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JAMES HILLMAN

A ALMA DO MUNDO

Diálogo com Silvia Ronchey

RIZZOLI

Propriedade literária reservada


@ 1999 RCS Livros S. p. A., Milano
ISBN 88-17-86268-1
Primeira edição – novembro de 1999
Segunda edição – novembro de 1999
Terceira edição – dezembro de 1999

S. R. agradece as estruturas da Rai que hospedaram a sugestão inicial


dessa conversa com o Doutor Hillman no interior da série “Até o fim do
mundo”, editada por Silvia Ronckey e Giuseppe Scaraffia; os amigos
comuns que facilitaram os contatos e organizaram os encontros com o
Doutor Hillman; os estudiosos que disponibilizaram suas bibliotecas
especializadas.

Infelizmente o que é o ser humano, casaco


rasgado em uma vara, se a alma não pode
bater palmas e, em seguida, cantar, cantar
mais alto para cada rasgão da veste mortal.
E não há outra escola de canto que estude
suas formas de excelência passadas.

W. V. YEATS, em direção a Bizâncio


2

“Sócrates, você é como um torpedo marinho. Quando você fala, causa


choque.” Hillman tem uma formação cosmopolita, estudou na Sorbone e na
Faculdade Trinity de Dublin e foi aluno de Jung. Foi diretor do Instituto Jung, em
Zurique, e professor das maiores universidades americanas. Não é Sócrates,
porém, tem algo em comum com o filósofo ateniense. É um pensador profissional.
Ensina-nos a nos conhecermos. Sempre se coloca em contraste com a opinião
atual. Tem uma ótima experiência em diálogo.
Também porque é um psicanalista, por mais herético que seja. Trabalhou
com psicanálise por muitos anos, particularmente em Dallas, e uma vez afirmou:
“Dallas se assemelha à Viena de cem anos atrás, onde a neurose, a histeria, a
imaginação sexual e a repressão familiar surgiram pela primeira vez”. Quando
lançou seu último livro, O Código da Alma, que teve um enorme sucesso nos EUA
e também na Itália, um conhecido crítico americano chamou Hillman de "um dos
curadores espirituais mais verdadeiros e profundos do nosso tempo".
Hillman reintroduziu, na psicanálise, a ideia de alma. O seu livro mais
difundido se chama Alma. Porém, não estamos falando de um místico, ou de um
contemplativo. Alguns consideram Hillman como o herdeiro de Nietzsche. É um
ocidental cético e iconoclasta. Alega que um dos mais importantes lugares da
alma é a política. Diz verdades chocantes e inconvenientes. Como disse Platão,
ele tem o efeito de um torpedo marinho.
3

Fazer alma

Doutor Hillman, você é um pioneiro da alma. Restituiu a ideia de alma para


o século XX, um século dominado pela psique.

Muito verdadeiro. Em 1964, eu usei essa palavra em um livro intitulado,


O suicídio e a alma, 1 em que procurei explicar a ideia com toda a
atenção e os exemplos necessários. Antes disso, a alma se encontrava
ou no cemitério, ou na igreja, não constituía um conceito psicológico.
Nós ensinamos a psique, tivemos uma biologia e um mapeamento do
cérebro. Professamos um materialismo da psique. Reintroduzindo a
alma, eu também recuperei toda a sua tradição, percorrendo-a
inversamente, até chegar ao seu início: em Roma e daqui para a
Grécia através do Renascimento e os Românticos, e isso pelo simples
fato de usar novamente a palavra alma. Além do que, a alma estava
ligada às crenças populares do folclore e ao pensamento das
populações indígenas, chamadas primitivas.

No seu livro O código da alma,2 que se tornou um best-seller internacional,


juntamente com a noção de alma, você reintroduziu a ideia do demônio individual,
uma ideia igualmente antiga, socrática, transmitida por Platão.

É uma ideia que se refere ao sentimento de termos em nós algo que


nos torna únicos, diferentes, distintos e peculiares. Uma ideia que
remete também a um mito, derivada de um mito, existente em todo o
mundo: no sentido de que entramos nesse mundo com uma vocação
particular e um caráter particular. Sócrates chama de demônio esse
nosso companheiro – daimon é o termo grego. O conceito de daimon
foi posteriormente elaborado por Platão, por Plutarco e por Plotino –
sobretudo Plotino – para sustentar que a alma nos escolhe para viver a
sua vida.3

1
Il suicídio e l‟anima (1964) trad. it, Roma, Astrolabio, 1972; 2ª edz. riveduta e corretta, 1999.
2
Il codice dell‟anima (1996), trad. it. Milano, Adelphi, 1997.
3
Cfr. Il pensiero del cuore (1979), trad. it. in L‟anima del mondo e il pensiero del cuore, Milano, Garzanti,
1993.
4

Antes do nascimento, você quer dizer? Pode nos esclarecer essa ideia?

É uma ideia muito interessante, com grandes implicações. Veja. Plotino


afirma que a alma, associada ao Daimon, escolhe os pais, o lugar, as
circunstâncias e o corpo.4 Não são nossos pais que nos fazem nascer,
mas é a alma que escolhe os pais – aqueles pais que serão capazes
de perturbar nossa vida de acordo com o que é necessário para nós a
fim de que ela seja perturbada. Como você pode perceber, isso dá à
nossa psicopatologia e à nossa infância uma perspectiva totalmente
diferente.

Mas em que sentido você diz que é necessário? No sentido psicológico ou


ainda como os antigos, em termos de destino, ou se preferirmos, de karma?

Tudo o que nos aconteceu tem um valor ou uma necessidade. Essa


concepção do nosso destino é conhecida pelos esquimós, pelos povos
da África ocidental, pelos Chineses. É uma ideia psicológica basilar na
Índia, na Grécia antiga, em toda parte. Apenas na psicologia ocidental
tínhamos esquecido. Quando eu a reencontrei no Código da alma, eis
que todos rapidamente e naturalmente começaram a entender. Trata-
se da consciência de que há algo que acontece em nossa vida sem ser
causado pelos nossos pais ou pela nossa infância; há algo que
acontece porque é impulsionado por uma necessidade intrínseca. É
uma vocação inata, caso queiramos usar essa palavra, da qual me
lembro com frequência. Assim, toda uma perspectiva foi reaberta ao
público. Eu penso que seja por isso que teve tanto sucesso,
precisamente porque não é uma ideia nova. É uma ideia muito antiga,
uma ideia universal.

Você pode nos dar uma definição, digamos, ontológica?

Na verdade, nós poderíamos definir o Daimon como uma


personificação do destino. A ligação entre o Daimon e o destino já era
4
Plotino, Enneadi, II 3,15.
5

pré-socrática e remonta às primeiras raízes do pensamento ocidental.


Mas, veja. A ideia de Daimon é uma ideia mitológica e psicológica.
Seria difícil transformá-la em conceito ontológico, desde que você não
seja um neoplatônico dogmático. Se quisermos, lá onde Sócrates e em
seguida Plutarco, como eu dizia antes, usam a palavra Daimon, hoje
podemos falar de Espírito Guia ou de Voz Interior ou, em um contexto
religioso, de Anjo da Guarda.

A sua história do Daimon parece, no entanto, revolucionar e derrubar a


doutrina de Freud.

Sim. A família é uma necessidade enquanto lugar onde o nosso


Daimon pode se manifestar, mas não é a causa do nosso destino.
Veja. A dificuldade com a antiga ideia freudiana é que os seus
seguidores identificam a causalidade na história. Para eles, quanto
mais voltamos na história, mais determinante é a causa que,
finalmente, produz todos os nossos comportamentos. A criança se
torna a causa imediata de todo o resto da nossa vida e os pais se
tornam a Causa Primeira, como os deuses do mito. Onde, em vez
disso, a ideia de Daimon implica que a causa da nossa individualidade
e de todos os seus atributos é uma causa formalis, não uma causa
efficiens. Isto é, uma causa formalmente presente em todo o decorrer
da nossa vida, mas não uma causa temporal, porque não se trata de
um trauma histórico. O Daimon continua a operar incessantemente na
nossa existência: no início, na metade, no fim. Trata-se sempre da
mesma força.5

Seria então importante poder compreender e explorar a personalidade dos


indivíduos quando criança, restabelecendo esse papel de vigilância no
desenvolvimento individual que uma vez, na sociedade arcaica, era confiado aos
idosos. Segundo você, na nossa sociedade de consumo, tão distraída na
observância do indivíduo, os idosos podem voltar a assumir um papel do gênero?

5
Cfr. Il códice dell‟anima, pp. 241-266 (Il destino).
6

É uma questão muito importante, porque na nossa sociedade os idosos


foram demitidos desse papel. Mas nos vilarejos e na vida familiar, em
que usamos a palavra primitiva para uma sociedade – isto é, menos
industrializada, menos consumista -, os idosos estão interessados nos
recém-chegados. Acredito que os idosos, antes de tudo, devam ter
uma ideia diferente sobre a importância das crianças. Se os idosos não
aceitaram a ideia do código da alma, onde se diz que uma criança
carrega consigo algo já escrito, se não têm mais essa ideia, então não
irão procurar por isso. Como primeiro passo, é necessário reintroduzi-la
na sociedade, ideia essa que vem do pensamento tribal e geralmente
antigo, também mítico. É uma ideia antiga. Uma ideia que nos permite
ver. E então nós olhamos, procuramos. 6 Porém, se não possuirmos
essa ideia, não vemos e não buscamos, e a criança simplesmente
cresce.

No começo de um de seus livros fundamentais, O mito da análise,7 você


citou o poeta inglês John Keats: “Chame o mundo, por favor, de vale de fazer
almas. Então descobrireis a sua utilidade”.8 Para que serve? O que significa fazer
alma?

Aqui estão as palavras de Keats: “Considere o mundo um vale de fazer


alma, então saberás a sua utilidade”. Com essas palavras responde-se
à questão psicológica mais fundamental, à questão da alma
perturbada: “Que sentido tem esse caos em que todos nós vivemos?”
Keats argumenta que o caos em que vivemos tem a finalidade de „fazer
alma‟. (Tempos atrás teria sido dito: „formar o caráter‟). Viver no mundo
para a alma não é a mesma coisa que viver no mundo para
transcendê-lo, ou para ressuscitar, ou sermos salvos. A ideia de Keats
não é cristã, no sentido que não hipotetiza uma salvação. Pelo
contrário, isso implica a sensação de estar envolvido em um todo,
imerso na substância do mundo. E é disso que a alma necessita, ou

6
Cfr. Re-visione della psicologia (1975), trad. it. Milano, Adelphi, 19722.
7
Il mito dell‟analise (1972), trad. it. Milano, Adelphi, 1979.
8
Lettera da John Keats Del 19 março 1819 (in The Letters of Keats, a cura di H. B. Forman, London, 1895).
Cfr. Il mito dell‟analisi, p. 13 e n. I.
7

deseja, e é por isso que o Daimon entrou nas nossas vidas desde o
início: necessita realizar o seu destino na terra. Portanto, não é budista
e não é cristão, porque pede o envolvimento em vez de desapego, ou
serenidade, ou liberdade transcendente. O Daimon é muito psicológico.
Porém, todo esse caos em que nos encontramos imersos com nossa
mulher e nossa família, nosso marido e nossos filhos, nossas finanças,
bem, é o lugar em que a alma é feita. Aqui. Não na transcendência.

Assim, no Vale do Fazer Alma, você vê o mundo como vida cotidiana, caos
cotidiano que, a partir de herbáceas e arbustos, não podemos desenredar, mas
nessa luta formamo-nos como alma e encontramos e realizamos, assim, nosso
Daimon, nosso destino psicológico individual.

Sim. Mas eu gostaria de acrescentar que essa ideia de alma envolve


também a política, para a qual a política não é dada sem alma. A
política também é sede da alma e vice-versa, e isso é importante: a
psicanálise não pensou nesses termos antes.9 Ou melhor, algumas das
alas da esquerda italiana e da esquerda freudiana francesa, talvez
tenham começado a refletir de modo semelhante, mas minha teoria da
alma baseia-se na afirmação pragmática de que, desde o início e por
sua própria natureza teorética, a alma está engajada no mundo e,
portanto, também na vida psicológica, como parte integrante da vida da
nossa alma.

Mais perto da vida, mais perto da morte

No Ensaio sobre Pan, você escreveu:10 “Quando a visão dominante que


une um período da cultura sofre rachaduras, a consciência regride a estágios
mais antigos." O que proporcionou rachaduras em nossa cultura dominante?

Bem. A família. As mãos. As mãos não estão mais conectadas


diretamente ao mundo material: pressionamos as teclas, não usamos
9
Cfr. Forme del potere (1995), trad. it. Milano, Garzanti, 1996.
10
Saggio su Pan (1972), trad. it. Milano, Adelphi, 19979, p. 11.
8

mais todo o nosso corpo quando trabalhamos, nem sequer no trabalho


mecânico. Principalmente o trabalho manual - foi digitalizado. Também
quando dirigimos um carro, na América temos disponível um câmbio
automático. Portanto, estamos cada vez mais alienados da matéria, da
substância.

Quanto à família, o que você disse?

A família, a relação com o corpo, os laços de sangue, os diversos tipos


de vínculos foram quebrados. Temos novos tipos de laços virtuais que
chamamos de networking, redes, mas a rede nos conecta somente
com seres sem corpo. Depois disso, fazemos férias selvagens, em
lugares naturais remotos, para encontrar nossos corpos novamente.

Mas esses são dois êxitos do progresso, tecnológico de um lado, social de


outro.

Cada progresso envolve também uma perda – de habilidade manual,


de tradições culturais, de amor, de história. Se formos ao fórum
romano, não vemos Italianos andando no Foro, vemos Japoneses,
Gregos e Suecos. Cada um de nós perdeu o interesse em olhar para si
mesmo. Muitos dos nossos laços estão quebrados. Nos Estados
Unidos, em uma sala de aula, digamos uma sala de estudantes de
quinze anos, não encontramos um só referencial comum a todos os
jovens presentes na sala, exceto, talvez, Topolino. Não conhecem
Adão e Eva, não conhecem Romeu e Julieta, não conhecem Napoleão,
não conhecem Nero, não conhecem Cesar, nem a nossa Grande
guerra civil americana, ignorando também os Dez mandamentos. Eu
quero dizer que nenhum dos jovens presentes na sala de aula tem um
ponto de referência comum. Nem mesmo as histórias da Bíblia:
perdidas. Tampouco Jesus Cristo, que também é a figura divina mais
familiar, as suas parábolas, a sua vida: desconhecida. Nossa Senhora?
Talvez.
9

Você acha que agora, a sua popularidade, é devido à cantora de rock?

Com o passar do tempo ela também será esquecida. Essa falta de


memória cultural comum, afeta o sentimento de comunidade. Não
existem mais heróis tribais, não existem mais fundadores do clã, com
mais fatores de parcerias coletivas, mas apenas relações pessoais
singulares. Você entende, neste ponto, qual é o cânon que mais
mantém o conjunto de uma cultura? Quando esses fatores de
associação se quebram, quando não há mais imagens comuns, o que
a psique faz para encontrá-los? De onde provêm as imagens que
mantém o cânon reunido? Talvez seja da cultura popular? Ou dos
líderes populistas dos movimentos de massa? E aqui está o perigo de
um novo fascismo.

O perigo é talvez no que alguns chamam de Nova Ignorância, que está


progressivamente se difundindo no mundo contemporâneo. Não a que está ligada
ao analfabetismo, mas à perda de referências sérias devido à difusão de uma
pseudocultura que habitua a massa à banalidade, entregando-a, indefesa, à
demagogia e ao populismo.

Não sei se é só perda e ignorância. Se colocarmos a ênfase no que


está perdido, nos transformaremos em Saturno, em senex, e dizemos:
”Ah, os jovens não sabem nada”. A questão é mais: o que efetivamente
sabem e o que efetivamente compreendem? Há neles um desejo de
rituais, um desejo de beleza, um desejo de atividade, um desejo de
música e uma emoção um pelo outro. E há também muito mais, mas o
que importa e preservar certos mitos, que foram constantemente
conservados na cultura. Agora eles estão em perigo.

No final deste século, em que as escolhas éticas poderiam ser


consideradas mais livres, os jovens, dos quais você fala, parecem atraídos pela
morte. Nós os vemos nas loucas corridas de carro, na saída da discoteca, ou
quando usam drogas pesadas, ou tentam se testar em novos ritos de iniciação.
10

Você que já escreveu em 1964, O suicídio e a morte,11 tem uma ideia do por que
a geração futura parece estar tentando se destruir?

Estas são reflexões dos idosos sobre os chamados jovens. Hipólito


correu em sua carruagem, e até Fetonte correu em sua carruagem
para encontrar o sol, e Ícaro caiu. Há muito tempo, nos mitos gregos,
todos eles se autodestruíram. O fato de os jovens dirigirem em alta
velocidade não é necessariamente um evento contemporâneo. Os
jovens sempre procuraram andar o mais rápido possível, desde o
princípio.12 Perséfone queria descer ao submundo. É o desejo total de
correr riscos, de aventura, de entrar nas trevas, no mistério, na cidade,
na noite, é um desejo forte e antigo. A psique encontrou êxtase com
Amor na noite mais escura e profunda. Não se trata somente de hoje
em dia.

E a droga?

A droga é algo diferente porque faz a nekyia - a descida ao submundo,


a aventura – rápida e fácil. A droga pertence a uma sociedade rápida e
fácil: droga ilegal e droga legal: ambas são drogas. Mas se nos
encontramos na sociedade em que estamos hoje, onde a morte é
encontrada? É nos jovens, ou o desejo de morte não está, talvez, nos
políticos, nos ministros, nos funcionários das instituições que governam
o mundo? Onde está o verdadeiro desejo de morte? Eu não acredito,
absolutamente, que esteja nos jovens.

Significa que o contato com a morte procurado pelos jovens é um ato vital
e, ao contrário, distanciar-se dela é um ato de negação, um ato, para usar suas
palavras, saturnino?

11
Vd. sopra, n. I.
12
Cfr. Senex e Puer. Un aspetto del presente storico e psicológico (1967), trad. it. in Puer aeternus, Milano,
Adelphi, 1999. pp. 51-111.
11

O que os jovens procuram realizar é o desejo de uma vida que está em


contato com a morte – porque uma vida que não está em contato com
a morte é mortal, moribunda. E isso é o que perece ser evidente nos
sistemas de seguro e segurança que encontramos nas imagens senis
da sociedade política. Se buscássemos a morte em nossa sociedade,
seria um erro procurá-la nos jovens. Devemos procurá-la nos idosos e
em sua vontade de ter controle sobre tudo, que é o lado de Saturno da
velha geração.

Na verdade, você escreveu: "Qualquer ato que mantenha a morte à


distância impede a vida".13

Isso se manifesta na obsessão pela segurança. Os Estados Unidos são


mantidos nas garras das grandes empresas de seguros e das grandes
empresas farmacêuticas. Grandes consórcios fornecem para quem
deseja muitas pílulas e garantias suficientes para nos proteger,
acredita-se, da morte. Acredito que na Europa seja diferente. Existe o
dia dos Mortos, o Dia dos Espíritos Mortos. Novembro. É um
acontecimento importante na Europa. A sobrevivência de uma série de
ritos permaneceu desde os tempos antigos. Os Franceses amam a sua
macabra bomba funerária e as flores de cerâmica roxa. Os Alemães,
acabam exibindo uma solenidade excessiva em seus cemitérios. Os
Russos, oh, os Russos jamais esquecem os seus mortos na guerra.
Eles tiveram vinte milhões. Os mortos estão na mentalidade nacional.
Também vocês, os Italianos, têm uma tradição muito longa –
especialmente nas vilas, ou, por exemplo, no impressionante cemitério
de Staglieno em Gênova – de funerais e procissões, tocar trombetas e
andar devagar. Eu vi isso na Sicília. Perséfone e Hades não
desapareceram e até a Igreja se lembra deles.

13
Il suicídio e l‟anima, p. 47, com rif a Spinosa, Etica IV 67: “Proposição 67. O homem livre não pensa em
outra coisa, senão na morte: a sua sabedoria é meditação não da morte, mas da vida. Demonstração. O
homem livre isto é, que vive somente segundo o ditado da razão, não é guiado pelo medo da morte, mas
deseja diretamente o bem, isto é, agir, viver, conservar o próprio ser embasado na busca de seu próprio
proveito e, portanto, não pensa em nada menos do que a morte, mas sua sabedoria é a meditação da vida.”.
(B. de Spinoza. Etica dimostrata secondo l‟ordine geométrico. Torino, Bollati Boringhieri, 19788. pp. 276-
77).
12

Portanto, a noite de Halloween também significa para vocês, nos Estados


Unidos, uma sobrevivência do culto pagão dos mortos, que tem seus fetiches de
abóboras e seus oficiantes em crianças, uma categoria que está sempre em
relação privilegiada com os Espíritos falecidos. Você não acha que é um resíduo
significativo?

O dado significativo é que nos Estados Unidos – o país ao qual


atribuímos uma função de guia do mundo, ou algo semelhante, e que,
porém, tem também o dever de conservar a visão dominante que os
outros países deveriam seguir, a obsessão pela segurança elimina
qualquer eventualidade de fatalidade, ou incidente, ou desastre, todas
as possibilidades de que os deuses se manifestem e ajam em nossas
vidas. A obsessão pela segurança elimina qualquer inventio (invenção)
dos deuses. Qualquer imprevisto que ocorra, relata-se uma reclamação
e somos ressarcidos. Um incidente também pode ser um bom
acontecimento. Nós até contamos piadas sobre isso.

Realmente? Você poderia nos recontar uma?

Uma mãe explica ao filho pequeno como atravessar a estrada em meio


ao tráfego. “Lembra de atravessar sempre com o sinal verde, então
você pode processar". Isso quer dizer que você pode processar por
danos se um carro bater em você! Temos leis que obrigam o uso do
cinto de segurança, frascos medicinais que ninguém consegue abrir,
advertências sobre qualquer coisa que comemos e uma proliferação de
airbags. Adquirimos automóveis, não para a diversão de dirigir, ou com
base na sua praticidade ou capacidade de aceleração, como uma
Maserati, mas em virtude da proteção ao impacto. Adquirimos
automóveis seguros, isto é, os compramos apenas em vista do
acidente. A segurança é para nós uma espécie de patrão invisível que
paira acima de tudo: incluindo a estupidez. Precisamente neste
período, devido ao fato de que onze crianças nos Estados Unidos
ficaram fechadas no bagageiro dos caros dos pais e morreram, é
13

preciso que todos os carros sejam construídos com um fecho de mola


dentro do bagageiro, para que as crianças possam sair.

De fato, na Europa, ou pelo menos na Itália, temos mais confiança no


discernimento; ou somos mais fatalistas, ou providenciais, certamente mais
incautos. Talvez estejamos menos conscientes da imprudência humana.

Se na Itália ou na Europa se tem tanta obsessão pela segurança


quanto nós, eu não sei. Mas é um sentido insano de proteção pensar
que a morte será mantida distante. E assim, naturalmente, a vida é
mantida distante. Não tem risco, não tem transgressão, não tem perigo,
não tem aventura. Então, de onde tiramos isso? Do ciberespaço? Dos
videogames? Talvez. Ou ainda, das drogas, ou dos confrontos de
ajuda, ou dos acidentes de esqui. Quero reiterar que o lugar onde
colocamos a morte, agora está propriamente em todos esses sistemas
de proteção, os quais nos impedem de abrir-nos ao risco da vida. E
assim estamos totalmente chocados pelos terroristas que estão abertos
à morte.

A verdadeira força, ou então, o fascínio do terrorismo, a sua capacidade de


atrair para si a nossa atenção, tanto em Londres como em Paris, na América
como na Itália, deriva, portanto, do contraste com a nossa obsessão com
segurança?

Exatamente. Reside no contraste com a nossa obsessão com


segurança, com a nossa ansiedade paranóica: sintomas que
representam o próprio arquétipo do senex. A maior ameaça, hoje, não
é feita para nós por um exército militar, tanques ou navios de guerra.
Imaginamos, em vez, vírus, gás e substâncias químicas na água que
bebemos. Paranóia. Imaginamos um homem que estoura e faz explodir
o avião, faz explodir um palácio: o terrorista. Por que o terrorista?
Porque o terrorista vive ao lado da morte, e em uma sociedade que
excluiu a morte e o risco de morte, que se recusa prever a
eventualidade, é ele quem possui a verdadeira arma secreta. E a arma
14

não é a bomba que ele carrega na mão, nem as substâncias químicas


tóxicas que dissemina: a sua arma secreta é o seu querer viver ao lado
da morte.

Então o terrorismo substituiu a fantasia de morte que, nos anos cinquenta e


sessenta, era a obsessão da bomba nuclear?

Há um fundo de morte na sociedade que é percebido em termos de


catástrofe ecológica, ou mesmo AIDS, ebola, contágio, catástrofe
epidêmica. Agora, é certo que a sociedade tenta afastar a morte, a
doença, a fome e coisas do gênero. Todos nós devemos tentar viver. A
morte está sempre próxima, em cada sociedade e em cada período da
história. Assim, o Terrorista se tornou uma figura mítica, o portador de
morte à sociedade. E é esse o aspecto psicologicamente interessante.
A sua intenção de morte se concentra na sociedade. É teorizado e
moralizado. Não é um assassino em série, ou um psicopata pervertido
que experimenta excitação privada.

Quase soa como um elogio ao terrorismo.

Eu não diria. Estou interessado no fenômeno: o terrorismo quer


explodir todo o sistema. O que o verdadeiro terrorista faz? Explode
edifícios públicos e estações de trem. Os seus gestos são simbólicos,
rituais. Isso é o interessante. Mas não é realmente um revolucionário,
com um programa elaborado em mente, como o Caminho Brilhante, no
Peru, ou os hodiernos zapatistas defensores da redistribuição de terras
nos Chiapas. O terrorista é mais um vingador solitário - profundamente
desafeto, que vive na ausência da lei, na ilegalidade, e se recusa viver
ainda nessa condição. Prefere a morte – enquanto o revolucionário
prefere a mudança. Porém, o terrorista agride o governo, o Estado, os
símbolos da segurança, a ordem, o confinamento, a defesa. O sistema.
Portanto, é necessário refletir sobre um ponto: como recuperar essa
metáfora, para que o sistema possa ser explodido psicologicamente.
Onde terminaram, por exemplo, as ideologias dos anarquistas?
15

Mas, no passado ainda recente, essa proximidade com a morte não foi
incorporada por outras figuras da sociedade, por exemplo, aquela do soldado?

Vimos um soldado dos EUA capturado e arrastado pela rua há alguns


anos em Mogadíscio, não sei se você se lembra da sequência na
televisão. Aquela única imagem de um soldado que, eventualmente,
poderia ter sido torturado e ferido foi suficiente para que o governo
americano revisse a própria política. E mesmo assim, aquele homem
era o Soldado, ele estava no Exército, também era um voluntário - se
você entrar como um voluntário do exército, você está se candidatando
para a morte, você está pronto para morrer! A confiança na morte é o
objetivo essencial de ser um militar. Ele não era um soldado recruta,
ele era um voluntário. Hoje, mesmo no ambiente militar, não
conseguimos mais imaginar a morte. E uma sociedade desprovida
desse vínculo se torna mortal, e morta.

Em outras palavras, os institutos que parecem nos garantir a vida, no


momento em que protegendo-nos, distanciam a morte, não fazem outra coisa
senão estendê-la e comunicar à sociedade a sua auréola, por assim dizer,
espectral?

Com certeza, o sentimento que experimentamos quando entramos em


qualquer instituição pública – a burocracia de cada departamento: das
taxas, da previdência social, as departamentos educacionais, as
departamentos de cadastros, também os hospitais -, quando entramos
nesses lugares, nós sentimos fisicamente e psicologicamente que são
mortais. Sentimo-nos presos, oprimidos: a nossa voz e todo o nosso
corpo se retira. "Eu tenho que sair daqui." Kafka.

O sentimento kafkiano, a voz interior que nos diz: “eu devo sair daqui”, nós
a sentimos, frequentemente, na vida. Não somente quando entramos nos
departamentos públicos, você não acredita?
16

Podemos sentir a voz “eu devo sair daqui” também em uma siderurgia,
em uma fábrica qualquer com seus ruídos demoníacos, seus
maquinários enormes e monstruosos. Há morte em uma plataforma de
petróleo, em um barco de pesca, em uma usina elétrica. Mas a morte
de hoje atacada pelos terroristas é a que se dá onde a morte é
suprimida: o palácio do governo, a escola, os correios, até mesmo o
Mcdonalds. Lugares sem risco. Hefesto ainda vive na oficina mecânica,
mas nem ele, nem qualquer outro deus senão o deus da economia, o
deus-dinheiro - vive nos sistemas seculares de seguro e proteção
coletiva, ao qual o terrorista ataca. Porém, tememos o terrorista,
porque submete a nossa segurança ao desafio do risco. Isso traz a
morte de volta à consciência. E também o mito.

As instituições públicas que você define como sistemas seculares de


seguro, são, portanto, as mais impregnadas de morte porque são lugares sem
mito.

Há algo acontecendo na burocracia, nas instituições que crescem e se


tornam rígidas, congeladas e mortais. Por essa razão, se estamos à
procura da morte no sentido antigo da palavra morte, encontramos
precisamente nas mesmas instituições que tentam nos proteger dela.

Portanto, o terrorista que assume a morte para si mesmo, em sua opinião,


seria uma figura vital, revitalizando, de alguma forma a sociedade: este é o seu
paradoxo?

Um grande paradoxo. O que nos mantém distantes da morte é mortal.


Porque o terrorista é geralmente imaginado como uma pessoa muito
jovem, de vinte anos, ou ainda adolescente? Não nos permitimos
imaginar um terrorista de setenta e cinco anos. Às vezes eu me
imagino como um terrorista intelectual. Você entende o que eu quero
dizer? Para atacar ideias radicais, derrubar sistemas estabelecidos
requer certa quantia - não realmente de coragem, ou heroísmo, mas
sim um ódio direcionado, uma paixão fria e irada. Eu quero destruir
17

algo, simulacro de ideias que me parecem já mortas. Isso é ser


terrorista. Quebrar algo sem querer saber o que acontece na
sequência. Mas é necessário, necessário: é iconoclastia, é a demolição
dos ídolos. Todavia, o perigo do terrorismo não está nisso: reside na
ideologia que o acompanha. Quando a ideologia se une à arrogância,
nasce o fanatismo e esse é o perigo. O fanático é assustador. Ele pode
materializar-se em qualquer lugar, mas se forma especialmente nos
credos religiosos. O fanatismo ideológico é algo assustador. Não a
bomba em si, mas a ideologia que está por trás dela.

Puritanos antigos e novos

Pode-se dizer que o fanatismo ideológico na base do terrorismo de hoje,


está realmente ligado a uma ideologia religiosa.

Sim. Mas aqui eu deveria acrescentar algo relacionado à religião. As


religiões em si, não são negativas. Não estão de acordo com Marx e
nem com Freud. Estão mais próximas de Jung. As religiões são
contentores predispostos para a loucura humana. Graças a Deus
temos as religiões, porque, caso contrário, teríamos mais pessoas
agitadas ao nosso redor, fanáticos ideológicos, terroristas em nome de
suas crenças pessoais, dos próprios dogmas. As religiões colocam os
dogmas dentro de uma estrutura.

Portanto, encontrar estruturas e contentores para os dogmas, em vez de


derrubá-los. Por quê? Não pertencem à categoria dos ídolos que inibem a
liberdade de pensamento?

Todos têm estranhas convicções que são sistematizadas e praticadas


como religiões. Por quê? Porque as religiões fornecem imagens, ritos e
histórias às nossas fantasias mais estranhas. Segundo o ponto de vista
teológico, foram os deuses que inventaram as religiões: eles pediram
observância e reconhecimento, orações e sacrifícios e todo o resto.
18

Porém, do ponto de vista psicológico, é a psique que precisa colocar as


ideias e fantasias malucas em uma espécie de ordem. As religiões
fornecem essa ordem – e se tornam perigosas somente quando se
acredita ao pé da letra, teologicamente, ao invés de psicologicamente.
Jung dedicou a vida para demonstrar essa afirmação.

Mas como se faz para não tomar uma religião ao pé da letra? Por
definição, é um ato de fé. Talvez seja esse o seu lado perigoso.

Quando se considera atentamente e se estuda com cuidado, como fiz


no meu ensaio Sobre a paranóia, 14 você nunca pode saber com
certeza se a própria ilusão, a própria crença, é verdadeira ou falsa.
Deve-se sempre lembrar que a palavra ilusão significa originariamente,
e etimologicamente, falsa crença.15 Pensar que "minha religião talvez
seja uma falsa crença" é sempre necessário. Por isso a dúvida é
intrínseca a uma religião que é efetivamente útil.

Como, então, definir a ideologia religiosa à qual o terrorismo também está


ligado?

"Puritanismo" de vários tipos. A ampla gama de puritanismo.

O fundamentalismo islâmico também se enquadra nessa gama?

O fundamentalismo, mas não apenas o islâmico. È muito fácil projetar


sobre o Islã o nosso fanatismo cristão ocidental. Nós fizemos isso
desde as Cruzadas. As Cruzadas que massacravam e depredavam em
nome do Graal não eram, talvez, loucamente puritanas, pelo menos
tanto quanto os Maometanos que defendiam suas cidades? Tem
puritanismo em Israel, e tem puritanismo nos Estados Unidos.
Recentemente tivemos terroristas de vários tipos na América e foram
sempre os clássicos Cristãos-Americanos-Brancos. Ou seja, autênticos

14
Sulla paranoia (1985), trad. it. in La vana fuga degli dei. Milano, Adelphi, 1991, pp. 13-88.
15
In inglese „delusion‟, dal latino „de-lusio‟, „inganno‟.
19

americanos, não islâmicos: ideologicamente puritanos e é esse o


verdadeiro perigo.

O Marxismo Psíquico

Em uma entrevista difundida na internet 16 você declarou que está se


„tornando marxista‟. É um fato singular que um psicanalista junguiano „se torne
marxista‟ e em uma época em que os marxistas são uma espécie rara em toda
parte, até mesmo no Oriente. Que significado você dá à palavra marxista?

Em parte, é uma ironia, em parte, uma imagem, porque, precisamente,


o marxismo está morto em toda parte. Ninguém mais quer admitir ser
marxista. Estávamos em 1989, depois de Gorbatchov e o resto, quando
me deparei com um grupo de operários russos que vieram para os
Estados Unidos e tive que fazer um pequeno discurso para apresentá-
los. Eu disse que a melhor coisa que poderíamos ter feito, naquele
momento, seria libertar a Rússia do marxismo e trazê-lo de volta para o
Ocidente, isto é, para o local para o qual ele foi originalmente
concebido. Isto é, o marxismo fornece uma crítica ao capitalismo, um
ataque à potência do dinheiro e uma análise da violência do capital que
degrada o trabalho. No Ocidente necessitamos desse tipo de crítica.
Eis o que quero dizer com marxismo: uma crítica ao capitalismo e à
cultura dominada pelo dinheiro, na qual os economistas assumiram o
papel dos príncipes ou dos padres.

Portanto, você aceita a pars destruens, a parte que disseca os mecanismos


do capitalismo, e não a pars constuens, a parte propositiva do marxismo?

Claro que sim. A consciência dos efeitos do capital, a onipresença do


dinheiro no uso que fazemos dos outros, a relação escravo-patrão. É
esse aspecto crítico que eu enfatizei. “Não a maneira com a qual

16
Entrevista de Stephen Capen, gravada junto ao Instituto Esalen di Big Sur, Califórnia, em 25 de outubro de
1995, transmitida então pela Futuris Radio Hour na área da Baía de São Francisco e em seguida difundida na
internet na série da Worldguide Interviews.
20

Estado deve ser reorganizado, não a ideologia laica de Karl Marx, não
o seu materialismo histórico – não”.

Você não vê propriamente nenhum aspecto construtivo no pensamento de


Marx que pode ser salvo?

Se quisermos um aspecto que considero muito importante, é a ideia de


despertar no marxismo. Despertar do proletariado. Despertar do povo.
Hoje, nos Estados Unidos, nós vemos, em vez, os escravos votarem
nos patrões. E nós os vemos considerar isso como uma forma de
liberdade e democracia. Eles votam, quando o fazem, em favor do
sistema que os reprime.

Você declarou que o que está acontecendo atualmente nos Estados


Unidos foi previsto, com absoluta exatidão, há cinquenta ou cem anos atrás.
Estas são suas palavras.

Marx dizia que os estados finais do capitalismo sobrevivem somente


porque nós confiamos no domínio mundial e no militarismo, isto é, na
produção de armas. Assim, a guerra se torna necessária. Marx, se não
estou enganado, via a guerra como o último estágio do capitalismo.
Recentemente, a produção de equipamento bélico nos Estados Unidos
se tornou enorme. A maior parte da nossa balança, da nossa
exportação, de toda a nossa atividade econômica está conectada, de
um modo ou de outro, ao setor militar. O próprio Eisenhower,
dificilmente considerado como marxista, alertou para o colapso militar-
industrial dos EUA já nos anos cinquenta. Marx tinha previsto que o
capitalismo não poderia continuar sem ser alimentado por algum tipo
de guerra.

Você alude às várias guerras "periféricas" e "menores", desde a


intervenção no Golfo à do Kosovo, desejada pelos Estados Unidos após o fim de
Guerra Fria?
21

Não somente a isso. Veja. Pela palavra guerra eu posso substituir por
um termo mais amplo: Produção de História. Temos milhares de carros
armados e de navios, milhares de aviões que são desarmados,
desmantelados, destruídos no momento em que são construídos novos
e bem mais caros. A maior parte do armamento bélico nunca é usada.
É acumulada por dez anos e depois jogada na lata de lixo. Técnica
obsoleta. E é essa Produção de História que serve para fazer funcionar
todo o sistema. Mas os extremos da questão nunca são realmente
colocados em discussão no interior do Congresso. Os números do
orçamento militar são, de fato, inacessíveis ao público, podendo-se
dizer, removidos do inconsciente coletivo. Marx, por assim dizer, já
tinha previsto esse absurdo.

Mas se um absurdo subsiste, talvez seja agradável à psique coletiva?

Obvio. Todo o processo, ecologicamente e economicamente destrutivo,


é mascarado como necessário à „segurança‟. A parafernália bélica
permite às nações capitalistas continuar governando o mundo,
enquanto o devastam. Porém, repito, a segurança se tornou o tema
dominante do pensamento americano - não apenas nas mentes dos
governantes, mas também dos cidadãos individuais - com todos os
seus benefícios (placa, cinto de segurança, capacete para bicicleta,
desconfiança em relação ao transporte público, etiquetas em todos os
alimentos e medicamentos, advertências impostas em cada artigo
sobre como ele pode prejudicar ou matar, incluindo a garrafa de vinho).
É isso que eu chamo de cultura do Airbag, da qual falamos antes. É
fácil vender os gastos militares ao público em nome dessa segurança.

Todavia, contra cada previsão de Marx, as despesas militares formaram a


parte máxima da produção, mesmo em uma superpotência comunista como a
União Soviética, onde agora temos o problema da reconversão da indústria
bélica. Se até mesmo o comunismo, em seu último estágio, produz esse efeito,
não devemos considerá-lo mais o resultado da industrialização do que do
capitalismo?
22

Mas o deles era um capitalismo de estado. Não se pode dizer que o


sistema soviético foi realmente marxista. O estilo czarista não foi mais
um capitalismo de estado no estilo burocrático russo? Quando fazemos
de Marx um sistema positivista, nascem todos os problemas. Enquanto
o mantivermos como um sistema crítico, em vez disso, ele não
retrocede, permanece interessante. Veja. Eu acho que Marx não
deveria ter sido realizado; ele jamais deve ser atualizado hoje. As suas
ideias devem ser mantidas como ideal de consciência crítica. No
momento em que se procurou institucionalizar Marx, emergiram
grandes complicações.

Então, você pensa em um papel que o marxismo poderia ter ainda hoje?

Sim. Acredito que o marxismo tenha hoje um papel psicológico. Ele


deve nos manter criticamente conscientes das ideias sobre as quais
Marx se debruçou, mas não com a tarefa de levar o marxismo ao poder
em qualquer lugar, ou transformá-lo em um sistema positivo, dotado de
um programa. Trata-se, muito mais, de manter uma vigilância aguda
sobre os abusos da filosofia política que prevalece no Ocidente e da
teoria econômica subjacente ao nosso sistema ocidental, mantendo-
nos psicologicamente atentos e conscientes de tudo o que acontece.
Marx oferece um valor psicológico, não o que podemos definir de valor
concreto, positivo.

Este é, portanto, o marxismo hoje? Uma potencialidade da psique?

Sim, e como tal também tem em si um ideal. Temos necessidade de


ideais, como a justiça, a igualdade (a cada segundo as suas
necessidades), o resgate dos oprimidos, o valor do trabalho. Esses
ideais são muito importantes e Marx carrega consigo. E não são ideais
de „segurança‟.
23

Quando as ideias se transformam em ideais, podem, porém, se tornar


ideologia e esta em fanatismo e, até mesmo em terrorismo. Quando se tem
certeza de possuir a verdade, não se é tentado, como dissemos antes, a impô-la
mediante a violência?

Há uma diferença fundamental entre ideais e ideologia. A ideologia


fornece um logos ao ideal, uma espécie de método, programa, sistema,
ordem. Mas o ideal não se realiza e jamais foi feito para ser realizado.
O ideal é algo a que endereçar o olhar com uma dose de desejo. É a
cidade que brilha no alto da montanha.17 Não é algo real. Endereça à
prática, orienta-a como uma estrela longínqua, mas não pode ser
seguida ao pé da letra. No momento em que dizemos: “Isso. É assim
que devemos fazer, só assim teremos uma vida feliz", quando
enunciamos um plano, um programa, o Ideal expira em Ideologia e
começa a devoção fanática. Nós devemos lembrar sempre que o Ideal
é um fracasso. Podemos ter um desejo ardente de Ideal no coração,
mas sabemos que ele jamais se realiza na Terra. Aqui está a grande
força do Céu. Aqui está a grande força de todos os ideais: não têm um
lugar na Terra. A tentativa de um Ideal feita por Platão em Siracusa,
fracassou, mas isso não comprometeu a intenção, a visão.

A Grécia psíquica

Em suma, você tem uma posição secular sobre a ideologia, assim como
sobre a religião.

Não. É muito simples. O fato é que eu sou um psicólogo. Nós


psicólogos não fazemos teologia. Não fazemos metafísica. Não
falamos das origens do universo, nem do Céu, nem do que acontecerá
após a morte, nem de qualquer outra coisa. Esse erro aflige grande
parte do pensamento ocidental, onde se acredita que para pensarmos
religiosamente, necessitamos pensar no além, e separar César de
Deus. É um erro cristão. Não tem necessidade de pensar no au-de-là:
17
Matteo 5,14. (Sermo montanus). Non potest civitas abscondi supra montem posita.
24

devemos pensar que a vida em si mesma é religiosa. Não há


separação entre o secular e o religioso. Se você viver em uma
sociedade tribal, se você viver em uma sociedade antiga, religioso é o
modo em que se vive.

Uma condição de religiosidade secular, estreitamente conectada ao mundo


terreno, condição religiosa da vida e da alma não necessariamente vinculada a
uma teologia prospectiva de um além: adapta-se mais ao paganismo do que às
religiões medievais e modernas, exceto, talvez, ao confucionismo?

Sim. Eu prefiro defini-la mais imanente do que secular. O termo secular


é em si pejorativo. A própria ideia de um mundo secular é cristã. Foi a
Igreja latina que criou essa ideia. Significava o mundo do tempo, em
oposição ao mundo das coisas eternas - a Igreja. Assim Roma, a
cidade, divide-se entre o Trono do Papa e a Cadeira do Presidente, e
tudo provêm da palavra de Cristo: "Meu reino não é deste mundo", que
separa Deus de César. Os Gregos não tinham nem mesmo uma
palavra para dizer religião. É uma palavra romana. Os Gregos
simplesmente viviam uma vida impregnada com o sentido da
imanência dos deuses. “Todas as coisas”, dizia Thales, “estão cheias
18
de deuses.” Porém, não havia todos esses problemas, esses
desastres teológicos cristãos, porque fazer as coisas de modo belo
significava também fazê-las de modo ético. No mundo grego, estética e
ética são interdependentes.

É uma visão idealizada, um pouco esquemática da Grécia clássica, do


„milagre grego‟ da historiografia alemã, e é talvez mais original para a Grécia
psíquica da qual você fala no Ensaio sobre Pan, quando escreve: “A Grécia nos
oferece uma possibilidade de corrigir as nossas almas e há uma Bíblia no quarto
de cada jovem nômade, onde figuraria muito melhor a Odisséia”.19

18
Diels-Krans. Fragmente der Vorsokratiker, II. A 22 (Testimonianza das De anima di Aristotele, 411a. cfr.
II. A 23.
19
Saggio su Pan, pp. 13-15.
25

Não quero idealizar os Gregos. Todos nós sabemos que eles não eram
tão bons para com as mulheres, tinham escravos, faziam guerras, os
velhos tinham crianças como amantes: sabemos de tudo isso. Mas
também faziam outra coisa, além disso, que era pensar de maneira
diferente do que pensamos hoje. Podemos voltar àquele modo de
pensar todas as vezes que abandonamos as nossas recentes ideias
ocidentais, ideias malucas, a nos deixar loucos. Como: "Este é apenas
o mundo secular" e, portanto, "isso não importa" e "as belezas
verdadeiras estão em outro Mundo".

Você chama as ideias cristãs de transcendência, essencialmente de


loucas?

Ou as de Descartes, quando afirma que "a matéria é inerte, morta, e há


uma alma só no ser humano, razão pela qual as casas, as árvores e os
animais estão todos mortos". Somos somente material genético,
originados de uma explosão e direcionados para um buraco negro.
Bem, essa cosmologia é louca, mas domina o modo de pensar do
Ocidente. Portanto, o retorno à Grécia é apenas uma questão de voltar
à sanidade mental. Não é estranho.

Como você escreveu, o politeísmo grego “é mais ricamente elaborada de


todas as culturas”. 20 Porém, você não pensa que isso vale ainda mais para o
xintoísmo, uma religião que, como afirmou Levi-strauss, “não traça linhas de
demarcação entre o vegetal e o animal, nem entre o homem e o animal, e pela
qual a forma floral é, talvez, o limite da perfeição”?

É uma ideia deliciosa, mas eu não sou japonês. Devo permanecer no


âmbito da tradição que me é própria, da linguagem ocidental que me é
própria, no interior da minha própria cultura ocidental. O mundo grego,
com a sua língua e as suas narrações míticas, era enormemente
diferenciado. Não implica a perda de devoções entre homem e animal
ou entre animal e pedra. Não se trata de panteísmo. É muito diferente,
20
Ivi. p. 14
26

articulado, vivamente e linguisticamente detalhado, o que leva a uma


psique diferenciada. Os Gregos tinham uma psique diferenciada e é
dela que necessitamos na nossa cultura.

O que se entende por psique diferenciada, uma vez que cada grande
sistema ocidental, desde Aristóteles até Hegel, tem sua própria psicologia?

Entende-se que não devemos perder de vista as distinções entre


homem e animal, ou entre animal e flores, entre mineral e bactérias, e
assim por diante. Devemos, em vez, individuar claramente as
distinções. Em outras palavras, devemos transpor a nossa ótica
cientificista para o mundo mitológico, ou psicológico. Uma das grandes
virtudes do pensamento grego, assim como do nosso pensamento
científico ocidental, é o seu hábito de distinguir as diferenças. É uma
virtude muito importante que não devemos perder. Porque, então,
colhemos a unidade e a singularidade de cada coisa. Não é uma
questão de fazer com que os limites do ego saltem para uma unidade
mística e emocional.

Em vez disso, seria como nas experiências do xamanismo tribal, cujo


reflexo, em todo caso, também chegou aos gregos. Mas você considera essas
experiências totais, como se fossem apenas do Oriente asiático. O misticismo
oriental não o atrai por nada?

Para mim a coisa mais bonita do xintoísmo é o delicioso animismo que


proporciona alma a cada coisa. É esplêndido! Há algo de infantil nisso,
no Japão, de que gosto muito. Mas, para pensar cuidadosamente,
precisamos de distinções, e o modelo grego de paganismo é rico em
distinções. É como o sabor da água: diferente em cada aldeia. É um
princípio muito importante, especialmente no Mediterrâneo. Em cada
aldeia da Espanha o presunto é diferente e pode-se distinguir entre o
presunto de uma aldeia e o de outra. Sabe-se? O sabor das azeitonas
de uma cidade da Sicília é diferente do sabor das azeitonas de
qualquer outro lugar. Esse culto à diversidade é parte da nossa
27

hereditariedade ocidental, e é também um componente da nossa


natureza animal. Os animais sabem distinguir uma coisa de outra e de
outra ainda: se são ursos, por exemplo, sabem onde caminhar e
procurar os frutos mais doces da floresta e sabem quais peixes são
melhores do que outros. Ora, essa atitude singular foi perdida nas
grandes teologias religiosas unificadas, como o budismo, o cristianismo
e o hinduísmo. Os „ismos‟ nos fazem perder as belezas da
particularidade. Elas alegam, até mesmo, que as distinções são uma
armadilha mental, um engano.

Portanto, nós ocidentais não podemos pensar, senão em termos


ocidentais. Mas, como dissemos: o que estamos absorvendo e homologando
como um pensamento asiático, por exemplo, o que chamamos de budismo, talvez
não seja outra coisa senão uma re-elaboração, mais ou menos consciente, do
antigo pensamento grego.

Eu diria que sim. Acredito que a dificuldade está no fato que, na


qualidade de psicólogo, eu tenho a tarefa de me tornar consciente do
que nós levamos ao budismo (e não do que o budismo traz para nós),
ou do que nós levamos ao Islã, das estruturas já presentes em nossa
mente. Porém, quando assumo o budismo em mim, eu estou
modificando-o com o meu inconsciente e usando-o para o meu
inconsciente. Um inconsciente ocidental se apropria do budismo e o
transforma em chave cristã ou hebraica. Não somos butaneses, não
somos tibetanos, temos uma estrutura mental completamente diferente.
Aqui na minha psique há Descartes, Platão e São Tomás - todos vivos
e todos estão colaborando com o que acontece. E aqui há também
Einstein. Porém, eu não posso simplesmente ler um texto budista e
meditar, sentar-me e fazer o meu exercício zen, porque os Padrões
Mentais Ocidentais habitam em mim e conversam ininterruptamente. E
não esqueçamos de Santo Agostinho e Newton! Não estamos livres
das nossas tradições.
28

Em suma, esta moda sincrética ocidental de um budismo revisado e


corrigido, lhe incomoda?

Vou repetir. Não é o budismo que me deixa com raiva, mas a maneira
pela qual nossa psique usa o budismo, para fugir do dever de aprender
nossa tradição e o poder de nossa tradição, o dever de perceber que
Descartes é responsável por boa parte do caos da nossa sociedade
ocidental, e não somente Descartes, mas o próprio São Paulo, a
filosofia medieval e o cristianismo, quando declarou que "o mundo
pertence a César". É claro que também temos os desastres ecológicos,
porque não importa o que acontece nesse mundo. Podemos ter perdas
de petróleo no mar, podemos queimar as florestas, porque é somente
matéria. Res extensa. Lixo. Lixo.

Portanto, a evolução do pensamento ocidental no cristianismo e no


racionalismo, poderia trazer o apocalipse ecológico?

É o nosso pensamento ocidental que produz o tipo de mundo em que


vivemos. Não serve para nada tornar-nos budistas, meditar e encontrar
silêncio ou desapego, se o que acontece no nosso inconsciente
coletivo, na verdade, está destruindo o mundo. Nesse sentido, eu digo
que os fenômenos religiosos me interessam unicamente do ponto de
vista psicológico. Não me interessa estabelecer se o budismo é bom ou
ruim, ou quais partes do budismo são interessantes – não é esse o
ponto. A verdadeira questão é: o que devemos fazer com as nossas
mentes que estão destruindo o mundo? Como podemos corrigir as
nossas ideias? Como podemos colocá-las em terapia?

De fato, para continuar com o exemplo do budismo, no modo em que está


sendo elaborado agora – pelo menos na Itália, na Europa - existe algo católico
que na Itália chamamos de cato-budismo. É disso que devemos tentar nos
conscientizar a fim de corrigir nossas ideias sobre a interpolação da nossa
mentalidade religiosa recente quanto ao pensamento asiático?
29

Outra dificuldade em nossa discussão vem pelo fato de que estamos


negligenciando o espírito e a alma, estamos negligenciando a distinção
entre a alma, de um lado, e espírito do outro.21 O mundo grego era um
mundo da Alma, no sentido de que sua atenção para com a alma,
assim como eu entendo, servia como dissemos, para fornecer uma
diferenciação de todas as riquezas e honras da vida real – que é, de
fato, o fazer alma neste mundo. O espírito, em vez, é ordem, número,
conhecimento, estabilidade e lógica autodefensiva, para a linguagem
da „verdade‟, da „fé‟, da „lei‟ e afins. Quando falamos do budismo, ou da
cristandade, ou do cristianismo (usamos também esse ismo, que
corresponde aos outros – ismos: cristianismo, budismo, hebraísmo,
xintoísmo), estamos falando em termos muito gerais do espírito e os
conceitos são amplamente intercambiáveis – um espírito ou outro
espírito, uma religião ou outra religião – e continuamos a discutir sobre
religião. O pensamento grego é diferente: é pagão, como o chamavam
os cristãos. 22 Está ligado às pedras, às rochas, aos campos, às
pessoas comuns. Não é um programa, é uma vida, como a psicologia
também é - e os deuses vivem ali.

Como eles vivem lá, visto que está faltando, como você diz, uma teologia
espiritual?

Quando a coruja chora, é Athena quem fala através da coruja. E esse


sentimento de que, onde quer que você esteja, há algo que pode falar
contigo, também é egípcio. A visão grega é semelhante à egípcia e
também à tribal africana, muito mais do que possam ser a visão budista
e cristã. Os Africanos, os Egípcios e os Gregos são semelhantes na
percepção do mundo prático quotidiano, as frutas, as flores, as pedras,
as rochas e as questões da vida – semelhantes ao fazer alma.

21
Cfr. Re-visione della psicologia, pp. 131-135; Picchi e valli. La distinzione tra anima e spirito come
fondamento delle differenze fra psicoterapia e disciplina spirituale (1976) in Saggi sul Puer, Milano,
Cortina2, pp.88 sgg.: Sale: um capitolo della psicologia e alchemica (1981), in J. Stroud e G. Thomas,
L‟intotta Archetipi e psicologia della verginità femminile, trad. it. Red. Como, 1987, pp. 132-164. trad.
parciale in Fuochi Blu (1989), a cura di Thomas Moore, trad. it., Milano, Adelphi, 1989, pp. 169-194 (Il sale
dell‟anima, lo soffo dello spirito).
22
Paganus (da pagus, „vila rural) em latim significa originariamente „rústico‟, „agricultor‟.
30

A volta dos deuses

Mas no nosso mundo prático diário, hoje, onde poderíamos encontrar


novamente os deuses?

No começo, Jung disse que os deuses expulsos das nossas religiões


voltam nas nossas doenças, nos nossos sintomas. Vamos pegar um
dos antigos deuses, Ares-Marte. Quando ligamos a TV, é como se
entrássemos em um templo de Marte, com seus altares. Vemos
explosões, automóveis que correm a velocidades assustadoramente
altas, pessoas que fogem, brigas, tiroteios: todo o movimento da
televisão é em si mesmo velocidade, mesmo na televisão das crianças
e nos desenhos animados. No sábado de manhã, na América, a
televisão apresenta um desenho animado após o outro, zzzzzz! zzzzzz!
“bang”, todos estremecem a uma velocidade tremenda. E esse é o
deus Marte, cuja retórica é velocidade, rapidez, contorção.23 Explosões,
incêndios, violências, armas, facas, paixões fortes, cenas de combates
e de guerra. Barulho, mortes, feridos, o campo de batalha, acidentes de
carro - este é o mundo de Marte. Grande parte da televisão é dedicada
a Marte, ao deus Ares, portanto, ela é um lugar onde a manifestação
de um dos deuses pode ser vista.

E onde está Afrodite, amante de Ares?

Podemos ver Afrodite, Vênus, em toda pornografia, em toda


publicidade, em toda mulher nua ou seminua, parcialmente coberta,
como nas poses clássicas de Afrodite.24 Cosméticos. Moda. Capas de
revistas. A deusa habita os quiosques, as vitrines das lojas, os brancos
das floristas. Está em todo lugar. Governa o desejo comercial de fazer
compras, de comprar. Entramos na Renascente e alguém se aproxima
de nós e nos faz: "Psiu! Posso fazer você experimentar essa nova

23
Cfr. Wars, Arms, Rums, Man. On the Love of War, in The Awakened Warrior, New York, Tarcher, 1994.
24
Pink Madness, or why does Aphrodite Drives Mad with Pornography, “Spring” 57 (1995).
31

fragrância”? Somos seduzidos na loja como em um templo de Afrodite


– ela está ali. Podemos continuar com outros deuses, mas esses são
os mais fáceis de encontrar.

Se Marte mora hoje na televisão ligada e Vênus nas grandes lojas, onde
mora Hermes? Você falou sobre ele em uma conferência em Santa Barbara25,
sobre o que chamou de intoxicação hermética, excesso de informação.

Eu já tinha falado sobre intoxicação hermética em uma conferência em


26
Turim. Veja. Qualquer divindade pode prevalecer ou tornar-se
monoteísta, e hoje, Hermes está em toda parte. Voa pelo éter, viaja,
telefona, ultrapassa todos os limites. Particularmente, Hermes se
encontra no mercado do acionista, visto que no mundo capitalista de
hoje, todos apostam na bolsa, realizam trocas, vão ao banco,
negociam, vendem, compram. E depois, claro, há a World Wide Web, a
rede mundial da Internet. Então, nós somos um estado de intoxicação
comunicativa e informática. Não importa qual seja a informação, não
importa com quem nos comunicamos, apenas fazemos e é uma
doença hermética - uma overdose, um monoteísmo de Hermes. Um
excesso de Hermes.

O novo monoteísmo de Hermes, portanto, teria removido os valores das


nossas mensagens, privando-as de um objeto profundo e até mesmo de um
destinatário real?

Veja. Nem mesmo o velho Hermes-Mercúrio preocupava-se com o


conteúdo da mensagem que transmitia. Sua tarefa era a entrega
rápida, uma espécie de Correio Aéreo Expresso: ele transmitia a
mensagem de um deus para outro, de um humano para um deus, de
um deus para um humano. A mensagem não importava, sua essência

25
Hermetic Intoxication‟s Obssession for Instant Information. Joseph Campbell and Marija Gimbuitas
Library, Pacifica Graduate Institute, Santa Barbara, 12 dicembre 1996.
26
Hermetic Intoxication: Archetypol Psycology looks into electronic Media, Università degli Studi di Torino,
Dipartimento di Psicologia, 6 maggio 1996.
32

era a comunicação - assim como hoje. O conteúdo da comunicação


pela Internet não importa.

Qual é, então, sua opinião sobre a Internet?

Sentado no computador, você pode ficar nu, comer pizza o dia todo,
nunca se lavar, não varrer o chão, não conhecer ninguém, andar sem
batom, sem falar, fora da moda, descalço, cabelo despenteado, e tudo
isso continuando conectado via Internet. Então, perdemos nosso corpo,
nosso estilo, nossa cultura. Essa é a Intoxicação Hermética. Hermes
tinha a mente rápida, os pés rápidos, os pensamentos invisíveis e,
além disso, era notoriamente fálico. Não é de surpreender, portanto,
que a Net nos ataca com pornografia, ou que é vítima de jovens piratas
que fazem piadas, ou vírus, que apagam a memória. Lembre-se de que
Hermes é o deus tanto da descoberta quanto da perda.

Como você avalia o mito de Bill Gates, da nova era eletrônica, que de
acordo com as expectativas de muitos deve mudar o mundo?

Eu acredito que ele faça parte da Intoxicação Hermética. Ainda temos


esse corpo físico e se pertencemos apenas a Hermes, não ouvimos
mais os outros deuses. Não mais Afrodite nem Hera, não mais Apolo
nem Musa. Nós não notamos mais nada, absorvidos pela nossa
comunicação eletrônica. Por isso, de fato, essa intoxicação é somente
a primeira fase de algo. Os sentidos, os sentidos humanos, a
sensualidade, podem nos salvar de muitos problemas.

E o que você pode nos dizer sobre o mito de Hera? Em tudo isso, onde
Hera foi parar?

Hera é sempre muito forte. Não está somente conectada ao


matrimônio, mas à estrutura profunda da sociedade, ao seu
conservadorismo. Um homem perde a própria mulher após uma longa
doença e assim encontra outra mulher, digamos que ainda antes de se
33

passarem seis meses. A boa sorte, a fortuna, trouxe-lhe essa felicidade


depois de muitos anos de sofrimento ao lado de uma esposa que ele
amava e que adoeceu e morreu. No entanto, a sociedade afirma que
ele não pode ter outra mulher tão cedo. Ele deve usar uma faixa preta
em seus braços, deve sofrer mais, sofrer pelo seu casamento, sofrer
pela morte da sua mulher. E assim os outros se tornam hostis a esse
homem, se implicam com a mulher, a nova mulher: tudo isso é causado
por Hera, que quer manter o controle sobre os valores tradicionais do
casamento. E, naturalmente, Hera nos convence de que a família é o
fundamento do estado. Influencia, assim, as nossas ideias políticas e
posteriormente, as nossas ideias sobre o imposto, as nossas ideias
sobre a herança. Ainda, o desejo de ter uma casa, gastar dinheiro com
mobília, receber convidados e tratá-los com respeito, está também sob
o domínio de Hera. Não é exatamente ou apenas ruim, é mais como
uma esposa despótica. Porém, está onipresente nas profundezas dos
julgamentos que reservamos para as relações sociais.

E o que aconteceu com Pan, o grande deus do qual deriva a palavra


pânico?

Pan incita o terror repentino que desconcerta. As suas aparições


clássicas ocorrem no deslumbramento do meio-dia, quando precipita o
homem e o animal na cegueira, ou à noite, no pesadelo, quando
acordamos paralisados e incapazes de mover-nos. 27 Ou aparece em
combate, na guerra, coincidindo com um susto mortal, quando no meio
da batalha, corre-se sem parar, a uma velocidade vertiginosa. Às
vezes, ele é visto na televisão, quando um estranho entra no prédio e
uma mulher corre, apavorada pelo apartamento, de um quarto para o
outro, ou corre para a rua. São momentos de pânico, momentos de
Pan. Porém, se refletirmos sobre o que isso representa em termos
psicológicos – percebemos que os animais também entram em pânico
– é um mecanismo de proteção. Os estudiosos do comportamento
animal chamam esse modelo de reação instintiva de fight or flight, de
27
Cfr. Saggio su Pan, pp. 121 e 47.
34

"briga ou fuga". Há sempre um momento na vida em que é preciso


fugir, e se alguém não tiver esse reflexo instintivo, pode acabar
morrendo instantaneamente.

Você questiona o instinto. Mas o que os deuses têm a ver com o instinto
humano ou animal?

Veja. Os deuses também são instintos que operam nos nossos corpos.
Trabalham com o desejo, com a fúria, com a depressão e usam
qualquer caminho físico. Então, esse impulso de fuga - pânico - serve
para nos dar um choque, para nos fazer fugir e salvar nossas vidas. Na
história de Eros e Psique, Pan salva a vida de Psique quando ela está
prestes a cometer suicídio. Há um momento em que ela quer se afogar
e ele a salva, como se dissesse que o momento de pânico também é o
momento que salva a vida. É mais do que possível pensar o pânico
não como destruição, mas como uma sequência instantânea de
paralisia e fuga. Pan devolve a psique à sua raiz, inerente ao instinto
natural, semi-animal, causando uma mudança radical de consciência,
um distanciamento total de onde estava antes.

28
Esse deus tem muito a ver com a vida adolescente. Em que
circunstâncias, o momento de puro instinto representado por Pan, irrompe na vida
de um jovem?

É a sensação de estar completamente sobrecarregado pela própria


natureza. Uma sensação que pode ser sexual e pode identificar-se no
momento do desejo, no instinto de caça à vista de uma jovem mulher,
em se tratando de um homem jovem. Mas pode igualmente ser o
momento em que o susto tranca a garganta e se procura escapar. Pan
vive isolado e, portanto, pode personificar o momento em que se
deseja absoluta solidão, afastando-se de todos: Pan mora sozinho em
uma caverna. Assim, Pan irrompe de muitas maneiras diferentes. Mas
o momento pânico jamais será um momento de violência, não é o
28
Cfr. ivi, p. 77.
35

instante em que se impugna uma arma, disparando-a em alguém. É


outra coisa. Ele vem de dentro, é um sentimento instintivo. Não é ira.
Está mais perto do medo do que da ira. Não temos imagens de Pan
irado, mas sim, isolado.

Pelo modo como você o descreve, Pan parece ser o deus da maior
ambiguidade.

Eu lhe disse antes de começar que esta não seria uma pesquisa sem
obstáculos. Eu tinha minhas dúvidas de que uma pesquisa sobre Pan,
poderia dar resultados homogêneos e abrangentes. Depende do fato
de que Pan é uma experiência selvagem e natural. Pertence à
natureza, escapa de qualquer esquema lógico. De fato, Pan é um
grande constrangimento para a nossa consciência civilizada moderna -
assim como D. H. Lawrence, o grande escritor de pânico do século XX.

No entanto, Pan é uma vasta experiência, por definição universal.

É o deus do qual mais foi falado ao longo do século XIX, também na


literatura, até, precisamente, em Lawrence. É a figura dominante. É o
Anticristo, o espírito da natureza.

Há um momento na história do mundo antigo em que, para usar as


palavras de Plutarco, ecoado pela filosofia do século XIX, "o grande Pan está
morto".29 Mas por que Pan está morto?

Em parte, porque não se acreditava mais que a natureza pudesse falar.


A natureza – as árvores, as rochas, a água, os rios – foram criados por
Deus, mas não eram deuses em si. Havia apenas um Deus, lá em
cima, que enviara seu filho Jesus Cristo para a Terra, e esse mito
substituiu todos os outros. Um dos primeiros teólogos Bizantinos,
Gregório di Nazianzo, escreveu: “Nós mantemos todo pensamento

29
Plut., Marc., 419 c-d (De defecto oraculorum. 17: “Il grande Pan è morto).
36

30
prisioneiro para Cristo". Ele quis dizer que todo o pensamento
concernente à terra, às rochas, às flores, à manhã, ao amanhecer, e
tudo o que tem a ver com a vida, deve ser entendido através do mito
cristão. O mito cristão afirma que existe apenas um Deus e que Deus
tem um Filho e que esse Filho morreu pelos nossos pecados. Os
outros deuses devem desaparecer e, de fato, desapareceram. Porque
foram removidos, eles se esconderam no subsolo e, como Jung
afirmou, só ressurgiram nas nossas doenças e, segundo Freud, o
removido sempre retorna.

Lembre-se do poema de Ezra Pound sobre os deuses gregos, intitulado


Retorno? "Olha, retornam, um a um, / com medo, apenas meio acordados..."

Exatamente. E se nós fizermos a pergunta: hoje para onde eles


retornam? Veremos que os deuses retornam nos nossos sintomas, e é
por isso que a psicologia é o lugar aonde vamos nos encontrar com os
deuses. Não encontramos os deuses nos museus. Nós os
encontramos no que foi removido, no que é esquecido.
Assim, o grande Pan morreu, juntamente com os outros deuses do
politeísmo, quando Cristo se tornou o soberano absoluto. Por que o Cristianismo
deu, posteriormente, o aspecto de Pan ao Diabo do casco do bode?

É um fato muito interessante que tantas representações do Diabo o


apresentam com pés de bode, cabelos, barba e um falo: Pan é de
natureza animal. Se refletirmos sobre o que isso significa, poderíamos
dizer que a própria natureza se torna, com o cristianismo, diabólica e
amaldiçoada. A sexualidade é amaldiçoada, a natureza instintiva é
amaldiçoada, e nós então nos sentimos feios, sujos e ruins. Nem
mesmo no seu melhor, a natureza pertence ao bem ou ao bom. Não é
redimida, deve ser redimida. Agora, se a sexualidade é amaldiçoada,
se o corpo é amaldiçoado, se a natureza é amaldiçoada, a vida é
terrível de se viver: porque estamos imersos no pecado. Esse foi o
pensamento cristão por séculos. E, talvez no Vaticano, ainda exista
30
Gregorio di Nazianzo, Or. 43 (Encamium Basilu). Migne. PG 36, Col. 508. Cfr. 2 Ep. Cor. 10,5.
37

quem pense assim, que o pecado passa pela natureza e devemos ser
redimidos, batizados, ou de qualquer forma, porém, redimidos. É uma
condição difícil de viver, mesmo que seja elaborada com a teologia
mais sofisticada.

É a essa condição que você aludiu antes, então, quando disse que, em
algum momento na história do pensamento ocidental, o mundo se dividiu, e havia
algo para dar a César e algo para dar a Deus. Distinguiu-se entre a religiosidade e
o mundo, entre a redenção ideal e a vida vivida?

Eu não sou o teólogo, mas todos nós sabemos que a história ocidental
testemunhou muitas tentativas para sanar essa divisão: São Francisco;
o culto de Maria, cuja beleza recuperou o mundo; Nossa Senhora
Negra; alguns Místicos Criativos... Contudo, mesmo que a dicotomia
não é sempre e nem necessariamente absoluta, a ideia básica
segundo a qual, de qualquer forma, a pessoa natural é inferior, ainda
está operando na nossa psique ocidental. E essa ideia de inspiração
cristã continua a remover Pan. E é por essa razão que muitos artistas
como Shubert, se pudermos citar um músico, ou D. H. Lawrence, ou
Heinrich Heine, na Alemanha, ou Shelley e Keats - os Românticos, os
Neoclássicos - se voltaram para a Grécia e ao paganismo para libertar
sua imaginação e seu instinto. Eles procuraram se libertar dessa
opressão, que degradou sua natureza, limitando-a e a aprisionando.

O mito como terapia

Portanto, você encontra, em toda parte, a confirmação do que teorizou


antes: a função não tão religiosa, mas psicológica do mito.

Eu entendo que o mito pode ter um efeito terapêutico se conseguirmos


pensar miticamente. Vamos dizer assim: se temos uma grande
inquietude, o que os psicólogos chamam de “um problema”, o primeiro
passo para sair dele é perceber que no centro do problema em questão
38

existe um mito. Então, entendemos que, em questão, não somos


apenas nós como indivíduos, não somos nós, pessoalmente e
integralmente a causa dessa inquietação. A minha doença não é uma
pura e simples doença pessoal: há também um paradigma
infinitamente maior. É um caso mítico a operar em mim. Aqui está uma
das vantagens de pensar miticamente. Torna a psique menos
individual.

Esse é o primeiro passo. E então?

Segundo passo. Isso significa que nosso sofrimento e nossa própria


psique se tornam um problema cultural geral - também existe isso!
Somos todos oprimidos por uma tirania, causada por Hera, que diz
respeito à sociedade. Não é somente questão do meu ou do teu
casamento: o casamento é um arquétipo e no arquétipo estão
inerentes um deus ou uma deusa, o que sempre causará perturbações.
Assim, adquire-se uma visão mais ampla do que é a perturbação. E
então se aprende os padrões dessas perturbações - seu desígnio, o
traço segundo o qual os mitos operam na vida humana.
Os mitos, então, operam em nossa vida de acordo com um enredo?

Veja. Há outra coisa muito importante sobre o mito. A psicologia nos


diz: tu tens um problema. O mito nos diz: tu tens uma tragédia. Quando
temos uma tragédia, vamos muito mais fundo na reflexão sobre a vida,
a morte, o sofrimento, a compaixão, o destino humano, e não tentamos
resolver o conflito como um problema mecânico.

Portanto, a terapia, o mito, é o sentido trágico da vida?

O sentido trágico da vida é extremamente importante, porque é dele


que deriva a arte. Se o temos, nossa vida está muito mais próxima da
contemplação artística do que do impulso de uma solução mecânica
para os problemas. Aprendemos mais com a arte, sobre os nossos
problemas, do que com uma psicoterapia baseada no princípio de que
39

as perturbações são disfunções determinísticas e mecânicas, resultado


de incidentes remotos em um passado distante. Neste sentido, o mito é
extremamente benéfico para analisar o que acontece entre nós e
nossos filhos, nossos maridos, nossas esposas, nossos amantes. Nós
simplesmente não cometemos um erro - podemos dizer a nós mesmos
- é o mito que sempre atua em nosso modo confuso de ser.

Os grandes psicanalistas adoram contar seus casos clínicos exemplares.


Você poderia nos ilustrar um caso de cura através do mito?

Tome um pai e um filho. O pai gostaria de ajudar seu filho, mas toda
vez que a criança dá um passo no mundo, o pai encontra algo errado
com ele. É mais forte do que ele. Então ambos, o pai e o filho, vão ao
terapeuta para conversar e fazem um amplo reconhecimento por toda
parte. Descobre-se que o pai não estava muito conectado ao seu
próprio pai. Que o pai e o filho têm o mesmo tipo de traços. Ou que, ao
contrário, apresentavam características e tipologias diferentes. Ou que
o pai nunca conseguiu confiar no filho porque nunca confiou em si
mesmo. A terapia pode abrir infinitas vias de compreensão. A
rivalidade, o ciúme, a homossexualidade reprimida e assim por diante.
Mas se estivermos cientes do mito de Cronos e soubermos que o pai
ainda devorará seu filho - sempre - a coisa se torna basilar, é adquirida.
O pai é capaz de pensar: não posso não devorar meu filho, mas posso
não fazê-lo literalmente. Eu vou saber que isso acontece, vou esperar
que isso aconteça, vou prestar atenção a esse fenômeno, não vou
tentar reprimi-lo e direi ao meu filho: "Sabe, sempre me comportarei
assim contigo, assim como sempre queres me matar, como Zeus
matou Cronos. Você vai tentar me matar e eu vou tentar devorar você e
isso é um fato em nossas vidas. Agora, vamos ver o que podemos
fazer sobre isso". Então as coisas mudam, essa história se torna outra
história. Em vez de lutar um contra o outro, os dois têm um mito, um
enredo que lhes diz por que eles estão lutando entre si. Eles estão
ligados reciprocamente pelo mito e solidários no mito. Eu acredito que
os Gregos viveram assim, porque conheciam essas histórias. Nós não
40

as conhecemos mais. Quanto aos pais e seus filhos, nós só


conhecemos uma única história, que Freud nos contou, isto é, aquela
em que estamos disputando nossa mãe – apenas aquela. Mas a
antiguidade e o Renascimento tinham histórias sem fim, e uma vez que
a vida é estruturada na tragédia por histórias arquetípicas, a
consciência se movimenta para outro nível, mesmo que, por isso, o
nosso "problema" não se resolva.

A irrupção de uma imagem

Em um de seus livros,31 você deu o exemplo memorável do menino que


trabalha como cozinheiro, em um self-service, onde é explorado e mal pago,
porém, carrega dentro de si a energia do puer e continua a fluir nele a pegada da
Criança Divina que se transforma em sentido de singularidade.

É muito importante perceber que o mundo material - hoje o mundo


industrial - não prejudica totalmente nossa privacidade. A privacidade
da nossa imaginação, do nosso ser especial e do nosso anseio por
beleza está sempre presente, não é necessariamente eclipsada pelo
que fazemos. Nós somos sempre o sonho de algo. Isso não quer dizer
que não deve haver maneiras de trabalhar melhor, ou que não
devemos combater a injustiça e a opressão. Significa apenas que
temos que dar valor à irrealidade, àquele sentido de anseio eterno
próprio do puer.

Irrealidade no sentido de inexistência, do que não existe?

Sim. O irreal, o inexistente é mais importante do que o real, o existente,


para quem se encontra em situações muito duras. Assim, o jovem se
mantém vivo não esquecendo o sentido da irrealidade. Ele não está
interessado nas panquecas que prepara nem no que pode consumir.
Está interessado no que está fantasiando e é um estado de graça

31
Intervista su anima e Psiche, a cura di marina Beer, Bari, Laterza, 1984, p. 130.
41

muito sedutor. Essa eterna figura juvenil, o puer aeternus, aparece em


muitos filmes: é o personagem do jovem sem um sentido prático, mas
sensível, poético, que faz as mulheres se apaixonarem. No nível da
vida cotidiana está desesperado, mas tem uma vida na imaginação, e
acredito que é tarefa da terapia analítica manter viva a vida da
imaginação. A resolução dos 'problemas' é secundária em comparação
à manutenção da imaginação viva.

Frequentemente se entende a imaginação como sobreposição de


fantasias. De acordo com o que você está dizendo, seria, em vez, a capacidade
de perceber o aspecto mítico, enigmático de cada instante da vida. Jung afirmou
que “a imagem é psique”. Você definiu a poesia como o que nasce “da irrupção
da uma imagem”. Mesmo que os pacientes não sejam poetas, não existe, então,
uma base poética em sua perturbação? A barreira oposta à imaginação não pode
ser a causa disso? E se assim for, não poderíamos considerar a própria análise
como um processo poético?

Depende do tipo de análise que estamos falando. Eu acredito que o


processo da psicanálise tradicional causa danos ao fluxo poético,
porque racionaliza o processo criativo, devolve a poesia à razão e a
reduz, ao fazê-lo. Tanto é verdade que na América o psicanalista,
conhecido, é chamado de psiquiatra. A ideia subjacente à análise, a
partir de Freud, é racionalizar o irracional, levar a metáfora para o
conceito.

Isto é, por exemplo?

Por exemplo, isso significa que, se em um sonho há uma cobra, nós


não devemos cuidar da cobra, mas nos preocupar em chamar a cobra
de nosso "problema materno" ou de nosso "problema sexual". Mas o
sonho não nos enviou um problema sexual ou um problema materno. O
sonho nos enviou uma cobra, uma cobra preta, e a imagem relevante
para a imaginação é a cobra preta - e isso é também o fato relevante
42

para a psique.32 A análise traduz a imagem em conceito, a cobra em


qualquer outra coisa, e é dessa tradução que desconfio. Eu prefiro falar
com o paciente sobre a cobra preta por uma hora, sobre o que faz, do
que quer quando vem até nós, do que fazemos com a cobra e assim
por diante, para manter a imagem viva, que é uma modalidade de
pensamento muito primitiva. Podemos estar no Brasil ou na Índia e
falar da mesa maneira, e a ninguém viria em mente de perguntar: mas
era uma cobra verdadeira? Não importa se é verdade, desde que
mantenhamos a cobra viva.

O bestiário dos sonhos, sem o qual, de fato, não haveria uma boa metade
da arte literária ou figurativa, tem, portanto, de grande importância.

Eu coleciono sonhos sobre animais, por quarenta anos. Tenho uma


enorme coleção de sonhos sobre animais - acabei de terminar um livro
sobre esse assunto. 33 Os animais dos sonhos são poderosos. No
mundo Greco, todos os deuses tinham forma de animais. Na maior
parte das sociedades arcaicas, incluindo as que ainda existem, os
animais são formas do Deus. Porém, quando a cobra entra no nosso
sonho, não sabemos o que ela efetivamente significa, mas pode ser um
dos muitos deuses. Se o traduzirmos como um problema materno, tudo
o que fazemos é subtraí-lo do mundo mítico e colocá-lo em um jornal
moderno. E nós substituímos o sexo ou a nossa mãe por um deus.

Vamos voltar para a primeira pergunta então. A noção da base poética da


mente 34 é essencial para a psicologia arquetípica, da qual você é fundador.35 Em
uma de suas cartas inéditas ao poeta Giuseppe Conte, que lhe perguntara se
seus pensamentos poderiam ser formulados em termos de uma verdadeira
poética, você escreveu: “Os fundamentos da nossa mente não são nem
ideológicos, nem biológicos, nem linguísticos, mas poéticos”.

32
Cfr. FurtherNotes on Images. “Spring” 1978, p. 164. Intervista su amore, anima e psyche, pp. 90-107.
33
Dram animals (com Margot McLean), San Francisco, Chronicle Books, 1998. Cfr. Il regno animale nel
sogno (1982), trad. it. in animali del sogno, Milano, Cortina, 1991.
34
Re-visione della psicologia, p. 17.
35
Vd. Enciclopedia Del Novecento, V, V. s. Psicologia Archetipica, Roma, Istituto della Enciclopedia
Italiana, 1981, pp. 814 ss.
43

Na verdade, os fundamentos das nossas mentes e não dos nossos


cérebros. Os nossos cérebros podem ser impregnados de sangue,
hormônios, mutações químicas e elétricas e assim por diante, mas as
nossas mentes fundamentalmente produzem imagens. A matéria
poética – metáforas, símbolos, palavras – é o mistério fundamental da
mente humana. Não é um fato social, tampouco um fato psicológico,
nem isoladamente lógico, nem puramente biológico. É muito importante
lembrar, pois hoje tratamos o cérebro como se fosse a mesma coisa
que a mente.

Uma devoção furiosa

Sobre mente, percepção, símbolos. O vermelho e o preto dividiram a


humanidade. Porque esses dois símbolos tiveram tanto controle sobre a raça
humana?

É uma ótima pergunta. O vermelho e o preto são somente duas cores


em três: há também o branco. Universalmente, em todas as culturas,
cuja memória foi preservada, aparecem essas três cores. Primeiro o
preto e o branco, a escuridão e a luz. O vermelho é sempre a terceira
cor. Agora, às vezes, na Europa, por exemplo, na Áustria digamos, e
também na Holanda, ou na Inglaterra na Guerra das Duas Rosas, o
vermelho se contrapõe ao branco. Nas relações raciais, às vezes, o
preto é oposto ao branco, ou o branco, às vezes, é oposto ao preto. Ou
então, o preto é contra o vermelho, a Igreja contra os Leigos e assim
por diante. Porém, diante de uma dualidade de cores há sempre uma
oposição: vermelho e preto, vermelho e branco, branco e preto, e
assim por diante. No momento em que o terceiro termo é introduzido,
como na Índia – os rajás, os tamas e os sattyas, vermelhos, brancos e
negros, ou na África ao sul do Saara, ou nas tribos indo-americanas,
eles têm três cores diferentes, que em nosso mundo ocidental são
equivalentes à matéria, alma e espírito, isto é, ao corpo, alma e
44

mente.36 Quando o três se reduz a dois, quando a psique é forçada a


entrar no corpo, ou confundida com o espírito, então as cores são
somente duas e expressa uma guerra, um conflito, uma luta. Temos
necessidade de todas as três, porque então temos toda a base
arquetípica ou a estrutura da realidade, e isso é o que sustenta o
antropólogo Turner: as cores não são simplesmente tintas, mas são as
forças fundamentais da vida do universo. 37 Portanto, não devemos
perder nenhuma das cores e, além disso, não devemos considerar
nenhuma única cor como cor negativa. Do mesmo modo, em vez, o
vermelho que foi considerado por cinquenta anos na Europa Ocidental,
porque simbolizava a Rússia soviética, ou antes, porque representava
os Índios da América aos olhos dos Europeus brancos, ou o preto que
sempre foi considerado cor negativa, ou para os Chineses, o branco,
porque significa morte. É muito perigoso sustentar que cada uma das
cores tem um único significado, por exemplo, pressupor que o
vermelho signifique apenas perigo e fogo, ou somente amor e paixão.

Quanto ao amor, cito uma frase sua: "O amor é mais importante que a
consciência, porque força a imaginação a pesar sobre nós, tanto quanto a
realidade”. Portanto, mesmo na esfera amorosa, como na fantástica do puer, é
desejável perder o sentido da realidade?

O amor torna a imaginação muito importante: é essa a atitude do amor.


É o grande ativador da Psique: tira-a do sono, com fantasias de ciúme,
fantasias de poesia, fantasias de sexualidade. Fantasias. A inspiração
de amor é mais importante que os sentimentos de amor. Às vezes, eu
penso que as pessoas se apaixonam quando a sua imaginação está
morta, com o propósito de acordar a imaginação, e não por causa da
outra pessoa. Não sabem nem ao menos quem é a outra pessoa. É por
isso que o amor é cego, não? Mas sua imaginação se enche de amor
instantaneamente.

36
Cfr. Re-visione della psicologia, pp. 131-135.
37
Cfr.V. Turner The Forest of Symbols, Ithaca, N. Y., Cornell University Press, 1987, pp. 88-91.
45

Você propôs separar o amor, o Eros, da noção de um casal, daquilo que


você chama de „díade‟. De acordo com isso, é necessário deixar o amor produzir
seus infinitos triângulos. 38 Mas isso também não desencadeia uma série de
sofrimentos psíquicos – chamamos de dores, como as de Werther, ou os
protagonistas das Afinidades eletivas?

Sim. É assim. O amor, efetivamente, cria aflições. Mas existem


diversos tipos de aflições, e uma das primeiras é o próprio casal, que
não deixa espaço ao movimento. Eu penso nos casais estreitamente
conectados, tão próximos que a vida a dois é uma constante tentativa
de distanciar-se um do outro para fugir das correntes que os
aprisionam. O amor como prisão: essa é uma das aflições. O triângulo
é outra aflição, mas o valor do triângulo é que seus componentes criam
fantasias, acendem a imaginação. Duas pessoas estão juntas e
pensam em uma terceira: quem ele está vendo? Ele ainda está se
lembrando da amante anterior? Não é nem mesmo necessário que seja
um triângulo efetivo, real. É um pouco como naquelas séries em que
um homem e uma mulher fazem amor e ambos estão pensando em
outra pessoa, como se qualquer outra coisa, um terceiro fator, fosse
absolutamente importante, necessário. Se olharmos para a imagem
mais perfeita do Amor Divino, vemos José, Maria e Jesus, uma imagem
triangular, bem como Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
Existe um mistério no triângulo. Por outro lado, os casais são
completamente compreensíveis. Muito normais. Onde o triângulo abre
algo em nós para uma fantasia mais psicológica. O que não significa
que devemos, necessariamente, viver o triângulo, mas a fantasia é
importante.

Contudo, o triângulo não é realizado na própria família?

Na família, temos um marido e uma esposa sentados conversando, e


tudo vai bem, eles estão tendo uma conversa agradável depois do
jantar. Então a filha entra na sala e, eminentemente algo acontece. O
38
Intervista su amoré, anima e psiche, p. 154.
46

pai diz: por que você usa seu cabelo assim? A mãe diz: não a critique.
O casal se torna um triângulo. Emoção. Imaginação. Excitação. O
terceiro, o outro deve estar presente para que a vida esteja viva. É por
isso que o ciúme é tão terrível. É tão destruidor da vida porque insiste
em querer eliminar o outro. Porém, o ciúme é o primeiro passo fora do
casal, o primeiro passo, para o reconhecimento do triângulo.

Nisso, então, você concorda com Freud?

Sim, desde que o triângulo edípico seja visto apenas como um dos
possíveis tipos de triangulo.

Você afirmou que se Petrarca ou Dante fossem fazer análise e contassem


que tinham se apaixonado por uma menina vestida de vermelho, vista na igreja, o
analista falaria imediatamente de um complexo que foi ativado?

Eu acho que é verdade. É ilegal, tem apenas treze anos. Pedofilia.


Parece um filme de Roman Polanski. O lado Era da análise é muito
convencional, representa a conformidade com a norma social. Mas
Dante, Petrarca, o poeta e a psique têm as próprias ideias. Devemos
pensar neles e não somente nos manuais convencionais de
psicoterapia. Para o trabalho psicoterapêutico, é necessária uma visão
de longo alcance. Um fundo cultural que fornece exemplos mais
amplos dos que vemos hoje como patologia. Devemos ser muito
cautelosos, cuidadosos para não destruir o movimento da alma quando
tratamos de uma estranheza, uma anomalia social. Nós não sabemos
quais impulsos incomuns podem revelar, ou por que eles podem até
mesmo ser necessários.

Um novo Nietzsche

Além do bem e do mal, em suma. Alguém fala sobre você como um novo
Nietzsche – também ele um defensor do triângulo – e, realmente, o seu
47

pensamento influenciou profundamente a segunda parte do Século XX e


influenciará, provavelmente, o ano Dois mil, assim como o pensamento de
Nietzsche influenciou a primeira parte desse século. Qual a sua opinião sobre
Nietzsche?

Nietzsche é convencionalmente considerado um filósofo. Mas quando


eu estava estudando filosofia, anos atrás, meu professor fez um curso
sobre Nietzsche para afirmar que ele não era um filósofo, porque não
acreditava na filosofia, nem elaborava a filosofia de modo ortodoxo. Eu
penso que Nietzsche seja aquele que os franceses chamam de
philosophe, um pensador, é o que hoje nós chamamos de psicólogo
cultural. Era um psicólogo da cultura – não criou um sistema coerente.
Não se ocupou com a epistemologia, não foi um metafísico. Não
pertence a uma tradição padronizada. Eu acho que esse é o aspecto
no qual eu me conecto com Nietzsche, na qualidade de psicólogo
cultural que procura compreender como a psique humana opera na
cultura - e este é o primeiro ponto.

Por quê? Há um segundo ponto?

Como não? Segundo ponto: a Umwertung (reavaliação), a subversão


de valores e o reconhecimento de que os valores cristãos são fardos.
Todos conhecem as virtudes da cristandade, tampouco as necessito
mencionar, são evidentes, mas as pulsões destrutivas que elas
causaram, e a abolição do mundo grego... Nietzsche também procurou
devolver o mundo grego e também o mundo bíblico pré-cristão à
modernidade e eu também estou interessado na mesma coisa.

Nenhuma outra afinidade?

Há também algo mais em Nietzsche que considero muito importante, e


é sua devoção furiosa, sua capacidade de seguir as próprias paixões.
Ele era realmente capaz de adorar uma expressão criativa, como
Wagner, e é verdade que em seguida entendeu o homem, superou a
48

paixão, deixando-a ao próprio destino, mas também é verdade que


Nietzsche se entregou à paixão e sofreu pelas ideias da paixão que
sentia. Veja. Hoje nós não temos muitas pessoas cultas que sejam
realmente excitadas pelo pensamento. Os intelectuais de sucesso são
apaixonados pela própria personalidade, pela novidade, pela fama.
Mas eles realmente amam as ideias? Nietzsche sim, as amava.

E nisso você se sente um discípulo de Nietzsche?

Todos nós temos necessidade de aprender com Nietzsche. Devemos


ser capazes de pegar uma ideia e compreender o papel que ela
desempenha – ver para onde vai e aproveitá-la. Pegá-la e perguntar-
nos imediatamente como podemos nos enriquecer com essa ideia,
como funcionará na prática, como ajudará a nossa vida, o que fará pelo
nosso casamento, oh, isso mata a ideia. Isso só a torna útil. Em vez
disso, precisamos procurar a ideia em si e para si, conversar com ela e
deixá-la simplesmente agir em nossas mentes e em nossa vida.

Baudelaire estava se referindo a esse diálogo solitário com a ideia, a


escrita, que é um trabalho intelectual, quando disse que necessitamos trabalhar,
se não por prazer, ao menos por desespero, porque trabalhar é menos entediante
do que se divertir. Você concorda?

Eu acho que ele estava certo. É muito mais chato tentar se divertir.
Mas há uma parte da jornada que não tem nem diversão e nem
trabalho, e que na América chamamos de downtime, ou seja, tempo de
inatividade, em que não fazemos nada. É um conceito que me
interessa muito. O que as pessoas fazem durante o seu downtime?
Assistem televisão? Vão às compras? Ou não fazem nada? Uma vez
as pessoas costumavam sair e conversar fiado nos cafés. Na América
não temos a instituição dos cafés onde se vai conversar fiado, e temos
um problema de downtime. A televisão se tornou hoje a principal
atividade de downtime, porque não é nem diversão, nem trabalho. É o
49

vazio e isso é interessante – o que fazemos com o nosso vazio. Não é


depressão, somente vazio, inércia.

O que você faz com o seu vazio? Consegue não ficar deprimido?

Eu assisto televisão para manter a mente ativa, mas não interessada.


O tipo de programa é irrelevante. Desligo antes de o programa
terminar. Eu alimento as galinhas - tenho galinhas e patos, e assim
saio das galinhas e patos, às vezes, leio o jornal e isso é um excelente
downtime. Em seguida faço trabalho caseiro, manual – lavo a louça,
cozinho, lavo roupa íntima, ou coisas do gênero e tudo isso é
downtime.

Como você escreve quando trabalha? Manuscrito ou datilografado? Ou usa


o computador? E se assim for, isso mudou a sua maneira de construir a escrita?

Começo com a caneta, num bloco, depois datilografo o que escrevi,


recorto e colo, reescrevo, colo e reescrevo. Então eu entrego a uma
secretária, que digita no computador. Em seguida ela me devolve e,
nesse momento, eu recomeço tudo desde o início. Mas eu recomeço
com a caneta.

Você tem um diário? Você usa cadernos para escrever? Caso contrário,
onde você anota seus pensamentos?

Eu não uso cadernos. Nunca os tive, mas quando um pensamento me


vem, eu anoto em qualquer pedaço de papel que está ao alcance das
mãos. Por exemplo, nas antigas tavernas de Zurique, escrevi
anotações na toalha de papel que cobria a mesa. Eu ainda faço isso.
Eu rasgo artigos de jornais ou revistas em aviões. Guardo todos os
tipos de pedacinhos de papel, mas não tenho um diário. Não.

Você mantém esses pedaços de papel em uma pasta, ou como os guarda?


50

Eu tenho vários arquivos, sobre os vários tópicos pelos quais me


interesso, ou sobre os objetos de trabalho que eu poderia fazer um dia.
Embora, na minha idade, agora esses arquivos se tornaram
verdadeiros cemitérios de crianças mortas.

Como você ordena a sua biblioteca?

A minha biblioteca é muito, muito bem organizada. Tem prateleiras


divididas por tema: poesia, crítica literária, filosofia, psiquiatria, história
da medicina, neoplatonismo, repertórios, novelas. E, naturalmente,
uma prateleira é dedicada ao Renascimento italiano. Eles estão
espalhados em salas diferentes porque eu tenho uma casa grande.
Portanto, eu tenho livros em todo lugar, mas são muito bem ordenados.

Quando você escreve, anota os livros com caneta ou lápis?

Nos livros? Eu frequentemente anoto com qualquer coisa. A lápis,


também porque, contudo, não escrevo muito, prefiro sublinhar,
desenho alguns sinais para encontrar uma passagem, mas esse é o
meu gênero principal de anotação. Não, eu não escrevo notas nas
margens, pelo menos não muitas.

Você ouve música quando escreve, ou adora trabalhar em silêncio?

Oh Deus! Silêncio. Estou muito velho, não consigo fazer o que as


pessoas de hoje fazem. Conseguem desdobrar as próprias mentes de
modo a escutar música, ler e escrever, tudo isso ao mesmo tempo. Eu
não consigo – minha mente já está bem dividida. Uma coisa de cada
vez. Quando trabalho, nada de música.

E quando você não trabalha, certamente terá uma música favorita, que
particularmente gosta, ou pelo menos te faz lembrar algo, provoca uma emoção.

Veja. É estranho. Eu ouço o que chamo de música clássica desde que


tinha doze anos ou ainda menos. Eu tinha os meus discos pessoais e o
51

hábito de deslocar-me, quando jovem, para ir assistir a Orquestra


Phipadelphia quando era convidado para algum concerto em nossa
cidade. Ainda hoje gosto de quase todas as músicas clássicas. Sou
muito romântico, e ainda assim não gosto de Liszt, Cajkovskij me
cansa, tenho problemas com Schumann e não tenho nenhuma
implicação para com Schubert, nem pelos seus Lieder, e tudo isso é
vergonhoso dizer. Eu gosto de Brahms, em vez disso, e enormemente
Mahler e Richard Strauss e Stravinskij, e depois Beethoven, os
quartetos naturalmente, os músicos clássicos mais antigos, mas não
amo a música medieval e não gosto da música popular. Também isso é
muito, muito vergonhoso. Eu conheço melhor o que eu não gosto do
que o que eu gosto. Mas eu amo as vozes femininas que cantam
ópera.

Quais áreas em particular?

As vozes femininas no Cavaleiro da rosa. Existem vários tercetos e


duetos nesta obra que são extraordinários. Também o Vier letzte
Lieder, os Quatro últimos Lieder, sempre de Strauss.
Você se identifica com uma voz feminina, com uma mulher?

Não. Eu não me identifico com a alma feminina, mas a adoro.

As áreas femininas. A voz da alma? Nada mal, como trilha sonora de seu
pensamento.

Se falarmos de trilha sonora, eu não hesito: a minha é Strauss.

Eu o teria associado mais com Mahler do que com Rosenkavalier. Ele


também tem antecedentes vienenses. O fim da Áustria (finis Austriae).

É verdade. A era de Mahler e Freud.


52

A paixão de Hillman pela alma


Silvia Roncley

A queda do império romano do ego

Psicologia é, ao pé da letra, Logos mais Psique. Etimologicamente, a


palavra significa „razão ou discurso, ou uma história inteligível da alma‟. Segundo
James Hillman, a tarefa da psicologia é encontrar um logos para a psique, dar à
alma um relatório adequado de si mesma'.39 Se o mundo é „o Vale de fazer Alma‟,
segundo uma frase de John Keats que se tornou o manifesto do pensamento de
Hillman,40 por outro lado, para equilibrar tudo isso, a alma tem uma relação eletiva
com a morte, uma necessidade suicida invencível,41 uma afiliação com o mundo
infernal.42 Por que qual é, senão a morte, o fim consciente e removido de cada
vida? E é precisamente a perda de uma relação consciente estreita com a morte,
com a indispensável incerteza da vida, com a onipotência do submundo, a
sancionar aquela "perda de alma" na qual Hillman vê o pecado mortal da cultura
moderna ocidental.
Trata-se do mesmo erro ou pecado que Freud e Jung se propuseram
emendar “para aliviar a infidelidade do homem moderno, preso na decadência do
Ocidente”. 43 Mas nenhum dos dois pais fundadores da psicanálise pressionou
realmente para desafiar o "ego" dos modernos, a condenar a "evidência", como
Hillman escreve, "de uma tradição monoteísta de dois mil anos que eleva a
singularidade sobre a multiplicidade": para manter o que Hillman chamou de a
queda do Império Romano do ego.44
A necessidade de reconstruir uma antiga polis sobre aquelas ruínas e
restaurar uma perspectiva politeísta ao domínio da psique, antes de chegar às
duas obras famosas, o Ensaio sobre Pan e Revendo a Psicologia foi formulada
por Hillman em dois artigos manifesto, no começo dos anos Setenta: Psicologia

39
Psicologia archetipica, p. 817.
40
“Chiamate, vi prego, Il mondo „la Valle der fare anima‟. Allora scoprirete a che cosa serve Il mondo”. Cfr.
sopra, p. 18. n. 8.
41
Il suicídio dell‟anima, vd. in part. pp. 46 sgg.
42
Cfr. Il sogno e Il mondo ínfero, pp. 32 sgg.
43
Psicologia archetipica, p. 818.
44
Re-visione della psicologia, pp. 66 sgg.
53

monoteísta ou politeísta e O cisma como expressão de diferentes visões. 45


Começando com Jung, Hillman identificou a recuperação da alma no mundo com
a possibilidade de recriar uma psicologia "politeísta" polimórfica, anti-individualista
e anti-monocêntrica. Esse ego "meridional", mediterrâneo, grego, pagão e anti-
monoteísta, está na antítese do "ego nórdico", heróico, aparentemente
indissolúvel da tradição do Ocidente. Na verdade, escreve Hillman, um mito como
os outros, não melhor do que os outros, como dominante na nossa filosofia, em
particular do século XIX e, portanto, na psicanálise tradicional. E ego “ariano,
apolíneo, alemão, positivista, voluntarista, racionalista, cartesiano, protestante,
sistemático, personalista, monoteísta,” alimenta o que Hillman chama de a
neurose nórdica.

Descida ao inferno

A referência essencial a Nietzsche e Schopenhauer, Kant e Goethe,


confere à psicologia junguiana "um pano de fundo mais distintamente alemão,
com uma coloração psiquiátrica cristã”. A psicologia arquetípica de Hillman
“sente-se, em vez, mais confortável no sul dos Alpes". 46 Nesta volta ao ego
austral da alma, em vez de ver sua redenção nas figuras de elevação e ascensão,
está disposta a perceber a figura da descida como o único caminho possível para
o resgate e o reconhecimento de si mesma.
Ora, a metáfora da profundidade é certamente comum a toda pesquisa
psicanalítica, que desde Freud sempre foi dirigida para baixo, uma questão de
desenterrar as memórias individuais da infância, ou uma remoção universal e
ancestral. Porém, de acordo com Hillman, essa nekya provisória em um
submundo de prisão, sempre objetivou o ressurgimento da psique curada e ativa,
assim como ressurge o herói na Flauta Mágica de Mozart, ou no mito wagneriano
de Siegfried. A descida da alma prospectada por Hillman quer aprofundar, em
vez, uma condição de existência que é permanentemente infundida em si
mesma.47 Quer ser a consciência da relatividade de um ego visto como nada mais

45
Psicologia monoteísta o politeista? (1971). trad. it. in Il nuovo politeísmo: Lo scisma come espressione di
visioni differenti (1971), trad. it. in Trame perdute.
46
Psicologia archetipica, p. 814.
47
Cfr.Francesco Donfrancesco, Nelli specchio di Psiche, Bergamo, Moretti & Vitali, 1996, III, pp. 37-38: “o
baixo contínuo que acompanha a reflexão de Hillman e lhe confere a cor específica é a conexão íntima da
54

do que uma entre as diferentes fantasias da psique e da ilusão transitória,


dolorosa e irredimível do mundo.
Nesse sentido, poderíamos ser tentados a aproximar o pensamento de
Hillman às filosofias místico-orientais que dissolvem o ego e suas interpretações
literais, bem como as divisões entre o ego e as coisas. Mas na realidade, como
também demonstraram os alunos de Hillman, esse „realismo místico‟ particular ou
„esvaziamento dos positivismos ocidentais‟ presente no seu sistema, não opõe o
Ocidente ao Oriente, mas o Norte ao Sul e, portanto, a tradição (grego-antiga), à
modernidade (cristão-cartesiana). É mais hesicasta ou quietista, do que zen, ou
neoplatônica, do que budista. Como foi chamado, o seu é um 'Western Nirvana' 48
(Nirvana Ocidental).
No "ego", que Hillman chama de politeísta, convergem: a multiplicidade, de
acordo com Freud, também essencial à natureza humana, e o também já
existente modelo junguiano múltiplo de personalidade. De qualquer modo, é a
partir de intuições próximas à fonte da psicanálise que a construção de Hillman
molda seu ideal de psicologia polimorfa, acessível à concepção neopagã ainda
viva na tradição do pensamento ao qual se refere: a tríade helênica renascentista
mágico-romântica.
Em Hillman, há uma citação de um fragmento de Heráclito, já muito amado
pelos filósofos românticos: "por mais profundo que o intelecto seja impelido,
jamais poderá alcançar os confins da alma".49 Para Hillman, a imersão da alma em
profundidade, se conecta diretamente à tradição iniciática, grega órfico-pitagórica
e depois platônica, até a mística tardia antiga, medieval e bizantina.
Desde o começo, além disso, a práxis clínica da análise não parece um
molde moderno e positivista dos métodos das antigas seitas misteriosas gregas
antigas? A iniciação não pode ser transmitida pelo mestre ao discípulo, mas
acontece no mutismo do primeiro e na cegueira do segundo (o verbo kammyein,
„fechar os olhos‟, do qual os etimologistas gregos fizeram descender todo o
alcance lexical do misticismo). A ressonância da alma para a alma, da psique
para a psique, ocorre não apenas além da visão e da palavra, mas de qualquer
racionalização que possa fornecer o logos, o intelecto. É uma descida nas trevas,

alma com a morte - e não com o "crescimento" - através de seus múltiplos sofrimentos, tomando forma na
desintegração e na patologização”.
48
R. Avens, L‟immaginazione è realtà, trad. it., Milano, Edizioni di Comuntà, 1985.
49 Diels-Kranz, 22 B
45.
55

feita de reminiscência e sofrimento, que o noviço, submetido à iniciação, não seria


capaz de tolerar, a não ser pelo limite de Eros – na psicanálise moderna, a
transferência - que na busca noturna de Psique, da Alma, a fortalece e resgata.
Então, se, afinal de contas, a psicanálise do século XIX já tivesse se
movido no sulco ancestral da tradição helênica do mistério, não é estranho que no
final do século XX, o seu herdeiro mais ousado conectasse a exploração das
profundezas e a descida no sonho, aos mitos do mundo infernal de Hades e
Perséfone, aos mistérios de Dionísio.

A divisão incurável e a patologização

O importante é que a alma conserva a sua infatigável peculiaridade


inventiva, que Hillman chama de patologização, palavra que define “tanto a
capacidade autônoma da psique de criar doenças, estados mórbidos, desordens,
anormalidades e sofrimentos em todos os aspectos do comportamento, quanto de
ter experiências da vida e imaginá-la, através de uma perspectiva deformada e
atormentada”.50 Para Hillman, “as grandes imagens são grandes paixões, e os
palácios e cavernas da memória são também as arenas do inferno”.51 O reino dos
mortos e o reino das imagens se identificam. O olho patologizado é o olho do
psicanalista, mas ao mesmo tempo, é o olho do místico, do poeta, do artista. As
condições aparentemente anômalas da psique são eminentemente humanas e,
portanto, fundamentalmente normais.
“A educação da sensibilidade começa na divisão incurável, a cultura na
desordem crônica”.52 Nesse aspecto, a psicologia arquetípica vai além da anti-
psiquiatria, considerando que todos nós começamos realmente a suportar nossa
condição humana, isto é, a tornar-nos lucidamente conscientes do nosso destino,
que é a morte. Não podemos não deixar-nos cair em qualquer patologia psíquica,
que se expressa na depressão ou nas várias desordens do amor, como a
melancolia, ou, para alguns, em manifestações de delírio místico, na inspiração
poética ou artística.
“Aqueles exercícios ascéticos que chamamos de sintomas, e seus
cuidados, desespero e remorso de culpa que aparecem com o desvanecer da
50
Re-visione della psicologia, p. 114.
51
Vd. Sul linguaggio psicológico, p. 200.
52
Disturbi cronici e cultura. p. 57, in Trame perdute.
56

nigredo, do negro, do escuro - redimensionam a antiga personalidade egóica, mas


essa redução necessária e apenas preparatória para aquele sentido da alma que
começa a aparecer na imaginação azulada da depressão. Acredite ou não, há
mais cor no deserto alquímico do que no dilúvio, na pobreza de emoções do que
na superabundância".53
Para Hillman, o desespero dos místicos se assemelha àqueles azuis anglo-
saxões, que também é “o azul do manto de Maria, a rosa azul do romance
cavalheiresco, um desejo que se desvanece pelo impossível contra naturam. E
pathos – desejo – era o nome do asfódelo pálido, a flor dos mortos".54
Catarina de Sena se queixava que poderia captar apenas o reflexo
superficial da alma como um poço muito escuro e profundo. Agostinho já havia
descrito a alma como uma caverna de tesouros intocáveis, e narrou a ânsia de
percorrer os corredores e túneis de memória no palácio abissal, ou castelo da
alma. Não é coincidência que Kafka, autor do Castelo, o profeta da depressão
delirante do século, esteja presente nesta conversa com Hillman.
Na interpretação que Hillman faz da terapia que ele chama de
patologização, ou seja, como já foi dito, a compreensão da condição patológica
crônica da própria vida, é a ação primária do Fazer Alma, porque a questão do
Fazer Alma é, substancialmente: “O que este evento, este objeto, neste momento,
significa para a minha morte?” Na concepção da vida como um contínuo abordar
a morte, de Soul-Making como meditatio mortis, e dessa última, como meditatio
vitae. 55 Hillman é verdadeiramente um „antigo‟ e um „pagão‟. “A verdadeira
revolução em favor da alma começa no indivíduo que sabe ser fiel à própria
depressão e que não se debate para sair dela, tomado em uma alternância de
esperança e desespero". 56 Hillman conecta o horror ocidental moderno pela
depressão, com a tradição do ego heróico e da salvação cristã na ascensão para
o alto, de que falamos acima. “A depressão é ainda o Grande Inimigo. No entanto,
através da depressão, entramos nas profundezas e lá encontramos a alma. A
depressão é essencial para o significado da vida. Umedece a alma árida e enxuga
a muito úmida. Dá abrigo, limites, centro, gravidade, peso e uma sensação de

53
Blu alchemico, p. 35 – Fouchi blu (La patologizzazuone: la ferita e l‟occhio) pp. 230-231.
54
Ivi. p. 38 – Fuochi blu, p. 231.
55
Cfr. sopra, p. 28, n. 13.
56
Re-visione della psicologia, p. 180.
57

humilde impotência. Ela nos faz lembrar a morte". 57 O hino de Hillman à


depressão, que tornou os seus escritos célebres nos anos Setenta, se assemelha
àquele de Paulo ao amor cristão na primeira epístola aos Coríntios, mas com
inversão trágica, típica do nosso século.58
Ao "sentido trágico da vida que tem sua própria alegria e sua comédia",
citada, muitas vezes em suas obras, Hillman se refere, nesta conversa, como um
estado a ser recuperado universalmente, não para ser reservado a uma elite de
pessimistas, mas para ser transformado na cognição comum de um povo
iluminado de „Gregos psíquicos‟. Isso em uma polêmica contra as simplificações
espiritualistas do neo-orientalismo religioso: "Quando eu me sinto envelhecer e
decair, e a civilização em torno a mim está desmoronando pelo excesso de
desenvolvimento, não posso tolerar a palavra crescimento. Quando sinto que
estou despedaçando em minhas complicações, não posso suportar as
simplificações defensivas das mandalas, nem os sentimentalismos da
individuação como unidade e totalidade. O que dizer, em vez, de uma cura pela
semelhança, onde o semelhante cura o semelhante”?59

Visão em transparência

Essa cura é homeopatia da psique, um sal corrosivo, uma espécie de


culinária alquímica que devolve psique onde a psique agora está ausente. 60 A
metáfora da alquimia é uma das mais adaptadas para descrever o processo de
transmutação através da imaginação que Hillman propõe como terapia da alma.
“Do ponto de vista do sal alquímico, a experiência subjetiva adquire um
significado radicalmente diferente. Podemos imaginar as nossas feridas
profundas, não mais somente como laceração para curar, mas como cavernas
salgadas de onde tirar uma essência preciosa e sem as quais a alma não pode
viver".61 No deserto americano de Hillman, a infelicidade é azul alquímico, “o azul
prepara o branco e é nele incorporado, sinalizando como se torna terra, isto é, fixo
e real, quando o olho se torna azul, isto é, capaz de enxergar com transparência,
57
Ivi, pp. 179-80.
58
1 Ep. Cor., 13,1-13.
59
Fallimento e analisi, p. 45, in Trame perdute.
60
Donfrancesco. Nello specchio di Psiche, cit. p. 32.
61
Sale: un capitolo della psicologia alchemica, in Stround-Thomas, L‟intotta, p. 139 = Fuochi blu (Il sale
dell‟anima, lo zolfo dello spiriti) p. 188.
58

reconhecendo os pensamentos como formas imaginativas e as imagens como o


fundamento da realidade".62 A cor do olho transfigura as aparências realmente
imaginárias, o humor azul alimenta a lêverie, o céu azul recorda a imaginação
mítica em seus âmbitos mais distantes.63
O tratamento homeopático, neo-alquímico da psique ocidental, se situa,
portanto, no renascimento de sua essência venenosa com suas raízes,
agregações e fórmulas originais. A "análise" de resto, como fora apontado,64 é
uma palavra que alude à morte. Não provém do grego ana-lyo, „desfazer,
dissolver‟? E não foi Platão que definiu a morte como lysis, „dissolução‟, pela
primeira vez na filosofia ocidental?
“O círculo vicioso também é iteratio da alquimia e uma maneira para se
tornar o que se é. O purgatório da repetição fiel dos mesmos erros também é a
sua redenção em um estilo individual. Dessa forma, o ego é atraído para os
salões da memória. As minhas fantasias e os meus sintomas me colocam no meu
lugar. Já não é necessário saber a que lugar elas pertencem, mas a que lugar eu
pertenço, em que altar eu devo deixar a mim mesmo, dentro de qual mito o meu
sofrimento se transformará em devoção.” 65
É o que Hillman chama de "visão em transparência", à qual dedica o
terceiro capítulo da obra Revendo a psicologia. Visão em transparência, ou
psicologização, é isso que permite com que compreendamos o fantástico
sedimento dentro dos chamados fatos, dos "problemas" que são imediatamente
66
evidentes. A visão vertical, das „profundezas‟ da tradição psicológica
arquetípica, é assim também a capacidade de colher a interioridade de todas as
coisas: “A fantasia das profundezas encoraja a olhar o mundo e cada evento com
outros olhos, procurando algo mais profundo, olhando para dentro. A fantasia das
profundezas escondidas infunde alma ao mundo”.67
Fazer Alma é, portanto, também uma visão em termos figurativos, libertar
os objetos e eventos da compreensão literal e transferi-los para uma dimensão
mítica. É o que Hillman chama de „desliteralização', um processo profundamente
compreensível lembrando somente, como os humanistas a quem Hillman se

62
Blu alchemico, p. 40-41 = Fuochi blu (La patologizzazione: La ferite e l‟occhio), p. 231.
63
Ibidem.
64
Donfrancesco, Nello specchio di Psiche, p. 61.
65
Ivi, pp. 194-195.
66
Donfrancesco, Nello specchio di Psiche, cit., p. 152, n. 33.
67
Insearch: Piccology and Religion, London, 1967, pp. 35 sgg.
59

inspira, a experiência milenar da alegoria bizantina e da exegese anagógica,


legível também essa, em termos psicológicos, como "a atitude que rejeita com
desconfiança o nível ingênuo e dado dos eventos, para ir em busca dos
significados metafóricos sombrios que eles têm para a alma". Essa definição
psicológica é apropriada - certamente, considerando a 'revolução copernicana'
implícita na perspectiva subjetivista de toda psicologia – toda a civilização da
imagem bizantina (eikone), totalmente permeada pelo realismo místico dos quais
se falou e daquela fantasia metafísica que está no centro do Fazer Alma, bem
como, do trabalho fundamental do sonho.

Sonhos, imagens, sintomas

O sonho é a atividade central da alma: É um Soul-Making noturno, em que


as experiências da vida empírica são secundárias com relação às imagens
arquetípicas, onde a alma se torna imersa e submersa tornando-se o meio para
transmutar os eventos da vida na alma. Por isso, o sonho, mais do que qualquer
outra coisa, demonstra a presença de imagens a montante, o fato de que não é a
psique, com suas experiências, a criá-las, mas ao contrário, são elas que "fazem"
a psique. “O sonho não está no paciente, não é algo que ele ou ela constrói; em
vez disso, é o paciente que está no sonho e é construído em sua ficção".68
As imagens incluem a alma, não a alma as imagens, da mesma forma
como o sonho inclui o sonhador e não o inverso. Hillman afirma que a existência
do sonho é a demonstração de como a alma desiste substancialmente de sua
experiência mortal, para alimentar-se principalmente das imagens que estão
formando-a e que constituem o que Hillman chama de vaso imaginário, ou seu
Navio da Morte,69 tomando um dos grandes poetas do 'pânico' do século XX, D.
H. Lawewncw, que foi citado em nossa conversa.
As imagens são acessadas somente após uma jornada lenta e difícil, que,
como em uma pintura de Moreau, muitas vezes com a face melancólica – feita a
partir - de um fim das ilusões, do desfazer-se de um poder, de uma derrota das
certezas, de um enfraquecimento das identidades; uma jornada que, assim como
68
Para o método e os exemplos do trabalho com o sonho, vd. Il sogno e Il mondo ínfero, pp. 112 sgg.: cfr.
também Cosa l‟anima vuole, pp. 123 sgg., in Le storie che curano: e ainda Further Notes on Images, “Spring”
1978, pp. 152-182: Image Sense, “Spring” 1979, pp. 130-143.
69
Il sogno e Il mondo ínfero, pp. 122 sgg.
60

no mito grego do herói vitorioso e derrotado, apenas Ananke, a necessidade,


poderia induzir a percorrer.70 Novamente, portanto, o processo de formação da
alma não pode ser ascensional, mas apenas o caminho de Orfeu: uma lenta
descida ao Hades com a lira na mão.
Assim, a imaginação "eleva a alma além de suas fronteiras egocêntricas e
expande os eventos da natureza, transformando-os em figuras estéticas
portadoras das informações para ela", 71 que se torna, como Hillman expressa,
uma psique menos individual e mais próxima ao que o pensamento neo-platônico
chamava de Alma do Mundo. Nesse sentido, a psicologia arquetípica concebe
tanto a psicopatologia, quanto a terapia, como a "encenação" da fantasia.72

A volta dos deuses

"Veja! Eles voltam", escreveu Ezra Pound sobre os deuses gregos, "um por
um, com medo, apenas meio acordados".73 Eles vêm do que seu sistema chama
"trabalhar com a imagem", e que lhe é parte fundamental, a familiaridade, às
vezes até alienante, de Hillman com os deuses e não com seus mitos. A volta que
Hillman propõe é os deuses como modelos de psicopatologia, os deuses como
vetores de consciência do destino próprio de cada alma e de cada aspecto seu,
os deuses como formas arquetípicas nas quais reconhecer-se. As imagens, as
fantasias e os símbolos nos quais Hillman vê incansavelmente tecer a alma, são
em parte, as realidades a que Jung tinha dado o nome de arquétipos, mas são
também os "fantásticos universais", dos quais Vico já antecipara a recuperação,74
a partir da noção, substancialmente estóica, de fantasia. Sem imaginar, não pode
existir nenhuma consciência. Já a filosofia grega clássica considerou a phantasia
como atitude essencial e função primária daquela vida da alma, cujo contexto é o
mundo das imagens. Primeiro, e mais pontualmente do que por Jung, a ligação
entre a tradição antiga ou antiguidade tardia e a psicologia moderna fora criada
pela erudição histórico-religiosa alemã do século passado. A ligação entre mythos

70
Donfrancesco, Nello specchio di Psiche, cit., p. 62.
71
Psicologia archetipica, pp. 820 e 816.
72
Além das reflexões contidas em Il suicídio e l‟anima, Re-visione della psicologia, Fallimento e analise,
cfr., sobre teoria e prática da terapia arquetípica. Ananke e Atena. La necessita della psicologia anormale, pp.
93 sgg., in La vana fuga degli dei, e Ricerche sull‟immagine, pp. 41 sgg.
73
E. Pound. Ritorno, VV. 5-6, in Opere scelte, a cura si Mary de Rachewitz, Milano, Mondadori, 1970, p. 79.
74
C. B. Vico, Scienza nuova seconda, vol. I, Bari, 1953, p. 91.
61

e phatos já estava presente, além de Freud, em 1847,75 do qual o mito de Édipo


teria sido proposto como chave para a patologia da neurose, em duas fontes
primárias do pensamento de Hillman: uma que apareceu anteriormente, o
Nascimento da tragédia de Nistzsche, de 1872, e a outra, os Efhialtes de
Roscher, uma dissertação sobre Pan e o Pesadelo, lançada em 1900 com o
subtítulo, Um estudo mito-patológico, várias vezes mencionado, uma, no Suicídio
e a alma e a outra, no início do Ensaio sobre Pan.76
Foi Jung, no entanto, que declarou abertamente a suposição básica, de
acordo com a qual os deuses os deuses são "modelos de psicopatologia". "Os
deuses se tornaram doenças", escreveu ele, doenças da alma.77 A divindade do
sintoma, o seu significado arquetípico e de espelhamento no universo olímpico
estão na base das investigações de Hillman sobre as configurações patológicas
do mito: particularmente, assim como no Pan, em Saturno,78 em Eros e Dionísio,79
em Atena e Ananke,80 no puer aeternus.81
Por outro lado, é a "enfermidade" essencial do arquétipo, forma não
perfeita e nem transcendente, mas que responde à natureza e ao sofrimento
humano, que o coloca em posição de oferecer conforto e assistência à psique.82
“Eu preciso de um pano de fundo adequado para o fracasso da vida. Eu preciso
que você me fale com exatidão sobre os deuses que são servidos por, prosperam
em e podem oferecer um pano de fundo arquetípico para, e também uma
conexão erótica com a derrota, a decadência e o desmembramento, porque estes
dominantes refletem a psique experimentada na realidade de seu único objetivo
conhecido, que é ao mesmo tempo, sua forma e sua substância: a morte". 83 E
ainda: “O mito oferece um pano de fundo aos sofrimentos das almas em

75
S. Freud. Lettere a Wilhlm Fliess, 1887-1904. Torino, Boliati Boringhieri, 1986, pp. 306-7: “Compreende-
se o poder constrangedor de Édipo Rei. A saga grega se refaz em uma a uma restrição que todos reconhecem
por ter sentido a existência em si" (15 ottobre 1897).
76
Il suicídio e l‟anima, vd. in part, p. 49: Saggio su Pan, capp. I-IV, pp. 17 sgg (o ensaio de Hillman sobre
Roscher na versão filologicamente mais íntegra como introdução à edição americana do Ephialtes: W. H.
Roscher, Pan and the Nightmore, New York, Spring Publicazione, 1972).
77
“Os deuses se tornaram doenças e Zeus não governa mais o Olimpo, mas mais o plexo solar, e é motivo de
interesse pelos médicos”, C. G. Jung, Commento al “Segreto Del fiore D‟Oro”, in Opere, vol. XIII, Torino,
Bollati-Boringhieri, 1988, p. 47.
78
Malianconia e una soluzione rinascimentale, pp. 255 sgg., in Trame perdute.
79
Sulla creatività psicológica, pp. 73 sgg., in Il mito dell‟analisi.
80
Sulla femminilità psicológica, pp. 269 sgg., in Il mito dell‟analisi.
81
Ananke e Atena. La necessita della psicologia anormale, in La vana fuga degli dei.
82
Senex et Puer, pp. 51 sgg., in Puer aeternus: Saggi sul Puer.
83
Ananke e Atena. La necessutà della psicologia anormale, pp. 91 sgg., in La vana fuga degli dei.
62

extremis... os deuses penetram na vida humana através das feridas... a patologia


é o testemunho mais palpável dos poderes que transcendem o controle do ego".
Hillman ama escrever que uma imagem arquetípica é animada como se
fosse um animal. É uma presença em todos os aspectos. Pode ser, para o nosso
destino, um guia, um Anjo da Guarda ou um Daimon, quase "portador de um pré-
conhecimento anterior", que podemos alcançar através dos sonhos ou outras
experiências de imagens portadoras de mensagens que suscitam “um sentimento
de bênção” e lembram os mensageiros (angheloi) neo-platônicos.
Se essas noções podem aparecer de ancestralidade diretamente
junguiana, deve-se ter presente uma diferença fundamental: a psicologia
arquetípica de Hillman não leva em consideração o arquétipo abstrato, mas seu
fenômeno, e se recusa, em vez disso, "considerar um arquétipo que não se
manifesta fenomenalmente". 84 Quando Hillman fala de deuses, as entidades
sobre as quais ele se refere são eficazes e não, precisamente, metáforas,
categorias de conveniência ou expedientes retórico-lexicais.
Portanto, a religião tem um lugar central em seu sistema, no sentido de que
o instinto religioso, a dimensão sagrada e sacrifical adquirem grande valor, em
conformidade, de fato, com a tradição do Religionswissenschaft (estudo da
religião). A visão que se tem jamais pode ser verdadeiramente agnóstica e isso,
como escreveu Hillman, até "persuade a psicologia a reconhecer-se também
como atividade religiosa".85

Uma estranha religiosidade

Como aprender esta religião?


Seferis

No entanto, deve ser enfatizado que Hillman parte de uma perspectiva


basicamente secular e anticristã. Em primeiro lugar, se a depressão como
dizíamos antes, em vez de ser uma afeição a ser curada, é vista como a condição
humana normal e o ponto de partida da consciência curativa, como um estado já
em si quase divino, a primeira etapa necessária para a cura psíquica é a

84
Fallimento e analisi, p. 45, in Trame perdute.
85
Psicologia archetipica, p. 816.
63

consciência do fracasso de toda vida, em face de qualquer convenção social ou


convicção moralista, especificamente protestante ou genericamente cristã, em
relação à bondade e construtividade obrigatórias da vida humana. Nesse sentido,
a polêmica de Hillman contra o cristianismo, contra seu antropocentrismo
destrutivo da natureza, contra seu otimismo que projeta a salus - saúde ou
salvação - na vida após a morte, é mais do que decisiva e é iluminada e sulfurosa
nesta conversa até o paradoxo.
Na visão "religiosa" de Hillman, qualquer ideia de transcendência é banida,
e os deuses não são tomados - como nada deve ser tomado - literalmente, como
"credo", mas são "modalidades de experiência, pessoas numinosas ao limite,
86
perspectivas cósmicas em que a alma participa". Em Hillman a crítica da
religião é ainda mais radical do que em Freud e Jung. Nesta entrevista Hillman
afirma que não só cada credo é uma ameaça, um perigo. Diz ele: “não estamos
ressuscitando uma fé morta, porque a fé não nos interessa”. 87
Deve-se sempre ter em mente que no sistema de Hillman, aparentemente
fervilhando em deuses, a religião é entendida como um fenômeno que nasce e
88
morre na psique humana, e também no sentido mais amplo de significado,
difere do imanentismo ou do panteísmo indiferenciado meso-africano, ou extremo
oriental, como um exemplo do politeísmo xintoísta ou do vitalismo sagrado das
religiões xamânicas. A politeia grega é um mundo onde a palavra religião não
existe e o único termo que, de algum modo, designa seu escopo é eusebeia,
noção que deve ser entendida como atitude ou estilo de vida, intrinsecamente
respeitosa, de cada forma distinta de ser vivo. Como Hillman deixa claro no texto,
o que é necessário recuperar, de tal religiosidade, é a "psique diferenciada", a
capacidade tipicamente ocidental de distinguir res de res, coisa de coisa, dentro
do ser vivente ou do real, também através e em função de uma alma polimórfica.
Nesse sentido, os deuses de Hillman devem ser entendidos como "a
inteligibilidade formal do mundo fenomenal, que permite que cada coisa seja
distinguida por sua inteligibilidade intrínseca e pelo lugar específico de
pertencimento". Os deuses são „lugares‟ e os mitos criam um lugar para os
eventos psíquicos que, caso contrário, seriam vistos como patológicos. Ao

86
Iv. p. 822.
87
Re-visione della psicologia, p. 289.
88
Ivi, p. 290.
64

oferecer 'asilo e altar', tudo pode ser ordenado e todos os fenômenos são salvos,
dando-lhes um lugar. Hillman afirma: "Se sabemos o lugar de pertencimento de
um evento e a qual deus podemos nos referir, somos capazes de prosseguir".
Como ele diz na conversa: "Se eu sei a que mito eu pertenço, compreendo a
necessidade da minha perturbação, e minha luta cessa, se dilui em visão e
escuta". A capacidade de viver a própria vida em companhia de fantasmas, de
demônios familiares, de avós, de espíritos-guias, é objetivo de uma terapia
arquetípica, e é isso, se quisermos, o lado terapêutico, que faz com que Hillman
seja o filósofo mais amado pelas franjas mais conscientes do movimento da Nova
Era.

A consciência hermética ou o Terceiro Elemento

Embora não sendo empírica no método, nem racionalista na concepção e


não apelando para nenhuma espiritualidade sobre-humana, a tradição helênico-
pagã, à qual Hillman se refere é, porém, radicalmente ocidental e caracterizada,
pela precisão, desde a concepção neoplatônica que vê a alma como 'consciência
hermética', ou terceiro elemento entre as perspectivas do corpo (matéria,
natureza, mundo empírico) e as da mente (espiritismo, lógica, ideia). Corpo, alma
e espírito: uma antropologia tripartida que olha para trás em relação à divisão
dualista do Ocidente, identificado por Hillman com Descartes, não sem traçar a
origem no aristotelismo medieval contrário, de fato, à tradição platônica.
Se em uma chave filosófica esta é a diferença entre o modo "antigo",
platônico e neo-platônico, medieval, mágico-renascentista, pré-cartesiano de
compreender a alma, Hillman a devolveu à cultura e à língua comum desse
século, em contraste com a noção da psique mais normalmente usada pelos
psicanalistas. Então há uma perspectiva mais estritamente técnica em Hillman
para entender e definir o conceito de alma. Usamos o termo alma, escreve no seu
primeiro livro fundamental, O suicídio e a alma, de 1964, “para nos referir ao fator
humano desconhecido que possibilita o significado, que transforma os eventos em
experiência e se comunica em amor". 89 A alma, esclarece Hillman na obra
Revendo a psicologia, de 1975, “demonstra-se um fator independente dos

89
Il suicidio e l‟anima, p. 35.
65

acontecimentos em que estamos imersos, mas se não pudermos identificá-la com


qualquer outra coisa, não podemos sequer tomá-la sozinha, isolada de outras
coisas", talvez porque é semelhante a um reflexo em um espelho fluido, ou à lua,
que transmite apenas luz, não a sua. A alma é uma perspectiva, em vez de uma
substância, um ponto de observação sobre as coisas, em vez de uma coisa em
si”.90
É o "perspectivismo" da psicologia arquetípica que requer "um
91
aprofundamento da subjetividade além das teorizações nietzschianas". Hillman
afirma que nunca estamos além do subjetivismo que nos foi dado juntamente com
as estruturas inatas da fantasia. “A única objetividade, à qual podemos nos
aproximar, „é aquela do olho subjetivo voltado para dentro em direção a si
mesmo, que olha para o próprio olhar”. A psicologia não pode mais ser vista como
uma ciência objetiva no momento em que se reconhece que “a objetividade
também é um gênero poético”, um mito, um modo de construir o mundo. A
psicologia continua viável, como afirma Hillman, somente mantendo a distinção
entre alma e espírito, e concedendo a este último a possibilidade de colocar-se
acima da fantasia, pelo menos tão profundo, quanto é a descida da alma ao
inferno.92

A alma do mundo

A psique como anima mundi, a alma do mundo primeiro estóica e depois


neoplatônica, existe, escreveu Hillman, "desde que o próprio mundo existe e,
portanto, a outra tarefa da psicologia é ouvir a psique que fala através de todas as
coisas do mundo, recuperando assim, o mundo como um lugar pré-existente para
a alma e da alma".93 O poeta filósofo americano Wallace Stevens escreveu: “é
mais difícil encontrar o caminho através do mundo, do que além do mundo”.94
Nesse sentido, diante de qualquer discurso religioso e diante do risco sempre
presente de confusão entre a psicanálise e as disciplinas espirituais. Hillman
continuamente reivindica e assinala a sua especificidade de psicólogo, isto é, de

90
Re-visione della psicologia, pp. 14-15.
91
Psicologia archetípica, p. 821.
92
Re-visione della psicologia, pp.131-5: Picchi e vali, pp. 88 sgg. in Saggi su Puer: Il Pandemonio delle
immagini, in Le storie che curano.
93
Psicologia archetipica, pp. 816-17.
94
W. Stevens, Risposta a Papini, cfr. Picchi e valli, p. 83, in Saggi sul Puer.
66

escrutinador e geógrafo do caminho terreno da psique do paciente, ou o próprio


patógrafo, como escreve. “Essa psicologia, apesar de seu caráter neoplatônico e
"misterioso", está enraizada e envolvida no vale e na tarefa que a alma deve
realizar.” 95
Se o ato de Fazer Alma consiste em imaginar, 96 e se então, tudo o que
acontece no mundo é um produto da alma, e se a alma é feita da substância do
mito ou do sonho, somente através do reconhecimento dos deuses no mundo a
alma pode, de acordo com o preceito délfico, conhecer-se e começar a se curar.97
Rastreando, no cosmos, os deuses, heróis, anjos e demônios gregos, Hillman
tenta ver em transparência e interpretar tudo o que acontece nele. A crítica
hillmaniana do progresso se aplica como no microcosmo da psique, onde a meta
é o eterno retorno circular e, certamente, não a busca linear de um propósito
positivo, ou "positivista" para o macrocosmo, para o progresso da sociedade, da
humanidade. Esse processo analógico de recondicionamento do microcosmo ao
macrocosmo é semelhante ao da alquimia, da astrologia, ou da medicina antiga.
A filosofia de Hillman sempre expandiu os objetivos da psicologia para toda
a cultura e para cada manifestação física, social, política, linguística, estética e
espiritual. O Fazer Alma, a psicopoiese, também ocorre na compreensão da
situação específica da alma no mundo. A insistência sobre os temas da política
contemporânea pertence aos últimos desenvolvimentos e modos de intervenção
do pensamento de Hillman: a re-imaginação do modo público é a recuperação da
alma para a vida coletiva. Nesse diálogo, é implementado, acima de tudo, na
crítica da pars construens do marxismo e na única reproposição parcialmente
zombeteira e paródica de todos os valores críticos, subversivos, destrutivos da
sua pars destruens, até o elogio paradoxal do terrorista como "portador de vida"
na sociedade ocidental em declínio, o reviver mítico do que Hillman chama de
base poética da alma.
O terrorismo da sua crítica psicológica aplica-se ao mundo „mortífero‟ e
impregnado de morte dos edifícios públicos, dos sistemas burocráticos, das
linguagens convencionais, dos transportes, do ambiente urbano, da alimentação,
da instrução. Os deuses doentes de Hillman revivem nos templos apócrifos da

95
Psicologia archetipica, p. 819.
96
Ibidem.
97
Cfr. Il pandemonio delle immagini, pp. 72 sgg.
67

nossa civilização. Eles circulam na rede mundial de computadores, nos


proporcionando os sintomas denominados por Hillman de intoxicação hermética.
Eles lutam e cintilam nas séries de televisão e desenhos animados, templo de
Ares consagrado à violência. Eles nos seduzem na pornografia das capas
brilhantes, nas mercadorias das grandes comércios, nos empoeirados autogrill
das rodovias desertas.

A base poética da alma e a arte como terapia

O que Hillman chama de re-imaginação e re-animação da psique cultural,


provoca o desdobramento de uma fantasia que derrota o mundo real. É uma
instância, de acordo com a qual "há sempre um poema no centro das coisas", que
Hillman toma programaticamente de Wallace Stevens, colocando seu
pensamento em sintonia com muitos outros poetas contemporâneos, mesmo na
Itália98 ou na América, por exemplo, na colaboração com Robert Bly. 99
A terapia através das imagens, da qual Hillman nos fornece alguns
exemplos, significa que, “a partir de um estado em que as imagens são removidas
e/ou somos obcecados por elas, passamos gradualmente ao amor pelas imagens,
ao reconhecimento de que o próprio amor está arraigado nas imagens, em sua
incessante epifania criativa e no próprio amor por aquela alma em particular, em
que se manifestam".100 O verdadeiro fim da terapia é, então, a transformação do
amor deste ou daquele, amante-paciente: paciente também porque sofre a paixão
amorosa da transferência, definida por Hillman como "a quantidade de Eros
necessária para o despertar da realidade psíquica, o despertar que impõe papeis
arquetípicos ao paciente e ao terapeuta", novamente sintetizáveis naqueles do
mito de Eros e Psiche narrado nas Metamorfoses de Apuleio.
Os exemplos citados por Hillman implicam no despertar da psique através
da solicitação da base poética da mente, a única forma possível de cura psíquica,
coletiva ou individual. Além disso, como vimos acima, psicologia e terapia
analítica estão proliferando em si mesmas como atividades poéticas (mesmo se,
por exemplo, adverte, a terapia deve sair dos esquemas constritivos e
98
Como testemunha a relação com o movimento mito-modernista: cfr. Giuseppe Conte, Il passaggio di
Ermes. Riflessione sul mito, Milano, Ponte alle Grazie, 1999.
99
Vd. The Rag and Bone Shop of the Hearth: An Anthology of Poems for Man, Ed. con R. Bly e M. Meade,
New York, Harper Collins, 1992.
100
Psicologia archetipica, p. 825.
68

racionalizadores de uma ortodoxia freudiana humilhante, talvez mais americana


do que européia).
Partindo da ideia de base poética da mente, Hillman chega a repensar todo
o trabalho terapêutico em termos de narrativa, de algum modo, da catarse
aristotélica. Com o trabalho da terapia e a conscientização de ser parte de uma
„história mítica‟ ativa, independentemente de nós mesmos, a nossa história se
torna outra história, de modo que somos capazes de recontá-la em um estilo mais
autêntico e mais profundo. Nesse trágico reconhecimento (anagnorismos) da
própria história, a catarse e a transformação do sofrimento em arte, consiste, em
última instância, na relativa "cura" da terapia analítica arquetípica.101
Por assim dizer, o conceito hillmaniano de saúde psíquica democratiza e
sugere que a forma de terapia ou catarse da neurose na arte, que no século XIX,
onde a psicologia analítica tem suas raízes, era reservada a uma elite, pode ser
universalmente utilizável. A única cura para o mal absoluto trazido da vida do
mundo à psique, é estética e poética. Por assim dizer, a proposta terapêutica de
Hillman ao amplo público o final do século XX é estender indefinidamente o perfil
psicológico do artista romântico, com suas aflições e seus privilégios, sua
sensibilidade e sua solidariedade, sua melancolia e anarquia, sua personalidade e
lucidez irônica. “A ironia, o humorismo e a compaixão serão suas marcas. A
personalidade „saudável‟ não será imaginada sob o modelo de um homem
natural, ou político-social, ou racional-burguês, mas mais sobre o modelo do
homem artístico, para o qual imaginar é um estilo de vida e cuja moralidade é
dedicação à formação da alma, sensibilidade à continuidade tradicional,
importância do „viver no limite‟, sensibilidade estética”.102 Por sua vez, “é um perfil
deduzido do renascimento esotérico, dos neoplatônicos e da antiga moralidade
pagã".103

O Terapeuta dos Discursos, a dieta dos símbolos e a alegoria

Em certo sentido, a terapia de Hillman segue, portanto, o método alegórico,


essencialmente neoplatônico, bizantino e, portanto, renascentista. É uma
101
Le storie come narrativa, pp. 16, in Le storie che curano.
102
Psicologia archetipica, p. 826.
103
Cfr. Plotino, Ficino e Vico precursori della psicologia degli archetipi, p. 21, in L‟anima del mondo e il
pensiero del cuore.
69

familiaridade com os mitos, uma nutrição alquímica, uma dieta de símbolos. A


presença da cultura estética nos permite avaliar a universalidade das imagens e
leva o pensamento de Hillman para uma área próxima à arte, à invenção poética,
104
à inovação linguística. Uma reavaliação da capacidade da psique de
"experimentar e imaginar a vida através de uma perspectiva deformada e
atormentada", 105 para a qual não há cura, mas que é cura em si, se vista como
arte.
Apareceu em um famoso texto bizantino do século IX, o Romance de
Barlaam e Ioasaf - um apologista gnóstico tecido em mitos, divã oriental-oriental
também conhecido como a vida bizantina de Budha - um personagem-chave
chamado Terapeuta dos Discursos. Se a retórica da excelência da psicologia é o
mito, caminho que Hillman considera ter sido aberto por Freud, além de Jung e
Cassirer, a única alternativa possível é o que a psicologia arquetípica chama de
"recuperação da alma no discurso": uma retórica ligada à virtude mítica das
imagens e à capacidade poética da alma de "tornar-se" nelas, imergindo-se em
sua retórica, e somente redefinindo seu Daimon, seu destino individual, nessa
capacidade universal.
Como Hillman escreveu: a liberação do sentido interior através da metáfora
mata e, portanto, traz saúde, aproxima a alma da morte e, com isso, favorece a
cura do erro original sobre seu destino, do apego de Édipo ou da hipnose dos
olhos de Górgona. A função metafórica da psique “entrega cada coisa à sua
sombra”. A própria modalidade da metáfora, "indescritível, alusivo, ilusório", busca
para a alma o "sentido de fraqueza, inferioridade, mortificação e fracasso que
derrota o entendimento consciente como controle sobre os fenômenos" e o
conduz a um estado próximo, basicamente, como misticismo, no mais ocidental
dos seus significados.106 O verdadeiro mito da filosofia de Hillman é, na verdade,
o mito do Eterno Retorno, e também nisso encontramos a afinidade eletiva com
Nietzsche: "A civilização é um registro histórico, a cultura é um empreendimento
mítico. A sílaba chave da cultura é o prefixo RI".107

104
Cfr. R. J. Sardello e altri, Enslouling lenguage, in dragonflies I/1, Dallas, 1978, P. Kugler, The Alchemy
of Discourse: an Archetypal Approach to language, Zurich, 1979.
105
Re-visione della psicologia, p. 114.
106
Psicologia archetipica, p. 818: cfr., avéns, L‟immaginazione e realtà, cit., pp. 37-55 e 108-118.
107
Disturbi cronici e cultura, p. 55, in Trame perdute.

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