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Marcia Tiburi
25 de março de 2020
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Usuário do transporte público do DF adere ao uso de máscaras descartáveis (Foto: Agência Brasil)
Particularmente, desejo dizer alguma coisa que possa ajudar as pessoas nesse momento difícil. Não há mais
nada que possa ser feito para evitar a tragédia que irá se abater sobre o mundo e também o Brasil.
Coletivamente, estamos passando por um limiar, um limite que marca o início de algo novo, e tudo o que
podemos fazer é tomar consciência, nos responsabilizar dentro de nossos próprios limites e exigir
responsabilidade da parte de quem detém os poderes nos mais diversos âmbitos. Os riscos e limites estão
claros em nível econômico, material, profissional, psicológico e até mesmo existencial. A ameaça de
extinção não deve ser descartada como um absurdo.
Evidentemente, esse é um momento decisivo para uma crítica do neoliberalismocomo fase avançada do
capitalismo. Diante de problemas sérios como o que enfrentamos agora, o neoliberalismo demonstra sua
fragilidade como projeto. Se o neoliberalismo piora o viver (em sentido econômico, social, cultural e nos
demais âmbitos da vida) de muita gente – ele também se apresenta como inviável quando se trata de
sobreviver em sentido biológico.
Ao ser ameaçado de extinção por um vírus, fica claro o caráter gregário, social e político do ser humano
como um ser que se constitui em relação aos outros. A política como construção de relações saudáveis, e
não como jogo de poder, se apresenta como a própria essência da condição humana. A antipolítica (ou
política da destruição), baseada no ódio e na desagregação, na avareza e na falta de solidariedade,
demonstra que não há futuro sem a política no seu melhor sentido. A solidariedade vem da consciência do
comum que caracteriza essa política de que precisamos para viver e sobreviver. Que a solidariedade esteja
sendo demonstrada pela China e por Cuba nesse momento é um sinal de que a solidariedade vem dos
comunistas. A sociedade que devemos construir se quisermos permanecer sobre a face da terra não pode
prescindir da solidariedade.
Ao mesmo tempo, o cerne tanatopolítico, ou necropolíticodo neoliberalismo, mostra sua fácies hipocrática
nesse momento. Quando vemos certos líderes mundiais recuando da já naturalizada economia política do
abandono e do “estado mínimo”, que são típicas do neoliberalismo, e atuando na direção de um estado de
responsabilidade para com o povo, criamos certa esperança. Mas essa esperança é ilusória na medida em
que sabemos que uma crise não passa de mais uma oportunidade de negócios para os neoliberais que vivem
auto-iludidos em suas bolhas cheias de fantasias sobre um futuro maravilhoso sempre construído por seu
egoísmo e narcisismo. Estejamos alertas, pois, em passando a crise, é o próprio povo que, permanecendo
vivo, terá que pagar o preço da catástrofe. O capitalismo é um fardo pesado demais e os donos do capital
jamais o carregarão.
O capitalismo é biopolítico e tanatopolítico. Ele calcula quem deve viver e quem deve morrer e isso está
cada vez mais evidente na estrutura do sistema. O acesso à saúde é uma prova disso. Portanto, aos que
sobreviverem, considerando que o regime da morte também se compraz com a desgraça desse momento,
saibam que não será fácil o que vem pela frente.
Dito de outro modo, o capitalismo de desastre se aproveitará para lucrar com a desgraça. Se sobrar alguma
coisa depois desse momento infeliz, a chance de enfrentarmos um regime econômico ainda mais duro é
imensa, pois não podemos nos iludir de que o capitalismo amenizará seu método violento contra corpos
trabalhadores e de minorias políticas que ele transforma em seus súditos e objetos descartáveis a todo o
momento e desde sua fundação. Portanto, é importante nesse momento nos prepararmos para o pior e/ou
para uma nova chance moldada em outro paradigma econômico, social, político e espiritual (quando me
refiro a espírito quero dizer cultura, educação, ética), caso haja.
Além disso, não devemos deixar de lado que a imensa maioria da população nos mais diversos países está
sob ameaça de morte. É natural que nos escandalizemos com a atitude de chefes de Estado como o
brasileiro que, até o momento, age segundo a loucura e a destruição que foram transformadas em forma de
governo no Brasil. Agora Bolsonaro acrescenta um projeto de extermínio do povo e admite fazer do seu
próprio corpo o veículo da morte quando encontra pessoas e age sem os critérios de segurança sanitária da
quarentena respeitada em todo o mundo.
É evidente que Bolsonaro é despreparado e perverso. É evidente que ele sempre foi assim, mesmo que
muitos não quisessem acreditar, uns porque se identificaram com ele de modo sadomasoquista, outros
porque se consideraram superiores a ele, imaginando manipulá-lo. Não é por acaso que a máscara que ele
usava literalmente caiu em uma das entrevistas coletivas que ele deu ao lado de seu ministério de ineptos. O
livro do mundo continua sendo escrito em linguagem cifrada, nos cabe aprender a ler.
O confinamento é um bom momento para entender e valorizar o que realmente importa, para exercitar o
melhor de cada um para consigo mesmo e para com os outros: a solidariedade, a generosidade, a gentileza,
a vida sem exploração e longe do consumismo, o reconhecimento dos que estão trabalhando para tentar
conter o avanço da catástrofe, mas também a auto-reflexão, o diálogo e, sem dúvida, o sentido do viver-
junto e da vida humana no planeta Terra que ela tem desprezado de modo narcísico e inconsequente.