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A Filosofia do Direito de Aristdételes Aristoteles representa 0 apogeu do pensamento filosdfico grego, e o mesmo se pode dizer para a filosofia do direito. Apds sua morte, durante toda a Antiguidade e a Idade Média, suas reflexes jusfilosdficas foram tidas como o mais alto patamar de ideias sobre 0 direito e o justo ja construidas. Discipulo de Platéo, Aristoteles (384-322 a.C.) estava também envolvido no ambiente filosdfico que ensejou o socratismo e o platonismo, ainda que a seu modo, A acentuada tendéncia platénica a uma construcdo filosdfica ideal passa a ser amenizada no pensamento de Aristdteles, na medida em que a experiéncia é elemento fundamental de sua reflexdo. Filho de médico, desde a infancia em contato com a empiria dos casos clinicos, Aristoteles construiu sua filosofia tendo por base as realidades que se apresentavam ao seu estudo. Naquilo que tange a construcdo direta de uma filosofia politica e do direito revolucionaria, que viesse a transformar a realidade, Aristoteles é mais prudente que seu mestre Platéo. Este era filho de Atenas, de velhas tradicgdes politicas familiares. Aristoteles era estrangeiro em Atenas, portanto com participagdo muito limitada na vida politica. De fato, ao contrario de Platéo, que analisava a situacdo social do seu tempo e estabelecia planos de transformacao da realidade, Aristoteles consolida as opinides, as possibilidades, os fatos e as situagdes da realidade, mas sem tomar partido maior dos caminhos de mudanga ou de alteracéo do ja dado. Aristételes, mais ponderado e de maior contato com a realidade do que Plataéo, é menos visionario que seu mestre. No Liceu, sua prépria escola filosdfica, Aristételes desenvolveu sua pesquisa por varias areas do conhecimento. Apds 0 periodo discente na Academia de Platéo e apds a experiéncia de ter sido o professor de Alexandre, o Grande, na Macedénia, sua terra natal, Aristoteles, na sua volta a Atenas, organizou, no Liceu, uma série de reflexdes em varios campos do saber. Tal conhecimento, que alcangou varias areas, consolidou-se de modo bastante sistematico. Aristételes é mesmo considerado o maior sistematizador de toda a filosofia em sua historia, pelo carater estruturado e légico de seu pensamento. N&o s6 na filosofia geral Aristoteles brilhou. Na ldgica, naquilo que hoje denominamos por ciéncias, como a propria biologia, botanica, zoologia, nas questées relacionadas a todos os campos das ciéncias humanas, politica, sociologia, ética, Arist6teles representou 0 que houve de melhor no pensamento classico, Assim expde Eduardo Bittar: O sistema aristotélico é 0 sistema de um naturalista, isto por se movimentarem, em seu interior, as cadeias discursivas, todas as premissas e todos os silogismos, em torno de alguns principia constantes em sua theoria, bem como por descolarem-se, sobre uma base heuristicamente constituida, toda a argumentacgdo e toda a mensagem conceptual contidas nas obras do Corpus. Nao obstante detectarem-se termos, expressdes, trechos e passagens inteiras em total desconexao com a conjuntura geral de suas manifestacées intelectuais, ou mesmo em contradigéo com as préprias palavras do texto em que se inserem, parece haver uma dimensdo pré-textual, ou ainda, subliminar, que esta a atestar o “naturalismo” aristotélico. Seja pela intentio auctoris, seja pela literalidade das expressdes, pode-se dessumir uma plataforma de valores basicos sobre a qual se desenvolveram demonstragdes de cunho metafisico, fisico, ético... que, no entanto, néo deixam de guardar, apesar de constituirem ramos aut6nomos do saber, intima relagdo e coeréncia com as demais perspectivas tedricas exploradas pelo pensamento de Aristoteles.* © mesmo grande impacto se deu com a reflexao juridica. Aristteles 6 o maior pensador das questdes do direito e da justiga ja havido até seu tempo, e durante muitos tempos posteriores assim foi considerado. Participou também — ainda que de modo mais discreto que Platéo — da politica e da confecgéo de muitas legislagées em muitas polis. Aristételes, apds o estudo sistematico de mais de uma centena de constituigdes conhecidas ao seu tempo, escreveu um projeto de constituigdo para Atenas. Sua grande reflexdo sobre o direito esta contida na obra Etica a Nicmaco (que leva o nome de seu filho, a quem dedica a obra). Nesse texto, que é talvez a maior expressdo do pensamento juridico em todo 0 passado, as questdes sobre o direito e o justo estao concentradas no seu Livro V. Além da Etica a Nicémaco, Aristételes trata das questées juridicas em outra obra de grande relevancia, A politica. Em outra obra, a Retdrica, sua preocupacgdo alcanca também 0 direito, na medida em que se refere 4 argumentacdo juridica. Mas em varias outras obras, desde a sua juventude até sua maturidade, Aristoteles também trata incidentalmente do direito. A justica e suas espécies A grande excepcionalidade da filosofia do direito de Aristételes se revela pela sua sistematizagaio filosdfica da justica. As partes iniciais do Livro V da Etica a Nicdmaco estdo voltadas a essa questo. Logo de inicio, Aristételes separa dois grandes campos de compreensdo sobre a justica. Ela pode ser tomada no sentido universal e no sentido particular. Justica universal e particular Na sua perspectiva universal, a justiga é tomada num sentido lato. Ela tanto 6 uma manifestacao geral da virtude quanto uma apropriac&o do justo a lei que, no geral, é tida por justa. O respeito a lei é a caracteristica desse justo que é tomado no sentido lato. Para Aristételes, diferentemente dos modernos, a lei, produzida na pdlis a partir de um principio ético, é diretamente relacionada ao justo, mas nado por conta de sua forma (ou seja, ndo é justa somente porque é formalmente valida), e sim em razdo de seu contetido. Para Aristoteles, uma ma lei nao é lei. Sendo a lei somente a lei justa, a justica tomada no seu sentido universal nao deixa de ser, também, o cumprimento da lei. Ainda enquanto justica universal, a justica é a virtude que esta em todas as demais virtudes. A caridade ou a paciéncia, por exemplo, e todas as virtudes demandam um contetido especifico que as tipifica. Diz-se que a caridade se tipifica num ato de dar. Mas aquele que da ao poderoso, por medo de ser violentado, e nado da ao necessitado, por Ihe ser superior em poder, nao é caridoso, porque ao mero ato de dar deve se acrescer a justica do ato. O paciente com o chefe e impaciente com o subordinado também nao tem essa virtude da paciéncia, na medida em que esta presume o seu agir com justica. A caridade nado é uma virtude em si prépria sem que se Ihe acresca a virtude da justica. O mesmo com a paciéncia. Mas alguém pode ser justamente caridoso e impaciente. A caridade presume justica, a paciéncia presume justiga, mas a caridade ndo presume paciéncia. A justica esta em todas as demais virtudes, e por isso é a Unica virtude universal. Mas, ao mesmo tempo em que é virtude universal, configurando todas as demais, ela é também uma virtude em si mesma. Somente ela tem um conteUdo especifico que nado demanda em acréscimo outra virtude. Estudar 0 que vem a ser a justica em si é toma-la entdo no seu sentido particular. Aristételes dira que, tradicionalmente, por justiga, em sua apreensdo especifica e estrita, considera-se a acéo de dar a cada um o que é seu, sendo essa a regra de ouro sobre o justo. A justica, assim, compreende uma agao de distribuigéo, que demanda uma qualidade de estabelecer o que é de cada qual. Tal ideia de justica particular sera um dos momentos culminantes da reflexao aristotélica sobre o justo. Aristételes chama a atencao para duas grandes manifestacdes da justiga tomada no seu sentido estrito: justiga distributiva e justiga corretiva, que se subdivide em voluntaria e involuntaria. O proprio Aristételes as expde na Etica a Nic6maco: Uma das espécies de justiga em sentido estrito e do que é justo na acepgdo que Ihe corresponde é a que se manifesta na distribuigdo de fungdes elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidaddos que compartilham dos beneficios outorgados pela constituigdo da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter uma participagdo desigual ou igual 4 de outra pessoa; a outra espécie é a que desempenha uma funcdo corretiva nas relagdes entre as pessoas. Esta Ultima se subdivide em duas: algumas relagdes sao voluntarias e outras sdo involuntarias; séo voluntarias a venda, a compra, 0 empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depdsito e a locacado (estas relagdes sdo chamadas voluntarias porque sua origem é voluntaria); das involuntarias, algumas sao sub-repticias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocinio, o desvio de escravos, o assassinio traigoeiro, o falso testemunho), e outras sao violentas, como o assalto, a prisdo, 0 homicidio, o roubo, a mutilagdo, a injuria e o ultraje.’ Além da justica distributiva e da justica corretiva, hd um caso especial na justica particular: a reciprocidade. Embora nao diretamente elencada ao lado das duas subespécies anteriores, ela nao se confunde com nenhuma das duas, constituindo, pois, uma previsdo especial, a parte. Pode-se, entéo, entender graficamente o quadro da justiga em Aristételes da seguinte forma: Justica distributiva Para Aristételes, a justica distributiva trata da distribuicéo de riquezas, beneficios e honrarias. Apresenta-se como a mais alta ocupagdo da justica, e também a mais sensivel. A distribuigéo compreende sempre dois sujeitos em relagéo aos quais se avalia a justa distribuicéo dos bens, e dois bens, que serdo divididos entre tais pessoas. Assim sendo, a distribuigéo compreende uma espécie de funcéo matematica tal qual uma regra de trés, uma proporcgao geométrica. A justa distribuigéo, para Aristoteles, é um justo meio-termo entre duas pessoas e duas coisas. O critério fundamental para tal distribuigdéo justa é o mérito. A justica distributiva utiliza como parémetro o dar a cada um de acordo com seu mérito, ainda que Aristoteles reconheca que o critério do mérito possa ser varidvel. Para o democrata, dira, © mérito presume a condicdo livre; para o oligarca, 0 critério do mérito é a nobreza de nascimento. A justiga da distribuicggo dos bens e honras, de acordo com o mérito, é uma proporgao. A proporcionalidade caracteriza o justo, e a sua falta é o injusto. Assim dira Aristoteles sobre a justia distributiva: O justo, portanto, pressupde no minimo quatro elementos, pois as pessoas para as quais ele é de fato justo séo duas, e as coisas nas quais ele se manifesta — os objetos distribuidos — séo também duas. O justo, entéo, é uma espécie do género “proporcional” (a proporcionalidade néo é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, e sim da quantidade em geral). Com efeito, a proporgdo é uma igualdade de razdes, envolvendo no minimo quatro elementos [...]; 0 justo envolve também quatro elementos no minimo, e a razdo entre um par de elementos é igual a razdo existente entre 0 outro par, pois ha uma distingdo equivalente entre as pessoas e as coisas.* Vislumbremos e entendamos por meio de exemplos a justica distributiva. Um professor, quando aplica uma prova a uma turma de alunos, sera considerado justo em sua corregdo quando distribuir notas de acordo com uma proporcdo, tendo por vista o mérito, De uma prova com cinco questées valendo cada qual dois pontos, o aluno que acerta quatro questdes merece a nota oito. O aluno que acerta duas questées merece a nota quatro. Qualquer outra nota diferente dessa para cada um desses alunos rompe com a proporcgdo entre seus méritos e suas notas, e, portanto, a distribuicéo meritéria de notas demonstra a justica do professor. Também na distribuigéo dos bens se poderia vislumbrar a justica distributiva. Se se considera que o trabalhador que produz 10x por més ganhe 20y, dir-se-4 que o trabalhador que produzir 11 x por més devera ganhar, por tal producdo, 22 y. De acordo com o mérito de cada qual, a proporcdo perfaz o justo. Também na distribuigdéo dos cargos e das fungées isso se revela. Ao cargo de presidente da repUblica correspondem certas honrarias, poderes e incumbéncias. Ao cargo de vereador correspondem outras honrarias, poderes e incumbéncias. Poder-se-ia demonstrar tal justica distributiva, graficamente, do seguinte modo: Em comparacao a justica corretiva, a justica distributiva 6 mais complexa, porque envolve o arranjo dos bens e dos poderes na pdlis. A proporgéo que busca construir envolve dar, aumentar, diminuir, portanto, uma ado distributiva que invade a esfera de alguns para manter o mérito e a proporcdo na relagdo com os demais. Justicga corretiva A justica corretiva - também chamada de diortética -, por sua vez, 6 bem menos complexa que a distributiva. Trata-se de uma proporcdo aritmética, no dizer de Aristételes. Ao contrario da distribuicéo das honrarias, bens e cargos de acordo com o mérito, nessa vertente a justica é tratada como uma reparacdéo do quinhdo que foi, voluntaria ou involuntariamente, subtraido de alguém por outrem. Por isso as quest6es de ordem penal sao tratadas como justicga corretiva, na medida daquilo que representou a perda e o ganho. No caso penal, mais do que a pena, a justica corretiva trata da reparacao civil dos danos causados pelo crime. Também no caso das transacées entre sujeitos privados a justica corretiva se apresenta. Os contratos, a troca, a compra-e- venda, € mesmo a responsabilidade civil, podem ser pensados a partir da justica corretiva. A perda de alguém corresponde uma correcao equivalente. Assim sendo, a justica corretiva é uma proporcao aritmética, porque se trata apenas da devolucao daquilo que foi acrescido a alguém. A justica distributiva, em comparacao, é mais complexa, por se tratar de uma proporcgado geométrica. Se na justica distributiva, ha uma proporcao entre pessoas e coisas, na justica corretiva ha apenas uma proporcgao entre coisas, porque as pessoas séo tomadas formalmente como iguais: Com efeito, é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa ma, ou se uma pessoa ma lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou ma que comete adultério; a lei contempla somente o aspecto distintivo da justica, e trata as partes como iguais, perguntando somente se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustica, e se uma infligiu e a outra sofreu um dano. Sendo portanto esta espécie de injustiga uma desigualdade, o juiz tenta restabelecer a igualdade.* As duas espécies de justica foram, posteriormente, incorporadas a nogéo comum do jurista como sendo a lédgica do direito piblico e do direito privado. A distribuigao das riquezas, dos bens, dos cargos e do mérito seriam proprias do direito pUblico; as questdes do cumprimento contratual, ou do seu ressarcimento, ou mesmo da retribuigéo penal, envolveriam um calculo entre particulares.® Reciprocidade Aristételes, no entanto, chama a atengao para uma outra forma de justica, que ele néo enquadra nem na justica distributiva mem na corretiva, e que denomina reciprocidade. A sua aplicagdo mais importante se da no caso da producao. As trocas entre um sapateiro, um pedreiro, um médico e um fazendeiro, para serem consideradas justas, devem alcangar uma certa reciprocidade. Naéo se pode imaginar que a producao de um sapato valha o mesmo que a construg&o de uma casa, ou que a colheita de um quilo de determinada planta equivalha a uma certa cirurgia. Aristoteles, para isso, aponta que o dinheiro faz o papel de uma equivaléncia universal entre produtos e servicos. Ele possibilita a reciprocidade entre tais elementos. Tem de haver entéo um padrao, e este deve ser convencionado mediante acordo (por isto ele se chama dinheiro); é ele que torna todas as coisas comensuraveis, ja que todas as coisas podem ser medidas pelo dinheiro. Seja A uma casa, B dez minas e C um leito. O termo A vale a metade de B, se a casa vale cinco minas (ou seja, se ela é igual a cinco minas); 0 leito (C) vale um décimo de B; vé-se claramente, ent&o, quantos leitos equivalem a uma casa (ou seja, cinco). E evidente que as permutas se efetuavam desta maneira antes de existir o dinheiro, pois é indiferente permutarmos uma casa por cinco leitos ou pelo equivalente em dinheiro aos cinco leitos.® Tal forma de justica, muito sensivel, porque nao diretamente atrelada a bens ou a corregdes, mas a producao, é a ligagdo mais profunda ja feita até entao, na filosofia do direito, entre direito e economia. Aristételes desponta, assim, como um critico da justia meramente formal ou matematica, na medida em que é na realidade concreta da produgéo e da circulagéo dos bens e servigos que se estabelece o padréo da reciprocidade. Do ambito da justica Na leitura das justigas distributiva e corretiva, poder-se-ia acreditar que a visdéo aristotélica da justiga, como meio-termo, como justa proporcao, se faria a partir de padrdes matematicos, na medida das proporgées aritmética e geométrica. No entanto, nas questdes de maior fundo, Aristoteles se encaminha para uma compreensdo politica do justo. A reciprocidade revela tal atrelamento do direito a producéo, a economia, a uma certa construgdo dos afazeres na polis. Por isso, ao final das contas, somente um mergulho nas condicdes sociais concretas ha de revelar o justo para o pensamento aristotélico. Isso se torna mais explicito quando Aristételes trata do 4mbito de aplicagao dos tipos de justica. O justo se trata enquanto proporgéo matematica entre aqueles relativamente iguais. No entanto, entre os desiguais, ndo se ha de dizer de justica. Tal posicéo revela ao mesmo tempo o conservadorismo aristotélico e, por avesso, a sua potencial utilizagéo critica. Para Aristoteles, somente ha de se falar da distribuicéo pelo mérito entre aqueles que possam ser considerados minimamente semelhantes. Entre dessemelhantes, os critérios de proporcao aritmética e geométrica resultam em injustiga. Diz Aristételes: Nd&o devemos esquecer, porém, que o assunto de nossa investigagéo é ao mesmo tempo 0 justo no sentido irrestrito e o justo em sentido politico. Este ultimo se apresenta entre as pessoas que vivem juntas com o objetivo de assegurar a autossuficiéncia do grupo — pessoas livres e proporcionalmente ou aritmeticamente iguais. Logo, entre pessoas que nao se enquadram nesta condigao nao ha justica politica, e sim a justiga em um sentido especial e por analogia. [...] A justiga do senhor para com o escravo e a do pai para com o filho nao sao iguais a justiga politica, embora se Ihe assemelhem; na realidade, néo pode haver injustiga no sentido irrestrito em relagéo a coisas que nos pertencem, mas os escravos de um homem, e seus filhos até uma certa idade em que se tornam independentes, sdo por assim dizer partes deste homem, e ninguém faz mal a si mesmo (por esta razéo uma pessoa nao pode ser injusta em relacao a si mesma). Logo, ndo ha justica ou injustiga no sentido politico em tais relagdes. Como exemplo, um professor, ao aplicar a mesma prova & mesma turma, e ao apurar as notas de acordo com o mérito, em proporgdo geométrica, é considerado justo. Mas se ele aplica a mesma prova a alunos universitarios e a alunos do pré-primario, ainda que se valha da propor¢éo geométrica — dando nota alta ao universitario e zero ao analfabeto -, sua nota nao pode ser considerada justa, porque um aluno ainda nao alfabetizado nao pode ser medido, pelo mérito, em comparag&o a um universitario. Nao se pode auferir 0 mérito de um universitério em comparac&o a alunos primarios. A justiga, enquanto proporcéo, somente se da entre os semelhantes. Aristételes, com isso, afasta os escravos, os filhos, as mulheres, do dmbito de aplicagdo do justo. Sdo do lar, submissos ao senhor, ao pai de familia, e portanto ndo estdo na arena dos iguais. A justiga se mede, para Aristdteles, entre os cidadaos da pdlis. Entre tais ha de se falar na honra, no mérito, na justa distribuicdo. Tal posicao aristotélica é altamente conservadora. Com isso, afasta da comparacao justamente a maioria da populacdo grega de seu tempo. O justo é somente uma medida da elite, dos cidaddos, dos poderosos. Mas, afastando-se a aplicacdo que fazia ao seu tempo, a ideia aristotélica revela, por via reversa, um grande potencial critico. Entre os desiguais, a justia néo é matematica. Ndo se pode auferir por mérito. Assim sendo, Aristoteles da margem a construir, a toda a maioria da sociedade, uma outra manifestacdo de justica, ativa e transformadora, que limite os excessos e que abrande as caréncias, a fim de que, posteriormente, em uma situagdo de minima igualdade, se faca valer uma régua de justica de tipo matematico. Se a justica se da entre os iguais na pdlis, havendo desiguais, pode-se pensar, com Aristételes e contra Aristételes, na revolugéo como forma de justiga, corrigindo os extremos e consolidando uma sociedade de equilibrio na distribuigdo de riquezas e situagdes meritdrias. O prdprio Aristételes deixa clara a necessidade da correcdo dos extremos: A justica 6 a observancia do meio-termo, mas néo de maneira idéntica a observancia de outras formas de exceléncia moral, e sim porque ela se relaciona com o meio-termo, enquanto a injustiga se relaciona com os extremos. E a justiga é a qualidade que nos permite dizer que uma pessoa esta predisposta a fazer, por sua prdpria escolha, aquilo que é justo, e, quando se trata de repartir alguma coisa entre si mesma e outra pessoa, ou entre duas pessoas, esta disposta a ndo dar demais a si mesma e muito pouco a outra pessoa daquilo que é desejavel, e muito pouco a si mesma e demais a outra pessoa daquilo que é nocivo, e sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idéntica em relagéo a duas outras pessoas. A justica, por outro lado, esta relacionada identicamente com o injusto, que é excesso e falta, contrario a proporcionalidade, do Util ou do nocivo. Por esta razo a injustiga é excesso e falta, no sentido de que ela leva ao excesso e a falta — no caso da prépria pessoa, excesso do que é Util por natureza e falta do que é nocivo, enquanto no caso de outras pessoas, embora 0 resultado global seja semelhante ao do caso da prdpria pessoa, a proporcionalidade pode ser violada em uma direcéo ou na outra. No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado injustamente, e ter demais é agir injustamente.® O quadro da justica, para Aristoteles, é haurido das proporgées, da virtude do mérito e do meio-termo, mas tem por pressuposto, para sua consecucao, a prdpria concretude, social e econdmica, da polis. Assim, para Aristételes, o justo é imediatamente matematico e meritério, mas, mediatamente, é politico. Pode-se fazer uma leitura de maneira mais profunda do pensamento de Aristételes sobre a justiga, reconhecendo que ha uma condicao social de justiga para que sejam aplicados os tipos especificos de justica (distributiva, corretiva e 0 caso especial da reciprocidade). Somente entre semelhantes é possivel aplicar tais tipos especificos de justo. A situagdo de justiga que da condigdo a auferir o justo, portanto, tem que afastar os extremos. Tais extremos séo econdémicos, politicos, culturais, sociais. Somente no meio-termo da situacdo social sera possivel, entéo, uma justiga especifica de meio- termo. E possivel, assim, pensar nas condigées sociais para o justo, em Aristoteles, representadas pelo grafico: Assim sendo, somente se pode pensar em justiga num espaco sem caréncia e sem excesso. Mas, para Aristdteles, esse espaco nao é fixo. E social, histdrico, variavel. Exemplifiquemos. Se alguém, as margens do Rio Amazonas, delibera por fazer em seu quintal um chafariz, ndo faz um ato injusto, porque a agua que usa em abundancia nao representa a caréncia a alguém. O arco do meio-termo da distribuigéo da agua na Amazonia é largo. Mas, no deserto do Saara, se um homem delibera por fazer um chafariz, a Agua que utiliza para tal fim é um excesso, na medida em que ha caréncia de tal produto aos demais. O arco do meio-termo da distribuicéo da agua no Saara é estreito. O justo, para Aristételes, ndo é uma medida fixa, do tipo x de agua para cada ser humano, em qualquer lugar, a qualquer tempo. E uma medida econémica, histdrica, social e politica. Quando descobrirem meios habeis de canalizar e distribuir a agua do Amazonas para 0 deserto, entdo a alta gastanca de agua na beira desse rio sera injusta. Para Aristoteles, a justica 6 uma manifestagdo da economia. Claro esté que Aristételes, mesmo tendo sido o que mais a fundo chegou ao entendimento econémico do justo no passado, ndo alcancou uma compreensdo avancada e critica da relagdo entre justiga e economia. Na verdade, tendo mesmo atingido uma reflexdo sobre o dinheiro enquanto referencial universal da producao, Aristételes estava limitado, na sua viséo econdmica, as prdprias circunstancias do modo de producdo escravagista, na medida em que, diferentemente do capitalismo, o escravagismo nao universalizara 0 trabalho assalariado e o capital e, portanto, nado tinha meios de fazer uma critica profunda de todas as relagdes sociais subjacentes. Karl Marx, em sua obra maxime, O capital, percebeu a genialidade de Aristoteles ao atrelar uma visdéo do direito e da justiga 4 economia, mas, ao mesmo tempo, apontou para as suas dificuldades, na medida em que o trabalho antigo nao era assalariado, e o trabalhador ndo se prestava a medida de sua producdo e seus ganhos, pois ndo se apresentava como uma mercadoria tal qual outras para um mercado. O trabalho escravo impunha uma compreensdo ainda parcial do regime geral de trocas e valores que somente 0 capitalismo permitiu entender. Diz Marx sobre Aristdteles: As [...] propriedades da forma de equivalente ficam ainda mais compreensiveis, se voltarmos ao grande pesquisador que primeiro analisou a forma do valor, além de muitas formas do pensamento, da sociedade e da natureza: Aristoteles. [...] O prdprio Aristoteles nos diz, assim, 0 que o impede de prosseguir na analise: a auséncia do conceito de valor. Que é 0 igual, a substancia comum que a casa representa perante a cama na expressdo do valor da cama? Tal coisa “ndo pode, em verdade, existir”, diz Aristételes. Por qué? A casa representa, perante a cama, uma coisa que a iguala a cama, desde que represente o que é realmente igual em ambas: 0 trabalho humano. Aristételes, porém, nao podia descobrir, partindo da forma do valor, que todos os trabalhos séo expressos, na forma dos valores das mercadorias, como um sé e mesmo. trabalho humano, como trabalho de igual qualidade. E que a sociedade grega repousava sobre a escravatura, tendo por fundamento a desigualdade dos homens e de suas forcas de trabalho. Ao adquirir a ideia da igualdade humana a consisténcia de uma conviccao popular é que se pode decifrar 0 segredo da expressdo do valor, a igualdade e a equivaléncia de todos os trabalhos, por que séo e enquanto sdo trabalho humano em geral. E mais, essa descoberta sé é possivel numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, e, em consequéncia, a relagdo dos homens entre si como possuidores de mercadorias é a relacdo social dominante. O génio de Aristdteles resplandece justamente na sua descoberta da relagdo de igualdade existente na expressdo do valor das mercadorias. Somente as limitag6es histéricas da sociedade em que viveu impediram-no de descobrir em que consistia, “verdadeiramente”, essa relacdéo de igualdade.° Sobre a relagdo do justo com a economia em Aristételes, expde Tercio Sampaio Ferraz Junior: A anialise do fildsofo revela, assim, sua insuficiéncia basica: a auséncia de um conceito de valor. Aristoteles nado vé, nas mercadorias, algo como o trabalho humano que possa ser a substancia comum entre elas. Isso para ele é impossivel realmente (por natureza). Por qué? Porque a sociedade em que vivia 0 filésofo, além de basear-se no trabalho escravo, tendo, assim, por base, a desigualdade dos homens e de seu poder de trabalho, nao adquirira ainda a nogdo universal da igualdade humana, o que é possivel apenas as sociedades em que as relacées dominantes entre os homens é a dos donos de mercadorias. Aristételes, nado tendo possibilidade de alcancar a nocdo de valor/trabalho, nado podia estabelecer uma diferenga entre valor de uso e valor de troca. Isso nao diminui 0 brilhantismo de seu génio, que Ihe permitiu descobrir, na expresséo do valor das mercadorias, uma relagdo de igualdade. Apenas as condigées da sociedade de seu tempo impediram-no de ir ao que estava na base da prépria igualdade. !° Assim sendo, ainda que limitado a esfera do modo de producao escravagista, a compreensao do justo de Aristdteles beira, em grande parte, a apreensdo universal da distribuigéo dos bens e trabalhos, sua proporcgdo, mas faltou-Ihe a generalizacdo critica que sé o capitalismo permitiria empreender. E Marx quem, na contemporaneidade, alcanga 0 amago da justiga e da injustica enquanto proporgées no todo social. Aristoteles teve que confind-la apenas aos cidad&os, livres e iguais entre si, e dependentes do trabalho escravo, cuja producao de riqueza nao entra em conta em seu cenario sobre o justo. Agentes e pacientes da justica Para Aristoteles, a justiga é uma acao. Nao se trata de uma virtude contemplativa. A justica ndo se revela em um mero conhecimento sobre o justo. Acima de tudo, o justo é um agir, tal qual todas as demais virtudes. No entanto, esse agir ndo é simplesmente o produzir de um fato. Considera-se justo o ato que é feito deliberadamente com tal finalidade, e injusto, do mesmo modo, o que é realizado com tal vontade. A exceléncia moral [virtude] se relaciona com as emogées e agdes, e somente as emogoes e agées voluntarias séo louvadas e censuradas, enquanto as involuntdrias séo perdoadas, e as vezes inspiram piedade; logo, a distingéo entre o voluntario e o involuntario parece necessaria aos estudiosos da natureza da excel€ncia moral, e sera Util também aos legisladores com vistas a atribuigdo de honrarias e a aplicagdo de punigdes."? A justiga, assim sendo, é uma virtude que se revela néo apenas pela sua potencialidade, mas sim pela sua concretude, pela sua acdo. Um juiz que conhega o justo e nao o aplica ao caso concreto nao é justo. Justo é o seu julgamento que determina que seja dado ao credor 0 que lhe é devido. Tal disposicado para o justo é o que faz com que a justiga ndo seja um rol de verdades preestabelecidas, mas uma constante realizacdo prudencial, no caso concreto. Nesse sentido, trata Jeannette Antonios Maman: A nocao de justica no pensamento grego, em Platao e Aristoteles, é definida brevemente na “regra de ouro”: o seu a cada um, que passa para o direito romano com Ulpiano: “Iustitia est constans er perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi”. Daf deriva ser injustiga nao dar a cada um o seu, ou seja, na base da injustiga encontra-se a privacao no patriménio, nas coisas corpéreas ou incorpdreas, nos bens ou na pessoa de outrem; portanto, tudo muito concreto, néo ha abstragado na referéncia do “seu”.'? O justo, para Aristételes, nado é uma medida contemplativa, mas concreta, e tal ag&o, por sua vez, nao pode ser acidental, mas sim deliberada. Nao se considera justo um juiz que, por um acaso, apds uma noite de jogatinas, e bébado, decidiu uma pena condenatoria a um réu que, foi-se ver posteriormente, era de fato culpado. O acaso da sua aGdo justa nao foi acompanhado de um ato voluntario que objetivasse a justiga. Por isso, ndo é o mero fato, mas o fato e sua intengdo, que configuram o agir justo. Nao basta, assim, para a apreciagéo de um ato justo, que ele exista por acaso. Aristételes chama a atengdo para o seu carater voluntario, sistematizando-o: Sendo os atos justos e injustos aqueles que descrevemos, uma pessoa age injustamente ou justamente sempre que pratica tais atos voluntariamente; quando os pratica involuntariamente, ela ndo age injustamente ou justamente, a ndo ser de maneira acidental. O que determina se um ato é ou nao é um ato de injustica (ou de justica) é sua voluntariedade ou involuntariedade; quando ele é voluntario, o agente é censurado, e somente neste caso se trata de um ato de injustica, de tal forma que haverd atos que sao injustos mas nao chegam a ser atos de injustica se a voluntariedade também nao estiver presente. Considero voluntaria, como ja foi dito antes, qualquer ac&o cuja pratica depende do agente e que é praticada conscientemente, ou seja, sem que o agente ignore quem é a pessoa afetada por sua acdo, qual é o instrumento usado e qual é o fim a ser atingido (por exemplo, quem ela esta golpeando, com que objeto e para que fim); além disso, nenhuma destas ages deve ser praticada acidentalmente ou sob compulsdo.'* Para Aristoteles, a coagdéo e a ignorancia nao configuram a inten¢gdo de agir com justica ou injustiga. O desconhecimento ou as forcgas externas ao sujeito que pratica o ato, ainda que levem a resultados que possam ser aprecidveis objetivamente como justos ou nado, por raz&o acidental, ndo constituem atos de justiga, exatamente por caréncia de animo para tal fim. Alberto Alonso Mujioz expée, sobre Aristoteles: Uma acéo é voluntaria, de toda forma, ao menos se 0 principio da aco esta no agente e se ele néo age ignorando. Mas a condicgéo basica para que o agente possa agir diferentemente e ser, portanto, responsavel por sua ado, é que possua ja plenamente desenvolvida a faculdade de deliberar. [...] Uma acdo voluntaria, agora introduzindo as demais condigdes, é aquela que resulta, a partir de um estimulo, da natureza prépria do agente naquele momento que pode vir a ser mudada, sem que esta fosse contradita por uma causalidade que anula estas condigdes ou por uma falha no sistema de informacgées do agente.** Por via reversa, do mesmo modo que a apreciacao do justo e do injusto se revelam a partir da intengdo do agente, Aristételes se pergunta a respeito do paciente da justica e da injustiga. Aquele que é injustigado assim o é porque os atos que geram tal situacggéo foram feitos contra sua vontade. Se o paciente da injustica tivesse o animo de ser injustigado, a situacao resultante seria injusta, mas ndo se poderia dizer da ado que foi realizada como uma injustica. Além disso, para Aristdteles, aquele que, distribuindo para si e para outro, da injustamente mais ao outro do que para si, 6 magnanimo, mas seu ato nao deixa de ser injusto, ainda que revestido dessa galhardia. Aristételes ainda se pergunta, quanto aos agentes ou pacientes da justica, se alguém pode ser injusto consigo mesmo. A sua resposta é negativa. A justica ou injustica sdo relagdes com o outro, e ndo consigo mesmo. Porque, de fato, Aristételes dira, nado se pode roubar a si proprio, nem cometer ou sofrer adultério mantendo relagdes sexuais com a prépria esposa. Somente em sentido lato e figurado pode-se dizer que os apetites, paixes e fraquezas de um homem o fizeram cometer uma injustiga contra si mesmo. Com efeito, a justica é a forma perfeita de exceléncia moral [virtude] porque ela é a pratica efetiva da exceléncia moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiga podem pratica-la ndo somente em relacdo a si mesmas como também em relacao ao prdximo.'> Para Aristoteles, pois, a justia é bem para o outro, e nao para si proprio, marcando 0 carater politico - e nao individualista, como o sera nos fildsofos do direito modernos — do justo. A equidade A reflexdo aristotélica sobre a justia culmina, no Livro V da Etica a Nicémaco, com a exaltagdo da equidade. Para Aristételes, acima da justia da lei, ha a justica do caso, do bom julgamento de cada caso concreto, e a essa adaptacao do geral ao especifico da ele © nome de equidade. O sentido aristotélico de respeito as leis é diferente de seu uso moderno. O pensamento juridico moderno e contemporaneo constitui-se num modelo exacerbado de juspositivismo. A lei posta pelo Estado deve ser obedecida, sem maiores discussdes. Para Aristoteles, o sentido da lei é outro. Na estrutura politica dos gregos, e em especial dos atenienses, a lei era a manifestagdo basica da unificagéo da vontade dos cidadaos, que, ao tempo da democracia, deliberavam coletivamente, e de maneira direta, em razdo de suas intengdes concretas. Por isso, para Aristételes, a lei é boa. Segui-la é fazer concretizar o interesse de todos, da polis. Desrespeité-la é fazer com que o interesse particular desarranje a organizacdo politica. Aristoteles reconhece que, no sentido geral, a lei é justa. No entanto, ha uma manifestacao de justiga ainda mais alta que a lei, a propria equidade. Dira Aristételes que a equidade, sendo justa, nao é distinta da propria lei, sendo esta justa também. N&o perfazem duas espécies de justica opostas, mas, pelo contrario, sdo complementares. O equitativo é justo ndo como negacao da justica da lei, mas sim como corretivo da justiga legal. Sendo a lei uma previsdo ampla, que alcanga uma série de fatos e hipdteses, a lei sd pode tratar desses casos num nivel amplo. Mas ha as especificidades de cada caso concreto. Nessa casuistica, que em geral néo consegue ser previamente regulada, dada a generalidade da lei, a equidade faz um papel de corrigir a omissdo, estendendo o justo até as mintcias. Aristételes compara 0 oficio do juiz, na equidade, aquele de quem julga conforme a Régua de Lesbos. Nessa ilha do mundo grego, os construtores se valiam de uma régua flexivel, que se adaptava a forma das pedras, sem ser rigida. Também a equidade demanda do jurista uma flexibilidade. Nao pode ser o homem justo um mero cumpridor cego das normas, sem atentar para as especificidades de cada caso concreto. Assim Aristoteles se refere sobre a equidade: Agora podemos ver claramente a natureza do equitativo, e perceber que ele é justo e melhor que uma simples espécie de justica. E igualmente dbvio, diante disto, o que vem a ser uma pessoa equitativa; quem escolhe e pratica atos equitativos e ndo se atém intransigentemente aos seus direitos, mas se contenta com receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja do seu lado, é uma pessoa equitativa, e esta disposigao é a equidade, que é uma espécie de justica e ndo uma disposicdo da alma diferente.*® Na filosofia do direito de Aristdteles, a justiga, sendo coroada com a equidade, revela-se um humilde artesanato que abandona a pretenséo a uma _universalidade objetiva e fria. A teoria do justo de Aristételes ndo é uma compilagdo acabada de verdades. Seu pensamento tateia sobre as hipdteses, tem idas e vindas, e acaba por reconhecer no justo uma humildade que ha de penetrar no oculto de cada situagdo. Ao contrario do pensamento juridico moderno, que é orgulhosamente juspositivista, crente na absoluta necessidade e justica da norma positiva estatal, a justica em Aristoteles é humana, e deve se dobrar para compreender a fundo cada situacdo na qual é chamada a dar seu julgamento. A teflexdo sobre as leis e a equidade conduz a questéo do direito natural em Aristoteles. Ao contrario das postulagées medievais e modernas - que se valem da expressdo para designar outros conceitos, muito distintos daqueles classicos -, para Aristoteles o direito natural ndo é uma ideia universal, formalizada, nem é um catalogo do justo e do injusto. Na propria raiz da palavra, o direito natural é a apreensdo da natureza das coisas. O auscultar da natureza revela o justo, isto é, aquilo que Ihe é mais apropriado. Cada caso, cada pessoa, cada circunstancia, revelam-se a partir de si préprios e de sua natureza prdpria. Por isso, mais alto que a lei, é a equidade que coroa a justiga para Aristdteles. Diz Aloysio Ferraz Pereira: Esse direito 6 natural porque deriva da natureza complexa de Aristételes, que se ndo reduz ao determinismo, a quantidade e a causalidade mecanica, prdprios do sentido que adquiriu a partir de Descartes. Nessa natureza o direito, que deriva dela, tem um contetido material, uma forma inteligivel e um fim a que se refere, além de uma causa eficiente. E um direito vivo, que, por isso mesmo, nao sobreviveu a por assim dizer natureza morta da era cartesiana, em que ainda vivemos. E aquele fim se nos oferece na natureza mesma; de resto, desde sempre se nos mostrou através simplesmente da observacao. Esta alias ndo se faz como um registro passivo. [...] A teoria do direito natural pode ser definida como um método experimental. Antecipa-se ao direito comparado e a sociologia. Sujeito as coordenadas de tempo e espaco, adapta- se as circunstancias de cada grupo social politicamente organizado. Mas, com a ajuda do direito natural, nunca se descobriré nem se ha de jamais elaborar um cédigo de leis imutaveis e definitivas.!” Também ao contrario dos medievais e dos modernos, para os quais as suas concepgées de direito natural sao contra as leis positivas, a concepcdo jusnaturalista de Aristoteles nado vé oposigdéo entre esses dois conceitos. O direito natural complementa o direito positivo.'® Isso porque a natureza, para Aristoteles, ndo é de uma categoria distinta daquela da vida social. As leis positivas sdo historicas, variaveis, mutaveis, mas assim também o é a natureza. Numa constante mimesis (imitagdo) de deus, que é perfeito e ndo se move, a natureza se move para se parecer com tal perfeicdo. Assim sendo, a propria justiga natural é mutavel, flexivel, e nisso nao é distinta da lei positiva, apenas Ihe é complementar num nivel superior. O direito natural aristotélico ndéo é um catalogo estabelecido de determinagées do agir.*° A régua de Lesbos, como adaptagao ao justo, revela que o direito natural de Aristoteles ndo é um rol de normas, mas sim um agir artesanal, do qual se pode mesmo dizer, artistico. A definigéo dos romanos do direito como arte do justo reflete de modo sintético e poderoso o modo de pensar de Aristdteles.

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