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4 y INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

tir comparações transculturais. Instrumentos cuja Esta obra, no entanto, não é definitiva. O pro-
aplicabilidade se restringe a uma população ou cesso de introdução e validação de novas escalas é
finalidade específica (p. ex., escala de hipocondria contínuo. A recente mudança de conceitos de saúde
para pacientes geriátricos institucionalizados) não mental e a aplicação de avanços em neurociências
foram incluídos. enfatizam o caráter dinâmico desse tema. Acredi-
tamos que a próxima atualização será necessária
zPASSADO, PRESENTE E FUTURO em bem antes que 15 anos!
A publicação do livro Escalas de avaliação clínica
em psiquiatria e psicofarmacologia, em 2000, foi zREFERÊNCIAS
a primeira iniciativa de reunir em uma obra o 1. McDowell I. Measuring health: a guide to rating scales and question-
conhecimento existente sobre a aplicação desses naires. 3rd ed. New York: Oxford University; 2006.
2. Rush JA, Pincus HA, First MB, editors. Handbook of psychiatric
instrumentos no Brasil. 5 Por muitos anos, essa
measures. Washington: APA; 2005.
compilação preencheu uma lacuna editorial ante 3. Freire MA, Figueiredo VLM, Gomide A, Jansen K, Silva RA, Maga-
a demanda acadêmica em nosso meio. Entretanto, lhães PVS, et al. Escala Hamilton: estudo das características psicométri-
e felizmente, vários instrumentos psicométricos fo- cas em uma amostra do sul do Brasil. J Bras Psiquiatr. 2014;63(4):281-9.
ram validados e publicados na literatura científica 4. Versiani M. Prefácio. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW,
ao longo dos últimos 15 anos. O entusiasmo desse organizadores. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofar-
macologia. São Paulo: Lemos; 2000.
cenário crescente nos impulsionou a ampliar a
5. Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW, organizadores. Escalas de
iniciativa anterior, desenvolvendo uma obra atua- avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São Paulo: Lemos;
lizada que fosse abrangente e de fácil consulta. 2000.

PRINCÍPIOS DE ELABORAÇÃO DE ESCALAS [ 1.1 ]


Luiz Pasquali

A teoria e o modelo de elaboração de instrumental pendendo, portanto, da literatura existente sobre o


psicológico baseiam-se em três polos: procedimen- construto-alvo. Muitas vezes, o próprio pesquisador
tos teóricos, empíricos (experimentais) e analíticos deve desenvolver uma pequena teoria sobre o cons-
(estatísticos).1 truto para elaborar um novo instrumento de medida.
O polo teórico enfoca o construto ou objeto
psicológico para o qual se quer desenvolver um zO SISTEMA PSICOLÓGICO
instrumento de medida, bem como sua operacio- Qualquer sistema ou objeto que possa ser expresso
nalização em itens. Esse polo utiliza a teoria do em termos observáveis é suscetível de mensuração.
traço latente para explicitar os tipos e as categorias Entretanto, o que pode ser efetivamente medido
de comportamentos que representam o mesmo são as propriedades ou os atributos de um objeto,
traço. O polo empírico, ou experimental, define desde que apresentem magnitudes, isto é, diferen-
as etapas e as técnicas de aplicação do instrumen- ças individuais, como intensidade, peso, altura,
to-piloto e da coleta válida de informação para distância, etc. Tais atributos são em geral chamados
proceder à avaliação psicométrica do instrumento. de variáveis.
O polo analítico estabelece os procedimentos de O objeto específico da psicometria são as es-
análises estatísticas a serem efetuadas sobre os truturas latentes, os traços psíquicos ou processos
dados para obter um instrumento válido, preciso mentais. Por exemplo, a inteligência pode ser con-
e normatizado. siderada um subsistema dos processos cognitivos, e
Esse modelo de elaboração de instrumentos estes, da estrutura latente geral. A inteligência, por
está ilustrado na Figura 1.1.1, que apresenta as eta- sua vez, pode ser considerada um sistema quando
pas da elaboração de um instrumento de medida. for o interesse imediato, e nela vários aspectos
Os métodos e os produtos a serem obtidos em cada são considerados, como a compreensão verbal e
etapa estão detalhados em suas respectivas “fases”. a fluência verbal.
Os procedimentos teóricos devem ser elabo- O pesquisador que pretende construir um
rados para cada escala de medida psicológica, de- instrumento de medida e pesquisa deve ter uma
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Procedimentos TEÓRICOS

Fase TEORIA CONSTRUÇÃO DO INSTRUMENTO

Categ. Comport.
Literatura Análise
Método Reflexão / Interesses / Índices Literatura / Peritos / Experiência / Experiência - teórica
Análise de conteúdo Entrevista - semântica

1 Sistema 2 3 4 5 6 Análise
Passo Propriedade Dimensionalidade Definições Operacionalização
dos itens
psicológico
Objeto Fatores - Constitutiva Instrumento-
Produto Atributo (dimensões) - Operacional Itens -piloto
psicológico

FIGURA 1.1.1 X PROCEDIMENTOS TEÓRICOS NA ELABORAÇÃO DA MEDIDA PSICOLÓGICA.

ideia, por mais vaga que seja, do que quer investigar zDIMENSIONALIDADE
e para que tema da psicologia está interessado em DO ATRIBUTO
construí-lo. Para descobrir o seu objeto psicológi- A dimensionalidade do atributo diz respeito à sua
co, o pesquisador pode consultar os livros ou estrutura semântica interna. O atributo constitui
tratados em que estão elencados os trabalhos em uma unidade semântica única ou é uma síntese de
psicologia. Sugerimos o Psychological Abstracts, 2 componentes distintos ou até independentes? Deve
para a área psicossocial; o Educational Index, 3 para ser concebido como uma dimensão homogênea ou
a psicologia aplicada à educação; o Index Medicus,4 deve-se nele distinguir aspectos diferenciados?
para a psicologia clínica; e o Sociological Index, 5 A resposta a esse problema deve vir da teoria
para a psicologia social. sobre o construto e/ou dos dados empíricos dispo-

zA PROPRIEDADE DO
níveis sobre ele, sobretudo dados de pesquisas que
utilizaram a análise fatorial na análise dos dados,
SISTEMA PSICOLÓGICO pois é fundamental decidir se o construto é uni- ou
Entretanto, o sistema ou o objeto psicológico não multifatorial. Os fatores que compõem o construto
constitui o objeto direto de mensuração, mas sim (o atributo) são o produto desse passo.
suas propriedades ou os atributos que o caracteri- Por exemplo, considerando a inteligência ver-
zam. Por exemplo, o sistema físico apresenta os bal como objeto psicológico (o processo cognitivo
atributos massa, comprimento, etc. Similarmente, de interesse) e suas propriedades, pergunta-se: é a
a psicometria concebe seus sistemas como tendo inteligência verbal um construto único ou deve-se
propriedades/atributos que os definem, sendo tais distinguir nele componentes diferentes? Os dados
atributos o foco imediato de observação/medida. empíricos disponíveis mostram que a inteligência
Assim, a estrutura psicológica apresenta atributos verbal é composta por, pelo menos, dois fatores
do tipo processos cognitivos, emotivos, motores, bem distintos e independentes, a saber: compreen-
etc. A inteligência, como subsistema, pode apresen- são verbal e fluência verbal. Para construir um
tar atributos de tipo raciocínio verbal, raciocínio instrumento de medida para a inteligência verbal,
numérico, etc. O sistema se constitui como objeto o pesquisador não poderá prescindir de reconhecer
hipotético que é abordado (conhecido) por meio e considerar que essa inteligência apresenta dois
da pesquisa de seus atributos. Dessa forma, o pro- fatores distintos, cuja medida exige instrumentos
blema específico desse passo consiste em se passar diferentes.
de um objeto psicológico para delimitar os seus Entretanto, ele pode escolher somente a inte-
aspectos específicos, os quais se deseja estudar e ligência verbal compreendida sob seu aspecto de
para os quais se quer construir um instrumento compreensão verbal para investigação e prescindir
de medida. de se preocupar com a fluência verbal. Nesse caso,
Para decidir por este ou aquele aspecto, o o atributo de interesse não é mais a inteligência
pesquisador recorre ao seu interesse, à ajuda dos verbal e sim a compreensão verbal. Assim, o pes-
livros e aos peritos (ao seu orientador, se for aluno). quisador deve justificar tal decisão e demonstrá-la
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na exposição teórica sobre o construto inteligência mento de medida. Pode-se fazer isso com qualquer
verbal a partir da elaboração de uma miniteoria tema para o qual se queira construir um instrumen-
sobre o que entende pelo construto que pretende to de mensuração.
medir, baseando-se na existência de dados empíri-
cos para guiar a construção e a consistência do seu zDEFINIÇÃO DOS CONSTRUTOS
instrumento de medida. Essa lógica visa confirmar Estabelecida a propriedade e suas dimensões, é
ou rejeitar a validade de sua teoria. preciso conceituar detalhadamente esses constru-
Supondo que o pesquisar deseja construir um tos. A conceituação clara e precisa dos fatores
instrumento para medir o raciocínio verbal, as para os quais se deseja construir o instrumento
seguintes considerações devem ser ponderadas: de medida deve obter dois produtos: as definições
cons titutivas e as definições operacionais dos
[1] O raciocínio verbal não é o objeto psicológico, construtos.
porque a ciência não mede objetos, mas as suas
propriedades. Assim, o raciocínio verbal é um DEFINIÇÃO CONSTITUTIVA
atributo; Um construto definido por meio de outros cons-
[2] Se o raciocínio verbal é um atributo, conse- trutos representa uma definição constitutiva.
quentemente é atributo de algum objeto. Dessa Nesse caso, o construto é concebido em termos
forma, deve-se pesquisar qual é esse objeto do de conceitos próprios da teoria em que se insere.
qual o raciocínio verbal é propriedade; Definição constitutiva aparece como definição de
[3] Se o raciocínio verbal é um atributo de algum termos em dicionários e enciclopédias: os conceitos
objeto, é de se supor que tal objeto tenha mais são definidos em termos de outros conceitos; isto
do que um atributo. Isto é, além de raciocínio é, são definidos em termos de realidades abstratas.
verbal, ele tem outros atributos. Esses outros Por exemplo, inteligência verbal é definida como a
atributos devem diferenciar o atributo de capacidade de compreender a linguagem (definição
interesse – o raciocínio verbal – dos demais constitutiva), porque a capacidade de compreender
atributos do objeto em questão. constitui uma realidade abstrata, um construto,
um conceito.
Com base na literatura, em peritos e na refle- As definições constitutivas situam o construto
xão clínica, temos que: o raciocínio verbal é atribu- exata e precisamente dentro da teoria desse
to do processo cognitivo chamado raciocínio. Por construto, delimitando as suas fronteiras. Essas
sua vez, raciocínio tem como atributos, além de definições caracterizam o construto no espaço
raciocínio verbal, raciocínio numérico, raciocínio semântico da teoria em que está incluído, indi-
abstrato, raciocínio espacial, raciocínio mecânico cando as dimensões que ele deve assumir. Assim,
e, talvez, outros. Mas a literatura na área distingue se se define assertividade como a capacidade de
esses cinco atributos de raciocínio: dizer não, a capacidade de expressar livremente
sentimentos positivos e negativos, a capacidade
Raciocínio – Raciocínio verbal de expor ideias sem receio, etc., está-se dando os
– Raciocínio numérico limites semânticos que o conceito deve respeitar
– Raciocínio abstrato dentro da teoria de assertividade.
– Raciocínio espacial Definições dessa natureza põem limitações
– Raciocínio mecânico definidas sobre o que se deve explorar ao medir o
Pesquisando um pouco mais, verifica-se que construto, em termos de fronteiras que não podem
raciocínio verbal não é unidimensional. De fato, a ser ultrapassadas ou que devem ser atingidas. De
literatura distingue dois tipos de raciocínio verbal, fato, um instrumento que mede um construto pode
a saber, compreensão verbal e fluência verbal. não conseguir cobrir toda a amplitude semântica
de um conceito. Assim, boas definições constitu-
Compreensão verbal tivas permitem avaliar a qualidade do instrumento
Raciocínio – Raciocínio verbal
Fluência verbal que mede o construto, em termos de cobertura da
– Raciocínio numérico
extensão semântica do instrumento, que é delimi-
– Raciocínio abstrato
tada por sua definição constitutiva.
– Raciocínio espacial
– Raciocínio mecânico
DEFINIÇÃO OPERACIONAL
Em seguida, deve-se definir diferencialmente As definições constitutivas se situam ainda no
todos esses atributos para a elaboração do instru- campo da teoria, do abstrato. Um instrumento de
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medida, por sua vez, já é uma operação concreta, definições operacionais mais ou menos abrangen-
empírica. Essa passagem do abstrato para o concre- tes de um mesmo construto podem ser produzidas.
to é viabilizada pelas definições operacionais dos A cobertura de uma definição operacional pode ser
construtos. Fundamenta-se, nesse momento crítico adequada, equivocada ou errada sobre o espaço
na construção de medidas psicológicas, a validade semântico do construto, repercutindo sobre a qua-
dos instrumentos e a legitimidade da representação lidade do instrumento de medida do construto. Por
empírica (comportamental) dos traços latentes (os exemplo, a inteligência verbal é como desenhar cír-
construtos). Isto é, a aterrissagem do abstrato para culos na areia, isto é, sua definição é perfeitamente
o concreto. Duas preocupações são decisivas: 1) as operacional, pois todo mundo entende quando se
definições operacionais dos construtos devem ser manda desenhar círculos na areia. Contudo, apesar
realmente operacionais e 2) elas devem ser o mais de operacional, é uma definição perfeitamente
abrangentes possível dos construtos. equivocada de inteligência verbal, pois o comporta-
Uma definição de um construto é operacional mento de desenhar círculos na areia não tem nada
quando tal construto é definido em termos de ope- a ver com o construto em questão.
rações concretas, isto é, de comportamentos físicos Assim, as definições operacionais podem re-
pelos quais se expressa. A definição da inteligência presentar um construto em uma escala que expres-
verbal como a capacidade de compreender uma fra- sa uma proporção de coincidência entre construto
se ou, mesmo, compreender uma frase, refere-se a e definição operacional que vai de 0 a 1; sendo 0
uma definição constitutiva e não operacional. Isso quando a definição não cobre nada do construto
porque compreender não é um comportamento, e 1 quando ela cobre 100% do espaço semântico
mas um construto, na medida em que não indica do construto. Nenhuma definição operacional
nenhum comportamento concreto. Seria uma será capaz de cobrir 100% do construto, mas,
definição operacional de compreensão da frase quanto maior covariância existir entre construto
reproduzir a frase com outras palavras. e definição operacional, maior a qualidade do
Mager6 oferece uma fórmula para decidir se a instrumento. A Figura 1.1.2 indica a problemática
definição é ou não operacional. Ela é operacional da qualidade de representação comportamental
se você puder dizer ao sujeito: “vá e faça...”. Portan- de diferentes definições operacionais do construto
to, dizer “vá e reproduza a frase” indica claramente compreensão verbal.
o que o sujeito deve fazer, como deve se comportar, Para garantir melhor cobertura do construto,
definindo operacionalmente a ocorrência dos as definições operacionais deverão especificar e
comportamentos. elencar aquelas categorias de comportamentos
Posto que nenhuma definição operacional que seriam a representação comportamental do
esgota a amplitude semântica de um construto; as construto. A garantia de validade e utilidade do

Definição Operacional Compreensão Verbal

Extensão semântica total

Desenhar círculos

Dizer que compreendeu

Escrever a frase

Reproduzir a frase

FIGURA 1.1.2 X EXTENSÃO SEMÂNTICA DE DEFINIÇÕES OPERACIONAIS DE COMPREENSÃO VERBAL.


8 y INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

instrumento depende da completude dessa especi- REGRAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ITENS


ficação. Por exemplo, quais seriam as categorias de Após a construção dos itens, é preciso seguir al-
comportamentos que expressariam comportamen- guns critérios para a sua elaboração. Estas regras
talmente a compreensão verbal? Seriam tais como: se aplicam à construção de cada item individual-
reproduzir texto, dar sinônimos e antônimos, expli- mente e ao conjunto dos itens que medem um
car o texto, sublinhar alternativas, etc. Quanto mais mesmo construto.
completa a listagem de categorias comportamen-
tais, melhor o pesquisador conseguirá expressar [A] Critérios para a construção dos itens indivi-
essas categorias em tarefas unitárias e específicas duais:
(os itens) e o instrumento-piloto estará construído. 1. Critério comportamental: o item deve ex-
Os métodos a serem utilizados para resolver o pressar um comportamento, não uma
problema de construção de medidas psicológicas se abstração ou construto. Segundo Mager,6
apoiam na literatura pertinente sobre o construto, a o item deve poder permitir ao sujeito uma
opinião de peritos na área, a experiência do próprio ação clara e precisa, de sorte que se possa
pesquisador, bem como a análise de conteúdo do dizer a ele “vá e faça”. Assim, “reproduzir
construto. Portanto, o conhecimento aprofundado um texto” é um item comportamental (“vá
da literatura sobre o construto e as técnicas de e reproduza...”), ao passo que “compreen-
análise de conteúdo são indispensáveis. der um texto” não o é, pois o sujeito não
sabe o que fazer com “vá e compreenda...”.
zOPERACIONALIZAÇÃO 2. Critério de objetividade ou de desejabilidade:
DO CONSTRUTO para o caso de escalas de aptidão, os itens
Esse é o passo da construção dos itens que expressa devem cobrir comportamentos de fato,
a representação comportamental do construto, a permitindo uma resposta certa ou errada.
saber, as tarefas que os sujeitos terão de executar O respondente deve mostrar se conhece a
para que se possa avaliar a magnitude de presença resposta ou se é capaz de executar a tarefa
do construto (atributo). proposta. Por exemplo, se o pesquisador
deseja saber se o sujeito entende o que seja
FONTES DOS ITENS “abstêmio”, faz mais sentido pedir a ele que
Diante das categorias comportamentais que ex- dê um sinônimo do que pedir que diga se
pressam o construto de interesse, focamos agora entendeu ou não. Ao contrário, para o caso
para outras duas fontes de itens: a entrevista e das atitudes e de personalidade em geral,
outros testes que medem o mesmo construto. A os itens devem cobrir comportamentos de-
entrevista consiste em pedir a sujeitos representan- sejáveis (atitude) ou característicos (perso-
tes da população para a qual se deseja construir o nalidade). Nesse caso, o respondente pode
instrumento que opinem em que tipo de compor- concordar, discordar ou opinar sobre se tal
tamentos tal construto se manifesta. Por exemplo, comportamento convém ou não para ele.
se o desejo é construir um instrumento sobre as- Isto é, os itens devem expressar desejabi-
ser tividade, é possível dirigir-se a representantes lidade ou preferência. Não existem, nesse
da população e perguntar “como é para você caso, respostas certas ou erradas; existem
uma pessoa assertiva?”. De uma pesquisa dessa sim diferentes gostos, preferências, senti-
natureza pode surgir uma grande riqueza de com- mentos e modos de ser.
portamentos que expressam assertividade e que 3. Critério da simplicidade: um item deve
podem ser aproveitados como itens do instrumento. expressar uma única ideia. Itens que intro-
Ademais, aproveitam-se os itens que compõem duzem explicações de termos ou oferecem
outros instrumentos disponíveis no mercado e razões ou justificativas são normalmente
que medem o mesmo construto em que se está confusos porque introduzem ideias varia-
interessado. Assim, há três fontes valiosas para a das e atrapalham o respondente. Por exem-
construção dos itens: plo: “gosto de feijão porque é saudável”.
O sujeito pode de fato gostar de feijão, mas
} literatura: outros testes que medem o construto; não porque seja saudável; assim, ele não
} entrevista: levantamento junto à população- saberia como reagir a tal item: se porque
-meta; e o feijão é gostoso ou porque é saudável.
} categorias comportamentais: definidas no pas- O item exprime duas ideias. O mesmo vale
so das definições operacionais. para “a maçã é gostosa e saudável”.
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palavras o pertinente
4. Critério da clareza: o item deve ser inteligí- – Reproduzir a frase com as próprias

– Decorar uma sentença o pouco perti-


vel até para o estrato mais baixo da popu-
lação-meta; daí, utilizar frases curtas, com

– Falar em voz alta o impertinente


expressões simples e inequívocas. Frases nente
longas e negativas incorrem facilmente na
falta de clareza. Com referência às frases 6. Critério da precisão: o item deve ter uma
negativas: normalmente são mais confusas posição definida no contínuo do atributo
que as positivas; consequentemente, é me- e ser distinto dos demais itens que cobrem
lhor afirmar a negatividade do que negar o mesmo contínuo. Este critério supõe que
uma afirmação. Por exemplo: fica mais o item possa ser localizado em uma escala
inteligível dizer “detesto ser interrompido” de estímulos; em termos de Thurstone,
do que “não gosto de ser interrompido”, ou diríamos que o item deve ter uma posição
é melhor dizer “sinto-me infeliz” em vez escalar modal definida e um desvio padrão
de “não me sinto feliz”. Nesse contexto, reduzido. Em termos da teoria de resposta
é preciso evitar uso de gírias que não são ao item (TRI), este critério representa
inteligíveis para todos os membros de uma os parâmetros “b” (dificuldade) e “a”
população-meta do instrumento, podendo (discriminação) e pode ser avaliado defi-
ofender o estrato mais sofisticado dessa nitivamente somente após coleta de dados
população em contrapartida. Preocupa-se empíricos sobre os itens. Por exemplo, na
aqui com a compreensão das frases (tarefas escala de Thurstone (Fig. 1.1.3), o item E1 é
a serem entendidas e, se possível, resolvi- muito preciso, enquanto o E2 é impreciso.
das), não sua elegância artística. 7. Critério da variedade: dois aspectos espe-
5. Critério da relevância (pertinência, satura- cificam este critério:
ção, unidimensionalidade, correspondên- – variar a linguagem: o uso dos mesmos
cia): a expressão (frase) deve ser consisten- termos em todos os itens confunde as
te com o traço (atributo, fator, propriedade frases e dificulta diferenciá-las, além
psicológica) definido e com as outras frases de provocar monotonia, cansaço e
que cobrem o atributo. Isto é, o item não aborrecimento. Exemplo: o Edwards
deve insinuar atributo diferente do defini- Personal Preference Schedule (EPPS)
do. O critério diz respeito à saturação que em inglês começa quase todas as suas
o item tem com o construto, representada 500 frases com a expressão “I like...”.
pela carga fatorial na análise fatorial e que Depois de tantos “I like”, qualquer
constitui a covariância (correlação) entre sujeito deve se sentir saturado!
o item e o fator (traço). Veja este exemplo: – no caso de escalas de preferências:
seja o construto “compreensão verbal” formular a metade dos itens em termos
definido como compreender o significado favoráveis e metade em termos desfa-
de palavras e frases. Dos três itens a seguir, voráveis, para evitar erro da resposta
um é pertinente, outro mais ou menos e o estereotipada à esquerda ou à direita
último impertinente: da escala de resposta.7

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

E1 E2

FIGURA 1.1.3 X ILUSTRAÇÃO DA PRECISÃO DOS ITENS NA ESCALA DE THURSTONE.


10 y INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

8. Critério da modalidade: formular frases um traço alto quanto entre os que têm um
com expressões de reação modal, isto é, traço pequeno, e não somente entre os de
não utilizar expressões extremadas, como traço alto e baixo.
“excelente”, “miserável”, etc. Assim, nin- 12. Critério do equilíbrio: os itens do mesmo
guém é infinitamente inteligente, mas a continuum devem cobrir igual ou propor-
maioria é bastante inteligente. A intensi- cionalmente todos os segmentos (setores)
dade da reação do sujeito é dada na escala do continuum, devendo haver, portanto,
de resposta. Se o próprio item já vem apre- itens fáceis, difíceis e médios (para apti-
sentado em forma extremada, a resposta na dões) ou fracos, moderados e extremos
escala de respostas já está viciada. Quando (no caso das atitudes). De fato, os itens
pergunto ao sujeito se está pouco ou muito devem se dispor sobre o continuum em
de acordo (em uma escala, p. ex., de 7 uma distribuição que se assemelha à da
pontos que vai de desacordo total a acordo curva normal: maior parte dos itens de
total), um item formulado extremado tal dificuldade mediana e diminuindo pro-
como “meus pais são a melhor coisa do gressivamente em direção às caudas (itens
mundo” dificilmente receberia resposta fáceis e itens difíceis em número menor).
7 (totalmente de acordo) por parte da A maioria dos traços latentes se distribui
maioria dos sujeitos da população-meta, mais ou menos dentro da curva normal
simplesmente porque a formulação é exa- na população-alvo, isto é, a maioria dos
gerada. Se, em lugar dela, se usasse uma sujeitos tem naturalmente magnitudes
expressão mais modal, como “eu gosto dos medianas dos traços latentes, sendo que
meus pais”, as chances de respostas mais uns poucos têm magnitudes grandes e ou-
variadas e inclusive extremadas (resposta tros, magnitudes pequenas. Assim, como
7) seriam maiores. mostrado na Figura 1.1.4, cerca de 10% dos
9. Critério da tipicidade: formar frases com itens apresentam dificuldade mínima ou
expressões condizentes (típicas, próprias, máxima e 40%, dificuldade mediana, etc.
inerentes) com o atributo. Assim, a beleza
não é pesada, nem grossa, nem nojenta. Na técnica de construção de instrumentos
10. Critério da credibilidade (face validity): o baseada na teoria dos traços latentes, para se
item deve ser formulado de modo a que salvarem cerca de 20 itens no final da elaboração
não apareça sendo ridículo, despropo- e validação do instrumento, recomenda-se iniciar
sitado ou infantil. Itens com esta última com mais do que 10% de itens além dos 20 reque-
caracterização fazem o adulto se sentir ridos no instrumento final. Os itens incluídos no
ofendido, irritado ou coisa similar. Enfim, instrumento-piloto devem ter validade teórica real
a formulação do item pode contribuir para e não simplesmente parecer ter validade.
uma atitude desfavorável para com o teste
e assim aumentar os erros (vieses) de res- zANÁLISE TEÓRICA DOS ITENS
posta.8,9 Esse tema, às vezes, é discutido Operacionalizado o construto por intermédio
sob o que se chama de validade “aparente” dos itens, é importante avaliar a hipótese contra
(face validity), que não tem nada a ver com a a opinião de outros para se assegurar de que ela
validade objetiva do teste, mas pode afetar apresenta garantias de validade. Essa avaliação
negativamente a resposta ao teste ao afetar dos itens ou análise da hipótese é teórica porque
o respondente. consiste em pedir opiniões sobre a hipótese. Essa
[B] Critérios referentes ao conjunto dos itens (o análise teórica é feita por juízes e comporta dois
instrumento todo): tipos distintos de avaliadores antes da validação
11. Critério da amplitude: este critério afirma final do instrumento-piloto: sobre a compreensão
que o conjunto dos itens referentes ao dos itens (análise semântica) ou sobre a pertinência
mesmo atributo deve cobrir toda a extensão dos itens ao construto que representam (propria-
de magnitude do contínuo desse atributo. mente chamada de análise dos juízes).
Esse critério pode ser analisado pela dis-
tribuição do parâmetro “b” da TRI. Um ANÁLISE SEMÂNTICA DOS ITENS
instrumento deve poder discriminar entre A análise semântica tem como objetivo verificar
sujeitos de diferentes níveis de magnitude se todos os itens são compreensíveis para todos
do traço latente, inclusive entre os que têm os membros da população à qual o instrumento
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se destina. Deve-se verificar se os itens são inteli- Quantos grupos são necessários para proceder
gíveis para o estrato mais baixo (de habilidade) da a essa análise semântica? Itens que não ofereceram
população-meta e, por isso, a amostra para essa nenhuma dificuldade de compreensão necessitam
análise deve ser feita com esse estrato. Para evitar de uma sessão, no máximo duas, sem checagem
deselegância na formulação dos itens, a análise ulterior. Itens que continuam apresentando difi-
semântica deverá ser feita também com uma culdades após cinco sessões merecem ser simples-
amostra mais sofisticada (de maior habilidade) da mente descartados. A checagem dos itens com um
população-meta (para garantir a chamada “vali- grupo de sujeitos mais sofisticados consiste em
dade aparente” do teste). Assim, por exemplo, se evitar que os itens se apresentem demasiadamente
o teste se destina a uma população que congrega primitivos para esses sujeitos e assim percam a
sujeitos do ensino fundamental até universitários, validade “aparente”. Os itens devem também dar
o estrato mais baixo nesse contexto são os sujeitos a impressão de seriedade, como diz o ditado: “a
do ensino fundamental e o mais sofisticado será mulher de César não somente deve ser honesta,
representado pelos sujeitos de nível universitário. deve também parecer honesta” (critério 10 de
Há várias maneiras eficientes de fazer a análise construção de itens).
semântica dos itens. Por exemplo, pode-se aplicar
o instrumento a uma amostra de uns 30 sujeitos da ANÁLISE DOS JUÍZES
população-meta e, em seguida, discutir com eles as Essa análise é, às vezes, chamada de análise de
dúvidas que os itens suscitarem. Entretanto, uma conteúdo, mas propriamente deve ser chamada de
técnica eficaz na avaliação da compreensão dos análise de construto, dado que procura verificar a
itens consiste em checá-los com pequenos grupos adequação da representação comportamental do(s)
de sujeitos (3 ou 4) em uma situação de brainstor- atributo(s) latente(s). Os juízes devem ser peritos
ming. Essa técnica requer um grupo de sujeitos do na área do construto e uma concordância de 80%,
estrato baixo da população-meta, porque se supõe pelo menos, seria desejável para decidir sobre a
que, se tal estrato compreende os itens, a fortiori o pertinência do item ao traço a que teoricamente se
estrato mais sofisticado também os compreenderá. refere. Uma tabela de dupla entrada, com os itens
Se a reprodução do item não deixar nenhuma arrolados na margem esquerda e os traços no cabe-
dúvida, o item é corretamente compreendido. Se çalho, serve para coletar a informação (Tab. 1.1.1).
surgirem divergências na reprodução do item ou A técnica exige que se dê aos juízes duas ferra-
se o pesquisador perceber que ele está sendo en- mentas: uma lista com as definições constitutivas
tendido diferentemente do que deveria, o item tem dos construtos/fatores para os quais se criaram os
problemas. Após o pesquisador explicar ao grupo o itens e outra tabela de dupla entrada com os fatores
que pretendia dizer com tal item, os próprios sujei- e os itens, como a seguir, em que são avaliados
tos do grupo irão sugerir como se deveria formular os itens que medem os dois fatores de raciocínio
o item para expressar o que o pesquisador queria verbal: compreensão verbal e fluência verbal. Em
dizer com ele. Com isso, o item ficaria reformulado geral, é necessária uma terceira tabela que elenca
como deveria ser. os itens, uma vez que nem sempre a tabela de

20% 40% 20%


10% 10%

Faixa: I II III IV V

FIGURA 1.1.4 X DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS ITENS EM 5 FAIXAS DE DIFICULDADE.


12 y INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

TABELA 1.1.1 X TABELAS PARA A ANÁLISE DOS ITENS PELOS JUÍZES

FATORES DEFINIÇÃO ITENS COMPREENSÃO VERBAL FLUÊNCIA VERBAL

Compreensão verbal É a capacidade de... 1 X


Fluência verbal É a capacidade de... 2 X
3 X
...
N X

dupla entrada comporta a expressão completa do zREFERÊNCIAS


conteúdo dos itens. 1. Pasquali L. Testes referentes a construto: teoria e modelo de construção.
Com base nessas tabelas, a função dos juízes In: Pasquali L, organizador. Instrumentação psicológica: fundamentos
consiste em pontuar (marcar com um X) para o e práticas. Porto Alegre: Artmed; 2010. p. 165-98.
2. Psychology Abstracts [Internet]. PsyResearch; c2015 [capturado em 07
item debaixo do fator ao qual julgam que o item
ago. 2015]. Disponível em: http://psyresearch.org/abstracts/.
se refere. Uma meia dúzia de juízes será suficiente 3. Education Index [Internet]. New York: UNDP; c2015 [capturado em 07
para realizar a tarefa. Itens que não atingirem uma ago. 2015]. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/content/education-index.
concordância de aplicação aos fatores (cerca de ฀
80%) apresentam problemas e seria o caso de University of Medical Sciences; c2015 [capturado em 07 ago. 2015].
descartá-los do instrumento-piloto. Disponível em: http://www2.bg.am.poznan.pl/czasopisma/medicus.
php?lang=eng.
Com o trabalho dos juízes ficam completa-
5. SocIndex [Internet]. Ipswich: EBSCO; c2015 [capturado em 07 ago. 2015].
dos os procedimentos teóricos na construção do Disponível em: https://www.ebscohost.com/academic/socindex-with-full-text.
instrumento de medida: a explicitação da teoria 6. Mager RF. Medindo os objetivos de ensino ou “conseguiu um par
do(s) construto(s) envolvido(s) e a elaboração do adequado”. Porto Alegre: Globo; 1981.
instrumento-piloto. Em seguida, os procedimentos 7. Likert R. A technique for the measurement of attitudes. ArchPsychol.
experimentais e analíticos testam empiricamente 1932;22(140):1-55.
8. Nevo B. Face validity revisited. J Educ Meas. 1985;22(4):287-93.
o instrumento, ou a validação da hipótese do ins-
9. Nevo B, Sfez J. Examinees’ feedback questionnaires. Assess Eval Higher
trumento. Educ. 1985;10(3):236-49.

ASPECTOS TRANSCULTURAIS NA ADAPTAÇÃO


DE INSTRUMENTOS [ 1.2 ]
Ines Hungerbühler, Yuan-Pang Wang

Para a maioria de condições médicas, independen- ou “normal” de acordo com a cultura local ou o
temente do país ou da cultura, há um consenso em contexto sócio-histórico.
relação à experiência de adoecimento físico. Por Na área de saúde mental, a cultura é um de-
exemplo, as manifestações clínicas do sarampo ou terminante crítico e complexo, exercendo influên-
da asma apresentam sinais e sintomas semelhantes cia na avaliação clínica, na pesquisa científica,
em diversas partes do mundo. Entretanto, essa na linguagem utilizada, na técnica da coleta de
concordância pode não se aplicar igualmente para dados, nas normas e nos conceitos investigados.1
alterações psíquicas ou mentais entre indivíduos Essa variação torna os resultados difíceis de serem
que falam diferentes línguas ou vivem em áreas comparados.
geograficamente distintas. Assim, a experiência Ante a crescente globalização da ciência e das
de ouvir vozes de seus ancestrais mortos pode sociedades, a importância da pesquisa transcultu-
ser considerada um comportamento “anormal” ral aumentou consideravelmente nos últimos anos.

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