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Referência mítica e interseccionismo de discursos, tempo e espaço em As Naus de Lobo Antunes.

Loiana Leal Pavlichenko (UFF)

No capítulo terceiro de Pela Mão de Alice, Boaventura de Souza Santos propõe onze teses em que apresenta as razões
pelas quais Portugal precisa iniciar um movimento de autoconhecimento no sentido de tornar-se agenciador da sua
posição dentro do mundo globalizado. Em seu trabalho, Santos mostra que é necessário que a identidade portuguesa se
“re-estabeleça” a partir das novas conjecturas políticas, sociais e econômicas instituídas com o advento da União
Européia. O sociólogo mostra que a estruturação desta identidade em função do mito e da crença num império que já
não existe é insuficiente para inscrever Portugal no novo sistema mundial que se forma e se transforma com rapidez e
que requer novos modelos para diagnosticar e solucionar os problemas que vêm provocando um atraso no
desenvolvimento da nação. Em sua segunda tese, o autor mostra que o excesso de mitos para explicar a sociedade
portuguesa – ou o excesso de mitos existentes para interpretar essa sociedade e o país – são decorrentes da
“reprodução prolongada e não alargada de elites culturais de raiz literária” (SANTOS, 2003, p.54). Essas elites
culturais, afastadas das esferas de decisões políticas, educacionais e culturais, não se preocuparam em trazer à
realidade a classe popular. Dessa forma, multiplicaram-se os mitos, germinados por essas elites e reforçados pelos
longos anos de uma política de opressão, no sentido de manter o status quo. O romance As Naus, de António Lobo
Antunes, questiona o estabelecimento destes mitos históricos como sustentáculos exclusivos da identidade do
português. Ele os dessacraliza na medida em que apresenta o movimento de retorno dos portugueses que estavam na
África a partir de uma “perspectiva deformada” (SEIXO, 2002, p.168), ou seja, a perspectiva da paródia que, segundo
Maria Alzira Seixo, constrói-se no texto a partir de dois processos simultâneos: o da homenagem, dado pela presença
das personagens históricas; e da sátira, que despe estas personagens de sua grandeza histórica com a mão da ironia.
Nosso objetivo é demonstrar, ainda que rapidamente, o interseccionismo pelo qual se estrutura a organização do
tempo, do discurso e do espaço; e mostrar ainda como o romance “propõe uma relação de referência (ainda que
problemática) com o mundo histórico” (HUTCHEON, 1991, p.183). Em As Naus, a constante referência às figuras
históricas e ao texto camoniano resulta numa homenagem ao passado que se faz simultaneamente e por meio da sátira,
na medida em que problematiza o lugar do mito como elencador da identidade portuguesa. O interseccionismo e a
referência serão elementos que possibilitarão que o texto se torne uma paródia “como uma forma de irônica ruptura
com o passado” (HUTCHEON, 1991, p.164) porque assinala a diferença ao mesmo tempo em que afirma um vínculo
com este passado.

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