempre comer sardinhas a uma tasca onde ia apos- tar que se come melhor do que no Avis e depois damos uma volta pela fresca, Vais gostar, pa. Anda, resolve-te, que o Silva esta a che- gar... A Lurdes é uma mulher e tanto! Marcelino sentia-se tentado. Perturbadoramente tentado. Aquele simples passeio ao campo, cuja possibilidade o colega the fizera entrever, aparecia-lhe de stibito como um regresso 4 sua mocidade. Havia qualquer coisa que ele ja ndo conseguia distinguir, 14 longe, perdida na bruma do tempo passado, que aquele esbogo da parddia dominical viera acordar. E a pouco ¢ pouco a névoa foi-se esvaindo, a imagem tornou-se mais nitida e ele viu um rapaz de vinte e poucos anos, que se chamava Marcelino, mas que uo estava bem certo de raparigas profissionalmente alegres, ¢ todos eles tinham ido passear ao campo. Levavam uma merenda, ser ele, com um amigo e dua um garrafao de vinho, e haviam comido 4 sombra amavel de uma oliveira. Era também primavera e uma das mulheres pusera-se a cantar um fado. Tinha uma voz fininha, de cristal partido, mas gue ali, ao ar livre e depois de uns copos de vinho verde, Ihe pare- cera a ele maravilhosa. Ainda se lembrava dela. Era magra, tinha uma cara branca, lunar, dois olhos escuros ligeiramente enviesa- dos ¢ uma boca pequena e carnuda, muito pintada. Chamava-se ou chamavam-lhe Ilda, pelo menos era esse 0 nome por que era conhe- cida, e o amor de ambos durara alguns meses. Depois, deixara-a, no dia em que tinha encontrado no seu caminho uma rapariguinha pura por quem se apaixonara ¢ com quem acabara por casar. Como tudo ia longe! — Vé se te resolv que 0 gajo esta a chegar! O Alberto arrancou-o ao seu sonho e Marcelino encontrou-se outra vez velho, cansado e triste, no escritorio de H. Silva & C2 — Pois esta dito. Vou. TANTA GENTE, MARIANA A sua frase coincidiu com o ruido da porta a abrir-se e 0 patrao olhou, perquiridor, para os dois empregados. Mas o Alberto jé estava a escrever a maquina e o Marcelino parecia que nem mesmo levan- tara os olhos do livro da contabilidade. Nao via, porém, os numeros, que pareciam dangar-lhe diante dos olhos. Sentia-se assustado com as préprias palavras que dissera quase sem ter consciéncia de dizé-las. Comegava a compreender vagamente que se deixara arrastar pelas imagens antigas, afunda- das em si mesmo, mas que 0 convite insdlito do Alberto fizera vir a tona. Aceitara sem pensar na mulher, no seu trabalho, no dinheiro que iria gastar, na sua existéncia de homem sério incompativel com passeatas na companhia de raparigas da vida. E agora era dificil vol- tar atras. Mas desejaria cle voltar atras? Desejaria dizer que nao ao Alberto? Nao, na verdade nao o desejava. E tanto assim era que a hora da saida, enquanto punha o cachecol de crochet que a mulher, em silén- cio, como sempre, lhe fizera, perguntou ao colega: ~ Ea que horas é a partida? —Temos tempo — riu 0 outro. ~ Temos muito tempo! O Alberto talvez. O Alberto talvez tivesse muito tempo, muitos anos diante de si. Mas ele nao. Por isso tinha pressa, muita pressa. Por is ‘0 se pusera de subito a desejar que o domingo nao demorasse muito e que partissem cedo. Em casa, diante da mulher, que passa- java meias e se assoava muito constipada, diante da escrita que se The tornara, de repente, estranha e incompreensivel, muito aborre- cida, sonhava com o passeio e com a Lurdes, que era uma mulher de estalo, e tinha na sua imaginagdo o rosto branco da Ilda e a sua voz fininha. E pensava em siléncio, mas tio alto, com tanta forca, que por duas ou trés vezes chegou a erguer os olhos, receoso de que a mulher 0 tivesse ouvido: «E no domingo. E no domingo.» No dia seguinte, porém, quando ia a atravessar uma rua da Baixa, a caminho do escritério, um camiao atropelou-o. Ele ia a pensar no 116 Q PASSEIO NO DOMINGO domingo seguinte, ¢ t4o absorto que nem viu 0 carro nem ouvitl o grito simultaneo das pessoas que estavam perto. Nao ouviu nem viu nada. A tltima imagem que captou foi a do rosto da Tida (0 rosto de uma mulher que ha mais de vinte anos ele nao via e em quem nunca mais tinha pensado), ¢ 0 ultimo som, o da sua voz a cantar um fado corrido. O corpo do Marcelino nao foi serenamente para a terra, como era habito acontecer as pessoas suas conhecidas. Passou algum tempo na Morgue, onde foi aberto, e s6 depois péde ter o funeral decente que a mulher lhe queria fazer. Nao teve muita gente, esse funeral. Nenhum. deles tinha familia e Marcelino era um homem calado e soturno que nunca soubera fazer amigos. A bem dizer, mesmo, iam sé duas pes- soas a acompanha-lo: a mulher, toda de negro e sem lagrimas, cheia de uma dor seca em que havia 0 que quer que fosse de raiva pelo homem que morrera e a deixara ainda mais s6, ¢ o Silva, de gravata preta e ar de circunstancia, lamentando muito sinceramente ¢ em siléncio a perda daquele bom empregado, neste tempo desgragado em que os bons empregados tanto escassciam. © Alberto nfo apareceu. O Marcelino fora enterrado no domingo, ele tinha tudo combinado com as raparigas e nao Ihe pare- cia decente desculpar-se com um enterro. Como, porém, o cemité- tio onde o Marcelino ia ser enterrado era o do Lumiar, cruzaram-se por alturas do Campo Grande. O Alberto, que ia de elétrico com a Lurdes, a Arlete e um amigo convidado a ultima hora, tirou reveren- temente o chapéu. Depois, inclinou-se para uma das raparigas, que era loira oxigenada e tinha um rosto cavalar, e explicou: — Aquele tipo que ali vai dentro... olha, era o tal colega de que te falei... O que te cabia em sorte. Pobre diabo! Tenho pena dele. A mulher disse «Ah!» e apertou 0 casaco contra o peito, por- que um grande arrepio de frio a percorrera toda, da cabega aos pés. E durante alguns minutos, o carro elétrico acompanhou 0 funeral do Marcelino, atras da mulher dele e do Silva.

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