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Andréia Aparecida Marin: Doutora em Ecologia e Rec. Naturais pela UFSCar, bolsista
PRODOC/CAPES na Universidade federal de Goiás. aamarin@bol.com.br
Haydée Torres Oliveira: Doutora em Ciências da Eng. Ambiental pela USP, professora do
Depto. Hidrobiologia da UFSCar, do PPG Ecologia e Rec. Naturais/UFSCar e do PPG
Ciências da Eng. Ambiental/EESC/USP. haydee@power.ufscar.br
Resumo
A água é um dos elementos da natureza mais presentes no imaginário. Por essa
razão, além de representar um bem natural de extrema importância para a sobrevivência das
comunidades humanas, sua riqueza de significados e símbolos dá às paisagens valor
estético, despertando interações nostálgicas e construções topofílicas. No presente trabalho,
apresentamos as reflexões de Bachelard sobre a imagem da água e as ilustramos com o
relato de Thoreau e a hidrofilia revelada no estudo da percepção ambiental dos moradores
da cidade turística de Jardim/MS.
Introdução
É bom ter um pouco de água na vizinhança, a dar sustentação à terra e fazê-la
flutuar.” (THOREAU, 1984, p.88)
A água é um elemento de extrema importância para o ser humano. Essa importância
não se resume às suas necessidades físicas, mas se amplia diante da riqueza que ela tem
como mistério, como profícuo estimulante da imaginação.
As várias simbologias que a ela se associam estão ilustradas em vários mitos nos
mais diferentes contextos culturais e ao longo da história de interação do ser humano com o
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mundo. A água desperta devaneios, é projetada nas imagens alucinantes e percebida como
benção nos oásis do deserto. É símbolo de prosperidade e de renovação no universo bíblico
e de renascimento e purificação no cristianismo. Nos seus corpos se abrigam monstros e
divindades e, nos seus movimentos, serenidade e violência.
Uma paisagem árida nunca parece receptiva e nela os sonhos se petrificam. A
riqueza de corpos d’água dá às paisagens que os possuem uma profusão de imagens
construídas pelo ser humano que, ao interagir com ela, colocam-se em relação de nostalgia.
É nesse contexto que entendemos a relação da imaginação do ser humano com a sua
percepção do espaço. Na riqueza da sua interação com o ambiente, quando então são
despertos todos os poderes das formas mnêmicas e imagéticas, é que se estabelece a relação
topofílica.
O termo topofilia foi citado pela primeira vez por BACHELARD (1993) na
primeira edição de sua obra A poética do espaço, significando o “espaço de nossa
felicidade”. O termo foi bastante utilizado posteriormente por TUAN, principalmente em
sua obra homônoma de 1980, onde é empregado como atração do ser humano aos aspectos
físicos, especialmente paisagísticos, de um determinado ambiente. No presente trabalho,
empregamos o termo como relação intrínseca de um indivíduo com um determinado tipo de
ambiente, enfatizando principalmente os aspectos físicos, mas também considerando os
sócio-culturais.
A água, ao ser um elemento estimulante da imaginação, é também um determinante
da valoração da paisagem, um gerador dessa relação. Por esse motivo, discutimos
percepção ambiental juntamente com o significado da água para o ser humano.
No presente trabalho, apresentamos as reflexões filosóficas sobre o significado da
água, principalmente as discutidas por Bachelard. Para ilustrar o corpo reflexivo, lançamos
mão das considerações de Thoreau sobre a água, constantes do seu relato de isolamento nos
bosques, e de componentes hidrofílicos da percepção ambiental de moradores da cidade de
Jardim, MS, conhecida pela riqueza de seus rios de águas cristalinas.
A imagem da água
Bachelard (1997, p.24-25) destaca “a necessidade que o sonho tem de inserir-se
profundamente na natureza”. Toda sua reflexão gira em torno da apreensão do mundo pela
via poética e do papel que nela tem a liberdade da imaginação: “A vida real caminha
melhor se lhe dermos suas justas férias da irrealidade”. No contexto dessa riqueza
imagética, desenvolve suas reflexões sobre a potência da água como elemento gerador de
interações estéticas com a natureza:
Se tomarmos um a um [...] os devaneios específicos diante de uma realidade
específica, descobriremos que certos devaneios têm um destino estético bastante
regular. Tal é o caso do devaneio diante do reflexo das águas. Perto do riacho, em
seus reflexos, o mundo tende à beleza. (BACHELARD, op cit, p.28)
Há um diálogo muito rico entre as palavras colocadas por Bachelard (op cit), na
análise que faz sobre as simbologias da água, em sua obra A água e os sonhos, e as
múltiplas formas de interação e representação que encontramos no cotidiano e no momento
contemplativo do ser humano diante do mundo. Bachelard traz das profundezas da
complexidade do ser humano um universo de imagens da água que é expresso em seus
mitos, rituais e na sua imaginação.
Ao avançarmos da análise fenomenológica e poética de Bachelard para as
linguagens cotidianas, entendemos a total cumplicidade sobre o papel da água na interação
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desapareceram por completo. Quando pela primeira vez remei nas águas do
Walden, o lago era totalmente cercado de pinheiros altos e espessos... Agora,
desaparecidos os troncos de árvores no fundo, as velhas canoas de madeira e os
escuros bosques ao redor... (THOREAU, op cit, p.181)
No processo de transformação, Thoreau destaca a perda de algumas características
relacionadas com a história do local:
Surpreendi-me ao descobrir que circunda o lago, mesmo na margem onde a
vegetação cerrada tem sido recentemente abatida, uma vereda estreita com jeito
de plataforma (...) provavelmente tão antiga como a raça dos homens aqui, gasta
pelos pés dos caçadores aborígines, é ainda hoje pisada inadvertidamente pelos
atuais ocupantes da terra. O solo ornamentado das mansões que um dia aí se
construirão pode vir ainda a conservar seu rastro. (THOREAU, 1984, p.172)
Lamenta ainda o comportamento dos habitantes do povoado, que vêem no lago
apenas uma possibilidade de canalização de água para suas casas, tendo perdido todo o
sentido de prazer do contato com ele. “Uma água que deveria pelo menos ser tão sagrada
como a do Ganges!” (THOREAU, op cit, p.182)
que parece ser a sua antítese, a secura e monotonia do deserto também ganha expressão. Foi
nele que Cristo passou os momentos de solidão, onde foi tentado pelo demônio logo depois
da purificação na água.
Enquanto a água nos trás o prazer, a leveza, a purificação, a seca nos dá a sensação
de morte, de sofrimento. A hostilidade aos ambientes secos não está embasada apenas no
incômodo gerado pelas condições físicas, mas por toda uma construção imaginária que faz
deles o lugar das tristezas, do mal. “Encher de água” o deserto, é devolver-lhe a fluidez, a
dinamicidade, a suavidade e as forças do bem.
Abrigo de mistério “Nosso Rio da Prata que vale a pena conferir, é muito bonito. A
lagoa misteriosa. Nós temos o Buraco das Araras muito
interessante, o buraco das abelhas. Temos muita coisa bonita, o
nosso Rio Miranda.” (AA, professor)
Importância da água “A cidade ideal tem que ter verde, montanha, lago grande...
Porque água é fundamental. O principal da vida é a água...”
(MA, líder religioso)
[...] O conhecimento, por mais universal e extenso que seja o seu conceito,
representa apenas um tipo particular de configuração na totalidade de apreensões
e interpretações espirituais do ser... (CASSIRER,2001, p.18)
A hidrofilia detectada nos relatos é de uma importância significativa num contexto
de discussões sobre sustentabilidade, uma vez que a preservação dos cursos d’água deve ser
um dos principais aspectos enfatizados nos discursos ambientalistas e, em especial, no
planejamento da região estudada e de processos educativos futuros.
CUNHA (2000, p.16) afirma que a água “... está na natureza e, a um só tempo, na
cultura”, está nos mitos e na história. Além disso, a autora faz referência à água também
como espaço de contemplação, enfatizando sua expressão de beleza e encantamento, que
provoca “consolo psíquico”.
A potencialidade da imagem paisagística enriquecida com a água é quase sempre
um indutor do que chamamos estados contemplativos. Nesses momentos de intensa
interatividade com o meio, a reconstrução de significados, a criatividade imaginativa, as
lembranças vívidas de contextos míticos que guardam a imagem mágica e se oferecem ao
seu resgate, a nostalgia e a sensação de satisfação biofílica e de pertença, podem significar
oportunidades de sensibilização.
O posicionamento contemplativo diante de uma paisagem qualquer é o momento em
que são revividos ou criados os significados que se atribui aos seus elementos e ao
conjunto. É, portanto, uma via interativa que faz o ser humano se desprender de sua
referência dominante, seu próprio ser, para perceber o mundo ou perceber-se no mundo. É
esse espaço permissivo que povoamos com nossos fluidos imaginários e incutimos as
facetas que nossa memória guarda como semelhança ou identidade. Em outras palavras,
renovamos nossos traços topofílicos, que nos faz estonteados, ou os construímos a partir
das sensações lúdicas que esse vislumbre nos traz.
A educação ambiental, como ação que se propõe à busca de reflexões e mudanças
das formas de interação do ser humano com o mundo, deve se enriquecer, cada vez mais,
de vias alternativas onde seja contemplada a complexidade do fenômeno perceptivo. Estar
no mundo pressupõe a reflexão, mas também a imersão na magicidade, a fluidez da
imaginação, já que essas dimensões são próprias do humano e mantiveram-se constantes ao
longo de sua história, a despeito do engessamento promovido pelo extremo racionalismo
cartesiano. FOUCAULT (1999) destaca o tênue limite entre o racional e o ideal, associando
à constituição dos conhecimentos do século XVI, uma mistura instável de saber racional e
de noções derivadas das práticas da magia. Para CASSIRER (op cit, p.14), a
dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo de sua vida espiritual,
mas não conseguiu romper com as matrizes da sua imaginação, de modo que todo um
“refugo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas”.
A experiência contemplativa da água é estado de percepção estética. Sabemos que a
experiência estética rompe com todo o posicionamento puramente racional do ser humano
diante do mundo. É o desafio da intencionalidade husserliana, onde o humano, sujeito, se
mistura ao objeto e, em lugar de representa-lo, traduz o todo gerado nessa interação. A
dissolução numa dimensão fluida e de dimensões indefiníveis parece estar tanto no
momento contemplativo como no criativo, o que dá um caráter talvez análogo à epifania da
experiência estética e à experiência de pertença ao mundo.
A experiência estética se situa na origem, naquele ponto em que o homem,
confundido inteiramente com as coisas, experimenta sua familiaridade com o
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mundo; a Natureza se desvenda para ele e ele pode ler as grandes imagens que
ela lhe oferece. (DUFRENNE, 1998, p.30-31)
Dufrenne sugere que a experiência estética realiza a redução fenomenológica, no
instante em que parte da percepção pura, que se dá na condição da intencionalidade,
momento em que objeto e sujeito são destituídos de suas prerrogativas e o ser puramente
comanda as sensações. A água é, pois, o ser que nos leva, muitas vezes involuntariamente,
à contemplação e à experiência estética.
Usar elementos geradores de interações contemplativas e de pertença, entendendo o
potencial de sensibilização dessa experiência, é ação de significativa adequação à educação
ambiental. Nesse sentido, em lugar de reduzirmos nossas ações aos apelos do dever para
com as gerações futuras, aos discursos catastrofistas e antropocêntricos, talvez devêssemos
considerar a extrema importância de redescobrirmos nossa complexa identidade, que se
revela na intuitividade, na imaginação, na poesia, na emoção e na plena integração ao
mundo.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1993.
CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Ed. Martins Fontes,
2001.
LEITE, Mário César Silva. Meu corpo até arrepia, só de falar. In: DIEGUES, Antonio
Carlos (org) A imagem da água. SP: HUCITEC/USP, 2000.
THOREAU, Henry David. Walden e a vida nos bosques. São Paulo: Ed. Global, 1984.