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O sertão vai virar mar - II

Ou, aos vencedores as batatas

Semana passada um amigo sírio veio falar comigo, um tanto quanto chateado,
dizendo não compreender a posição do Brasil no que tange à questão da revolta popular na
Síria. Ele me disse, num tom tão sincero quanto ingênuo: “você que escreve para um jornal,
não pode dizer alguma coisa para que o governo brasileiro mude de posição”. Senti-me uma
formiga gritando ao pé de um elefante...
Não soube o que dizer, primeiro pela minha completa ignorância em relação ao
assunto, pois até então nada sabia acerca da postura assumida pelo governo brasileiro;
segundamente pela completa desproporção entre as pretensões desta coluna torta e o desejo de
meu amigo de que um artigo poderia ajudar a mudar a postura do Brasil. Eis um amigo que
confia em mim, diria mesmo de maneira absurda e quase alucinatória.
Mas fui estudar o assunto, para ver se ao menos poderia lhe explicar um pouco
melhor as decisões do governo. Era o mínimo que poderia fazer, face a seu desespero; face a
seu sofrimento de ver a família sendo obrigada a passar por humilhações; face aos desmandos
que reinam no país e que tornam seu retorno para lá incerto e mesmo perigoso (ele será
convocado a servir o exército ao voltar, e para o humanista que é, servir o exército em tempos
de guerra, para atirar contra seu próprio povo, é impensável, atroz).
Entendi logo que a postura do governo brasileiro, embora discutível, é menos
medíocre do que a abstenção que levou o Comitê de Segurança da ONU a autorizar os ataques
na Líbia, ataques que rapidamente ultrapassaram os limites previstos na convenção assinada
na ONU. O que era óbvio. Assim, o fato de se manter contra uma intervenção mais direta é
talvez uma maneira de dizer que não se almeja outra intervenção militar.
Todavia, evidentemente, não vivemos num mundo encantado de contos de fadas, e
outras jogatinas politicas devem estar em marcha quando se toma tais decisões (confesso que
os submundos da politica internacional me interessam sobremaneira. Tenho a impressão de
que se trata de um grande conjunto de galerias no estilo dos filmes do Mad Max, onde reina a
lei do mais forte e uma promiscuidade digna de Sodoma). Por que se resolveu intervir na
Líbia e por que a Síria permanece relativamente blindada, isso são questões que o futuro nos
revelará. Uma intervenção militar na Síria, diz este meu amigo, seria tão ou mais complexa do
que na Líbia, não só pela complexidade interna do país, mas pela vizinhança que possui e suas
alianças estratégicas. Face a isso, o espaço mágico da “comunidade internacional” se cala, ou
apenas ladra, no bom estilo do cão que ladra não morde.
No entretanto, enquanto lia sobre essa questão, deparei-me com a notícia da visita de
Nicholas Sarkozy e David Cameron à Benghazi, sede da assim chamada revolução Líbia. E o
que vi foi uma demonstração clara e evidente de vencedores que chegam em terra de
vencidos. Havia um ar de discurso de posse nas intervenções dos dois chefes de Estado, havia
um ar de entrada triunfal montado em cavalo branco. Há uma grande dose de humanidade
nisso tudo, e também uma hipocrisia quase sem fronteiras.
A notícia seguinte do jornal falava justamente de como empresas europeias, e as
francesas sobretudo, estão fazendo fila para ver como ficará a “distribuição do bolo” na
reconstrução da Líbia. No fim das contas é isso: a gente brinca de guerra, e depois a gente
entra no país – aclamado como libertador, dada a maluquice do poder local – e divide os
ganhos extraordinários que teremos com o conserto do estrago que ajudamos ativamente a
fazer. Claro que o fizemos em nome da liberdade e isso justifica que agora nossas empresas
estejam tirando proveito do petróleo e das ruínas, do turismo e da segurança.
Lembro-me que ainda antes da resolução da ONU, quando o movimento de revolta
na Líbia estava apenas começando, o governo espanhol já estava preocupado e fazendo
reuniões de emergência para gerenciar a crise. Humanitária? Não! A crise de petróleo, uma
vez que algo em torno de 13% do petróleo espanhol é comprado na Líbia. Como por acaso, a
Espanha foi favorável e ativa na intervenção militar.
Ora, como diz o velho adágio machadiano: aos vencedores, as batatas. Os jornais e as
gentes parecem não estranhar essa “venda” de um país a ser reconstruído, e face a isso eu me
vejo obrigado a pensar que no fundo, por detrás da bela imagem de ajuda humanitária, dorme
silenciosa a sempre presente ânsia de dominação, e de colonização.
Lamento terrivelmente, mas tive de dizer a meu amigo que no fundo não estou certo
que a mão benevolente do Ocidente seja muito melhor do que as garras tirânicas de alguns
líderes do Oriente. Do seu ponto de vista, marcado que está pela violência que toma conta de
seu lar, eu estou errado. E oxalá eu esteja errado.

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