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Aluno (a):

PRANTO DE MARIA PARDA- GIL VICENTE

De Gil Vicente em nome de Maria Parda fazendo pranto porque viu Ó rua da Ferraria
as ruas de Lisboa com tam poucos ramos nas tavernas e o vinho onde as portas eram maias
tam caro, e ela nam podia viver sem ele. como estás chea de guaias ( lamento/ dor)
com tanta louça vazia.
Já me a mi aconteceu
Eu só quero prantear na menhã que Deos naceu
este mal que a muitos toca à honra do nacimento
qu’estou já como minhoca beber ali um de cento
que puseram a secar. que nunca mais pareceu.
Triste desaventurada
que tam alta está a canada Rua de Cata Que Farás
para mi como as estrelas. que farei e que farás?
Ó coitadas de goelas Quando vos vi tais chorei
ó goelas da coitada.
e tornei-me por detrás.
Triste desdentada escura Que foi de vosso bom vinho?
quem me trouxe a tais mazelas? E tanto ramo de pinho
Ó gengibas e arnelas ( resto de dentes) laranja, papel e cana
deitai babas de secura. onde bebemos Joana
Carpi-vos beiços coitados e eu cento e um cinquinho.
que já lá vão meus toucados
e a cinta e a fraldilha. Ó tavernas da Ribeira
Ontem bebi a mantilha nam vos verá a vós ninguém
que me custou dous cruzados. mosquitos o Verão que vem
porque sereis areeira ( areia).
Ó rua de sam Gião Triste que será de mi?
assi estás da sorte mesma Que màora vos eu vi
como altares de Coresma que màora me vós vistes
e as malvas no Verão. que màora me paristes
Quem levou teus trinta ramos mãe da filha do roim.
e o meu mana bebamos
isto a cada bocadinho? Quem viu nunca toda Alfama (bairro)
com quatro ramos cagados
Ó vinho mano meu vinho os tornos todos quebrados?
que màora te gostamos. Ó bicos de minha mama.
Bem ali ò Santo Esprito
i’eu sempre dar no fito
Ó travessa zinguizarra num vinho claro rosete.
de Mata Porcos escura Ó meu bem doce palhete
como estás de má ventura quem pudera dar um grito.
sem ramos de barra a barra.
Por que tens há tantos dias Ó triste rua dos Fornos
as tuas pipas vazias que foi da vossa verdura?
os tonéis secos em pé? Agora rua d’amargura
Ou te tornaste Guiné vos fez a paixão dos tornos.
ou o barco das enguias. Quando eu rua per vós vou
todolos traques que dou
Triste quem nam cega em ver são sospiros de saudade
nas Carnecerias Velhas para vós ventosidade
muitas sardinhas nas grelhas naci toda como estou
mas o demo há de beber.
E agora que estão erguidas Fui-me ò Poço do Chão
as coitadas doloridas fui-me à praça dos Escanos
das pipas limpas da borra carpi-vos manas e manos
achegou a paz com porra que a dezasseis o dão.
de crecerem as medidas. Ó velhas amarguradas
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que antre três sete canadas que quien su yégoa mal pea
soíamos de beber aunque nunca más la vea
agora tristes remoer él se la quiso perder.
sete raivas apertadas.
Vai-se a Branca Leda:
Ó rua da Mouraria
quem vos fez matar à sede Branca mana que fazedes?
pela lei de Mafamede ( indivíduo que professa a fé islâmica) Meu amor Deos vos ajude
com a triste d’água fria? j’eu estou no ataúde (caixão)
Ó bebedores irmãos se me vós nam acorredes.
que nos presta ser cristãos Fiade-m’ora três meas
pois nos Deos tirou o vinho? que ando per casas alheas
Ó ano triste cainho com esta sede tam viva
por que nos fazes pagãos? que já nam acho cativa
gota de sangue nas veas.
Os braços trago cansados
de carpir estas queixadas Branca Leda:
as orelhas engelhadas Olhade molher de bem
de me ouvir tantos brados. dizem que em tempo de figos
Quero-m’ir às taverneiras nam há i nenhuns amigos
taverneiros, medideiras nem os busque entam ninguém.
que me dem ũa canada E diz o enxemplo dioso
sobre meu rosto fiada que bem passa de goloso
a pagar lá polas eiras. o que come o que não tem.
Muita água há em Borratém ( cidade de Portugal)
Pede fiada à Biscainha: e no Poço do Tinhoso.

Ó senhora Biscainha Vai-se a João do Lumiar:


fiai-me canada e mea
ou me dai ũa candea Senhor João do Lumiar
que se vai esta alma minha. lume da minha cegueira
Acodi-me dolorida esta era a verde pereira
que trago a madre caída em que vos eu via estar.
e çarra-se-m’o gorgomilo (goela, garganta). Fiai-me um jentar de vinho
Enquanto posso enguli-lo e pagar-vos-ei em linho
socorrei-me minha vida. que já minha lã nam presta.
Tenho mandada ũa besta
Biscainha: Nam dou eu vinho fiado por ele antre Douro e Minho
ide-vos em bôora amiga.
Quereis ora que vos diga? João do Lumiar:
Nam tendes isso aviado. Enxemplo é molher honrada
Dizem lá que nam é tempo que nos ninhos d’ora a um ano
de pousar o cu ao vento. nam há pássaros ogano.
Sangrade-vos Maria Parda I-vos que sois aviada.
agora tem vez a guarda Enquanto isto assi dura
e a raia no Avento. matai com água a secura
ou ide outrem enganar
A João Cavaleiro, castelhano: que eu nam m’hei de fiar
de mula com matadura.
Devoto João Cavaleiro
que pareceis Esaías Maria Parda, indo pera casa de Martim Alho, vai dizendo:
dai-me de beber três dias
e far-vos-ei meu herdeiro. Amara aqui hei d’estalar
Nam tenho filhas nem filhos nesta manta emburilhada
senam canadas e quartilhos ó Maria Parda coitada
tenho enxoval de guarda que nam tens já que mijar.
se herdardes Maria Parda Eu nam sei que mal foi este
sereis fora d’empecilhos. pior cem vezes que a peste
que quando era o trão e o tramo
João Cavaleiro: andava eu de ramo em ramo
Amiga dicen por villa nam quero deste mas deste.
un enxempro de Pelayo
que una cosa piensa el bayo Diz a Martim Alho:
y otra quien lo ensilla. Martim Alho amigo meu
Pagad si queréis beber Martim Alho meu amigo
porque debéis de saber tam seco trago o embigo

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como nariz de judeu. Porque teve malvasia
De sede nam sei que faça encensem-m’assi vazia
ou fiado ou de graça pois também eu assi vou
mano socorrede-m’ora e a sede que me matou
que trago já os olhos venha pola clerezia.
fora como rola d’anegaça.
Levar-m’-ão em um andor
Martim Alho Diz um verso acostumado: de dia às horas certas
que estão as portas abertas
quem quer fogo busque a lenha das tavernas per u for.
e mais se o dono d’acenha E irei pois mais nam pude
apela de dar fiado. num quarto por ataúde ( caixão)
Vós quereis dona folgar que nam tevesse água-pé
e mandais-me a mi fiar o sovenite a Noé
pois diz outro exemplo antigo: cantem sempre ameúde ( com frequência).
quem quiser comer comigo
traga em que se assentar. Diante irão mui sem pejo
trinta e seis odres vazios
Vai-se à Falula: que despejei nestes frios
Amor meu mana Falula sem nunca matar desejo.
minha glória e meu deleite
emprestai-me do azeite Nam digam missas rezadas
que se me seca a matula. todas sejam bem cantadas
Até que haja dinheiro em framengo e alemão
fiai que pouco requeiro porque estas me levarão
duas canadas bem puras às vinhas mais carregadas.
por nam ficar às escuras
que se m’arde o candeeiro Item dirão per dó meu
quatro ou cinco ou dez trintairos
Falula Diz Nabucdonosor cantados per tais vigairos
no Sideraque e Miseraque: que nam bebam menos que eu.
aquele que dá gram traque Sejam destes três d’Almada
atravesse-o no salvanor. e cinco daqui da Sé
E diz mais: quem muito pede que são filhos de Noé
mana minha muito fede. a que som encomendada.
Sete mil custou a pipa
se querês fartar a tripa Venha todo sacerdote
pagai que a vinte se mede. a este meu enterramento
que tever tam bom alento
Maria Parda Raivou tanto Sideraque como eu tive cá de cote.
e tanta zarzagania Os de Abrantes e Punhete
vou-me a morrer de sequia da Arruda e d’Alcouchete
em cima dum almadraque (colchão grosso). d’Alhos Vedros e Barreiro
E ante de meu finamento me venham cá sem dinheiro
ordeno meu testamento atá cento e vinte sete.
desta maneira seguinte
na triste era de vinte Item mando vestir logo
e dous desd’o nascimento o frade alemão vermelho
daquele meu manto velho
que tem buracos de fogo.
Começa o testamento de Maria Parda: Item mais: mais mando dar
a quem se bem embebedar
a minha alma encomendo no dia em que eu morrer
a Noé e a outrem não quanto móvel i houver
e meu corpo enterrarão e quanta raiz se achar.
onde estão sempre bebendo.
Leixo por minha herdeira Item mando agasalhar
e também testamenteira das órfãs estas nô mais:
Lianor Mendes da Arruda as que por beber dos pais
que vendeu como sesuda ficam proves por casar.
por beber atá peneira. Às quais darão por maridos
barqueiros bem recozidos
Item mais mando levar em vinhos de mui bôs cheiros
por tochas cepas de vinha ou busquem tais escudeiros
e ũa borracha minha que bebam coma perdidos.
com que me hajam d’encensar.

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Item mais me comprirão
as seguintes romarias
com muitas Ave Marias
e nam curem de Monção:
vão por mi à Santa Orada
da Atouguia e da Abrigada
e à Corujeira santa
que me deram na garganta
saúde à peste passada.

Item mais me prometi


nua à Pedra d’Estrema
quando eu tive a apostema
no beiço de baixo aqui.
E por que grã glória senta
lancem-me muita água benta
nas vinhas de Caparica
onde meu desejo fica
e se vai a ferramenta.

Item me levarão mais


um gram círio pascoal
ao glorioso Seixal
senhor dos outros seixais.
Sete missas me dirão
e os cales encherão
nam me digam missa seca
porque a dor da enxaqueca
me fez esta devação.

Item mais mando fazer


um espaçoso esprital
que quem vier de Madrigal ( profano)
tenha onde se acolher.
E do termo d’Alcobaça
quem vier dem-lhe em que jaça
e dos termos de Leirea
dem-lhe pão vinho e candea
e cama tudo de graça.

Os d’Óbidos e Santarém
se aqui pedirem pousada
dem-lhes de tanta pancada
como de maus vinhos tem.
Homem dantre Douro e Minho
nam lhe darão pão nem vinho
e quem de Riba d’Ávia for
fazê-lhe por meu amor
como se fosse vezinho.

Fim: Assi que por me salvar


fiz este meu testamento
com mais siso e entendimento
que nunca me sei estar.
Chorai todos meu perigo
nam levo o vinho que digo
que eu chamava das estrelas
agora me irei par elas
com grande sede comigo

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