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L'lnitiation

Cadernos de Documentação Esotérica e Tradicional


Revista do Martinismo e das Diversas Correntes Iniciáticas

Nº 3 - Outubro/Dezembro de 2001

origem
Tarô

Revista fondada em 1888 por Papus {Dr. Gérard Encausse)


Reativada em 1953 pelo Dr. Philippe Encausse
;";>
ft'. :;:_;
EDITORIAL ,-;-:l{::::.�.:_
----- C�::���_;C//_ · ------------------ -----
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UMA VIRADA DE ANO MARCANTE

amos chegando ao fim de mais um ano. Ano difícil, cheio de

V desafios, algumas armadilhas no meio do caminho, mas no todo um

ano pos1t1vo. Se por um lado vemos o mundo e suas estruturas arcaicas

começando a aluir, por outro podemos vislumbrar, no fim do túnel, a

aurora de uma nova civilização. Ainda em construção, mas viva e palpi­


_
tante no coração de uma juventude que renega os valores herdados de

uma sociedade decadente. É neles, naqueles que vêem, que depositamos

nossa crença em um mundo melhor. Que sem dúvida virá, sepultando

finalmente, por um lado, o terrorismo devastador e, por outro, a

arrogância dos que se crêem os senhores tutelares do mundo. Fim de um

sistema econômico e social injusto, alvorecer de uma terra sem fron­

teiras. Mais próximo sem dúvida do ideal sinárquico antevisto um dia

por Sairn-Yves d'Alveydre.

e nossa parte, apesar dos percalços, 2001 foi sem dúvida um ano

D vitorioso. Conseguimos implantar L1nitiation e estamos acertando

sua periodicidade. A revista vem conquistando um universo crescente de

assinantes e começa a marcar uma presença mais forte nas livrarias,

sendo agora distribuída em todo o país. E assume um novo visual, muito

mais para livro do que para revista propriamente dita. Mais fácil de

armazenar na estante, mais fácil de ser identificada.

final desse 2001 assinalou também o lançamento, entre nós, do

O GERME, um grupo de estudos rnartinista e espiritual, que funciona


a pleno vapor no Rio de Janeiro, com núcleos de trabalho já impl;mta-

2
dos em São Paulo e em Florianópolis. Para tanto recebemos a visita de

nosso diretor internacional, Yves-Fred Boisset, que esteve entre nós de

25 de novembro a 7 de dezembro, com um amplo programa de traba­

lho, que incluiu da implantação das bases do GERME e·sagração de um

núcleo martinista iniciático, à implantação de um rito maçônico inexis­

tente. no Brasil, o RER - Rito Escocês Retificado. Yves-Fred aproveitou

a estada no Rio para comparecer à movimentada noite de autógrafos do

seu livro Saint-Yves d'Alveydre: A Sinarquia • OArqueômetro •As Chaves

do Oriente, oportunamente lançado pela Gnosis Editorial.

o próximo número você terá, entre outras matérias palpitantes, uma

N reportagem completa sobre a visita de Yves-Fred Boisset ao Brasil e

seus desdobramentos no âmbito da Tradição.

o mais, só nos resta desejar a todos vocês e à comunidade

N humana como um todo, que o espírito do Cristo se faça pre­

sente em todos os lares e que 2002 n ão seja o ano da catástrofe, mas

o de uma irmandade cada vez mais estreita do Homem, indepen­

dente de sua raça, crença ou nacionalidade. E que haja mais esp�ço

para a Caridade nos corações.

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Mário WillmersdorfJr.

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3
NOTAS SOBRE O SENTIDO DO NATAL

Marielle-Frédérique Turpaud

Esra noire iremos, uma vez mais, refletir sobre a fesra de Naral.

O uabalho reperitivo não deve nos surpreender, já que passamos uma boa
pane da nossa vida iniciárica relembrando nossa iniciação e encontrando
sempre novas riquezas nessas leiruras.

Ponanro, além dos perus, dos patês, dos chocolates - compulsão compen­
sarória dos terrores das noites que se apresentam cada vez mais longas -
realizemos o Natal.

Naral é, inicialmente, a noire. Como foi à noite que os hebreus fugiram do


Egito. Da mesma forma foi também de noite que o Salvador desceu sobre a
rerra: noire de liberdade...

Natal é a errância de uma família


estrangeira no país, vinda da Galiléia
- mistura impura de pagãos, de
pronúncia bem reconhecível (Mateus,
26, 76) - e que deve encontrar com
urgência um ninho para abrigar a cri­
ança que vai nascer.

Naral é a gruta, o esconderijo no flan­


co da montanha que domina Belém e
as colinas de pastagens. A imagem da
grura não está no evangelho, mas se
enconua nos primeiros comentários
dos Pais, que conheciam esses recantos
uogloditas habitualmente utilizados pelos pastores do lugar. Para nós é a
comovenre visão da luz oculta, de Deus no primeiro tabernáculo, deitado na
palha do primeiro sacrário, do primeiro ostensório.

4
"
Porque Belém quer dizer a casa do pão". Isto significa que Jesus é o "pão de
Deus, o pão que desce do céu e dá vida ao mundo" Qoão, 6, 33), e dá ao
mundo para que aquele que o come não morra, mas entre na vida eterna, a
Grande e Perfeita Reintegração no Coração de Deus. Eis porque Jesus
Menino está deitado em uma manjedoura: porque seu destino é deixar-se
devorar pelo Amor.

Mas, rrie diriam vocês, a manjedoura está destinada ao boi que lá se encon­
trava, conforme sugerido por piedosos autores, e como nosso irmão São
Francisco o representou no primeiro presépio de Natal. Correto. Mas existe
muita diferença entre a sonolência pesada desse bravo ani-
mal, cujo horizonte não vai muito além de trabalhar­
dormir-forragem, e nossa própria inércia diante das
grandezas divinas?

Asaph constata:

"Eu igriorava, não entendia,


como um animal qualquer.
Mas estarei sempre convosco,
Porque vós me tomastes pela mão.
Vossos desígnios me conduzirão.
E, por fim, na glória me acolhereis."
(Salmo 73)

Isaías chega a considerar o animal mais inteligente


do que o homem: "porque o boi conhece o seu
possuidor,· e o homem não conhece seu· Deus"
(Isaías, 1, 3). O boi é o objeto de solicitude: deixa­
se que ele paste o trigo que pisal e mesmo aos
sábados desata-se sua correia para levá-lo a beber
(Luc 13, 15), apesar de atar ou desatar uma corda
ser um trabalho estritamente proibido.

1 Deut 25, 4; citado em 1 Cro 9, 9 e em 1 Tim 5, 18.

5
NOTAS SOBRE O SENTIDO DO NATAL

Enfim, se nos lembrarmos que "boi" em hebraico é ALEPH, compreender­


se-á melhor seu lugar capital no Templo, sustentando o Mar de Bronze (1
Reis 7,25) onde, aparecendo como o quarto elemento do Todo, na visão de
Ezequiel (Ez. 1, 10), do Apocalipse (4, 6-8) e até em nosso Tarô, na lâmina
do Mundo, ao redor do Cristo ressuscitado - onde ele é atribuído por
Santo lrineu de Lyon ao evangelista São Lucas, porque seu evangelho
começ:i no Templo. Seu lugar no presépio não é pois sentimental: ele é o
Aleph, o primeiro adepto, aquele que vê primeiro e que compreende antes
do homem.

Por falar em hebraico, a palavra "Galiléia" significa "o círculo". Maria e José
teri:im que "sair do círculo" para chegar na cidade do rei Davi, a "casa do
pão". Como "saímos do círculo" na marcha cega da iniciação2, para cami­
nhar rumo à verdade.

Caminhar para Jesus, como os pastores - e por amor, como Ele veio em
um corpo de bebê por amor a nós. No oco da montanha da "Casa do Pão'',
esd oculro o Cálice3, seu retiro secrero, como está escrito:

"Ele introduziu-me na Casa do Vinho,e


o estandarte que Ele ergue sobre mim é o amor!"
(Cântico 2, 4)

Mas para atingir esse retiro secreto é necessário sair de si, "sair do círculo",
como o fizeram os pastores e, de mais longe, os Magos e, ao mesmo
tempo, penetrar no mais recôndito de seu próprio coração, sob a mon­
tanha4, onde Ele está aninhado, dormindo, esperando ser despertado por
nossa amorosa vigilância para refulgir em plena força e glória em toda a
infinidade da sua luz.

2 Alusão a um ritual de iniciação ao 1º grau da Ordem Martinista (ritual de Teder, éditions


Demeter, 1985)
3 Sob a montanha (Ken) está o lago (Touei): imagem do hexagrama Nº 41, SOUEN, a
diniin1-ii9õio até o "'quilíbrio. Compardr com o Nº 4, MONG, a loucura juvenil. (1 Ching).
4 Sob a montanha (Ken) está o fogo (Li): imagem do hexagrama Nº 22, PI, a Beleza (1 Ching)

6
NOTAS SOBRE O SENTIDO DO NATAL

Esta amorosa vigilância é a


de Maria, meditando em
seu coração\ é a de José
velando sobre a família6, é a
dos pastores maravilhados
acreditando na mensagem
do anjo, é a dos magos ca­
minhando longamente por
terras desconhecidas, e é
aquela, tão simples e direta,
do boi, habituado aos duros
trabalhos de tração que,
com seu sopro, aconchega
ternamente o Menino Jesus
adormecido em seu feno.

Possamos nós, nesse perío­


do natalino onde tantas
barreiras tenebrosas foram
abatidas, velar sobre a frágil
luz da liberdade que é A adoração dos pastores (Jusepa de Ribera)
anunciada ao mundo, e que "A amorosa vigilância dos pastores maravilhados,
reconhecemos neste signo?: acreditando na mensagem do anjo"
um bebê enfaixado e deita­
do numa manjedoura.

Esta matéria foi publicada originalmente em 1'.Initiation no N° 1 de 1991.

5Verlucas2, 19e2,51.
6 Ver Mateus 2, 13
7 Signo dado pelo Anjo aos pastores (Lucas 2, 12).

7
PAPUS E O MARTINISMO
Philippe Encausse

Filho de Papw, o Dr. Philippe Encausse deixou este plano no dia 22 de julho de
1984. Homem exemplar por sua bondade, conduta e devoção integral ao
Martinismo, foi ele o responsável pelo ressurgimento da Ordem, em 1953. Suas
obras se integram, sem dúvida, ao legado dos grandes "Mestres Passados" do
Martinismo. O artigo Papus e o Martinismo foi publicado pela primeira vez
em Llnitiation, na edição N° 1 de 1991, que traz em sua capa a figura de
Delaage, o grande iniciador de Papus.

Assinalei anteriormente que Papus havia sido


iniciado no marrinismo em 1882 (e não em
! 883 como escreveram alguns autores). E
o foi por Henri Delaage que, alguns
meses antes de sua "morre", impôs�lhe
as mãos e sagrou-o "Superior
Desconhecido" (S :. I :. ) segundo a
regra. É a esta iniciação que Papus se
refere, sem citá-la, em sua interessante
brochura (atualmente inencontrável)
Martinésisme, Wiflermosisme, Marti­
nisme ei Franc-Maçonnerie (Martine­
stsmo, Wiflermosismo, Martinismo e
·Franco-maçonaria):

"Alguns meses antes de sua morre,


Henri Delaage (1825. 1882) Delaage quis passar a um outro a
semente que lhe fora confiada e da qual
não pensava poder extrair qualquer fruto. Pobre legado, constituído por
duas cartas e alguns pontos, resumo dessa doutrina da iniciação e da
trindade que havia iluminado todas as obras de Delaage. Mas o Invisível
estava ali, e foi ele mesmo quem se encarregou de ligar as obras à sua real
origem e de permitir a Delaage confiar sua semente a uma terra onde ela
pudesse desenvolver-se."

8
PAPUS E O MARTINISMO

Henri Delaagel, que nascera em 1825, morreu em 1882. A iniciação de


Papus remonta, pois, a esta época. E logo, sob seu impulso ativo, o marti­
nismo conheceria um novo e espantoso desenvolvimento.

Em seu livro profusamente documentado sobre A História e a Doutrina do


Martinismo (L'Histoire et la Doctrine du Martinisme - Éditons Niclaus, Paris,
1946) - livro infelizmente esgotado há muitos meses - Robert Ambelain
evoca assim o papel desempenhado por Papus:

"Nessa época Augustin Chaboseau


(bibliotecário do Museu Gumiet), Jean
Maréas, Charles Maurras e o Doutor
Encausse almoçavam juntos todas as
.terças-feiras, num pequeno restaurante
da "rive gauche". Falava-se de tudo e
·de todos e foi assim, por um puro
acaso de conversa, que Papus e
Chaboseau (que havia sido iniciado
em 1886 por sua tia, Sra. A. de Boisse­
Mortemart) descobriram-se ambos
discípulos legítimos e regulares de
Louis-Claude de Saint-Martin.
Augustin Chaboseau

"Logo, fervoroso adepto dàs organizações ativas, Papus resolveu fundar uma
ordem que" tomou o nome de Ordem Martinista".

Convém especificar aqui que meu pai e seu amigo Augustin Chaboseau tro­
caram suas iniciações pouco depois da conversa a que Robert Amberlain se
refere. Conferiram-se assim um ao outro o que cada um deles havia rece­
bido. Essa dupla iniciação teve lugar em 1888, como testemunha essa nota
manuscrita de Augustin Chaboseau: "Como eu reconheceria Bl... como
'Grão-mestre', eu que havia iniciado Papus em 1888?"

1 Henri Delaage escreveu algumas obras, dentre elas lnitiation aux mystàres du mag­
nétisme (1847), Perfectionnement physique de la Ra.ce humaine (1850), Ooctrines des
sociétés secretes (1852), Le Monde prophétique (1853), t.:Éternité dévoi/ée (1854), Le
Monde occulte (1856) e La Science du Vrai (1882).

9
PAPUS E O MARTINISMO

O quadro da filiação marnmsta, de Saint-Martin a Chaboseau e a Papus,


comporta duas colunas. Numa destacam-se (partindo de Louis-Claude de
Saint-Martin) os nomes do abade de la Noue, Antoine-Marie Hennequin,
Henri de la Touche, Adolphe Desbarolles, Sra. Amélie de Boisse-Mortemart
e Augustin C1;iaboseau.

Na ourra (igualmente partindo de Louis-Claude de Saint-Martin), os de


Jean-A ntoine Chaptal, Henri Delaage e Gérard Encausse (Papus).
Considerando-se que Chapral morreu em 1832 - portanro numa época em
que Henri Delaage, nascido em 1825, contava apenas sete anos - há razões
para se supor que um terceiro assegurou a ligação entre Chaptal e Delaage.

Atualmente essa filiação em duas colunas (publicada por Gerard Van


Rijnberg em sua obra sobre Martines de Pasqua!ly) não é universalmente
aprovada, mas era jusro, em minha humilde opinião, recordá-la. Por outro
lado parece bem demonsrrado (mais particularmente pelas pesquisas e pu­
blicações do hisroriador Robert Amaciou) que na época de Louis-Claude de
Saint-Ma�rin não havia "Ordem marrinisra" propriamente dita.' A Ordem
marrinista pode e deve, portanto, ser considerada como uma realização
p:ipusiana, contando hoje com cerca de noventa anos de existência o que,
convenhamos, não é pouco.

Para constituir o primeiro Supremo Conselho, em. 1891, Papus apelou a dez
de seus amigos da primeira hora e a Augustiri. Chaboseau, naturalmente.
Respondendo ao convite de Sranislas de Guait�; ·Ô não-ocultista Maurice
Barres aceitou fazer parte dos doze primeiros membros. Ele não iria per­
manecer por muiro tempo...

Os doze membros (ao invés de vinte e um mais tarde) desse Supremo


Conselho foram: Paul Adam, Barlet, Maurice Barres, Burget, A. <Shaboseau,
Lucien Chamuel, Stanislas de Guaita, Lejay, Montiere, Papus (presidente),
Joséphin Péladan e Paul Sédir.

Barres e Péladan foram, após seu afastamento voluntário do Supremo


Conselho, substituídos por "Mnrc Havcn" (Qr., Lalandc:)· e: Vieror-Emile
Michelet, respectivamente.

10
PAPUS E O MARTINISMO

"As primeiras iniciações pessoais,


esclareceu Papus em sua já citada
brochura Martinésisme, Willer­
mosisme, Martinisme et Franc­
Maçonnerie, tiveram lugar de
1884 a 1885, na rua
Rochechouart. De lá foram
transferidas para a rua de
Strasbourg, onde nasceram os
primeiros grupos. A primeira
loja ocupou a rua P igalle, onde
Arrhur Arnould foi iniciado,
começando assim a via que de­
veria afastá-lo definitivamente
do materialismo. A loja foi em
Stanislas de Guaita
seguida transferida para um
apartamento da rua de la Tour-d'Auvergne, onde as sessões iniciáticas foram
freqüentes e frutíferas do ponto de vista intelectual. Surgiram os cadernos
(1887-1890) e foi então que Stanislas de Guaita pronunciou seu belo dis­
curso iniciático. A partir desse momento os progressos são muito rápidos.

"O Grupo esotérico, a Librairie du Merveilleux, tão bem criada e dirigida


por um licenciado em direito, membro fundador da loja, Lucien Chamuel,
surgiram uma após o outro, em 1891. O "Supremo Conselho" da Ordem
Martinista estava constituído com um local reservado às "sessões" e às inici­
ações: rua de Trévise, 29, depois rua Bleue e finalmente rua de Savoie.

"A partir daí a Ordem designou delegados e criou lojas, inicialmente na


França e a seguir em diversos locais da Europa, depois nas duas Américas,
no Egito e na Ásia."

11
DA ORDEM MARTINISTA ÀS ORDENS MARTINISTAS

Gino Sandri

Todo membro de uma ordem martinista, ou rodo aspirante, descobre rapi­


damente que existem várias ordens marrinistas que mantêm relações entre si
ou que se ignoram. Alguns pertencem, às vezes, a várias dessas organizações;
outros, enfim, consideram-se livres de qualquer ligação administrativa. Esta
situação confusa lança constantemente dúvidas nos espíritos. Para tentar
esclarecer um pouco esse estado de faro, é necessário nos determos um
pouco sobre a origem e a história da ordem martinista.

É seguramente a Papus, o doutor


Gérard Encausse (1865-1916) que
devemos a iniciativa da criação desta
sociedade iniciática em forma ritual.
Se Papus e seus colaboradores esco­
lheram colocar-se sob a égide de Louis­
Claude de Saint-Martin, "o Filósofo
Desconhecido", deve-se esclarecer que
o próprio teósofo nunca criou grupa­
mento desse tipo. Isto não impede que
qualquer homem de desejo deva con­
siderar que a fundação empreendida
por Papus foi providencial. As
pnme1ras 1n1c1ações martinistas
podem ser datadas dos anos 1887-
' 1891. Depois uma organização mais
Papus, o fundador da Ordem Martinista formalizada viu o dia com o estabele­
ci menro de um Supremo Conselho.

Convém precisar alguns princípios de funcionamento. A iniciação martin­


isra é conferida de iniciador a iniciado segundo um rirual relativamente sim­
plesl. São adoradas disposições para assegurar o funcionamento de assem-

1 Les cahiers de l'ordre au temps de Papus (Os cadernos da ordem no tempo de Papus),
publicados por Robert Amaciou em Oocuments martinistes, nº 14 (1980).

12
bléias martm1stas �re�ididas por um iniciador. Existem igualmente inici­
adores livres, detentores dos mais amplos poderes. Enfim o Supremo
Conselho agiu em todos os países por intermédio de delegados e inspetores
A Ordem martinista, caracteriza-se por uma organização muito flexível,
deixando a maior liberdade aos responsáveis pelos grupos, aos membros,
assim como aos iniciadores livres. Os próprios iniciadores têm uma grande
liberdade de ação para �daptar os rituais de recepção, desde que conserva-
"' '\·
dos os pontos essenciàis.

Teder, o primeiro sucessor de Papus - Jean Bricaud - conduziu a Ordem a


apenas dois anos de' �andato. uma maçonização excessiva

A Ordem marnnrsta é portanto única. A morte de Papus, durante a


Primeira Guerra Mundial, provocará as primeiras fraturas. Seu sucessor,
Char\�s Détré, dito Teder (1855-1918), sobreviverá a ele apenas dois anos.
Jean i3ricaud (1881 �1934) .o .sucedeu. Sua conduta é muito rapidamente
contestada pelos 04q-os,,rhe11\bros do Supremo Co p selho,:• dentre os quais
alguns são os primeiros companheiros de Papus, corr\.o A.Jg �s'tin Chaboseau.
Critica-se Bricaud principalmente por conduzir a ordem rumo a uma
maçonização excessiva, admitindo nela apenas mestres maçons e de sexo mas­
culino. É nessa época que surge a Ordem martinista e sinárquica, procla-

13
DA ORDEM MARTINISTA ÀS ORDENS MARTINISTAS

macia em 1922 por Victor Blanchard. Que terá suas pos1çoes igualmente
contestadas, o que redundará na criação de uma Ordem martinista tradi­
cional. A corrente encarnada por essas duas ordens pretende ser mais fi�I ao
espírito e às formas da Ordem martinista original. Esse fracionamento entre
"lioneses" e "parisienses" teve repercussões em nível internacional. A O.M.S.
participa na aventura da Federação Universal das Ordens e Sociedades
Iniciáticas (FUDOSI); a Oi·dem martinista presidida por Jean Bricaud apóia
a feder;i.ção concorrente, ;i FUDOFSI.

. A fratura entre os dois ramos está longe de ser hermética e as' passagens ou as
comunicações entre umJ. e outra não são raras, inclusive no nível mais elevado!

A Segunda Guerra Mundial e as pertur­


bações por ela trazidas irão obstaculizar 'as
atividades de diversas sociedades iniciáti­
cas. Na França, no fim da ocupação, a
retomada da atividade inartinista é difícil.
Çonstanr Chevillon, sucessor de Bricaud
em Lyon, fora assassinado pela Milícia em
1944. Sob a presidência de Henry-Charles
Dupont (1877-1960), esta Or.dem mar­
tinista funciona de maneira confidencial.
Em Paris,.será necessário esperar o �no de
19 52 para que, graças à colaboração de
Robert Ambelain (1907-1997) e . de
Constant Chevillon - morto pelos Philippe Encausse (1906-1984), a Ordem
nazistas em 1944 martinista seja reconstituída com o suces­
so que conhecemos. Em 1960, Philippe Encausse poderá reunir a ela a
Ordem .martinista "de Lyon".

Após esse brevíssimo apanhado histórico, qual é a situação atual na França?

Desde 1960 desenvolveu-se na França, por iniciativa de Raymond Bernard,


a Ordem Marrinista Tradicional2. Esta ordem nasceu nos �stados Unidos,

2 Denominada, no Brasil, Tradicional Ordem Martinista, ao que tUdo indica um equívoco


de tradução que altera o sentido do nome original (N. do E.)

14
DA ORDEM MARTINISTA ÀS ORDENS MARTINISTAS

no período entre guerras, por iniciativa de Spencer Lewis, graças às relações


estabelecidas no quadro da FUDOSI. Isto explica que a O.M.T. t'enha vín­
culos muito estreitos com a AMORC.

A Ordem dos Cavaleiros martinistas nasceu de uma cisão da O.M.T.

Em 1967, após haver deixado a Ordem Martinista, Robert Ambelain funda


a Ordem Martinista Iniciática, com destaque para a via operativa .

Após o afastamento de Philippe Encausse da presidência da Ordem


Martinista, um cerro número de membros deixou a organização mãe para
constituir a Ordem Marrinista Livre. Esta última, por sua vez, sofreu mais
recentemente uma cisão que deu
origem à Ordem Martinista S.I.. Estes
dois ramos conservam muitas similari­
dades com a ordem de que saíram.

A Ordem Marrinista e Sinárquica


prosseguiu suas atividades fora da
França. No entanto uma patente foi
entregue em 12 de abril de 1975 a Sar
Affectator que, por diversas razões,
teve que in terro mper provisoriamente
suas atividades. Um pequeno grupo
francês foi constituído há alguns anos.
Há dois anos este grupo, tornado
soberano, constituiu o núcleo da Robert Ambelain - fundador da Ordem
Ordem Martinista e Sinárquica Martinista Iniciática
Francesa. O grupo tenta reencontrar o
espírito e a forma da Ordem Martinista do tempo de Papus, daí recorrer ao
primeiro ritual.

As implantações estrangeiras da Ordem mamrns�a assumiram progressiva­


mente sua independência, dispersando-se por vezes fora de seu país de origem.
(o caso da Ordem Martinista dos Cavaleiros do Cristo que provém de uma
mutação da Ordem Marrinista da Bélgica, sob a direção de Armand Toussainr.

15
DA ORDEM MARTINISTA ÀS ORDENS MARTINISTAS

Esras múltiplas correntes estão presentes em muitos países e se desenvolvem, a


partir deles, donde esta situação tão complexa.

Neste estágio, a questão do que forma a diferença entre estas diversas associ­
ações que reivindicam para si a Ordem Maninisra permanece colocada.

É inegável que as querelas pessoais têm sua parte nisto, notadamente quando
das sucessões aos postos de direção. De uma maneira geral, nas organizações
que têm vocação para serem o veículo do Espírito, as tensões, as paixões, ma­
nifestam-se às vezes de maneirar exacerbada.

É necessário também considerar a visão pessoal de cada indivíduo em relação


ao martinismo e à Ordem Martinista. O próprio Papus demonstrava um

grande eclet Sino em suas pesquisas, o que não deve encobrir a coerência de sua
conduu. Elé reivif)dicava três mestres: Peter Davidson, seu mestre em magia,
Senhor Philippe, seu mestre místico e Sainr-Yves d'Alveydre, o mestre intelec­
tual. Parece qüe ·e.s;;es diferentes aspectos devem ser considerados para tentar
p
explicar as múlti Ía.S'cisões evocadas neste artigo.

Alguns rejeitam a reurgia cerimonial, a via operativa. Ourros, em reação, con­


sagram-se a ela prioritariamente, rejeitando os partidários de uma via mais
cardíaca. Pode-se destacar também a forma dada ao ritual e à estrutura. É o
antagonismo já evocado entre os partidários de uma maçonização da Ordem e
aqueles que a repudiam.

Além destas divergências, uma atitude comum, na fidelidade ao espírito origi­


nal da Ordem martinista pode ser destacado. Talvez seja isto que nos incite a
um rerorno às fontes, em particular às fontes de Papus, efetuado com prudên­
cia, sem nada negar dos aportes sucessivos dos mestres passados.

Porque todas as ordens martinistas, rodos os iniciadores livres, fiéis ao


depósito que recebem com a finalidade de fazê-la viver, constituem a Ordem
Marrinisca essencial.

Esta matéria foi publicada originalmente em I.:Initiation no nº 2 de 19:J8.

16
A GRANDE INICIAÇÃO
ROSACRUCIANA
DE ROBERT FLUDD

Serge Hutin

o Tmctatus théologophilo-
N sophicus (publicado em
Oppenheim em 161 7) de Robert
Fludd - esse grande alquimista inglês
que foi iniciado nos mais altos mistérios
rosacruciancls + lemos as seguintes li-·
nhas muito reveladorasl:

"Mpis �lhos se abriram


e compreendi, por vossa
curta resposta, o que
(pelo anúncio do
Espírito Santo, como
dizeis) passais a dois
eleitos em vosso cenáculo.
Tendes a ciência do verdadeiro mistério e o conhecimento da chave
que conduz à alegria do paraíso, como os patriarcas e os profetas nas
Sagradas Escrituras. Já que vos servis da mesma via e dos mesmos
meios que eles para a aquisição do mistério, a entrada do paraíso
está aberta para vós, assim como esteve para Elias, que recebera os
avisos divinos [...].

"Vós prevenis dois homens escolhidos de que há. uma montanha,


situada no meio da terra e ciosamente guardada pelo diabo.
Animais ferozes e poderosos tornam seu acesso difícil. Vós lhes
ordenais, após se haverem preparado por devotas orações para uma

1 Texto extr.aído de uma tradução francesa inédita de Edgar Jégut. O o riginal, como o
da grande mkioria das obras de Robert Fludd, foi escrito em latim.

17
A GRANDE INICIAÇÃO ROSACRUCIANA DE ROBERT FLUDD

cal renrariva, de irem à monranha durante uma noite bem longa.


Promerei-lhes um guia que se virá oferecer e juntar-se a eles, e que
eles não conhecem [ ...].

"Tende um coração viril, uma alma heróica, não remais nada do


que vos possa acontecer e não recueis [ ... ]. O primeiro sinal que vos
mostrará que vos aproximais da montanha é um vento de uma vio­
lência cal, que fende a montanha e quebra os rochedos. T igres,
dragões e outros animais horríveis e cruéis se oferecerão à vossa
vista. Não temais. Sede firmes de coração porque vosso condutor
não permitirá que qualquer mal vos seja feito. Mas o tesouro ainda
não está descoberto, por mais próximo que esteja. Aqui advém um
tremor de terra que dispersa e aplaina os montes que o vento havia
erigido. Cuidai para não recuar. Mas o tesouro ainda não está aber­
ro p,ara vós. Após o tremor de terra, eis um fogo intenso que irá
devorar toda a matéria e fazer aparecer diante de vossos olhos o
teso�ro. Mas vós, vós não podeis ainda vê-lo. Em seguida, por volta
da manh,ã,, virá uma calma benfazeja. Vereis a estrela matutina subir
e avançar para a aurora. Nesse momento o tesouro oferecer-se-á aos
'
vossos olhos.
"Eis o método e a fórmula para adquirir a luz divina, que é o
tesouro dos tesouros [ ...] .

"De sua caverna, Elias (Fludd interpreta aqui o capítulo 19 do 3°


Livro dos Reis) viu como primeiro sinal um grande sopro agitando a
montanha e despedaçando as pedras, e Deus não estava no sopro.
Elias sentiu igualmente uma comoção onde Deus não estava, como
o tremor de terra no qual o tesouro não aparece. Em último lugar
Elias viu o fogo, e Deus não estava no fogo. Ouviu em seguida um
doce vagido no ar molemente agitado, e foi então que ouviu a voz
de Deus, como os Rosa+cruzes só vêem o tesouro à aurora. [ . ] . .

"Conclui pois comigo, ó homens deste mundo tornado cego por uma
nuvem de ignorância, que a virtude e a eficácia do Espírito Santo são
verdadeiramente os Irmãos da Rosa+Cruz e crede que seu retiro está
situado ou nas fronteiras mesmo desse lugar de volúpia terrestre

18
A GRANDE INICIAÇÃO ROSACRUCIANA DE ROBERT FLUDD

vizinho às nuvens, ou nos picos de certas montanhas, muito altas,


seguindo a vontade de Deus e onde os habitantes respiram e degus­
tam um ar muito suave e muito sutil ao sopro da Psique, ou os
eflúvios do Espírito da verdadeira sabedorià' .2

A primeira questão que poderia ser colocada consistiria em nos perguntarmos


se se trata aqui de uma cena simbólica. Seguramente sim, mas sendo, ao
mesmo tempo, bastante real. Trata-se, de fato, de um ritual iniciático, drama
sagrado cujas diversas fases colocam em ação símbolos de uma lenda tradi­
cional específica. Esta, no caso, é bíblica: é a da ascensão do profeta Elias, le­
vado para o céu sem conhecer a morte - o que corresponde ao estado de
�ranslação em corpo glorioso, conhecido pelos adeptos muito avançados'. '

O que o alquimista rosacruciano Robert Fludd nos conta de maneira bem


precisa, é exatamente sua maior experiência iniciática, aquela que, muito
provavelmente, corresponde ao último grau da sociedade secreta da
Rosa+Cruz, em seu ramo alemão, bem no final do século XVI: o alquimista
inglês havia sido iniciado em todos esses mistérios no decorrer de seu longo
périplo no país germânico (em 1600-1601), durante o qual ele chegou
mesmo aos confins da Polônia. Não é absolutamente por acaso que várias das
obras de Robert Fludd - especialmente as duas primeiras - foram publi­
cadas em Oppenheim, Westfália e ilustradas pelo notável gravador Jean­
Théodore de Bry, estabelecido além do Reno há muitos anos e que era, ele
próprio, um notório rosacruciano. Não esqueçamos, ademais, que seu
Tratactus theologophilosophicus, do qual extraímos a bela passagem aqui sucin­
tamente analisada, teve sua publicação entregue aos cuidados de Michel
Ma·ier, célebre alquimista rosacruciano alemão e amigo pessoal de Fludd.

Para voltar ao ritual iniciático que Fludd nos descreve com todos os detalhes,
nós o visualizamos muito bem: os dois recipiendários (porque nesse grau dois
neófitos são iniciados simultaneamente ao ápice), são conduzidos ao cimo de
uma montanha simbólica e lá passam pelas provas destinadas a colocar em
ação a visão hermética rosacruciana da ascensão de Elias, identificada aqui ao

2 Citado por Sédir em Les Roses+Croix (Os Rosa-Cruzes), Paris, Les Amitiés
Spirituelles (As Amizades Espirituais), 1953, pag. 103-105.

19
A GRANDE INICIAÇÃO ROSACRUCIANA DE ROBERT FLUDD

estado último do adeptado humano, quando o alquimista sobe ao céu em


corpo glorioso, tendo triunfado sobre tqdos os efeitos da queda adâmica nas
trevas materiais.

Evidentemente não é necessário supor o ritual efetivamente cumprido no cume


de uma montanha real, apesar disto nada ter de impossível em certos casos.

A expressão "uma montanha situada no meio da terra" pareceria indicar mais


se tratar de fato de provas simbólicas enfrentadas em um local especialmente
preparado. Mas uma outra interpretação é igualmente possí, vel: caso se tratasse
de um itinerário realmente cumprido pelos dois iniciados, mas numa região
superior ao plano terrestre e à qual só se pode acessar, precisamente, pela ilu­
minação alquímica. Fludd é bastante claro: "Meus olhos se abriram... Tem-se
ciência do verdadeiro mistério e da chave do conhecimento que conduz à ale­
gria do paraíso ... a entrada do paraíso vos é aberta... ". Ao mesmo tempo em
que ele é o condutor humano guiando os dois recipiendários através das provas
sucessivas do ritual, o guia de que nos fala o alquimista rosacruciano pode
muito bem ser também a potência celeste, a entidade Angélica que guiará a
alma durante sua perigosíssima peregrinação através de um outro plano de
existência - atingido por imaginação mágica do alquimista.

O paralelismo dos sentidos é inteiramente normal numa tal narrativa; esse


complexo ritual iniciático não somente coloca em ação seus símbolos especí­
ficos - e segundo uma pluralidade de aplicações, já que as provas sucessivas
poderão ser interpretadas nos planos paralelos da mística, da alquimia, e tam­
bém da reurgia - mas parece nos dar também a descrição, verdadeiramente
muito precisa, do périplo imaginativo do iluminado rosacruciano (ilumina­
do, esclareçamos, no sentido nobre e forte do termo) numa região diferente
da experiência sensível mas também real, senão mais. A iniciação rosacru­
ciana tinha por objetivo precisamente abrir nossa percepção humana a esses
outros planos da manifestação.

Esta matéria foi publicada originalmente em I..:Initiation no N° 2 de 1964.

20
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

Christian Sastre

Quanto mais avanço em minhas pesquisas livrescas e místicas, mais ouço


falar da Palavra perdida.

Uma outra expressão, quase sinônima, está freqüentemente a ela associada,


é o Verbo original.

Todas as duas significam que na origem da Criação, um som particular, uma


palavra de força, tornou manifesto tudo o que existe. O prodigioso desta
Gênese cósmica reside nos efeitos, já que eles ainda perduram. Não é a
Criação uma perpétua recriação?

Que segredo permanece para sempre oculto sob a capa dessas palavras?

Em que consistia esta palavra original? Quem a pronunciou? Está ela real­
mente perdida? Pode-se reproduzí-la atualmente?

Ocorrem-me os versículos tão conhecidos, atribuídos ao apóstolo João, que


começam assim:

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o


Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi
feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia Vida, e a Vida era
a Luz dos Homens. A Luz resplandeceu nas Trevas, e as Trevas não
a compreenderam... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e
vimos sua glória, a glória que um Filho único recebe do seu Pai,
cheio de graça e de verdade" .1

Sublime explicação digna de um iniciado que experimentou em sua cons-


.
ciência o poder glorioso da Palavra!

1 Evangelho Segundo São João, capítulo 1, versículos 1 a 14.v

21
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

O som e a paúwra
.J:- palavra subentende a produção de sons. Ora, o som é uma vibração com­
nreendida bum diapasão bastante restrito em relação a todas as outras fr�­
qÜências do universo. Dissemos que. à palavra se associa geralmente o verbo.
É co.rreto que a palavra engei-idra uma ação, um movimento, senão não
haveria verbo. Tudo seria estático; a Criação não teria ocorrido.

Conseqüentemente depreende-se que as pesquisas devem ser dirigidas para


a pronúncia eficaz e dinâmica de certos vocábulos. De fato, nas palavras, os
sons, propagados no espaço, no tempo, através da matéria e no vazio, estru­
turam-se harmoniosamente a ponto de engendrar uma manifestação .

Um som é analisado pela freqüência vibratória (principalment. e) à qual s.e


somam a sua amplitude, sua altura, seu timbre, sua modulação, etc.
Reteremos éssencialmente a freqüência vibratória do som, já que é ela que
lhe di sua existência.

Nã0 �e deve confundir estes vocábulos: o som e a palavra.

O primeiro qualifica o ruído que qualquer coisa pode emitir, seja por um
movimento exterior (deslocamento, choque no espaço), .ou por um movi­
mento interior (dilatação, complexificação). Esta emissão do som é, conse�
qüentemente, anárquica, sem objetivo preconcebido quanto ao. seu destino.

O segundo, a palavra, é o fruto de uma reflexão, de uma aprendizagem do


� ê:) m. É o ato deliberado. de uma pessoa que quer fazer-se compreender. Ela
dêé:orre, pois, da inteligência, A palavra deve ser interpretada como um
sinônimo de vibrações colocadas em movimento e coordenadas pela von­
tade do ser consciente.

As vibrações estão em toda parte do universo. Nem todas são perceptíveis


pelos sentidos. "Se podemos pensar de forma razoável que não há limite
1• inferior ou superior ao espectro das freqüências, pode-se também muito
1
razoavelmente, induzirque certas freqüências engendram fenômenos,
dimens'ões seres que não percebemos conscientemente, mas que não deixam
de agir 1nenos obscuramente sobre nós. E de vibrações em freqüências,

22
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

esperaríamos, se nossas capacidades de apreensão o permitissem, a essência


vibratória do universo, o princípio fónico inicial do qual todas as coisas pro­
cedem" .2

Vocês talvez pensem que o autor desse extrato antecipa muito sobre as reais
possibilidades criadoras da Palavra!

Considerando-se entretam� que a ciência está ainda longe de poder analisar


e reproduzir vibrações d� altíssimas freqüências, não é absolutamente utópi­
co afirmar que isto é ou sed do domínio do realizável. A ciência não expe­
rimentou tudo. Ora, quanto mais ela progride em suas descobertas, mais ela
constata e mais ela prova que não há nada de novo sob o sol. O que mudot.:
. foi a maneira de abordar o conhecimento.

Os sá,bios (os cientistas) têm seus cinco sentidos e seus aparelhos. Os


<\ntigos (qs iniciados) têm seus sentidos e seu psiquismo. Uns tomam co­
.-ihecirpênto de uma certa realidade através de utensílios,· que demonstram
não passar de trampolim de uma cultura sempre flutuante. Eles descobrem
apenas um resultado saí(io do Homem. Os outros tomam diretamente con$­

ciência da Real�.c\il., �:;Seu ��pírito, que vibra a uma freqüência muito eleva­
da (pela pureza de intenção; de sentimentos e de amor, assim como pela
.prática da palavra sagrada) concebe o efeito em função de suas causas,
mesmo as mais distantes.

A harmonia vibratória do som


É v�rdade que no universo tudo é vibração. Seguindo este princípio inerente
à dinâmica universal da criação - já que a harmonia de uma oitava à outra
não é uma palavra vã·- o Homem deveria poder, mesmo que pouco sobre
as oitavas superiores. De fato os músicos nos confirmam que quando uma
nota musical, por exemplo; a nota Fá, é acionada, quando a fazemos vibrar,
os Fá das outras oitavas. vibram igualmente por harmonia, ou por simpatia.
O acordo se estabelece por si mesmo sem intervenção do homem, senão
enquanto instigador do primeiro Fá. Isto é uma verdade fundamental

2 Nostra, hebdomadário, nº 284 de 14 de setembro de 1977 (página 16).

23 - --
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

suscetível de repercu�.s,oc:;s em todas as freqüências vibratórias do umver,0


Es�a verdade é bem mais impo"rrante do que poderia irriaginar o profano em
estudo esotérico.

Muitos dentre nós fazem vibrar as noras superiores do teclado cósmico de


uma .waneira incoerente, porque involuntária e inconsciente. Revelar-se-ia
impossível criar manifestações das quais não remos idéias, a menos que as
vibrações que reinam nas freqüências elevadíssimas sejam acionadas com
m'étodo e em plena consciência. O emprego do Verbo original não seria pois
uma ficção. Sendo as vibrações eternas na unidade cósmica, sua utilização
por meios técnicos e com finalidades idênticas, poderia ser reeditada.

O corpo humano não é senão a projeção concreta, e portanto visível, da


parre virai que anima o Homem. Esse aspecto da natureza, a vida, vai
começando a ser analisada pela ciência. Até uma época recente, os Homens
de ciência explicavam' a vida como sendo a resultante química do encadea­
mento dos átomos que, por sua crescente complexidade, organizaram-se em
seres viventes. O mais complexo deles seria o ser humano. Entretanto já há
algum tempo, segundo as mais avançadas teorias; é o corpo, ao �onerário,
que parece ser a cristalização de uma energia "inteligente" bem mais sutil e
poderosi1'que a puramente nervosa ou muscular.

Os átomos são condensaçõe.s de energia vibrando a uma certa freqüência


permitindo, por uma·esrtururação harmoniosa, formar . tudo o que existe em
nosso plano físico. A vida que se exprime nos corpos vivos provém dos níveis
superiores desta mesma energia. As vibrações que dela emanam possuem
:uma freqüência vibratória de tal ordem elevada, que elas parecem não
·

guardar relação direta com a matéria.

O Hoinem raciocina a partir da síntese das informações que os sentidos


a\remessaram em s ua memória. Ora, os sentidos são constituídos para
apreender restritivamente cerras freqüências vibratórias da Criação. O uni­
verso que nos cerca não é senão o humanamente perceptível do Cosmos. Em
outras palavras, não é senão a parte visível do iceberg ou do cosmos. Esta
outra pane imersa, mas preponderante - pois que ela é a fonte da manifes­
raç!:io - é o plano astral, o plano de vida, sede cósmica da energia original.

24
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

A primeira Palavra teria provocado a movimentação da energia original.


Esta, �m virtude da lei natural da ordem e da harmonia, inerente à própria
Palavra, cindiu-se para manifestar-se em todas as dimensões. À medida que
se estendia, sua presença engendrava o espaço, o tempo, a matéria e tudo o
que os afeta.

Em conformidade com a modulação das vibrações, criaram-se diversos esta­


dos ou "nós de energia", imagens das futuras manifestações sobre o plano da
matéria.

Reflitamos sobre esta Palavra. Foi ela verdadeiramente pronunciada? Se sim,


por quem? Se foi Deus que se encarregou da Criação original, isto suben­
tende que aquele ou este que chamamos Deus existia bem antes do Verbo
criador. Sua preexistência supõe que o nada absoluto é um co�ceiro
desprovido de fundamento. Ora, se nada nem ninguém desencadeou este
processo, o raciocínio contraria a impossibilidade tanto científica quanto
filosófica da Criação a partir de nada.

Não seria mais provavelmente o fato da preex1stencia de um aspecto da


eternidade? Que é a partir dessa particularidade que devemos existir? Tratar-
-
se-á de definí-la com nossos conceitos.

No começo era o Verbo


Na Bíblia, o livro da Gênese inicia assim: "No princípio Deus criou os céus
e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o
Espírito de Deus pairava sobre as águas."3

A explicação da Gênese não nos traz mais nenhum ensinamento sobre a


Palavra perdida. Esse estado informe e vazio é o caos do incriado. O caos
original representa a imponderável virtual do que irá se manifestar no plano
físico. É a Palavra, portanto, que organizará o caos.

Duas soluções se apresentam para compreender a origem da Criação pelo


poder da Palavra.

3 Gênesis, capítulo /, versículos 1 e 2.

25
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

1. A Palavra perdida não teria sido uma palavra pronunciada por


alguém, no caso por Deus. Seria uma imagem simbólica do big
bangoriginal. Nesse caso, devemos nos perguntar o que contribuiu
- porque é necessária naturalmente uma causa primeira___.:_ para
a explosão do núcleo cósmico inicial. Se houve uma palavra, ela
está definitivamente perdida, pois houve apenas uma única
Gênese. E a ciência só poderá emitir hipóteses por tão longo
tempo, que acabará por isolar-se em pesquisas· puramente materia­
listas e interessadas.

2. Uma energia vibratória sutil e difusa ex1sna desde roda a


eternidade, formando o que poderíamos assimilar ao plano de
vida, chamado também plano astral ou plano psíquico. A Palavra
criadora poderia portanto ter sido "pronunciada", ou pelo menos
pensada, concebida e emitida a partir desse plano por uma
inteligência cujo objetivo era o de tornar visível a Criação sobre o
plano físico. Nesse caso, bastaria extrair os elementos vibratórios
do plano superior, coordená-los em energia vibratória de freqüên­
cias menos elevadas, mas mantendo-as coerentes, a fim de: repro­
duzir em nossa escala humana a Palavra dinâmica. A pronúncia de
"palavra de força" tornaria possível esse fenômeno?

Eis o que a lógica leva a propor. Das duas soluções consideradas, a segunda
parece a mais plausível, porque nenhuma manifestação poderia surgir do
nada ou ser criada com "nada". Assim, é naturalmente preferível considerar
a hipótese de uma energia vibratória universal representando o plano de
vida, como base fundamental da Palavra perdida.

Se admitirmos que o Verbo original se apóia no plano de vida para projetar,


fora de sua natureza espiritual, um plano mais grosseiro, concretizado pelo
·
plano físico, numerosos enigmas encontram suas soluções.

O verbo como alavanca


Revelemos o seguinte exemplo, que é extraído de numerosas utilizações da
palavra que mencionam os buscadores que se debruçam sobre nosso fabuloso
passado, ou sobre antiqüíssimas civilizações, cujos enigmas resistem, ainda
hoje, às invesciga.ções cienr.íFicas.

26
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

Em Ponape (arquipélago das Carolinas) existem ruínas de uma construção


gigantesca realizada com colunas de basalto. Trata-se de restos do templo de
Nan Madol.

"A construção principal é chamada na lenda Templo da Pomba sagrada... "


No entanto, na origem, o símbolo da divindade não era uma pomba, mas
um dragão cuspindo fogo. E esse dragão aparece em todas as narrativas re­
lativas à origem das ilhas e à construção da "cidadela". A mãe do dragão teria
escavado os canais unicamente com a virtude de seu sopro em brasas, e é
assim que as ilhas teriam se formado. O dragão tinha um "servente" que era
tido por um mágico. O mágico conhecia uma frase que, uma vez pronunci­
ada, os blocos talhados de basalto logo se punham a voar no ar como feixes
de palha. Uma outra fórmula mágica, e os blocos empilhavam-se por si mes­
mos em Nan Madol, sem que os habitantes tivessem que intervir!"4

Fazer enormes blocos de basalto voarem parece bem mais espetacular do que
o famoso ''Abre-te Sésamo!" de Ali Babá. Atualmente, graças à voz, é pos­
sível abrir eletronicamente, por exemplo, a porta de uma garagem ou de um
cofre-forte. Uma célula vibrante reage exatamente às modulações dos sons
vocais. Ela transmite os impulsos sob forma de código personalizado ao
motor que desencadeia a abertura da porta. Podemos portanto compreen­
der isto.

Por outro lado, pronunciar algumas palavras para transportar massas


enormes no ar, e sem a ajuda de qualquer aparelho, ainda parece ficção. No
entanto, considerando-se os progressos da ciência, isro estaria no domínio
do realizável, tão logo ela tenha dominado a técnica da antigravitação! Uma
simples adaptação de uma ap�relhagem eletrônica será suficiente para reedi­
tar o que se passou em Ponape e ... em outras partes.

De qualquer maneira, seja qual for o procedimento que a ciência vier a uti­
lizar, não teremos progredido no domínio da Palavra psíquica. A "telecine­
sia artificial " será um dia inventada, mas a telecinesia mental, objeto de estu-

4 L.:or des Oieux (O Ouro dos Deuses) de Erich von Danlken, página 130,
Éditions Robert Laffont, 1974.

27
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

do da parapsicologia, não está ainda ao alcance ·de todos os cientistas.


Porque para tornar-se mestre dos poderes espirituais é necessário ter uma
concepção da vida no universo, menos concreta, menos física, menos mate­
rialista do que a que nos é ensinada na escola.

Será a palavra mágica?


As vibrações originais se estendem engendrando nós de energia. Pode-se
logicamente deduzir que a emissão consciente de vibrações estruturadas em
palavras, projeta fenômenos no plano astral. Esses últimos, pelo efeito de
sua existência, retransmitem no plano físico sua ação criadora. Considerada
nesta ótica, a vida que se manifesta no plano físico é uma manifesta Ção do
plano astral que pré-existia à matéria.

Três casos concernentes ao meio de emissão da Palavra devem ser conside­


rados. Podemos, de fato, situar o emissor, seja do ponto de vista físico (ou
•tsiológico), seja do mental (ou psicológico), ou do astral (ou espiritual).

a). Tal como a compreendemos, a palavra é a ação de falar. É o

resultado vibratório das cordas vocais da laringe, acionadas pelo ar


expulso dos pulmões. Ela é pronunciada, estruturada pelos mús­
culos da cavidade bucal, da língua e dos lábios; isto no plano fisi­
ológico. A maestria desta palavra é bastante difícil de ser atingida.
Raros são os oradores que atraem multidões. Reconheçamos, ho .
entanto, que esta palavra em questão procede de uma gênese saída
de uma concepção que só pode ter sido definida no plano mental.
b). Sede conceitua! da Palavra, o mental é o verdadeiro plano de
elaboração das idéias, onde se montam as palavras em frases, onde se
prevêem as entonações, etc., em vista da idéia que deve ser expressa.
O pensamento se estrutura sob forma de clichês mentais, precisos ou
não. A vontade de projetar a palavra que vem de sei: pensada, é sufi­
ciente para fazer aparecer diversos fenômenos qualificados de para­
psicológicos. A palavra dinâmica, o Verbo, poderia pois estar associ­
ado a uma ação mental agindo sobre a energia psíquica.
Existe no homem um aspecto de sua natureza interior que é dife­
rente daquele que manifesta seu corpo físico: é a vida. Graças a ela·
a e n e rg i a mental logra exprimir-se de mlilriplas maneiras: intuição,

28
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

premonição, telecinesia, etc. Esse tipo de resultado é atingido pela


experimentação pessoal, cujo objetivo é o domínio da vida (o
espírito) sobre a matéria (o corpo). O homem só consegue utilizar
seu mental porque este último apóia-se no plano de vida ou astral.
O mental tem pois acesso ao plano superior, sede da consciência
universal. Ele harmoniza, em conformidade com a inteligência
cósmica, as sublimes vibrações em uma criação consciente.
c). Isto nos leva a visualizar uma existência da vida independente
da matéria... e, reciprocamente, na expressão final desta última.
Conseqüentemente, nada deveria se opor à realidade do processo
da reencarnação, ou seja, da sobrevida da personalidade após a
morte. Ninguém duvida de que no momento da morte a vida
deixa o corpo para retornar ao seu plano. A vida no homem, con­
densada no que chamamos o espírito (ou essência de vida) tem por
objetivo familiarizar-se com os modos de expressão que devem
necessariamente ser utilizados após a morre no plano de vida.

Ourante sua estada no corpo, o espírito deve experimentar conveniente­


mente a pronúncia fisiológica e mental da palavra. T ão logo tenha assimila­
do a arte do Verbo, seus "átomos psíquicos" terão sido impressionados pelos
hábitos adquiridos no decorrer de numerosas existências. Saberá, conse­
qüentemente, coordenar, estruturar as vibrações situadas no plano espiritu­
al ou astral. É desta maneira que o espírito, assim libertado dos entraves da
matéria, continuará a emissão, sobre o seu próprio plano de vida, de
Palavras, seguindo o conhecimento adquirido na Terra, a fim de ajudar aos
VIVOS.

É claro que o efeito desta palavra, proveniente do divino, é dificilmente per­


ceptível no plano físico. Somente o homem que possuir um mental calmo,
tranqüilo, e sobretudo voluntariamente educado, reconhecerá que o impul­
so que ele percebe provém de uma entidade superior e não de uma sugestão
qualquer de uma pessoa viva aqui de baixo.

Finalmente, dirão vocês, em que a Palavra pode ser considerada como per­
dida? Existe uma palavra específica, uma palavra que se teria perdido, uma
palavra que as civilizações passadas teriam perdido?

29
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

Uma palavra de força: o mantra


Os mísricos praricam a "Palavra mágica" há milênios. Essas palavras, que
coordenam as vibrações do plano de vida, são chamadas "manrras" em sân­
scriro ou em hindu. São palavras em que as· vibrações dos sons emiridos
acionam a energia cósmica que irradiam no universo sob forma de uma
energia vibrarória de altas freqüências. Quando um manrra é pronunciado,
ele emire um som que vibra a uma freqüência situada sobre uma certa oita­
va do teclado cósmico. Por harmonia, as vibrações correspondentes, relati­
vas às oiravas superiores, reagem.

As palavras de força que são os mantras não são todas de igual importância.
O impacro vibrarório é diferente segundo se trate de uma estruturação esta­
belecida a panir do plano físico, do plano mental ou do espiritual. Não é
rodo mundo que pode ter o conhecimento íntimo dos mantras que agem
sobre os três planos. É necessário ter desenvolvido suficientemente sua con­
sciência para compreender roda a sua significação e praticar suas modu­
lações específicas e apropriadas a cada plano.

Um mantra sagrado foi concebido para rer repercussões até o plano divino,
a fim de lá estabelecer contaros conscientes. Se, na seqüência de uma extra­
ordinária conjunrura de circunstâncias, um profano chegasse a pronunciá­
la, correria o risco de desencadear um processo de reação vibratória, cujas
desagradáveis conseqüências se abateriam sobre ele. Mas isto é muito raro,
porque, de qualquer maneira, uma palavra de força que é escrita não revela
a enronação necessária ao acionamento de seu poder. Além do que, tem-se
que ter sido iniciado por uma pessoa que prarique esse mantra há muito
rempo. Portanto a iniciação só pode ser oral.

Tais palavras, de intensos efeitos psíquicos, existem. As melhores condições


pa"ra experimenrar suas reais influências são uma pronúncia adequada, um
mental livre de qualquer tensão e uma clara compreensão do efeito a ser
obtido. É um estado interior difícil de ser atingido.

A Palavra não está perdida para todo o mundo


A realidade do dinamismo dos manuas supõe que seres na Terra tenham
atingido uma perfeita maestria das vibrações p síquicas que os produzem.

30
ECOS DA PALAVRA PERDIDA

Eles teriam tido conhecimento de manrras extremamente poderosos. Po<ie­


se mesmo induzir que uma palavra análoga - uma espécie de palavra-sín­
tese em harmonia com o fonema inicial - era ensinada nas antigas escolas
de iniciação, os famosos mistérios antigos. Ela representaria o Verbo, isto é,
a chave vocal em sua pureza original, permitindo assim a estruturação ime­
diata no plano físico daquilo que foi concebido no plano mental.

Agindo sobre o mental de outrem, sobre sua consciência objetiva, seria pos­
sível anular temporariamente sua percepção - portanto tornar-se invisível,
fazer nascer fantasmas, alucinações e vários outros fatos estranhos. Agindo
sobre o plano divino, o da energia universal, seria portanto possível levar
essa energia sutil a submeter-se à sua própria vontade. A Palavra a formular
para o cumprimento dessa criação não é uma utopia. Alguns grandes inici­
ados a praticaram. Se a Palavra é considerada como perdida, é simplesmente
porque o homem, que ainda não havia involuído, usava de sua eficácia. Em
seguida, tendo-a utilizado para fins egoístas, ele perdeu seu significado e
emprego. Somente os seres que reencontraram sua pura consciência original
têm conhecimento dela. Esses iniciados captam diretamente no plano de
vida a energia de que necessitam para ajudar a humanidade.

A Palavra está perdida para a maioria dos homens, insuficientemente evoluí­


dos. O mental permanece agora limitado na sua percepção. Eles só podem
imaginar seu conceito a partir de ecos desta maravilhosa Palavra.

Que aquele que aspira a encontrar a Palavra perdida espere o Iniciador. Ele
virá iniciar o postulante quando ele estiver pronto e "aberto" a este sublime
conhecimento. Porque é uma verdade atual, já que eterna: o Verbo criador
está ao alcance das cordas vocais daquele cujo coração é puro.

Esta matéria foi publicada originalmente em I.:lnitiation no N° 1 de 2000.

31
A ORIGEM DO TARÔ

Dr. Fugairon

Em que época foi inventado o jogo de


Tarô' Seria necessário remontar ao anti­
go Egito, como sustentam alguns, para
encontrar a sua origem, ou simples­
mente deveríamos nos fixar na Idade
Média entre os séculos XIV e XV1
Vejamos se é possível trazer alguma luz
para a solução deste difícil problema.

1
As figuras do Tarô, cal como as temos,
são incontestavelmente da Idade Média.
Os símbolos são também desta época.
"Os Tarôs - diz o Sr. Paul Lacroix ofe­
recendo uma representação filosófica da vida do ponto de vista cristão -

apresentam o Homem nos diferentes estados que o nascimento lhe faz pas­
sar e nas diversas condições em que a natureza o coloca: aqui, o Louco e o
Amante, ali, o Papa e o Imperador. O Homem, seja qual for a sua situação
social, deve fugir do Di abo, escutar a Religião (o Eremita) e imbuir-se das
virtudes - a Força, a Justiça, a Temperança, buscando a Fortuna, pois qual­
quer dia a Morte viria, a morte que alcança o vivo tanto no cadafalso (o
Enforcado) quanto no Carro do Triunfo, a morre que conduz ao julgamento
das almas e que abre aos justos a Casa-Deus."

Ademais, o ponto de vista cristão não impede de admitir uma certa influên­
cia do Mi�ndo, do Sol, da Lua e das Estrelas sobre a vida humana.

Deste modo, supondo que a origem do Tarô remonte à mais alta antigu­
idade, somos obrigados a admitir que ele sofreu uma completa transfor­
mação no final da Idade Média e que as figuras do antigo Tarô desaparece­
ram por inteiro. Portanto, o Tarô atual tem uma origem medieval.

32
A ORIGEM DO TARÔ

II
Temos algum indício da existência entre os antigos de um jogo análogo ao
do Tarô?

Piarão, no seu Fedro, diz que o deus egípcio T hot, que havia ensinado aos
homens as matemáticas e a Astrologia, inventou o jogo dos ossículos (tali ou
calcult) e o jogo de dados (alea).

Ora, os dados, assim como os ossículos, apresentavam diferentes formas, e


além dos pontos, ofereciam diferentes figuras pintadas ou esculpidas.

São Cipriano, autor anônimo do tratado De Aleatoribus, acusa o espírito do


mal de rer inspirado o habilidoso jogador que fabricou dados portando ima­
gens de demônios (dos deuses).
Eruditus... instinctu solius Zobuli...
hanc ergo artem ostendit, quam et
colendarn sculpturis cum sua imag­
ine fabricavit. Turnébio, para
explicar esra passagem importante,
lembra que se viam sobre os dados
as imagens do cão, do urubu, de
Hércules, de Vênus, etc.

ln talis erant aliquibus fartasse


numeri, ut Senio; figurae, juta canem, vulturem, Venerem, Herculem...
·

Martin Delrio (Disquis. magic, Lib. V7) pretende também que os dados e os
ossículos rraziam figuras e nomes de deuses e deusas. Estes nomes são cita­
dos mais de uma vez nas comédias de Plauto e há bons motivos - diz o Sr.
Lacroix - para se concluir que as resselas, tornando-se placas de ossos ou
de madeira ornamentadas com signos ou pinturas (tabulae sigillatae), devi­
am parecer muito com as cartas indianas, pintadas igualmente sobre folhas
de marfim ou de escama, quadradas, redondas ou octogonais, e que não
remontam para além do século XII.

33
A ORIGEM DO TARÔ

Eis mdo o que sabemos sobre a existência enm.: os antigos de jogos análo­
gos ao do Tarô.

Supondo que as figuras do Tarô atual sejam transformações das figuras que
remontam à antiguidade, não seria possível encontrar vestígios destas anti­
gas figuras' Cn.:io que seja possível, e já tentamos isto aqui mesmo nessa
revista. Ora, a que país nos reportam as figuras assim reconstituídas' Ao·
Egito, mas ao Egito do século II ou III da nossa era. Nós as reconhecemos
como sendo obra dos judeus neoplatônicos.

Difundidas por rodo o Oriente com diferentes variações, foi depois das
cruzadas que elas foram trazidas para a Europa, e lá passaram também por
transformações que resultaram no atual jogo de.: Tarô.

Erta matéria foi publicada originalmente em I.:Initiation, N° 1 O de 1895.

34
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

Papus

A questão do simbolismo é uma das que mais devem preocupar o observador


que se interessa pela grandeza e pelo futuro da Maçonaria.

Por toda parte o símbolo acompanha o iniciado em sua carreira e, desde o


mais simples aumento de salário, até as mais imponentes cerimônias da
ordem, esta língua misteriosa expõe esses diferentes ensinamentos.

Hoje, no entanto, quantos Veneráveis compreendem exatamente o valor do


simbolismo? Não poderíamos contestar que
os homens mais eminentes, os oradores mais
estimados ocupam mais freqüentemente
estas delicadas funções de iniciador diante do
profano. Mas ainda devemos estudar muito
particularmente estas questões sob pena de
nos encontrarmos entre signos ridículos, por
não podermos compreendê-los, nem nada
podermos ensinar ao aprendiz, que ele não
possa aprender facilmente por si nos livros de
instrução correntes.

Esta ignorância dos próprios fundamentos


da ordem é a causa dos ataques diuturnos
Panóplia
sofrido pelos altos graus do Escocismo, rep­
utados inúteis. De fato, como compreender que um homem razoável, viven­
do neste século de progresso, no século produtor das estradas-de-ferro, do
telégrafo e do telefone, vá se instalar com seriedade entre um sol e uma lua
de papel, parauatar de moral e de filosofia diante de um profano que espera
com confiança a luz prometida?

É inteiramente evidente que, a partir do momento em que uma língua se


torna incompreensível, é dos fatos mais desagradáveis ver surgirem nela, a
cada passo, os sinais que parecem desafiar os conhecimentos positivos do

35
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

moderno hierofante. Tal é a razão de todas as tentativas que buscam fazer


esquecer para sempre a parte mais bela e mais instrutiva do simbolismo: a
que contém os graus capitulares e filosóficos.

O quadro de nosso estudo não nos permite abordar agora um tema tão
importante em todos os seus desdobramentos; também não trataremos hoje
do simbolismo na franco-maçonaria que, de um ponto de vista geral, deixa
para mais tarde a consideração dos detalhes.

Seria necessário fixar uma época para o nascimento desse modo de expressão?
"
A tarefa é quando menos temerária já que, por mais longe que possa remontar
a arqueologia nesses trabalhos, aparece a pedra bruta vestida como lembrança .;
'

de um faro alto qualquer, símbolo mudo de uma civilização desaparecida. A


venerável China, a antiga Índia e o sábio Egiro estão plenos do simbolismo
traduzindo aos olhos do vulgar as descobertas de várias gerações de sábios.

É no seio da iniciação egípcia, em seus mistérios cujos ritos são ainda encon­
trados na Maçonaria 1, que esta língua sublime adquire seus completos desen­
volvimentos.

Os métodos de exposição antigos diferiam dos modernos em muitos pon­


tos2; assim o historiador moderno busca antes de tudo em suas narrativas, a
exposição exata dos Jatos, por mais numerosos que sejam. Nenhum nome de
homem tendo desempenhado um papel em sua época, nenhuma ação políti­
ca, deve escapar à atenção do escritor contemporâneo. O antigo, ao con­
trário, o inici:- ,o egípcio ou grego, buscava na evolução dos fatos a lei moral <
j

que podia deles decorrer, sem preocupar-se com indivíduos ou com seus aros
l
particulares3. Ele sintetizava em uma só palavra simbolizando a força brutal,
todas as ações de várias gerações de homens que se haviam deixado guiar por
ela, e o nome genérico de Nimrod vinha ensinar à posteridade a lei de
evolução desta força na humanidade4.

1 Dr. Vassal: Cours complet de Maçonnerie (Curso completo de Maçonaria).


2 Fabre d'Olivet: Verses Oorés de Pythagore.
;3 F.,.bro cl'Olivot: Diaoovrs sur l'os;su;mo<> si la formtJ de J:;, Poési6' (Discurso sobre a es­

sencia e a forma da Poesia).


4 Saint·Yv0s d'Alveiydre: Mission des Juifs (Missão dos Judeus).

3G
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

Da mesma forma, na ciência, os fenômenos importavam pouco; as leis que


os produziam eram tudo. Daí o amor de toda a Antiguidade pela filosofia
especulativa, pelo estudo das generalidades, da síntese, e seu profundo,
desprezo pelos trabalhos de detalhe e a análise.

A conseqüência deste método encontra-se na própria maneira de expor as


ciências e é a lei, ou seja, o princípio geral, universal, idêntica nos diversos
fenômenos, que o iniciado ou sábio da antiguidade vai representar por um
símbolo.

Assim, o estudo de uma multidão de fatos na natureza conduziu os bus­


cadores a constatar em toda parte a existência de duas forças aparentemente
opostas e derivadas de uma mesma fonte; uma aglutinadora, compress1v::i,
reunindo os seres ou objetos separados; a
outra dispersiva, dilatadora, repulsiva. A
primeira dessas forças, ativa por excelência,
era simbolizada pela imagem do sol; a segun­
da pela da luas. Nossos sábios modernos reen­
contraram estas forças sob os nomes de força
centrípeta e força centrífaga, ou de atração e de
repulsão.

Um símbolo da antiguidade representava,


pois, uma lei da natureza e, como as leis
nunca mudaram, este símbolo deve aplicar-se
ainda hoje aos ensinamentos que nos são
fornecidos pelas ciências experimentais.
Quadro da Loja de Mons, na·
Bélgica (séc. XVIII - pintura
Um dos erros modernos é justamente o de
anônima) - está relacionado à
não se haver compreendido bem a universali­ iniciação do Grau Rosacruz. No
dade do simbolismo e de se crer que todas centro vê-se a pedra cúbica
estas figuras só podem exprimir, �xclusiva­ pontiaguda, que evoca a quad­
ratura do círculo
meme, idéias dos antigos sobre a psique e a

5 Moisés chama estas forças de Caim e Abel, e a luta dos dois irmãos simboliza a ação
eterna dessas forças na natureza. Vide CaTn, de Fabre d'Olivet e Fabre d'O/ivet e St-Yves
d'Alveydre, de Papus.

37
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

q uímica e, po r isto mesmo, de aplicar-se apenas à infância dos conhecimen­


tos humanos. Esta opinião seria justa se os :intigos, seguindo excessivamente
os erros dos experimentalistas, tivessem representado os fenômenos físicos ou
químicos por eles produzidos; mas eles tomaram rodo o cuidado para não
c:u r neste erro.

É lógico que a imagem representando a experiência do senhor X sobre a pata


da rã, só pode aplicar-se a ela e será de uma perfeita inutilidade quando o se­
nhor Y, dez anos depois, tiver aperfeiçoado a experiência a partir dos últimos
progressos realizados e fixado sua descoberta numa nova imagem.

Para demonstrar de forma cabal que o simbolismo que trata apenas das leis
gerais encontra-se vivo ainda hoje como representação dessas leis, apliquemo-
·

lo às ciências contemporâneas.

Tomemos, por exemplo, uma das mais fecundas dentre elas: a física.
'

Quer consideremos suas diversas partes, a acústica, o calor, a luz, a eletrici­


dade, o magnetismo, quer voltemos nossa atenção ao seu conjunto, onde
quer que estejamos, a mesma lei geral emana desses ensinamentos.

Não vemos, de faro, esta força ativa, positiva, aparecer no calor, no luminoso,
no positivo, na atração, e esta força passiva, negativa, no frio, no escuro, no
negativo, na repulsão' Encontram-se aí os dois pólos extremos de uma série
de transições que estão sintetizadas nos dois eternos opostos, abraçando roda
a física: a Força, pólo positivo, e a Matéria, pólo negativo da evolução natur­
al.

Li est:ío, de maneira clara, os extremos de uma cadeia transitória e dever-se­


ia wmar rodo o cuidado para não ver na natureza somente esta dualidade. É
::l.e faro desta falsa concepção que derivam os maiores erros de análise em que
:aem os físicos modernos.

:.Jma consideração, mesmo superficial, permite-nos constatar que entre cada


im de seus opostos existe um termo mediano formando, do ponto de vista

;era!, uma transição entre essas duas fo'.ças. O quente e o frio se fundem, de

38
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

fato, no cemperado; a luz e a sombra na penumbra, o positivo e o negativo


no neutro, a atração e a repulsão no equilíbrio; a força e a matéria no ser.
Eis porque, se o sol representa a força ativa, a lua a força passiva, entre as duas
encontrar-se-á um signo intermediário, um triângulo, representando, ao
mesmo tempo, o termo mediano e a lei universal.

Esca idéia da Trindade que se encontra em toda a física, na química, assim


como na metafísica, era a tal ponto venerada por nossos antigos que, numa
imagem da verdade que se encontra nos antigos rituais do 26° grau escocês
(príncipe de Mercy), esta deusa é representada com a cabeça encimada por
uma chama, a mão esquerda armada com um espelho e a mão direita aplica­
da sobre o coração e segurando um triângulo.

De tudo isto se extrai uma conclusão cristalina; a de que o simbolismo re­


presenta as leis sempre verdadeiras e pode ser aplicado tanto às nossas ciên­
cias contemporâneas quanto às concepções filosóficas dos antigos.

O conhecimento deste dado destrói uma das grandes dificuldades que


encontra o iniciador maçônico: a de ser obrigado a explicar ao profano o sim­
bolismo baseado nas idéias dos antigos, o que estabelece um anacronismo
bizarro no cérebro do aprendiz e o leva a fazer um uso ridículo dos símbolos
que ele não mais compreende, como cerro vendedor de vinhos parisiense
que, ao sair de sua iniciação não teve nada a fazer de mais urgente do que
mandar pintar na fachada de seu estabelecimento um triângulo simbólico
onde o olho, indicador da inteligência, era substituído por uma garrafa e
cujos crês lados traziam escrito quantidade, qualidade, bom preço.

Um belo exemplo do resultado a que conduz o ensinamento do simbolismo


por aqueles que nada dele compreendem.

Mas o simbolismo não representa unicamente a idéia de uma lei científica ou


moral, e alguns desenvolvimentos complementares são ainda indispensáveis
para estabelecer as bases positivas do seu estudo.

Cada vez que o poder despótico crê haver esmagado com suas perseguições
os protestos da liberdade e do pensamento, a inteligência do homem de

39
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

coração sabe desbaratar seus complôs. As c1encias parecem perdidas para


sempre; elas estão mais vivas do que ames no fundo dos templos. Uma cen­
sura rigorosa desvirtua ao seu bel prazer a história, a iniciação restabelece em
seus ritos a verdade dos fatos. Várias das cerimônias utilizadas na transmissão
dos altos graus relatam um faro importante que o déspota, o imperialaro ou
a inquisição buscavam ocultar à posteridade, e esse novo aspecto do sim­
bolismo só pode nos inspirar o maior respeiro por estas venedvcis tradições.

Quando a Igreja, tornada pod er temporal, perdeu por esse faro mesmo a
chave de rodos esses mistérios, quando o esoterismo primitivo, tr a nsmiti do
pelos essênios àqueles que se tornaram os primeiros cristãosG parece perdido
para sempre, a Rosa-Cruz Maçônica pratica ainda, inconscientemente, os
ritos secrerns das catacumbas. É no 18° grau do Escocismo que a arqueolo­
gia pod e ir com confiança buscar em sua fonte a cristandade; que o ocultismo
instruído p ode estudar o esoterismo cristão em roda a sua pureza.

O espaço é curro para enunciar rodos os fatos importantes, referentes seja à


história do Egirn, seja à dos judeus ou mesmo à nossa história nacional, que
nos transmitern piedosamente os cadernos dos altos graus, e querer abolir seu
teor seria não somente agir com ignorância, mas ainda com vandalismo.

Esse segundo aspecto do S i m bolism o representa, portanto, para nós, uma das
mais engenhosas maneiras encontradas pelo espírito humano para restabele­
cer a verdade histórica. O iniciado tornava-se ator de um fato importante ou
das tendências de uma época que o literato narrava simbolicamente· para
escapar aos olhos vigilantes do poder despótico. Tal como Cervantes repre­
sentando a bravura (Dom Quixote), montando Rossinante e o bom senso
(Sancho Pança) conduzido pela Besteira?.

Concebe-se todo o interesse que apresentaria um estudo completo do sim­


bolismo maçônico sob rodos esses aspectos. Esta a idéia acalentada por todos
os reformadores da Maçonaria desde Asmhole e Tshoudy, até Marconis e
Ragon. Mas quem se sentirá suficientemente seguro de si para empreender
uma obra de tamanha importância e dificuldade?

6 Ver Les Remes, 11/stória verdadeira dos boêmios, de J.A. Vaillant.


7 Vide William Shakespeare de Victor Hugo.

40
O SIMBOLISMO NA FRANCO-MAÇONARIA

E no entanto a reforma do simbolis­


mo se impõe, todos os maçons
instruídos o sentem, mesmo que não
ousem dizê-lo. É somente por aí que
esta ordem venerável pode reconquis­
tar sua amiga glória, diferenciando-se
assim das sociedades de amparo
mútuo ou das reuniões políticas com
as quais ela se confunde freqüente­
mente. É por este meio que se pode
esperar ensinar algo verdadeiramente
interessante e novo ao neófito que
deixa de freqüentar a loja onde vê
serem debatidas as mesmas questões
que nos jornais, com a diferença de
que ele paga muito caro por um
prazer ou um aborrecimento que lhe
podem ser fornecidos a melhor preço
nas ruas, pelos jornaleiros. Temos
uma idéia tão elevada do futuro da
Maçonaria e uma confiança tão
Estandarte maçônico (1926) - cada loja
grande no saber e na atividade de
possui o seu, exibido em manifestações
seus membros, que não hesitamos
excepcionais no mundo profano
um só instante em predizer-lhe a
mais bela e mais fecunda das carreiras jamais percorridas pela sociedade
humana, no dia em que ela sentirá as belezas ocultas nas profundezas de seu
maravilhoso simbolismo.

Esta matéria foi publicada em Llnitiation no nº 1 de 1988.

41
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

Henry Bac

Em tempos longínquos, na Aquiléia, São Marcos pregava o Evangelho. Uma


vez concluída sua missão partiu de barco para Alexandria, onde deveria sub­
meter-se ao martírio.

Or::i., antes que ele tivesse podido ganhar o alto mar a bordo de seu leve
barco, desencadeou-se uma violenta tempestade. Conseguiu encontrar abri­
go n::t cabana de um pescador, numa ilhota da laguna. Adormeceu e, em
sonho, imaginou que naquele local, onde viria a se erguer a mais bela cidade
do mundo, repousariam seus ossos.

Essa ilhota , plantada com oliveira e ciprestes, ficava no centro da laguna for­
mada pelos estuários de três imponentes rios que despencavam dos Alpes.
Lá vivia um contingente cada vez m::tior de pesc::tdores fugidos das invasões,
protegidos do mar alto por uma muralha de bancos arenosos. Haviam cons­
truído no local c;isas toscas, cobertas de palha, construídas sobre pabftras.

Mais adiante muitos cidad:-íos, para escapar aos invasores l-drbaros que se
sucediam, abandonaram suas confi:irdveis residências p::tra buscar na laguna
o refúgio que se impunha. Eles rrahalharam duramente. Para construir uma
cas:1 deviam, antes de tudo, fortalecer o terreno deslizante e corroído pdas
águas. Depois dos hunos, outras hordas se abateram nas planícies. Os
homens da laguna tornaram-se - após uma luta titânica para reforçar
com muralhas e diques as margens voltadas para o mar - os pioneiros de
uma VENEZA que acabou por afirmar, paulatinamente, sua força e sua
virai idade.

Eles conheciam a lenda do sonho de São Marcos e desejavam ardentemente


o retorno à cidade de suas relíquias, que haviam permanecido no local de
seu martírio, em Alexandria.

Em 828 dui:; 111creac..lores venezianos, Rustico, da ilha de Torcello e Buono,


de Malamocco, desembarcaram em Alexandria, possessão de um príncipe

42 -- --
·· ":'

No detalhe do mapa a Laguna Veneta, refúgio contra os invasores bárbaros

muçulmano. Iam rezar sobre a tumba do Evangelista. Chegados à Basílica


pediram aos padres que lhes cedessem, discretamente, as relíquias do Santo.
O Clero inicialmente recusou, mas diante da insistência deles e temendo
uma eventual pilhagem no decorrer de uma rebelião contra os cristãos,
acabou por aceitar. Narra a lenda que imediatamente perfumes suaves espa­
lharam-se pelo Templo, prova evidente da satisfação do Santo. Para os dois
venezianos a grande dificuldade consistia em deixar a basílica com os restos
sagrados. Eles sabiam que, à saída, guardas reais procediam à revista de todo
pacote, por menor que fosse. Astuciosos como todos os seus compatriotas,
colocaram a urna contendo as relíquias no fundo de uma cesta que trazia em
cima folhas recobrindo um volumoso pedaço de porco salgado. Nenhum
muçulmano iria querer tocar esse tipo de carne, considerada por eles como
impura e malsã.

Qu:rndo um guarda os deteve na saída, perguntando-lhes o que traziam no


cesto, Rustico respondeu: "Khansir" (que significa "porco"). O muçulmano

43
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

fez uma careca de repugnância e pediu-lhe que se afastasse depressa com seu
pacore.

Os dois venezianos
embarcaram com
um mar encapela­
do; mas mal
chegaram a bordo
com os restos sagra­
dos, as ondas
tornaram-se tran­
qüilas. Eles pen­
saram em um novo
milagre do Santo.
Chegaram a Veneza
onde, tão logo
Bacia de São Marcos (Canaletto) tomou conheci­
A grande rota dos mercadores venezianos menro do borim
precioso que trazi­
am, a mulridão jubilosa os aclamou. O Doge, o Clero, os magistrados, o
povo, comprimiram-se diante das relíquias. Elas foram solenemente deposi­
radas na capela do Palácio Ducal que acabara de ser construído na maior das
ilhas.

O emblema de São Marcos, o leão alado, não tardou a ser estampado nos
mais belos prédios, nas bandeiras e na proa dos galeões de guerra.

O rransporre dos ossos sagrados do Evangelista através da laguna coincide


com o começo do impulso da cidade. São Marcos, protetor de Veneza, iden­
rífica-se à república nascente.

O leão de São Marcos tem asas como lembrança da visão no decorrer da


.
qual Ezequiel descreveu os quauo evangelisras sob a figura de animais ala­
dos. Esse leão, que segundo o livro da revelação devia possuir seis asas e
olhos c1n roda parte, n::prescn ta a Justiça e a soberania. Ele rornou-se sím­
bolo do sol. "Foi ele - diz o Apocalipse (5-5) - que venceu para abrir o

44
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

Livro e seus sete selos". Ele domi­


na, protege, se impõe.

A parte anterior do leão surge


poderosa, contrastando com a pos­
terior, que pareceria relativamente
fraca, se não possuísse, como o leão
de São Marcos, esse vigor novo
·O Leão alado de S.Marcos
que lhe conferem suas asas.

Em alquimia �emos a oposição de duas forças primordiais: o "volátil" re­


presentado pela águia, e o "fixo" representado pelo leão. Numerosas gravuras
alquímicas mostram o combate da águia e do leão.

Qual seria esse poder do leão alado de Veneza, unido o "volátil" e o "fixo"?
Com um tal emblema a cidade iria suplantar todas as outras em riqueza e
em magnificência.

Os venezianos, inicialmente os protegidos de Bizâncio, tornaram-se os. alia.,.


,1

dos. Logo seriam seus protetores, depois seus rivai� 'e en.fim seus senhqres..
No decorrer da quarta cru�ada, eles conseguiram salvar da febre devast'�do­
ra reinante em Cons�antinopla os quatro soberbos cavalos de bronze.
Constantino os havia trazido de Roma, onde decoravam o arco de Nero.
1
Eles provinham do templo do sol em Corinto e até hoje dominam a entra�
da da igreja de São Marcos, não sem antes terem sentido o ar de Paris, em
cima do arco do triunfo do Carrossel, onde Napoleão ordenou que fossem
colocados, lá ficando entre 1797 e 1814.

Desde o final do século XIII as bandeiras decoradas com o leão alado de São
Marcos passam a espalhar-se cada vez mais nos lugares onde os venezianos
se tornam senhores: Caifa, Rodes, Metonl, Ascalão, Chio, Candie, na ilha
de Eubéia, na Albânia, na Eólia, nas ilhas jônicas, em Galipoli, em Chipre,
nos três oitavos de Constantinopla com o arsenal do Chifre de Ouro, �m
Bérgamo, Brescia, V icenzia; . Pádua, Ravena, na Damácia, e mesmo em
Andrinopla. Logo não há mais um porto importante Mediterrâneo onde
Veneza não disponha de uma representação e de lojas.

45
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

Regata no Grande Canal (Caneletto)


Daqui partiam as galeras para o "Sposalizio dei mare"

No dia do aniversário da bacalha em cujo decorrer sua froca venceu as forças


do Imperador Barbarrosa, Veneza comemora seu criunfo com uma fesca
chamada "Spozalizio dei mare" (As bodas do mar): Nesse dia, em vinude de
urna uadição à qual rodo veneziano se seme ligado, o Doge, acompanhado
de um cortejo magnífico, sobe numa luxuosa galera, o Bucenrauro, vescido
de veludo cramoisi, inceiramente decorado em ouro fino, trazendo um
esplêndido leão alado. Ele se coloca encre as estátuas da Força e da Prudência,
e fez-se conduzir até o alto mar. Lança então às ondas um anel bento
declarando: "Nós te tomamos por esposa, mar, em sinal de eterno domínio.
Para compreender o alto sig'nificado desta cerimônia, deve-se lembrar que na
Idade Média o mar pertencia somence ao Papa; mas no século XII Alexandre
III, soberano pontífice, refugiado e.m Veneza, deu-lhe um presente impor­
tame, concedendo-lhe o AdriáticÓ. Ele dissera ao Doge publicamente:
"Recebei este anel como o símbolo dó.voswjrúpério so� re o mar. Vós e vos­
sos sucessores, desposai-o a cada ano� pára, qüe nas idade� vindquras saibam
que o mar é vosso e vos pertence como um�! esposa ao marido".

Durante cerca de vinte gerações a cerimônia do casamento com o mar per­


maneceu um dos grandes espetáculos da Europa. Entre as centenas de :Jnéis

46
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

lançados às ondas, um foi


um dia encontrado em um
peixe; ele encontra-se hoje
em exposição no Tesouro
da Basílica, impression­
ante, dentro de sua caixa
de vidro, apesar de corroí­
do por sua estada no mar.

Veneza vista do mar (Woodward)


Tornando-se Veneza, a
Vista da República Sereníssima de Veneza
República Sereníssima,
cada vez mais florescente, a representação do leão alado, seu animal
emblemático, se multiplica. Ele montava guarda às portas dos palácios. Ele
autenticava os documentos oficiais. Numa antiga carta da Grécia vê-se um
leão caminhando contra os turcos, todas as asas abertas. Que força para uma
cidade ter consigo aquele que reúne, no dizer dos alquimistas, o "volátil" e
o ((fixo"!

Que pode ser mais imponente


do que o leão alado pintado
por Carpaccio, dirigindo-se ao
Palácio dos Doges, com um
resíduo de musgo perto de sua
pata anterior!

Que sedução emana do leão


alado com olhos de ágata colo­
cado no topo da coluna na
Piazetta. Napoleão o mandou
para Paris, de onde voltou com
as patas arruinadas .

Como é co m oven te esse leão


prateado de São Marcos ornan­
do a gôndola fúnebre indo para
o cemitério, rumo a San

47
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

Michele, no Campo
Santo, com seu Mestre­
de-cerimônias de pé e
o mestre adjunr o 3
proa. O anim::il expri­
me:.: sua aflição sob suas
asas dobradas.

Veneza cobriu-se de
leões alados . Seu pode­
rio e sua prosperidade
aun1enr::iram; reve a
suprem ::i cia dos mares.
Seu :.usenal rnrnou-se o Praça de São Marcos (Canaletto)
c::inre1ro naval mais Centro nevrálgico de Veneza, para Petrarca "o único
refúgio da humanidade, da paz, da justiça, da liberdade"
imponanre do mundo.
Sua marina, suas canho neiras , pareciam incomparáveis. Ela foi a pnmeira
cidade européia a rirar proveito do ensinamento oriental.

Esra cidade, uma das mais refinadas do Ocidente, constituiu um oásis de


paz, assim como um modelo de organização social. Petrarca, seduzido por
seus es plen dores , escreveu que ela representava "o único refúgio da
humanidade, da paz, da justiça, da liberdade".

Emreranto, e de maneira insensível, a Veneza das trocas comerciais, a rainha


do mar, tornou-se a cidade do prazer e da alegria de viver. Seu carnaval dura­
va m::iis de seis meses. E mesmo depois dele as festas se sucediam. Nesta ale­
gria transbordante e ininterrupta, a Sereníssima conheceu uma decadência
dos costumes e atingiu um estado de corrupção que acompanhá freqüente­
mente a decad ê nc ia .

Seu poderio encontrou-se abalado pela restauração do Império Otomano e


pelos contÍnuos conflitos com Gênova. A tomada de São João de Acre pelos
mrcos em 1291 teve conseqüências desastrosas para Veneza, cuja influência
no oriente do Mediterrâneo minguou. A descoberta de novas rotas maríti-

48
O LEÃO ALADO DE SÃO MARCOS

mas pelos ponugueses determinaram outras correntes comerciais. A ativi­


dade do Arsenal diminuiu: passaram a ser construídos menos navios. Veneza
perdeu seu monopólio das especiarias. A hegemonia por ela exercida nas
margens do mar Egeu e do Bósforo cessou diante do poder otomano.

Em 29 de maio de 1453 a tomada de Constantinopla pelos turcos fez com


que Veneza abandonasse todos os sonhos de domínio sobre terras distantes.
Viram-se aparecer então na cidade dos Doges novos leões esculpidos: leões
gregos, bizantinos, góticos, pobres leões ordinários sem asas, leõezinhos
como os da Piazetta di Leoncini, ao norte da basílica, cavalgados por ge­
rações de crianças da cidade; outros leões miseráveis, no mais das vezes fati­
gados, quando não reprovadores.

A fé religiosa vacilava.

Começava uma lenta e inexorável decadência.

O leão havia perdido suas asas.

Esta matéria foi publicada originalmente em I.:Initiation no N° 4 de 1976.

49
ATUALIDADE DE COMENIUS, O SÁBIO

Pierre Marie!

m axioma hermético prescreve ao Iniciado seu papel social e político:


U EST OPUS OCCULTUM VERI SOPHI APERIRE TERRAM UT
GERMINET JACUTEM PRO POPULOl.

Esta foi a constante regra de vida do


Rosa-Cruz Jan-Amos Komensky, dito
Comenius (1592-1670), e o que dá à
sua obra uma singular atualidade.

Em dezembro de 1958, a

U.N.E.S.C.O. prestou-lhe uma home­


nagem solene . Qualificou-se-o de
"primeiro propagador em que se
inspirou a U.N.E.S.C.O., quando de
sua fundação".

A família de Comenius pertencia à


Igreja dos Irmãos Morávios, do refor­
mador tcheco Jean Hus2. Órfão muito
novo, Jan-Amos é confiado a tutores
que se desinteressam dele. Começa a
estudar somente aos dezesseis anos; mas demonstra imediatamente dons
excepcionais. Aperfeiçoa sua instrução na universidade de Nerborn
(Nassau), onde se apaixona pelo estudo das línguas mortas e vivas.

Diplomado em teologia, estréia como pastor-mestre em Fülnek (Morávia).


Mas eclode a Guerra dos Trinta Anos. A casa de Comenius é saqueada, sua
mulher e seu filho são ultrajados e degolados. Ele erra de principados em

1 A obra oculta do verdadeiro Sábio é abrir a Terra a fim de que ela produza a saúde
para o povo.
2 Queimado vivo por heresia em 6 de julho de 1415

50
principados. Fugindo da Boêmia, sua patr1a, encontra enfim abrigo na
Polônia, em Leszno, onde os Irmãos Morávios dirigem um colégio alta­
mente reputado. Ele instaura lá uma pedagogia (revolucionária à época)
inspirada pelas idéias de dois Rosacruzes, Francis Bacon e Campanella, que
qualifica de "felizes restauradores da Sabedorià'.

Os dois pontos essenciais e atuais da mensagem de Comenius são, inicial­


mente, uma nova pedagogia e depois um plano de ecumenismo político.
Forneceremos esquemas diretores dessas duas "correntes". Deduzir-se-á que
Comenius era extraordinariamente avançado em seu século, e mesmo no
nosso!

Antes de Emerson, Comenius sabia que a Criança é o pai do Adulto. Uma


Sociedade humana se modifica, progride, pois, pela educação que ela dá à
infância.

Eis alguns preceitos ditados pelo Rosa-cruz tcheco, preceitos posteriormente


retomados e atualizados por Pestalozzi e pela Senhora Montessori.

1° - Enviar os estudantes o mínimo de horas possível às lições públicas, a


fim de deixar-lhes tempo para desenvolver estudos pessoais.
2° - Sobrecarregar a memória o mínimo possível. Não fazer decorar o que
foi bem compreendido.
3° - Pautar a progressão do ensino segundo os progressos escolares.
Individualizar as lições.
4° - Ensinar a escrever escrevendo, a falar falando, a raciocinar raciocinan­
do. Donde a regra de ouro:

"Para tudo o que for oferecido à inteligência, à memona, à mão, que os


alunos o busquem eles mesmos, o descubram, o discutam, o façam, o repi­
tam, limitando-se o mestre a guiar".

Imagine-se o que continha então de perturbador esta profissão de fé que


lança sobre seu autor os disparos eclesiásticos:

51
ATUALIDADE DE COMENIUS, O SÁBIO

"Toda a juventude dos dois sexos deve ser enviada a escolas públicas. Não
há qualquer razão válida para privar as meninas do escudo das çiências. Sua
inteligência iguala a dos meninos: é necessário que se lhes abra a via aos mais
elevados destinos ... "

No domínio político Comenius nos maravilha ainda mais. Primeiro insti­


gador de um governo ecumênico, ele propõe:

A - Um plano de reforma universal elaborado


pelo conjunto dos povos cristãos.
B - Uma exposição dos males sociais, e de seus
remédios.
C - Revisão, por iivre exame, dos princípios da
Filosofia e da Religião.
D - Criação de instituições permanentes interna­
cwna1s, dentre elas um Concílio (Parlamento)
mundial.
E - Recrutamento de uma nova
elite. Donde
_ a idéia-força de
Superiores Desconhecidos, idéia
que será retomada pela Franco­
maçonaria escocesa e cujos ecos se
encontram nas obras de Louis­
Claude de Saint-Martin e de Papus.

Citemos Comenius:
Estátua de Comenius, o primeiro
instigador de um governo ecumênico
"É bom juntar guardiães3 vigilantes aos
letrados. Sua tarefa será ensinar-lhes,
encorajando-os, sua principal missão, que é eliminar a ignorância e os erros
nos espíritos.

"Deve-se juntar guardiães aos sacerdotes para afastar, com sua ajuda, tudo o
que subsiste de ateísmo, de impiedade, de epicurismo.

3 Dizemos atualmente iniciados.

52
ATUALIDADE DE COMENIUS, O SÁBIO

"Deve-se juntar guardiães aos príncipes para que sementes de discórdia não
germinem entre Estados ou, se elas começam a germinar, sejam extirpadas a
tempo.

"Instituir-se-ão, portanto, três corpos dirigentes:

"O Chefe supremo desses corpos será o Supremo Sacerdote e o Supremo


Rei, ou seja, o Cristo.

"Para manter em roda parte a ordem universal, uns serão subordinados aos
outros, a fim de que, através desta subordinação graduada, a escola do
Cristo, o tempo do Cristo e o reino do Cristo sejam solidamente estabeleci­
dos.

"Instituir-se-ão, portanto, três tribunais arbitrais aos quais estarão submeti­


das as discórdias que possam surgir entre os letrados, os sacerdotes e os
príncipes ...

"O Tribunal dos letrados será denominado Conselho da Luz. Ele velará para
que não seja encontrado, em parte alguma, alguém que ignore algo de indis­
pensável. Este conselho permitirá a rodos os humanos voltar os olhos para
esta Luz: a Verdade.

"Tribunal eclesiástico, o Consistório mundial velará ... para que Jerusalém


esteja, a partir de agora, em segurança (Zac. XIV), que haja em roda parte
símbolos santos de modo que cada um encontre matéria para meditação.

"Tribunal político, a Corte de Justiça cuidará para que em parte alguma uma
nação se erga contra outra, a fim de que as espadas e as lanças sejam trans­
formadas em foices e em lâminas de charrua".

As atribuições do Consistório mundial vão muito longe, pelas referências a


este versículo do profeta Zacarias que prevê, na verdade, o sacerdócio em
Espírito e em Verdade: "Todo caldeirão, tanto em Jerusalém como em
Judá, será consagrado ao Senhor dos exércitos; todo aquele que vier ofere­
cer sacrifícios poderá servir-se deles para cozinhar; e não haverá mais trafi-

53
ATUALIDADE DE COMENIUS, O SÁBIO

crnres naqu el es dias na casa do Senhor dos exércitos... "

O que nos leva a concluir citando um excerto dos Homens de Boa Vontade
(Hommes de Bormc Volont/i). Em Em Úusca de uma igreja (A La recherche
d'u11e .É,e;lise) se lê:

"Se você se esforçar para olhar de uma maneira nova o movimento da


humanidade há dois, três, ou mesmo quatro séculos, não se surpreenderia
co m o que há novo� N:ío prestamos atenção nisto porque estamos habitua­
dos e rambém porque ainda estamos imersos no processo. Mas todos os estí­
mulos que se produziram aqui e ali, essas aspirações que os homens nunca
haviam tido... A usura de algumas palavras contribui para tornar-nos
indiferentes, distraídos; a palavra Progresso, por exemplo, ou palavras como
Liberdade, Emancipação, Democracia e Fraternidade humana. Ou talvez
pensemos demais no que um determinado acontecimenro histórico teve
de ... exagerado, de excepcional. .. Não semimos suficientemente que ele fez
parte de um trabalho desenvolvido continuamente durante séculos em toda
parte. .. Asseg uro-lhes que se conseguíssemos ver bem do alto esse movi­
mento de conjunro desde o fim da Idade Média... ficaríamos surpresos e
sentiríamos urna grande emoção ... "

Esta matéria foi publicada originalmente em L:Initiation no N° 1 de 1975.

4 O romance-rio de Jules Romains.

54
QUEM TEM A PAZ TEM A ALEGRIA

"Escuta o cântico da vida"


Luz sobre o Caminho - M.C.
Louis+ Paul Mailley

A maior parte dos trabalhos dos teólogos, particularmente quando falam de


misticismo sem tê-lo experimentado, me fazem pensar em redações de cegos
falando da luz e das cores ... Depois de ter lido em "Braille" e estudado, pelo
mesmo método, as ciências, filosofias ou teologias diversas, eles estão em
condição de descrever todas as representações vistas em sonho na sua mente
ou inventadas pela sua imaginação, com todo o colorido que esta lhes pode
dar. Loas a Deus! - certamente ... mas em que isto corresponde à realidade?
E, além disto, o que é real? - poderíamos perguntar. E a visão de mundo
que temos nós, os "videntes", é de maior valor do que as impressões perce­
bidas e experimentadas pelos nossos sentidos? "Nisi..." diz São Tomás.

Aqui embaixo tudo é relativo e não tem valor verdadeiro senão pelas cons­
tantes que podem ser observadas e em função das quais damos um sentido
à nossa existência.

Que é a verdade? - perguntou Pilatos a Jesus. Questão que Ele não respon­
deu ... senão quando declarou aos seus discípulos: "Eu sou o caminho, a ver­
dade e a vida" (Jo. XIV, 6), o que significa: seguindo o meu exemplo, expe­
rimentem o meu ensinamento, e então me conhecereis e também à verdad�
e "a verdade vos libertará" (Jo. VIII, 32).

Fora da experiência nada tem valor. Querer falar disto ou daquilo no que
concerne ao misticismo ou aos místicos, de uma maneira puramente inte­
lectual, é entregar-se ao jogo de MARA o grande sedutor do mental, Lúcifer,
o portador da luz mas não a luz: enquanto que Ele, o Senhor, é "a Luz que
ilumina todo homem vindo a este mundo" (Jo. 1, 9).

Portanto. o primeiro elemento necessário é o conhecimento de Nosso


Senhor Jesus Cristo: "Há muito que estou no meio de vós e não me co­
nhecestes" (Jo. XIV, 9). Sob o impulso do Se4 Espírito, esclarecido por ele,

55
QUEM TEM A PAZ TEM A ALEGRIA

alcançar o encontro do Verbo, eis o indispensável, previamence necessano,


ances de querer falar a respeiro. De oucro modo não saberemos do que esca­
mas falando! E rodas as elucubraçõcs ceológicas são apenas frucos da imagi­
nação, craduzidos em noções conccicuais, mais ou menos resulcances de sim­
ples visões meneais.

Qual será encão o cricério da verdade, senão a confirmação vivida da rea­


lização efetiva de uma experiência pessoal? Esta deverá então se manifestar
por aros e permitir a constatação de um testemunho vivo da Paz no reino da
Caridade. "Por isco rodos verão que sois meus discípulos, se tiverdes amor
uns pelos outros" (Jo. XIII, 35).

Encão, senhores filósofos e teólogos, abstende-vos de errar nos meandros


conceicuais pecaminosos nos quais é absolucamence impossível o que não
está ali, mas "além" e entrai no SILÊNCIO, única morada da Paz do Senhor
que proporciona a alegria e a felicidade às quais todos aspiramos.

Ó MINHA ALMA, ADORA E CALA-TE.

É inútil e vão querer cornar inteligível, por meio do mental, aquilo que o
ultrapassa e que, estando além dele, necessita, ao contrário, que ele seja
domado, fazendo calar a nossa imaginação. Desse modo estaremos em
condições de perceber, para além de toda a agitação, na calma e na
serenidade inceriores e exceriores, a verdadeira vida ecerna à qual nos convi­
da AQUELE com Quem, por Quem, de Quem, em Quem e para Quem nós
somos para a Sua maior Glória e Salvação da humanidade.

Aqui, "o inceligível cessa e começa a agonia" como escreveu Leconte de Lisle
cm seu maravilhoso poema O Condor.

SABER - OUSAR - QUERER - CALAR

Vós que desejais ardencemence viver, se procurais Mestres e sobretudo o


Mestre dos Mescres, vide as vidas dos grandes místicosl, observai seu com-

1 Por exemplo, Simão o novo teólogo, Mestr.e Eckhart, Tauler, São João da Cruz, a
grande Teresa de Avila, Suso ... e quantos outros à vossa disposição..

56
QUEM TEM A PAZ TEM A ALEGRIA

porramenco e escudai acentamente os seus ensinamentos vividos e sobretu­


do os do Mestre dos Mestres: o EVANGELHO de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Encão estareis no bom caminho para alcançar o objetivo almejado do
CONHECIMENTO, ou verdadeira gnose, que não é outra coisa senão o fruto
do AMOR.

''AMA ET FAC QUOD VIS"


(Santo Agostinho)

Loas a Deus!

Esta matéria foi publicada originalmente em I..:Iniciacion no N° 1 de 1976.

57
BOLÍVAR
O Libertador Fraterno
Henry Bac

Pouc1s glóri:i.s se comparam à de Bolívar.

As maiores cidades do mundo dão seu nome a avenidas ou a ruas. Na


América do Sul ele encarna o puro herói da Independência. Mas na França,
parece que se conhece bem pouco do personagem cuja vida pública é relata­
da en1 quatorze volumes na Biblioteca Nacional de Caracas.

Napoleão fez gravar no Arco do Triunfo o nome de Miranda, seu precursor


que, traído, morreu prisioneiro na Espanha, sob o peso de correntes que
consideraria menos pesadas que as dos falsos irmãos. O perfil de Bolívar
esculpido por David d'Angers figura apenas cm nossa galeria dos grandes
homens.

Nascido em Caracas, não se havia preparado para seu prodigioso destino.


Membro ele uma família ele ilustres nohrcs t:sp:.lnhóis qut: vt:io csrabcleccr­
se há cerca de dois séculos na Venezut:la, seu pai tornou-se proprietário de
minas de prara, cuja exploração era :i.lramentc rentável. E11viou seu filho
Sirn.on para estudar na Espanha.

Lá nosso herói c:i.sou-se aos dezenove anos. longe dos seus, com a jovem e
encantadora Maria Teresa. Um louco amor os unia. Embarcaram para a
América. Ela morreu ao chegar.

Desesperado Simon Bolívar parece não haver encontrado consolo em


Caracas. Buscou conselho com Rodriguez, seu preceptor, que havia rerorna­
do i Áustria. Foi encontrá-lo em Viena, onde soube da morte do pai.

Ei-lo aos vinte e um anos rico e sem projetos. Leva uma vida de grande se­
nhor em Viena, Londres, Portugal e Espanha. Ingressa como aprendiz na
loja m:i.çõnica de Cádiz.

58
Em Paris freqüenta a boa
sociedade, visita os salões mais
brilhances da época. Lá encontra
Mme. Récamier, Madame de
Scael, Chateaubriand. Mantém
conversas com Alexandre de
Humbolt, explorador e sábio
recém-retornado da América,
que lhe declara que as colônias
espanholas, sábias o bastante
para se autogerirem, irão desen­
volver-se quando encontrarem
um líder competente que busque
sua emancipação.

Lá ele encontra franco-maçons:


Eugene de Beauharnais, Grão­
mestre do Grande Oriente da
Itália, o marechal Oudinot,
du(1ue de Reggio, iniciado da
Loja São João de Jerusalém, tor­
O maçom Simon Bolívar, de herdeiro
nado Grande Oficial-do Grande milionário, tornou-se o libertador da
Oriente de Paris, pai de dez fi­ América espanhola. Morreu na miséria.
lhos - dos quais uma descen­
dente chamada Brigitte Bardot - o ator trágico Talma, da loja dos Amigos
das Letras e das Artes, membro do Supremo Conselho, e ator preferido de
Napoleão.

Lá trava conhecimento com os irmãos Alexandre e Théodore de Lameth,


seus apresentadores na loja 'TOlympique", onde tornar-se-á companheiro,
depois mestre. Théodore de Lameth, em sua longa vida, conhecerá Luís XV,
Luís XVI, a Revolução, o Diretório, o Consulado, Napoleão I, a
Restauração, Luís XVIII, Carlos X, Luís Felipe, a II República e Napoleão
III. Quanto ao seu irmão Alexandre, ele teve uma enorme influência sobre
Bolívar. Contou-lhe como, na qualidade de capitão ajudante de campo de

59
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Rochambeau, combateu pela independência dos Estados Unidos da


América. Ele considerava libertar os povos capazes de autogestão como o·
cumprimento de um dever. Espantava-o que seu interlocutor não sonhasse
com a independência de seu país.

Suas palavras, como as de Humbolt, comoveram Bolívar. Ele decidiu deixar


Paris. Volrnu a encontrar-se com seu preceptor Rodriguez. Com ele percor­
reu a Itália. Em Roma foi à embaixada da Espanha onde sua reputação de
elegância era conhecida: apresemaram-no ao Papa. Ele recusou ajoelhar-se
para beijar a pantufa pontifical: escândalo. Sem demonstrar emoção, Pio
VII sorriu e pediu-lhe informações sobre a América do Sul.

Mas Rodriguez o lembra que deve pensar em desempenhar .um papel na


emancipação de seu país. Ele deveria esquecer suas tristezas de amor e refle­
tir especialmente sobre os propósitos de Alexandre de Lameth e de
Humbolr. Sua terra natal precisa dele.

Bolívar embarca para a América, mas quer fazer antes uma escala no norte,
nos Estados Unidos, e conhecer de perto o comportamento de um Estado
que conquistara recentemente sua independência.

Durante a travessia, na solidão da pequena cabina, contempla seu diploma


de mestre franco-maçom. V ários atributos aparecem na grande folha cujo
fundo representa uma cortina aberta sobre um antigo palácio.

Lá estão o compasso e o esquadro com o malhete, insígnia de comando; em


seguida ferramentas que servem à construção como a colher de pedreiro. Os
símbolos se multiplicam.

Anteriormente a curiosidade o havia levado a apresentar-se na loja de Cádiz,


onde não encontrou qualquer inspiração. Mas ele se lembra, em contra­
partida, que em Paris - onde adquiriu a m:iestria - aprendeu um ensina­
mento valioso e encontrou personagens eminentes. Guarda respeirosamenre
seu diploma.

Chega a Boston: deslumbramento. Durante as pouc:is semanas de sua esta-

60
BOLIVAR O Libertador Fraterno

da admira o trabalho rápido dos pioneiros: urna bela cidade com sólidos
edifícios, tanto particulares quanto administrativos, ruas bem pavimen­
tadas, gramados cortados por aléias de árvores, habitantes ativos e alegres.

Que contraste com a Venezuela, naquele momento esmagada sob impostos


e sob o domínio de desagradáveis funcionários espanhóis.

De volta a Caracas é informado da morte de sua mãe. Despejam sobre ele


perguntas sobre a vida na Europa, falam-lhe do general Miranda - esse
brilhante militar que combateu com Rocharnbeau durante a guerra de inde­
pendência dos Estados Unidos. Mais adiante ele agiria no sentido de liber­
tar as colônias espanholas da América do Sul. Seu desembarque fracassou e
ele teve que buscar refúgio no estrangeiro. Sua efígie foi queimada na grande
praça de Caracas.

Bolívar, que ainda não o conhece, torna conhecimento de que autores da


sublevação sofreram castigos de urna rara crueldade. A cabeça sangrenta de
Espafía, um agitador, foi exposta numa gaiola de ferro. Qualquer rebelião
parece impossível.

Bolívar reconhece a dificuldade de seus projetos. Entretanto a população da


Venezuela deseja a liberdade. Os empresários não querem mais depender da
Espanha, principalmente quando urna grande notícia acaba de chegar.

Napoleão invadiu a península. A Espanha fica sem soberano. Na verdade


José Bonaparte reina lá. Logo se viu chegar em Caracas, em uniforme de
gala, o comandante de Larnanon e o imediato do navio Courtay. Fizeram­
se conduzir ao palácio do governador. Representavam a França.

A situação tornava-se ainda mais embaraçosa com o general Miranda procla­


mando a independência e um navio de guerra inglês, de aparência hostil,
ancorado diante de La Guayara, o grande porto do país.

O movimento de libertação dirigido por Miranda ganhava cada vez mais


força. Bolívar, novo defensor da independência, é nomeado coronel por
Miranda. Não se trata de defender os interesses de Ferdinando VI, rei de

61
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Espanha, ou os de Napoleão. Só se fala de república.

Uma junta substituiu o governador. Bolívar rendeu-se ao seu parecer. Iriam


combater. Ele assumiu um comando, fazendo assim sua entrada na história.
Em J 813 tornou-se comandante em chefe.

Em três meses trava numerosos combates e afugenta os espanhóis.


Condecora com a Ordem dos Libertadores seus homens mais bravos.
Pronuncia um discurso na Assembléia para recusar a ditadu!"a que lhe é ofe­
recida.

Com homens que nunca haviam sido destinados ao ofício militar, negros,
mestiços, índios, crioulos e mesmo alguns franceses e ingleses, consegue for­
mar excelentes soldados.

Independentemente de suas qualidades de estrategista, ele sabe tirar partido


da namreza do país e compreendia que guerra iria travar, sempre possuindo
no mais alto grau o dom do comando. Sua voz rude e nítida, sua energia
para vencer o cansaço e a febre, sua autoridade acompanhada, quando opor­
tuno, de uma fineza de espírito, fizeram-no em seguida o generalíssimo.

Consegue, após seus combates vitoriosos, obter a capitulação do governador


de Caracas. Entrou na capital envergando farda de gala, diante de suas
tropas, trazendo à mão um bastão coberto de estrelas de ouro, insígnia do
comando supremo.

Os sinos badalam, a fanfarra toca. Obrigam-no a subir num carro coberto


de louros, puxado por doze lindas jovens coroadas de flores. Na grande
praça os no d.veis o acolhem e concedem-lhe o título de "libertador".

A Espanha não tolera tal situação. Chega então o maior exército que jamais
formara para a América do Sul. Dotados de uma anilharia de primeira
ordem, surgem navios de guerra de três po nt es sob o comando do general
,

Morillo.

Como resistir diante de forças tão impressionantes? A população treme.

62 --
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Dolívar refugi�-se �m Nova Granada.

Quanto a Miranda, traído por compatriotas entre os quais acreditava encon­


trar-se em segurança, é entregue aos espanhóis e acaba aprisionado em uma
solitária espanhola, onde morre, acorrentado, ao cabo d<: três anos.

For;;i da Venezuela, Bolívar esforça-se para reunir tropas. Trata-se de libertar


rod� a América do Sul. Com homens resolutos, cada vez mais numerosos, a
partir das proclamações por ele lançadas, avança como o raio, resiste, toma
a ofensiva com tamanha impetuosidade que o exército do rei de Espanha
bate em retirada. Ele retorna a Caracas, onde recebe oficialmente da·
Assembléia o título de libertador.

Bolívar desperta o .entusiasmo. Uma multidão de jovens recrutas se apre­


senta. Os novos soldados _requerem um emblema para seu batalhão. "Tê-lo­
eis após vossas provas em_ combate" - respondeu.

Os jovens engajados atacam os espanhóis, mais numerosos e melhor arma­


dos, com tal impetuosidade, que eles se põem em fuga'. Vencida a batalha,
diante do vilarejo de Aurora, Bolívar lhes declara: "Guardem o estandarte
do regimento que acabais de vencer; chamar-vos-eis doravante 'os vence­
dores de Aurora'. Estou satisfeito convosco".

Graças a palavras �esse tipo Bolívar pôde, à frente de uma coluna pouco
numerosa, mal equipada e pouco treinada, chegar ao' ponto de esmagar as
melhores tropas regiilares do rei Ferdinando VII.
_

Uma vez a Venezuela tornada livre e dotada de uma (:onstituição, Bolívar


decide a libertação de todos os países sob o domínio espanhol. Um corpo de
voluntários ingleses chega para ampará-lo.

Será necessário passar pelos Andes, realização cumprida apesar das dificul­
dades impostas pela altitude. Bolívar escolheu os caminhos mais 1mpra­
riciveis, seguro de encontrá-los mais desguarnecidos.

63
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Perco da ponte de Boyaca os oficiais superiores espanhóis estão acampados


com o grosso das tropas. Através de hábeis manobras Bolívar ataca e con­
quista uma brilhante vitória, aprisionando grande parte dos ocupadores
com os generais e coronéis.

Em 1 O de agosto de 1819, após sua entrada triunfal em Santa Fé de Bogotá,


confisca as propriedades inimigas. Encontra seiscentas mil piasuas que
servirão para a organização de seu exército, para indenizar as vítimas de atro­
cidades inimigas e para as viúvas de seus soldados.

Encontros entre o vencedor e o general Morillo, comandante em chefe das


tropas espanholas, evitam a anarquia.

Dirige-se em seguida com suas tropas para o Equador, onde esmaga o inimi­
go após uma sangrenta batalha. Seu fiel subcomandante, o general José
Antonio de Sucre, já se encontra em Quito.

Libertado o Equador, projeta-se uma república independente integrada por


Nova Granada, Equador e Venezuela, sob o nome de Colômbia. Um con­
gresso se reúne sob seu retrato com a seguinte inscrição:

SIMON BOLÍVAR
LIBERTADOR DA COLÔMBIA

Na mesma época uma outra personagem também lutava contra o jugo


espanhol: o general José de San-Martin. Ele libertava a Argentina. Depois,
com os gaúchos do país e os llaneros peruanos e chilenos, fez uma demons­
tração de suas forças. Já idoso, ele queria descansar e desejava ver Bolívar
consolidar suas conquistas. Os dois chefes se encontraram em Guayaquil,
no Equador.

Bolívar prometeu-lhe consolidar a libertação da América do Sul. O general


San-Martin partiu então para acabar seus dias, tranqüilo, na França, onde
morrt:t.! .:rn Baulo gne-sur-Mer.

64
BOLIVAR O Libert;,ador Fraterno

O Peru, conquistado no início do século XVI por Francisco Pizarro, sofreu


um domínio espanhol particularmente cruel. A população desejava arden­
temente a liberdade.

Com sua experiência, Bolívar organiza a resistência e constitui um sólido


exército. Confia seu comando supremo ao valoroso José Antonio de Sucre,e
estabelece o plano de campanha.

Apesar das dificuldades, sem meios financeiros, ele forma uma brigada de
cavalaria que coloca em fuga o inimigo em Junin.

O exército espanhol, na presença do vice-rei La Serna, espalhou-se pela


planície de Ayachucho em 9 de dezembro de 1824. O jovem general Sucre
não hesita em partir para o ataque. Reunindo seus homens por dez vezes,
não dando um minuto de trégua a um inimigo numericamente superior, ele
consegue vencer a batalha. No momento em que tudo o que o adversário
deseja é uma interrupção para tomar fôlego, o infatigável Sucre, coberto de
feridas, consegue uma vitórÍa completa, destruindo o exército espanhol, que
persegue até a rendição final. O vice-rei La Serna e seus generais com todos
os soldados depõem armas. Eles se rendem.

A vitória de Ayacucho colocará fim ao domínio espanhol; Bolívar nomeia


Sucre Grande Marechal. o· Congresso declara Bolívar "Pai e Salvador da
Pátria". Ele recusa o dinheiro que lhe é oferecido, aceitando apenas o desti­
nado aos seus homens. Pede, para José de Sucre, uma espada cravejada de
pedras preciosas.

Sua popularidade se expande. Nos Estados Unidos é colocado em pé de


igualdade com Washington. Paris rememora aquele visitante venezue1
!ano, com todo o seu encanto e elegância, que soube. conquistar a glóri�
universal.

O Alto Peru se constitui em república e requer o nome de Bolívia, em ho­


menagem ao libertador. Cria-se assim um país evitando qualquer choque
entre peruanos e argentinos que se detestam. Seus habitantes elegem José

65
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Anrnnio de Sucre para presidente e atribuem à sua capital, Chuquisaca, o


nome de Sucre. A cidade, situada a dois mil e seiscentos metros de altitude,
mantém até hoje seu nome. Ela ainda é a capital constitucional do país. Mas
a sede do governo encontra-se atualmente em La Paz, cidade mais povoada
e centro das principais atividades, a uma altitude de três mil seiscenros e
cinqüenta e oirn metros.

Apenas uma guarnição espanhola permaneceu no porrn de Callao. Ela irá se


render às forças de libertação. Encerrava-se o domínio da Península Ibérica
na América do Sul. Peru e Chile tornam-se independentes.

Os Escadas Unidos remem ver-se cercados por novas repúblicas na América


Central. Em Washington os jornais difundem mil calúnias sobre as
intenções de Bolívar. Ele almejava uma federação agrupando rodos os
Estados da América do Sul. Mas infelizmente as ambições pessoais se desen­
volvem cada vez mais.

Bolívar, a esta altura esgotado por seu excesso de atividades, cai doente.
Tudo o que deseja é repousar. O governo da Colômbia concede-lhe uma
pensão anual vitalícia de sessenta mil peseras. Mas ele jamais rncará em qual­
quer rnsrão porque o tesouro permanece vazio.

A Venezuela separa-se definitivamente de Nova Granada, que conserva ape­


nas o nome de Colômbia. O Equador, o Peru e o Chile constituem três
repúblicas diferentes.

Há uma crescente anarquia. Josef, irmão de Bolívar, é covardemente assassi­


nado. José de Sucre, revoltado com a hipocrisia e a ausência de reconheci­
mento diante do libertador, não tardaria a morrer, a mando dos criminosos
que buscam em vão o poder.

Eclodem rebeliões. Bolívar, cuja intervenção é ardentemente desejada, cai


gravemen re doen rc. Em 1 ° de dezembro de 1830 recolhe-se à sua pequena
casa de Santa Maria; magro, sem forças. Um médico francês, o doutor
Révérc:nd o atende, encontrando-o em estado desesperador. Um simples
cura de aldeia lhe concede a extrema unção.

66 - -
BOLIVAR O Libertador Fraterno

Bolívar, em seu testamento, declara: "Desejo a liberdade de minha pátria,


fazer com que cessem suas discórdias". Ele disse ao doutor Révérend: "Eles
me conduziram à tumba".

Em 17 de dezembro de 1830, às treze horas, Simon Bolívar deixou este


mundo. Seu sepultamento atraiu alguns raros amigos e índios pobres. Para
pagar as despesas de sua humilde cerimônia foi necessário pedir dinheiro
emprestado aos vizinhos, que o fizeram de má vontade.

Bolívar, criador ideal, desprezando o ouro e :is honras, extraindo forças do·
nada, conseguiu trazer aos habitantes da América do Sul esse bem tão pre­
cioso: a liberdade.

Esta matéria foi publicada originalmente em l:Initiation no N° 3 de 1991.

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GOETHE - Iniciado
Pierre Marie!

\'V'olfgang esrndava Direiro há três anos em Leipzig, quando uma hemorra­


gia o levou ao umbral da Morre. Diríamos hoje tratar-se de uma doença psi­
cossomática. Ele confessaria: "Eu era um náufrago, mais doente ainda da
alma do que do corpo".

Em 28 de agosto de 1 768 ele retorna à casa familiar e seus pais o confiam


ao Dr. Johann-Friedrich Metz, que o cura rapidamente, quando outros
médicos haviam-se mostrado impotentes para ajudá-lo.

Eis como Christian Lepinre evoca o doutor Metz: "Personagem enigmático,


talvez preocupante em alguns aspectos, mas ativo, prestativo, cheio de con­
solo para seus doentes. É um verdadeiro médico na tradição dos Rosacruzes,
para quem a cura do corpo deve levar à conversão da alma. Ele possui o se­
gredo de remédios misteriosos que ele mesmo avia".

Graças ao doutor Metz o jovem Goethe não somente curou-se, mas encon­
rr�u urna vitalidade que, a partir de então, não mais o abandonaria. Foi por
imermédio do mesmo personagem benfeitor e enigmático que Wolfgang
viu-se admitido, em Estrasburgo, no círculo pietista de Suzanne de
Klettenberg.

Um círc�tÍo místico-esotérico
Suzanne de Klerrenberg agrupava ao seu redor, num ambiente piedoso e
confianre, um cerro número de pietistas e de ocultistas. Ela era depositária
de uma tradição esotérica que remontava a Jacob Boheme, onde as conso­
lações do Evangelho mesclavam-se aos segredos da Arte Real.
\
Foi graças a eh que Goethe leu Paracclso, Basile Valcntin Van Helmont,
\1
1
naturalmente sem omitir Boehmc, Cornclius Agrippa, Giordano Bruno e
Spinoza. Ele fez da Aur& catena Homrri ( rra ra do fundamental de alquimia)
seu livro de cabeceira e dele extraiu o essencial de seus futuros trabalhos
cienríflcos sobre as plantas e as cores.

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Teria Goethe recebido então
uma iniciação stricto sensu? É
bastante provável, para não se
dizer certo. Pode-se admitir que
em Wilhelm Meister o doutor
Metz é evocado na personagem
de Makarie, e que a misteriosa
Sociedade da Torre é uma
alusão a uma ressurgência da
Rosa-cruz, onde Goethe teria
sido admitido.

A Franco-maçonaria
Documentos verossímeis, mas
não comprobatórios, tendem a
provar que Goethe solicitou, em
Estrasburgo ou em Frankfurt,
sua afiliação à franco-maçonaria,
que lhe teria sido recusada por
ele ser então menor.

Por outro lado, documentos de arquivo estabelecem que ele foi iniciado
à Loja Amália em Weimar, em 1780, e que foi assíduo nos trabalhos rit­
ualísticos.

Isto porém não impediria que, em 1808, quando ministro do duque Carlos­
Augusto em Weimar, tenha se oposto à "construção" de uma loja maçônica.

·"A franco-maçonaria - escreveu então - constitui um Estado dentro do


Estado. Onde tiver sido introduzida, o governo buscará dominá-la ou
impedí-la de causar perturbações. Nunca é aconselhável introduzí-la onde
ela ainda não se encontra."

Goethe e os Iluminados
O ministro-conselheiro Go et he, ao lon go de toda a sua fecunda existência,

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GOETHE - Iniciado

não deixou de manter estreitos contatos com os grupos e conventículos de


Iluminados que pululavam então na intelfigentsia germânica e cujas lojas
não passavam de átrios, de estágios eliminatórios.

Foi nos dois Faustos que ele exprimiu suas teorias ontológicas e metafísicas,
e Paul Arnold perguntou-se engenhosamente se Mefistófeles não era mais
seu porra-voz do que Fausto.

As sociedades secretas sempre exerceram sobre Goethe uma forre atração.


Consagrou-lhes, em sua obra, um papel importante, que ele considera sob
três aspectos: pedagógico e social, político e, enfim, místico e religioso. O
primeiro aspecto é representado pela Sociedade da Torre nos dois Wilhelm
Meister, o segundo em Kunst und Altertum (Arte e Antiguidade) e o terceiro
pelo fragmento inacabado dos Gehiemnisse (Segredos, Mistérios).

A Sociedade da Torre
É de alguma maneira a prefiguração de uma Obediência maçônica idealiza­
da. Cerimônias ocultas, graus iniciáticos, ubiqüidade na ação, rudo leva ao
mistério. E dissemos que era descrito sob os traços de Makarie, Grão-mestre
não somente de uma Ordem, mas de uma Sociedade universal que dirige o
mundo ...

Depois de 1813, meditando sobre a reconstrução do Santo Império, Goethe


busca a solução do lado das antigas corporações de Construtores. Ele queria
ver nascer uma Loja universal, fortemente hierarquizada, divida em lojas
regionais, organizada tecnicamente e socialmente, cujos membros, rigorosa­
mente escolhidos, seriam ligados por juramentos e segredos rirualísticos, e
um senso agudo da fraternidade. Sob este ângulo, podemos ver em Goethe
o profeta da Sinarquia tradicional.

A mensagem mística
Quanto à mensagem mística de Goethe, eis aqui como a definiu Christian
Lepinre:
"A idéia de que uma sociedade de eleitos ou de iniciados perpetua uma
mensagem sagrada (que é a própria essência de todas as doutrinas reli­
giosas) domina o pensamento de Goethe... O poema dos Geheimnisse,

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GOETHE - Iniciado

nascido de preocupações esp1ntuais, onde a influência r_osacruciana


desempenha um papel relevante, martela o espírito do poeta e per­
manecerá inacabado... A Ordem monástica cujos mistérios nos são apre­
sentados nos fragmentos do poema, participa ao mesmo tempo da Ordem
dos Templários, da Rosa-cruz, da Franco-maçonaria e da confraria místi­
ca do Santo Graal".

Depositária da mais alta Tradição, essa Ordem ideal é a síntese das diferentes
formas de espiritualidade cristã, maçônica, rosacruciana, spinozista (e por­
tanto cabalista); nela a influência de Louis-Claude de Saint-Martin é evi­
dente. No esoterismo o mistério é uma forma superior de ascese ... Zacharias
Werner - observa com razão Christian Lepinte - atrairá a estima de
Goethe por haver buscado conciliar o cristianismo e os mistérios maçônicos
numa forma superior de religião universal. Neste sentido, os Filhos do Vale
marcaram época na existência goethiana".

Magos e Charlatões
Goethe, espírito de luz, poeta apolíneo, foi ao mesmo tempo atraído, fasci­
nado ·e revoltado pelo aspecto sombrio e tenebroso do Esoterismo. Esta
ambivalência se reflete na psicologia e na ação de alguns de seus perso­
nagens.

Nos Anos de Aprendizagem, Mignon é o protótipo da adolescente enigmáti­


ca, "vidente", dotada, após um abalo nervoso, de poderes magnéticos,
mediúnicos. Ela paga seu inefáv:el mistério com um destino fatal, que a con­
duz a uma morte prematura. Ela é, de alguma maneira, a irmã dolorosa das
videntes, das inspiradas que então abundavam, de Catherine Emmerich à
Vidente de Prévorst.

Otília, das Afinidades Eletivas, é uma magnetizadora que se ignora. Fazendo­


ª viver, Goethe demonstra que todos os seres obedecem às leis da
Naturfilosofia: tudo está dentro de tudo e tudo é polarizado. Separada de
Eduardo, Otília o vê todas as noites numa visão interior, como sobre uma
tela. Ela "pagà' esse dom de males insólitos, de alucinações e de uma morte
mais singular ainda que sua vida.

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GOETHE - Iniciado

Makarie
Makari e é a mais esuanha e uma das mais acracnccs criações do
gênio goechia no. Seu sexo é indeccrminado ou, mais exa camence,
"eb-ele" cranscende a sexualidade. S eu dom de dupla visão se
escende ao Cosmo inceiro e ela-ele já cem uma amoscra da luz será­
fica. Makarie é descacada do corporal, do físi co , não se liga mais ao
mundo das a parências, a não ser por um fino mas r esistente "cordão
umbilical": a fra t ernidade universal. Ao mesmo tempo "ela exige
ação" e comanda com au toridade e compe tência seus Hmãos­
irm ãs" da Soci edade da Torr e. Leonardo a definiu assim em se u
Diário:

"Ela é a confidente, a dirernra de consciência de todas as almas ·af!i­


cas, de todos aqueles que se perderam, que desejariam reenconcrar­
se e não sabem onde."

J:.111 .suas visões (supremo arcano) Makarie distingue um Sol interior e um


Sol celeste; ela é o microcosmo do macrocosmo. E ela se definiu: "O céu
esuelado acima de mim; a lei moral em mim".

Makarie é Goe th e "tal como em si mesmo enfim a Eternidade o muda".

Obras consultadas:
Goethe et L'occu!tisme de Christian Lepinte
(tese da Faculdade de Letras de Estrasburgo, 1957).
lntroduction à La traduction de "Faust" de Paul Arnold (Cal, 1964)
Les sources occu!tes du romantisme, de Auguste Viacte (Paris, 1928)

Esta matéria foi publicada originalmente ern I..:lnitiation no N° 3 de 1970.

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