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Rio de Janeiro
2008
Inoã Pierre Carvalho Urbinati
Rio de Janeiro
2008
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/A
CDU-
981”1871/1889”
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.
______________________________________ _____________________________
Assinatura
Inoã Pierre Carvalho Urbinati
Aprovado em __________________________________
__________________________________
Profª. Drª. Tânia M. Bessone da Cruz Ferreira
(Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________
Profª. Drª. Lúcia Paschoal Guimarães
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ
__________________________________
Prof. Dr. Humberto Fernandes Machado
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF
Rio de Janeiro
2008
DEDICATÓRIA
A todos aqueles que lutaram e aos que ainda lutam e sonham por uma reforma agrária ampla e
justa
AGRADECIMENTOS
À Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira, minha orientadora, cuja ajuda foi fundamental,
Aos professores da minha banca de qualificação, Lúcia Maria Paschoal Guimarães e
Humberto Fernandes Machado, pelas observações e críticas que ajudaram a desenvolver o
trabalho,
À minha querida mãe, Leila Maria Carvalho e Silva, pelo grande estímulo e pela confiança
depositada em mim,
À Capes, por ter, através da concessão da bolsa, me dado os meios para realizar a pesquisa,
À UERJ, que me permitiu realizar um mestrado proveitoso,
Ao Programa de Pós-Graduação em História da UERJ,
À Lúcia Bastos Pereira das Neves, cujas observações no projeto de pesquisa foram preciosas,
À minha avó Therezinha Carvalho e Silva, pelo incentivo, apoio e pela confiança,
À minha tia-avó Lúcia Fonseca, pelo apoio e confiança,
À minha avó Lucette Urbinati, cujo amor pelas atividades agrícolas contribuiu a despertar
meu interesse por História Agrária,
À Marly Vianna, pelo apoio e pela ajuda prestada,
A Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão, que incentivou desde o início a pesquisa,
A Geraldo Moreira Prado, pelo incentivo,
Ao professor Francisco Martinho, cujas aulas contribuíram para meu aprimoramento,
A Newman di Carlo Caldeira, pelo incentivo e apoio,
Ao Bruno Antunes de Cerqueira, do Instituto Cultural Dona Isabel I, pelo incentivo e ajuda
fornecida,
Ao meu primo Rodrigo Carvalho de Oliveira, pela confiança e ajuda,
À Ana Maria Rebouças, pelo incentivo,
Ao meu pai Roland Urbinati, pelo incentivo,
À Ana Carolina Delmas, pelo apoio e incentivo,
À Flávia Monteiro Serafim, pelo apoio,
A Paulo Durán, pela ajuda,
Aos meus amigos e companheiros dos tempos da graduação, Ignácio Neto e Márcio Coelho,
pelo apoio,
À minha tia Márcia Carvalho de Oliveira e ao meu tio Alberto de Oliveira, pela ajuda,
As minhas tias Marisa Carvalho de Avellar e Lucina, pelo incentivo,
A Cyrille Feybesse, pelo apoio,
Aos funcionários do IHGB,
Às funcionárias da Biblioteca de Ciências Sociais A, da UERJ,
Aos funcionários da Biblioteca Popular do Rio Comprido,
E a todos os demais amigos e parentes que me incentivaram, de alguma forma, a realizar a
presente pesquisa.
RESUMO
The work analyzes projects and land reform ideas, formulated or sketched in the last years of
the Empire of Brazil by personalities linked to the monarchic regime, including liberal
abolitionists like André Rebouças and Joaquim Nabuco, ministers, Province presidents and
the own Emperor Dom Pedro II. Through the research to several documents - texts and books
written during the given period, diaries, official reports, parliamentary annals - and to the
reading of wide bibliography, the research seek to understand the social and political reach of
the agrarian reformists’ projects, articulating such subject with the slavery abolition one,
whose process got completed in the studied period. It tries to perceive the convergence and
divergence points among the different programs and approaches the possibilities about the
materialization of a land reform in the subsequent period to the Abolition, between 1888 and
1889, looking for discussing and understanding the causes which took to the abandon of a
land reform politic in the passage from the Monarchy to the Republic.
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 10
1 ANDRÉ REBOUÇAS E JOAQUIM NABUCO: A REFORMA AGRÁRIA NA VISÃO
DE LIBERAIS E ABOLICIONISTAS................................................................................ 19
1.1 Liberais abolicionistas: um perfil................................................................................... 19
1.2. As idéias agrárias de André Rebouças e de Joaquim Nabuco.................................... 27
1.2.1. Dados biográficos / Trajetória de Rebouças.................................................................. 27
1.2.2. Idéias agrárias................................................................................................................ 31
1.2.3. Joaquim Nabuco: um breve perfil biográfico................................................................ 42
1.2.4 Propostas agrárias........................................................................................................... 47
1.3 Um balanço das propostas.............................................................................................. 54
2 O SISTEMA POLÍTICO IMPERIAL E A QUESTÃO
AGRÁRIA.............................................................................................................................. 58
2.1 A posição de fazendeiros e de conservadores................................................................ 58
2.1.1. O Congresso Agrícola de Recife (1878)....................................................................... 58
2.1.2. Henrique de Beaurepaire-Rohan e o desmembramento da grande propriedade........... 63
2.1.3. Distribuição de terras por fazendeiros........................................................................... 68
2.2 Ministros da Agricultura frente à questão agrária...................................................... 73
2.2.1. O período de 1871 a 1878............................................................................................. 74
2.2.2 O período 1878-1885: os liberais no poder.................................................................... 81
2.2.3. O período de 1885 a 1889............................................................................................. 88
3 RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DE PROVÍNCIA................................................. 93
3. 1. Província de São Pedro do Rio Grande do Sul........................................................... 93
3.2. Província de Santa Catarina......................................................................................... 98
3.3. Província do Paraná...................................................................................................... 100
3.4. Província de São Paulo................................................................................................. 103
3.5. Província do Rio de Janeiro......................................................................................... 110
3.6. Província de Pernambuco............................................................................................ 113
4 DEBATES POLÍTICOS E A PERSPECTIVA DE EFETIVAÇÃO DE UMA
REFORMA AGRÁRIA...................................................................................................... 122
4.1. Debates parlamentares................................................................................................. 122
4.1.1. Discussões na Câmara dos Deputados........................................................................ 122
4.1.2. O Senado e a Reforma da Lei de Terras..................................................................... 130
4. 2. A Abolição e a perspectiva de uma reforma agrária às vésperas da
República.............................................................................................................................. 141
4.2.1. O impacto da Lei Áurea junto ao Senado................................................................... 141
4.2.2. A posição do Imperador.............................................................................................. 144
4.2.3. A vida política imperial e a questão agrária entre 1888 e 1889.................................. 149
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................159
REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 164
ANEXO A - Lei de Terras..................................................................................................... 171
ANEXO B - Lei dos Sexagenários........................................................................................ 175
ANEXO C - Projetos de reforma da Lei de Terras, em discussão no senado em 31 de maio de
1887....................................................................................................................................... 181
ANEXO D - Presidentes do Conselho de Ministros entre 1871 e 1889............................... 194
ANEXO E - Ministros da Agricultura, Comércio e Obras Públicas entre 1871 e
1889....................................................................................................................................... 195
11
INTRODUÇÃO
Com o presente trabalho, nos propomos abordar um tema que, a nosso ver, mereceu,
até agora, a atenção de poucos pesquisadores: a existência de projetos de reforma agrária por
parte de setores monarquistas no período final do Império do Brasil. Um fato tanto mais
surpreendente quando se sabe que a reforma agrária constitui um tema extremamente atual,
sendo apoiada por importantes movimentos sociais e constando do programa de partidos
políticos. Durante muito tempo, poucos autores estudaram a questão em períodos anteriores
ao século XX; um raro exemplo foi Leopoldo Jobim1, que estudou projetos de reforma agrária
ainda sob a Colônia, conforme descrito mais adiante. Diversos pesquisadores de renome
valorizaram em seus estudos apenas os projetos reformistas agrários do período republicano,
como, por exemplo, Raymundo Laranjeira2 e José Eli Veiga3. Faremos aqui uma breve
apresentação do nosso estudo, situando as questões que procuraremos examinar, esclarecendo
o uso de alguns conceitos e explicando a divisão de capítulos.
Ao longo das últimas duas décadas da Monarquia, quando o processo de desagregação
da escravidão intensificou-se, paralelamente ao progressivo declínio do regime monárquico,
uma série de questões passou a emergir com mais intensidade, como a da substituição da
mão-de-obra escrava pelo braço livre, o aproveitamento ou não da mão-de-obra nacional e a
imigração. Dentre os homens que pensaram alternativas para os problemas do Brasil, alguns
incluíram em suas propostas a idéia de reforma agrária. Esta última foi também expressada
por alguns homens do governo, através, por exemplo, da sugestão de se criar um Imposto
Territorial ou, ainda, a de se instituir colônias agrícolas à margem de rios e de estradas, que
beneficiariam os libertos. As medidas propostas, em seu todo, incentivariam a formação de
núcleos de pequenos proprietários rurais.
Medidas de modificação da estrutura fundiária do país – ainda marcada pela estrutura
colonial, formada com base na Lei de Sesmarias4 - foram expostas de diversas maneiras e em
diferentes ocasiões por pessoas de diferentes escolas políticas, desde monarquistas como
1
Cf. JOBIM, Leopoldo. Reforma agrária no Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
2
Cf. LARANJEIRA, Raymundo. Colonização e Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
3
Cf. VEIGA, José Eli. O que é reforma agrária. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
4
A Lei de Sesmarias foi instituída primeiramente em Portugal no século XIV e visava garantir o abastecimento do reino,
então comprometido. Grosso modo, a lei determinava a doação de parcelas de terras baldias – as sesmarias – a indivíduos que
se comprometessem a cultivá-las. Implantado na América portuguesa, o sistema acabou dando origem a extensos latifúndios,
não obstante a promulgação de diversos atos pela Coroa portuguesa na tentativa de limitar suas dimensões. Cf. MOTTA,
Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito a terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura /
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, capítulo 4, p. 121.
12
Joaquim Nabuco até republicanos como José do Patrocínio e, também, positivistas. Porém,
conforme já dito, focalizaremos projetos esboçados por setores próximos ao Império – o que
vale dizer, de setores adaptados à ordem imperial -, através da leitura de documentos oficiais e
de textos de época produzidos por personalidades de destaque como André Rebouças. Por
isso mesmo, nosso foco recaiu sobre os membros do governo e monarquistas, especialmente
Joaquim Nabuco e André Rebouças, além do próprio Imperador Dom Pedro II. É possível que
nem todos os funcionários ou ministros abordados fossem monarquistas convictos, porém,
eles estavam inseridos na ordem monárquica e não a contestavam, daí sua inclusão no
trabalho. Por outro lado, temos a convicção de que as propostas dos demais grupos políticos
merecem também ser examinadas; ocorre, porém, que um tal empreendimento ultrapassaria os
limites desta pesquisa de mestrado, isto é, dificilmente seria compatível com as nossas
limitações de tempo, sendo plausível esperar que tais aspectos venham a ser devidamente
estudados em outra oportunidade, como, por exemplo, numa tese de doutoramento.
Trazendo novos elementos para a caracterização dos projetos agrários das últimas
décadas do Império, buscaremos perceber seu significado, buscando compreender em que eles
seriam tributários de uma “modernização conservadora” e no que eles representariam uma
ruptura, uma modificação estrutural profunda da sociedade brasileira. Preocupamo-nos desse
modo, em estudar o alcance político e social das propostas de reforma agrária formuladas por
homens do Império e, ao fazê-lo, somos levados à seguinte indagação: poderíamos falar num
reformismo imperial? Não se trata de procurar desvendar o significado político profundo do
Império, como sendo “progressista” ou “reacionário”: essa seria uma tarefa árdua, que
superaria os limites e propósitos da pesquisa. Do mesmo modo como poderíamos, em outra
pesquisa, averiguar a existência ou não de um “reformismo republicano” sob a Primeira
República, aqui nós nos propomos compreender em que medida se poderia falar numa via
“monárquica” de encaminhamento da questão fundiária, num sentido “progressista”, isto é,
levando a uma reforma agrária.
De modo a tornar mais viável o desenvolvimento do trabalho, nos apoiamos em alguns
conceitos principais, que devem ser explicitados nesta introdução. O primeiro deles – e, sem
dúvida, o mais importante – é o de reforma agrária. Diversos autores, como José Eli Veiga5 ou
Alberto Passos Guimarães6, enfatizaram sua conexão com as lutas sociais; Veiga viu na
reforma agrária o “resultado de pressões sociais contrárias7”, dependendo da evolução da
5
Cf. VEIGA, José Eli. O que é reforma agrária. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
6
Cf. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
7
Cf. VEIGA, José Eli. O que é reforma agrária. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.8.
13
relação de forças entre diferentes segmentos sociais. Ele percebeu nela a possibilidade de se
mudar as relações de forças entre as classes sociais. As motivações por trás das reformas
agrárias também foram comentadas por diversos autores, como Paulo Sandroni8 e Marc
Dufumier9. Contudo, não nos deteremos aqui nos diferentes tipos de reforma; ao longo do
trabalho, é que procuraremos classificar os projetos agrários e averiguar em que modelos
teóricos eles poderiam se enquadrar. Aqui, nos deteremos na concepção mais técnica e
simples do conceito, isto é, em sua descrição como sendo a redistribuição da terra em
favorecimento de setores rurais mais desfavorecidos10.
A reforma agrária também pode ser concebida do ponto de vista da reforma das
técnicas agrícolas – é um dos significados distinguidos por Leopoldo Jobim em Reforma
Agrária no Brasil Colônia -, mas aqui nos pautaremos por uma concepção de reforma
associada a uma modificação da estrutura fundiária. Assumimos, de fato, uma perspectiva
tendente a conceber a reforma agrária como sendo “um amplo conjunto de mudanças
profundas em todos os aspectos da estrutura agrária de uma região ou de um país, visando a
alcançar melhorias sociais, econômicas e políticas das comunidades rurais11”. Ao contrário de
uma revolução agrária, ela implicaria, portanto, numa alteração da estrutura fundiária, mas
sem modificar o modo capitalista de produção.
O segundo conceito-chave para nossa pesquisa foi o de modernização conservadora,
bem desenvolvida por autores como José Murilo de Carvalho12 e Ângela Alonso13. Em seus
estudos, ela diz respeito ao processo – ou pelo menos a tentativa – de modernização sócio-
econômica do país sob a manutenção do regime imperial e das bases de dominação social,
longe de ameaçar seriamente a estrutura social vigente. Em análise focando as discussões
parlamentares relacionadas à adoção de uma lei agrária na década de 1840, por exemplo,
Carvalho estimou que houve uma autêntica tentativa de modernização conservadora14. Já na
análise de Alonso, o conceito foi empregado para descrever a tentativa operada pelo Estado
imperial de “produzir e controlar a expansão da ordem social competitiva, para modernizar o
país sob tutela estatal15”, mantendo-se ao mesmo tempo as estruturas de poder vigentes.
8
Cf. SANDRONI, Paulo. Questão agrária e campesinato: a funcionalidade da pequena produção mercantil. São Paulo:
Editora Polis, 1980.
9
Cf. DUFUMIER, Marc. Les politiques agraires. Paris : Presses Universitaires de France, 1986, capítulo 3, p. 57.
10
Cf. DUFUMIER, Marc. op.cit., capitúlo 3, p. 57.
11
Cf. UMBELINO, Ariovaldo. Verbete “reforma agrária”, in: Dicionário da Terra. Organizadora: Márcia Motta. RJ:
Civilização Brasileira, 2005, p. 388.
12
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996.
13
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
14
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem / Teatro de Sombras, parte II, capítulo 3, p.310.
15
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002,
capítulo 1, p.78.
14
Políticos, como Joaquim Nabuco, foram tidos por diversos pesquisadores – como Keila
Grinberg16 – como postulantes de um ideal de modernização conservadora, por defenderem
reformas junto com a continuidade da Monarquia.
Lembramos também as análises apoiadas na noção de “modernização burguesa”, em
que a idéia fundamental é a persistência, por trás da transição entre o escravismo e o
capitalismo, do domínio da classe agro-exportadora; cite-se, por exemplo, Ruy Moreira17 e
José Carlos Barreiro18. Nós nos guiaremos mais, no entanto, pelo sentido de modernização tal
como foi definido por José Murilo de Carvalho e por Ângela Alonso, que enfatizaram a
condução do processo modernizador pelo Estado – apoiando-se no conceito de autonomia,
que ajuda a vislumbrar o Estado monárquico como não plenamente identificado com os
interesses dos grupos dominantes (no caso, os setores agro-exportadores), embora não se
negue a estreita relação com tais setores.
Enfim, Ricardo Salles, ao utilizar em Joaquim Nabuco: um pensador do Império a
expressão “modernização conservadora”, referiu-se, sobretudo, à penetração do capitalismo,
lembrando que a própria Abolição teria tido como efeito remover um dos principais entraves à
expansão do capitalismo no Brasil. Esta vinculação entre reforma social e expansão capitalista
será fundamental em nossa análise, que levará em conta, portanto, uma dupla dimensão do
conceito de modernização conservadora: enquanto processo modernizador associado à
continuidade monárquica e enquanto processo articulado ao avanço do capitalismo.
Enfim, a questão da cidadania é outro aspecto abordado tanto pelos autores
contemporâneos como por diversos abolicionistas, como Joaquim Nabuco. Em textos e
discursos do pernambucano verifica-se a amplitude que tal conceito possuía em sua visão,
como sendo uma universalização de direitos civis e sociais a todos – brancos, imigrantes,
índios e libertos. Defendia ele a extensão do voto, as clássicas liberdades políticas e o acesso à
propriedade da terra – a base da própria liberdade, de acordo com André Rebouças. Não à toa,
o movimento abolicionista foi considerado por historiadores como Keila Grinberg como um
movimento de luta pelos direitos civis.
Dentre os autores que examinaram o tema, sobressaiu-se José Murilo de Carvalho que,
em Pontos e Bordados e em Cidadania no Brasil, apresentou uma concepção de cidadania
inspirada nas idéias de Marshall e ancorada em três pilares: os direitos civis, os direitos
16
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete “Joaquim Nabuco”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p.411-413.
17
Cf. MOREIRA, Rui. Formação do espaço agrário brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.
18
Conferir artigo do autor, “Lutas sociais e questão agrária no limiar da República: a idéia de autonomia e a idéia da
riqueza”, in: História: 100 anos de República. SP: UNESP, 1989, p. 37.
15
políticos e os direitos sociais. O acesso à propriedade – o que pode incluir a do tipo territorial
– é visto como um dos direitos sociais. Para José Murilo de Carvalho, a rigor não se poderia
falar de uma cidadania brasileira, mas sim de uma “estadania”, em que os direitos políticos
foram, ao longo da evolução do país, fixados de cima para baixo19 – isto é, pelo Estado – e
sem “o prévio desenvolvimento de direitos civis”20. Para ele, a cidadania sob o Império –
como após 1889 – permaneceu incompleta. Pensamento parecido foi adotado por Ricardo
Salles21, destacando o caráter informal e inacabado da cidadania no século XIX e situando,
entre as causas de tal situação, a permanência da escravidão, do patriarcalismo e do latifúndio.
Temos, em tais estudos uma concepção ampla da cidadania, não limitada a direitos
civis e /ou políticos, mas englobando direitos sociais importantes, como o acesso à pequena
propriedade e a Educação. É essa concepção que adotaremos em nosso estudo. Dito isto, é
importante tecermos alguns comentários a respeito da antiguidade da questão agrária no
Brasil, originada ainda durante a era colonial.
É importante frisar que a idéia de reformar o sistema agrário brasileiro já havia sido
esboçada durante a colonização portuguesa, conforme analisado pelo historiador Leopoldo
Jobim22. Este último examinou as idéias de quatro autores: o padre jesuíta João Daniel, José
Arouche de Toledo Rendon, Luís do Santos Vilhena, e Gonçalves Chaves. Todos
manifestaram suas idéias num contexto já de crise do colonialismo, na passagem do século
XVIII para o XIX, entre 1770 e 1822. Classificados de iluministas por Jobim23, os autores
citados esboçaram planos de reformar a colônia, cuja crise eles pressentiram de algum modo,
esperando do poder estatal a resolução dos problemas brasileiros – atitude que faria escola
entre os abolicionistas defensores da reforma agrária, conforme examinaremos ao longo do
trabalho.
Todos esses autores previram, em seus textos, um maior acesso a terra por parte de
segmentos pobres da sociedade. O padre João Daniel, em O Tesouro do Rio Amazonas,
escrito por volta de 177024, apresentou um plano de exploração da Amazônia com base numa
colônia de povoamento, em que tanto europeus como indígenas, negros e mesmo chineses
teriam acesso a terra. O advogado paulista Toledo Rendon, em Reflexões sobre o estado em
que se acha a agricultura da Capitania de São Paulo (1788), manteve-se na linha reformista,
19
Basta lembrar que a escravidão foi abolida várias décadas após a Constituição de 1824, que consagrou uma série de
direitos políticos a um reduzido número de brasileiros classificados de cidadãos.
20
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, parte I, p. 281.
21
Cf. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
22
Cf. JOBIM, Leopoldo. Reforma Agrária no Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
23
Cf. JOBIM, Leopoldo. Reforma agrária no Brasil Colônia. op. cit., introdução, p.7-13.
24
Cf. JOBIM, Leopoldo op.cit., p. 8 e 38.
16
25
Cf. JOBIM, Leopoldo. op. cit., p.52.
26
Cf. JOBIM, Leopoldo. op. cit. p. 52-63.
27
Cf. JOBIM, Leopoldo. op. cit. p.63-78.
28
Cf. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Apresentação à Assembléia Constituinte, Projetos para o Brasil; organização
Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Publifolha, 2000, p.35 e p.42.
29
Cf. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. op. cit., p.66 e p.70.
30
Cf. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. op. cit., p.80.
31
Cf. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. op. cit., p.81.
32
Cf. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. op. cit., p.141.
17
que ele denominou de “Fateusim Nacional”, sistema pelo qual as terras seriam distribuídas de
maneira justa para cada indivíduo, tomando-se como base a real necessidade e meios de
cultivo de cada pessoa. Os lotes seriam obtidos mediante arrendamento feito junto ao
governo, por um prazo renovável de 30 anos33. No mesmo período, em 1829, o padre Diogo
Antônio Feijó, que seria Regente Único do Império entre 1835 e 1837, apresentou ao
Parlamento uma proposta relativa à questão da terra e da propriedade34. Preocupado com a
harmonia social (evitando-se aí tensões) e visando democratizar o acesso a terra, seu
programa previa que cada cidadão receberia um lote de terra, sendo sua dimensão
correspondente ao número de membros da família e dos escravos por ela possuídos.
A expectativa de uma reforma do sistema fundiário - perceptível desde que em 1822
havia sido suprimido o sistema das sesmarias35 - pareceu mais viável na década de 1840,
quando, visando a regularizar a questão agrária se discutiu o projeto da Lei de Terras, afinal
adotada em 18 de setembro de 185036, apenas alguns dias após a Lei Eusébio de Queiróz.
Foram discutidas importantes medidas progressistas, como o Imposto Territorial, mas muitas
delas foram retiradas do texto final37. José Honório Rodrigues foi um dos pesquisadores que
destacaram o fato da Lei não ter promovido uma reforma agrária38. Diversos autores
contemporâneos ainda abordaram o tema ao longo do reinado de Dom Pedro II. Não podemos
citar todos aqui, mas registraremos ainda o nome de Tavares Bastos, político liberal que, na
década de 1860, escreveu textos divulgando propostas reformistas, inclusive uma relativa à
reforma agrária - vale notar que foi exatamente essa expressão que o autor empregou. Bastos
defendeu a divisão das terras, (fazendo alusão a imigrantes, lavradores pobres e libertos) e a
necessidade de demarcar as terras públicas das particulares. Citando como exemplo a França,
33
Cf. BASILE, Marcello Otávio. Ezequiel Corrêa dos Santos: um jacobino na corte imperial. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2001, p.60.
34
Cf. MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de
Leitura /Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, capítulo 4, p.127-130.
35
Cf. MOTTA, Márcia. op. cit., capítulo 1, p.40.
36
A Lei de Terras – cujo texto integral foi reproduzido no Anexo A - determinou que a terra fosse obtida através da compra,
vedando a política de concessão gratuita, salvo nas regiões de fronteira. Também buscou discriminar as terras públicas das
particulares e aceitou a revalidação de sesmarias e a legitimação de posses irregulares que tivessem cultura efetiva e moradia
habitual, sujeitando os posseiros e os sesmeiros à medição de suas terras. A venda das terras devolutas serviria para financiar
a imigração, aspecto que contribuiu para que a Lei tenha sido interpretada como uma medida visando a garantir a mão de
obra para a grande lavoura, uma vez que ela continha mecanismos que, na prática, obrigavam o imigrante a trabalhar nas
fazendas por um período, antes de poderem ter acesso à propriedade rural. A Lei foi regulamentada em 30 de janeiro de 1854.
37
Vários historiadores analisaram a Lei como tendo um conteúdo fundamentalmente conservador, mas pode-se analisá-la sob
outro ângulo, identificando a presença nela de mecanismos de abertura de uma brecha no processo de concentração fundiária
em curso, ao permitir a regularização de posses de pequenos lavradores, adquiridas antes de sua aprovação. Cf. MOTTA,
Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura
/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, capítulo 4, p.142-143.
38
Cf. RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982, Parte I, capítulo 1, p.77.
18
o liberal pediu a instituição do Imposto Territorial39. Ele chegou também a admitir a doação
gratuita de terras40, bem como a idéia de desapropriação41.
Bem se vê, portanto, que a idéia de uma reestruturação do sistema agrário brasileiro já
vinha sendo apoiada por vários membros dos setores abastados da sociedade, incluindo
padres, militares, políticos e juristas. Várias de suas idéias seriam retomadas pelos
personagens de que nos ocuparemos no nosso trabalho, que se dividirá em quatro capítulos.
Nós nos ocuparemos, primeiramente, com o exame da concepção de reforma agrária dos
liberais abolicionistas, com ênfase especial em André Rebouças e Joaquim Nabuco, dois dos
principais líderes abolicionistas e monarquistas convictos. Com base em textos / livros
escritos por eles, em diários de Rebouças e na bibliografia, traçaremos as principais
características de seus projetos e procuraremos saber se eles poderiam ser definidos
prioritariamente como uma “democracia rural” ou se estariam comprometidos, sobretudo,
com uma modernização conservadora.
No segundo capítulo, analisaremos o modo como o sistema político imperial abordou
a perspectiva de uma reforma do setor agrário. Focalizaremos num primeiro momento
projetos de conservadores e de fazendeiros, estudando o programa fixado pelo Visconde de
Beaurepaire-Rohan e as propostas do senhor de engenho Henrique Milet, além de examinar
um caso local em Paraíba do Sul (RJ). Numa segunda parte, nossa atenção recairá sobre os
relatórios dos ministros da Agricultura. O terceiro capítulo é quase que uma extensão do
segundo, mas teve de ser dele separado devido ao elevado número de páginas que resultaria
de uma junção, que provocaria um desequilíbrio flagrante entre o conjunto dos capítulos da
dissertação. Seu foco é a leitura dos relatórios de presidentes de seis províncias, importante
para observar o tratamento imperial dado à questão agrária, a nível local. Deixamos de lado
outras fontes, como as sessões do Conselho de Estado, devido à escassez de tempo que
permitisse uma análise das mesmas; por outro lado, acreditamos que através dos relatórios
oficiais já teremos conseguido alcançar um dos principais objetivos desse capítulo, qual seja,
examinar o modo como a idéia de uma reforma agrária se fez presente na esfera
administrativa.
A conclusão deste trabalho se dará com um estudo relativo às discussões políticas
envolvendo uma eventual reforma agrária. Focalizaremos os debates parlamentares e as Falas
do Trono, procurando, perceber a posição de importantes políticos ligados ao Império e a do
39
Cf. FILHO, Evaristo de Moraes. As Idéias Fundamentais de Tavares Bastos. 2. ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2001, Título II, p. 261
40
Cf. FILHO, Evaristo de Moraes. op. cit., p.260.
41
Cf. FILHO, Evaristo de Moares. op. cit., p. 265-266.
19
próprio Imperador ante tal questão. Nesse capítulo, e com auxílio também da consulta
bibliográfica, refletiremos sobre as chances da reforma ser instituída no contexto do pós-
Abolição. Procuraremos valorizar a importância do Político como elemento explicativo, mas
sem supervalorizar seu papel em detrimento de outros aspectos – como as relações entre os
grupos sociais e as instituições -, seguindo uma noção de “relativa autonomia das decisões
políticas42”. Tomando assim como base a idéia de que os atores políticos dispõem sempre de
uma margem de manobra43, trabalharemos com a possibilidade de ter se desenvolvido um
projeto de reforma agrária sob um viés monárquico, suficientemente forte para estimular a
hostilidade da grande lavoura, a qual teria provocado o arquivamento dos programas de
democratização do solo, na passagem do Império para a República.
42
Cf. RÉMOND, René. “Por que a História Política?”, in: Estudos Históricos, número 13. Rio de Janeiro: CPDOC, 1994,
p.16
43
Cf. RÉMOND, René. op. cit, p.16.
20
1
ANDRÉ REBOUÇAS E JOAQUIM NABUCO: A
REFORMA AGRÁRIA NA VISÃO DOS LIBERAIS
ABOLICIONISTAS
44
Quando referidos a pessoas, os qualificativos de “liberal” e de “conservador” serão empregados em função de sua filiação
ao Partido Liberal ou ao Partido Conservador.
45
A própria difusão do liberalismo foi favorecida, no Brasil, pelo fim da proibição, no início do século XIX, de livros de
autores liberais como Adam Smith e Montesquieu. Conferir, a esse respeito, o livro de Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira,
Bibliotecas de médicos e advogados do Rio de Janeiro: dever e lazer em um só lugar, p. 321.
46
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as idéias de André Rebouças.
Rio de Janeiro: Quartet; Belford Roxo: UNIABEU, 2005, capítulo 3, p. 86.
21
47
Cf. NEDER, Gizlene. O liberalismo conservador brasileiro do século XIX. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
48
Cf. MACHADO, Humberto. Verbete “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”, in: História e
Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Organizadores: Lúcia Maria Bastos Neves, Marco Morel e Tânia
Maria Bessone da Cruz Ferreira. Rio de Janeiro: DP & A: FAPERJ, 2006.
49
Cf. MACHADO, Humberto. op. cit., parte I, p. 145.
50
Cf. ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da idéia de mercado. Tradução Antônio Penalves Rocha.
SP: EDUSC, 2002, p. 13.
51
Cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desventuras do Liberalismo: Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979.
52
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as idéias de André Rebouças.
Rio de Janeiro: Quartet; Belford Roxo: UNIABEU, 2005, capítulo 3, p. 86.
53
Cf. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
22
mesmo o liberalismo brasileiro do período anterior a 1870 não foi visto pela autora como uma
incongruência. Pessanha fez a distinção entre liberalismo e democracia, demonstrando como
ambos os conceitos não se equivalem. Para ela, o liberalismo – no Brasil como em outros
países latino-americanos – foi adaptado à realidade nacional de acordo com os interesses dos
proprietários. Não por acaso, o Partido Liberal conviveu durante décadas com a estrutura
escravista, tendo grande parte de sua base sido constituída por grandes proprietários rurais. O
que para ela mudou, na década de 70, foi a forma como a geração liberal emergente passou a
conceber a sociedade e a política num sentido mais progressista. Esse posicionamento mais
aguerrido, que levou à crítica aberta à escravidão, partiu de uma visão em que, conforme bem
lembrado por Pessanha, o direito natural à liberdade dos homens suplanta o direito à
propriedade54.
Marco Aurélio Nogueira, referindo-se ao Partido Liberal sob o Segundo Reinado,
chegou a falar na existência de um “liberalismo conservador”, mas estabeleceu uma
importante distinção entre o liberalismo do Partido Liberal e aquele professado por
personalidades como Joaquim Nabuco, reconhecendo neste um liberalismo mais autêntico55.
Essa vertente mais radical e democrática do liberalismo associou-se, segundo Nogueira, ao
abolicionismo, movimento que se colocou na vanguarda da “revolução burguesa em armação
no país56”, pregando a necessidade de se instituir medidas estruturais como a reforma agrária,
conforme observaremos mais adiante neste trabalho.
A ação e as idéias dos “novos liberais” foram analisadas por Ângela Alonso57, que
traçou o perfil ideológico e social dos intelectuais que se destacaram na vida pública ao longo
das últimas décadas da Monarquia no Brasil. Se por um lado encontramos diversos autores
que estudaram em suas obras a ação dos diferentes grupos contestadores nesse período
histórico, por outro lado, o livro de Alonso distinguiu-se por apresentar uma reflexão em que
esses grupos foram examinados enquanto parte de uma mesma geração, com aspectos em
comum entre si.
Na análise de Alonso foram abordados setores tão heterogêneos como os positivistas
científicos, os liberais monarquistas e os republicanos liberais. Ela identificou, como um fator
comum a todos esses grupos, a marginalização em relação à ordem política imperial,
54
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 3, p.90.
55
Cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desventuras do Liberalismo: Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979, capítulo 2, p. 130-131.
56
Cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Desventuras do Liberalismo: Joaquim Nabuco entre a Monarquia e a República. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979, capítulo 2, p. 138.
57
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: A geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
23
dominada, nos anos 70, pelos conservadores58. A capacidade do sistema político de cooptar e
integrar em seu seio diferentes grupos esteve então, a seu ver, comprometida, provocando a
dificuldade de acesso a cargos e diversas funções públicas por setores egressos das correntes
liberais e de setores médios urbanos. A historiadora estabeleceu, assim, uma relação de
continuidade entre a situação social desses grupos na sociedade e sua ação política. Distinguiu
ela, de um lado, pessoas oriundas de setores médios, excluídas da “alta sociedade”, com
dificuldades para empregar-se e sendo muitas vezes críticas do regime monárquico. De outro
lado, indivíduos de setores próximos ao mundo da ordem imperial, porém com dificuldades
devido ao predomínio dos conservadores. É precisamente este o caso dos chamados “novos
liberais”, em que se inseriram Nabuco e Rebouças, ambos próximos à Monarquia. O caso
deles, aliás, é revelador. Joaquim Nabuco, conforme lembrado pela autora, mesmo sendo
membro de uma tradicional família pernambucana e próxima ao sistema imperial – seu pai foi
o Senador Tomás Nabuco de Araújo – somente foi eleito deputado em 1879, oito anos após
ter concluído seus estudos superiores. O engenheiro André Rebouças, por sua vez, também
passou por dificuldades profissionais ao longo da década de 70. Tais exemplos são
reveladores dessa falta de capacidade, por parte da ordem monárquica, de cooptação e de
acomodação dos diferentes segmentos provenientes das classes médias urbanas e mesmo de
parte da elite.
Composto de homens ligados ao regime e pouco propensos a métodos revolucionários,
o grupo dos novos liberais notabilizou-se por apresentar um amplo programa reformista, que
incluía mudanças como a abolição da escravidão, a extensão dos direitos civis e a
disseminação da pequena propriedade rural. Críticos ferrenhos da escravidão – que deveria ser
extinta sem indenização -, eles buscavam universalizar a cidadania civil, criticando o
latifúndio improdutivo e valorizando experiências de colonização verificadas nas províncias
do Sul do país59. Nos dizeres de Alonso, o objetivo dos novos liberais – defensores do
trabalho do imigrante, bem como do liberto - era a “formação de uma nacionalidade
americana60”, com a generalização da pequena propriedade, de modo a tornar o país uma
“sociedade de pequenos produtores, descendentes de europeus educados, gerando cidades
médias61”. A reforma agrária, assim, constava do plano do grupo, tendo como mola mestre o
ideal da pequena propriedade. Não por acaso, a referência ao modelo norte-americano de
58
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002,
capítulo 2, p. 100.
59
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002,
capítulo 3, p.204.
60
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p.204.
61
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit,., capítulo 3, p. 204.
24
colonização foi uma constante, tendo Rebouças, por exemplo, feito diversas referências à lei
agrária promulgada nos EUA em 1862, o Homestead Act62, garantindo uma porção de terra
aos que nela desejassem se estabelecer, sob a condição de torná-la produtiva num prazo de
cinco anos.
As propostas agrárias dos liberais fizeram, assim, parte de um amplo programa de
regeneração nacional, cujo primeiro e fundamental passo seria dado com a abolição imediata
e sem indenização da escravidão. Um aspecto particularmente relevante de seu programa é a
defesa implícita que foi feita da propriedade particular e, inclusive, uma aceitação do
latifúndio produtivo. Segundo Ângela Alonso,
62
Cf. EINSENBERG, Peter Louis. Guerra Civil Americana, p. 83-84. De acordo com o autor, a lei de Homesteads, aprovada
pelo Congresso norte-americano em 1862 previa a doação gratuita de terras públicas, em parcelas de 64,8 hectares, “para
qualquer adulto que residisse e fizesse certos melhoramentos na parcela durante cinco anos”.
63
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p. 262.
25
muito próximo à própria Família Imperial. A reforma que eles pregavam deveria ser feita
dentro da via legal e parlamentar; segundo Alonso, eles seriam reformistas e não
revolucionários. Um aspecto que parece confirmar essa visão é a forma como o grupo
defendia a concretização das reformas, que deveriam ser implantadas de cima para baixo,
seguindo uma via prussiana64. Não é por acaso que a Alemanha de Bismarck e a Itália de
Cavour foram valorizadas pelos novos liberais65, uma vez que esses países passaram por
profundas reformas tendo como principal agente executor o Estado.
Assim como Ângela Alonso, Marco Aurélio Nogueira, em seu estudo sobre Nabuco,
destacou o apoio desses liberais à Monarquia como condutora das reformas. O autor
identificou neles os representantes de um liberalismo mais avançado, mas não deixou de
registrar o apoio dado ao Estado monárquico. Acreditamos, porém, que a valorização do
Estado pelos liberais como agente reformador – sobretudo a partir dos anos 80 – deve ser
compreendida, sobretudo, como uma questão de circunstância, uma vez que, por princípio, tal
atitude é pouco conforme ao espírito liberal: na análise de muitos liberais, como Nabuco,
Dom Pedro II era o único poder que podia se sobrepor à força dos grandes proprietários
escravocratas; daí os constantes apelos feitos ao Imperador, para que este efetivasse as
reformas. Nogueira, inclusive, buscou esclarecer o sentido da intervenção estatal pregada
pelos liberais, não reconhecendo nela uma atitude contrária aos princípios liberais, vendo nela
também uma forma de garantir a propriedade. Reproduzimos, adiante, um trecho que sintetiza
bem tal visão:
64
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p. 257.
65
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p. 258.
66
Referência à Joaquim Nabuco.
26
novos liberais o regime monárquico deveria ser mantido, os positivistas abolicionistas eram
adeptos de uma república de cunho autoritário.
Como podemos verificar, parte da historiografia destacou os traços conservadores dos
liberais da Geração de 1870, tidos frequentemente como “reformistas”. No entanto, Gizlene
Neder67, reconheceu a existência, entre os liberais abolicionistas, de propostas de
fortalecimento da cidadania brasileira (como na área de Educação), embora tenha enfatizado
mais a sua postura legalista e moderada, qualificando seu pensamento de “liberal-
conservador”.
A importância das reformas formuladas – como a agrária – foi, contudo, destacada por
uma outra ala da historiografia, aí se inserindo autores tão distintos entre si como Marco
Aurélio Nogueira e Robert Conrad, que, de modo similar à historiadora Suely Queiroz68,
classificou as propostas dos liberais abolicionistas de “revolucionárias69”. Em diversos
momentos o brasilianista valorizou o conteúdo do programa liberal, como aquele formulado
em 1869, logo após a crise gerada pela queda do Ministério Zacarias de Góes. Conrad
apontou, entre os anseios dos liberais da década de 80, a reforma agrária, destacando, nesse
sentido, a ação do senador baiano Manoel Pinto de Souza Dantas (1831-189470). Atuando
como Presidente do Conselho de Ministros entre 1884 e 188571, o senador foi um defensor do
estímulo à pequena propriedade e sua ação como chefe do Executivo contribuiu, segundo o
pesquisador, para a inclusão de medidas agrárias no projeto original daquela que veio a se
tornar a Lei dos Sexagenários72.
A ascensão de Manoel Dantas à presidência do Conselho de Ministros, em 1884, foi
saudada com entusiasmo pelos abolicionistas, de acordo com Conrad. Diversas vezes
deputado geral entre 1857 e 1881, Dantas também já havia assumido antes os ministérios da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas (1866-1868), da Justiça (1880-1882), do Império
(1881-1882), da Fazenda (1884-1885) e dos Negócios Estrangeiros (interino, entre 1884 e
67
Cf. NEDER, Gizlene. Os compromissos conservadores do liberalismo no século XIX. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
68
Cf. QUEIROZ, Suely R. Reis de. A abolição da escravidão. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.90-92.
69
Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, capítulo 10,
p. 192.
70
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “Manuel Pinto de Souza Dantas”, in: Dicionário do Brasil Imperial, coordenado por
Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.517-518. Situaremos as datas correspondentes a outras figuras históricas
ao longo do trabalho, tendo como referência principal o Dicionário Imperial. No entanto, não sendo esse um dos objetivos
principais do trabalho e não dispondo aqui do devido tempo necessário para poder pesquisar e fornecer as datas de todas as
pessoas mencionadas, nós forneceremos apenas as datas correspondentes a algumas personalidades, de preferência as que
tiveram mais influência nos temas abordados nesta pesquisa.
71
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.671.
72
Cf. CONRAD, Robert. op.cit., capítulo 14, p.260.
27
73
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete “Manoel de Souza Dantas”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002, p. 517.
74
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 4, p. 307.
75
Conrad (1975) assinalou um aspecto pouco divulgado da reação à versão original da Lei dos Sexagenários, ao lembrar que
a libertação dos escravos sexagenários provocaria a libertação de muitos escravos mais jovens, pois muitos haviam tido sua
idade aumentada nos registros oficiais pelos senhores, que desejavam burlar a Lei anti-tráfico de 1831, que previa a
libertação de todo africano desembarcado no Brasil a partir daquela data. Cf. Os últimos anos da escravidão no Brasil. op.
cit., capítulo 14, p. 261.
76
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 14, p. 256.
77
No final dessa pesquisa, inserimos junto aos anexos a íntegra da Lei dos Sexagenários.
78
Cf. LOURENÇO, Fernando Antônio. Agricultura Ilustrada: Liberalismo e escravismo nas origens da questão agrária
brasileira. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001.
28
despeito de seu sentido conservador, tal artigo não deixava de representar algum tipo de
concessão às idéias de expansão da pequena propriedade. Quanto ao Senador Dantas, este
continuou, após a sua saída do governo, a advogar a necessidade de uma redistribuição da
terra, conforme observaremos no quarto capítulo.
Longe de serem supérfluas, as reformas advogadas pelos liberais abolicionistas como
Nabuco teriam tido condições de modificar substancialmente a sociedade brasileira, que
assistia à progressiva deterioração do regime escravista. Nogueira classificou de
revolucionárias as propostas de liberais como Nabuco, vendo nelas um avanço real e uma
articulação com o que ele chamou de “revolução burguesa”. Esta estaria em curso no Brasil
daquele momento, com a desestruturação do sistema escravista e a influência crescente do
capitalismo. E, ainda segundo Conrad, o programa liberal voltado para a reestruturação do
sistema fundiário recebeu apoio de diversas personalidades, como Joaquim Serra, tendo a
reforma agrária sido pedida na imprensa e em reuniões públicas79. O fato de André Rebouças
e Joaquim Nabuco terem sido enfáticos defensores de uma política de democratização do solo
constitui umas das razões pelas quais nós analisaremos, no item seguinte, os projetos
esboçados pelos dois líderes, que sintetizaram bem a crítica ao latifúndio improdutivo e a
necessidade de uma “Lei agrária” (Nabuco) ou uma “Democracia Rural” (Rebouças). Um
estudo da atuação desses dois destacados liberais e monarquistas convictos – tendo os dois,
inclusive, pertencido a famílias com tradições monarquistas -, pode nos ajudar a melhor
apreender o reformismo agrário dos novos liberais, de maneira que se esclareçam os traços
progressistas e conservadores que possa ter tido.
A atuação de André Rebouças foi analisada por diferentes autores, seja no quadro de
um estudo sobre o movimento liberal e abolicionista (caso de Ângela Alonso), seja na
caracterização do abolicionismo como um todo (Robert Conrad) ou de uma pesquisa voltada
especificamente para sua trajetória. Neste último caso, assinalamos os nomes de Joselice Jucá,
79
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 10, p.197.
29
Maria Alice Rezende de Carvalho, Sidney dos Santos e Andréa Pessanha. José Augusto
Pádua, por sua vez, estudou as idéias do engenheiro dentro de uma pesquisa focando a crítica
ambiental sob o regime escravista, enquanto que Ricardo Salles, ao abordar a vida de Joaquim
Nabuco, comentou aspectos da ação de Rebouças, de quem Nabuco era grande amigo. O
perfil que traçaram do engenheiro é, de um modo geral, o de um reformador social, com
idéias avançadas, indo muito além da simples abolição da escravatura.
André Pinto Rebouças nasceu em 13 de janeiro de 1838 na cidade de Cachoeiras,
Província da Bahia80. Era filho de Antônio Pereira Rebouças (1798-188081) e de Carolina
Pinto82. O pai, mulato que ascendeu socialmente sob a Monarquia, tendo se tornado um
advogado de grande prestígio, além de ter participado ativamente da política, era filho do
português Gaspar Pereira Rebouças e da negra – provavelmente forra - Rita Basília dos
Santos83. Dentre os irmãos de Antônio, um, José, destacou-se como músico, enquanto que
Manuel Maurício tornou-se médico de prestígio, tendo recebido o título de Cavaleiro da
Imperial Ordem do Cruzeiro e o cargo honorífico de conselheiro do Império84. De acordo com
Maria Alice Rezende de Carvalho, Antônio Pereira Rebouças pertencia a uma camada mestiça
urbana ascendente na Bahia das primeiras décadas do século XIX, composta de clérigos,
militares, comerciantes e que se consolidou após a expulsão de portugueses de uma série de
cargos locais, quando da luta pela Independência85. A carreira de Antônio foi marcada pela
defesa dos direitos civis da população de cor, tendo demonstrado um forte sentimento
monárquico em diversas ocasiões, como na Bahia em 1837, quando contribuiu para a defesa
do governo monárquico e centralizador, frente ao republicanismo do levante conhecido por
Sabinada86. Também é importante lembrar o apoio dado pelo jurista, anos antes, ao Imperador
Dom Pedro I (1798-183487), inclusive durante o período de afirmação da Independência. O
seu liberalismo, contudo, era do tipo moderado, respeitando sempre, por exemplo, o direito de
propriedade. Não obstante, seu perfil de monarquista liberal e de abolicionista deixou marcas
profundas no filho André88, que tinha pelo pai grande veneração.
80
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as idéias de André Rebouças.
Rio de Janeiro, Belford Roxo: Quartet, 2005, capítulo 1, p.25.
81
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “Antônio Pereira Rebouças”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002, p. 54-55.
82
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.25.
83
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O Quinto Século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Revan, IUPERJ- UCAM, 1998, capítulo 1, p. 65.
84
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 1, p.66.
85
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 1, p.68.
86
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 1, p. 69.
87
Cf. NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Verbete: “D. Pedro I”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva,
2002, p. 194-198.
88
Cf. JUCÁ, Joselice. André Rebouças - Reforma & Utopia no Contexto do Segundo Império: Quem possui a Terra possui o
Homem. Rio de Janeiro: Odebrecht, 2001, capítulo 1, p.22.
30
89
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 1, p.25.
90
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op.cit., capítulo 2, p.82. A Escola Militar, segundo a autora, na prática se
dividia em duas escolas: a escola situada no Largo de São Francisco e a Escola da Fortaleza de São João, na Urca, mudada
em 1857 para a Praia Vermelha. As escolas forneciam uma formação com grande ênfase dada às ciências exatas, sendo que
em 1874 a Escola do Largo de São Francisco foi desvinculada da administração militar.
91
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 2, p.84.
92
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 1, p.26.
93
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit.. capítulo 1, p.26.
94
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.27.
95
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.27.
96
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.28.
97
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.28.
31
vez que seus projetos de reforma agrária incluíram tanto trabalhadores europeus quanto
brasileiros, conforme será visto mais adiante. Por outro lado, já naquele período, Rebouças,
segundo Carvalho, concebia a política de atração de “imigrantes espontâneos” de uma forma
diversa daquela adotada pelo governo imperial e pelos saquaremas. Para o governo ela teria
um interesse fundamentalmente estratégico e defensivo – daí a fixação de açorianos em áreas
do Sul, e de suíços e alemães nas serras próximas ao Rio de Janeiro -, enquanto que os
conservadores, em seu programa agrário, viam a venda de terras devolutas aos imigrantes
“espontâneos” como uma forma de ampliar a base fiscal do Estado, revelando com isso uma
visão imediatista98. Rebouças pregava uma associação entre o povoamento e a propriedade
privada99; valorizava a importância do imigrante-proprietário como agente de defesa, além de
gerador de prosperidade para o país, como examinaremos em outro momento.
Em 1864, André Rebouças regressou ao Rio de Janeiro100 e, quando da Guerra do
Paraguai, que teve início no final daquele ano, desempenhou funções no ramo de engenharia
militar101. Sua experiência de guerra – encerrada em 1866, após contrair pneumonia e retornar
ao Rio102 – estimulou nele um forte sentimento antimilitarista103. Rebouças, com efeito,
descreveria em tom antipático as guerras, de um modo geral, como sinal de atraso e de
barbárie. Não por acaso, quando da formulação de suas propostas sociais, defenderia sempre a
evolução através de meios pacíficos, evitando-se todo tipo de conflito armado.
Após a guerra, André se firmou como empresário, adquirindo um perfil de
empreendedor e de capitalista, participando de importantes obras de infra-estrutura do Rio de
Janeiro. Teve atuação destacada como diretor da Companhia das Docas de Alfândega do Rio
de Janeiro, onde ele empenhou-se pela modernização do porto. “(...) O desempenho de André
à frente da Companhia das Docas de Alfândega do Rio de Janeiro, assim como de outras
atividades, no início da década de 70, caracteriza sua postura de capitalista”. (JUCÁ, 2001,
p.30).
Ao longo de suas atividades, encontrou importantes obstáculos, fruto da discórdia de
políticos de renome, como Zacarias de Góes e Vasconcellos104. Naquele momento, percebe-se
que o engenheiro estava mais ligado às atividades empreendedoras, que ajudariam a moldar a
sua visão social, defensora do modelo do selfmade man, proveniente dos Estados Unidos, país
98
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 2, p.97.
99
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 2, p.97.
100
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 2, p.101.
101
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.28.
102
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.29.
103
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit, capítulo 1, p.25.
104
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit., capítulo 1, p. 31.
32
que visitou em 1873, em seguida à Europa105. Também nos anos 70 o engenheiro passou a
escrever artigos em jornais. No final da década, com a irrupção do movimento abolicionista,
Rebouças passaria a desempenhar um papel chave, assumindo função de destaque enquanto
propagandista da causa. Em 1880, o engenheiro – nomeado naquele ano Professor da Escola
Normal – participou da fundação, junto com Joaquim Nabuco, da Sociedade Brasileira Contra
a Escravidão106. Rebouças e Nabuco vieram a se tornar grandes amigos, participando de
numerosas atividades anti-escravistas e compartilhando de idéias semelhantes em relação à
modificação da estrutura fundiária do Império.
Em 1883 o engenheiro participou com Alfredo Taunay da criação da Sociedade
Central de Imigração e, com José do Patrocínio, da Confederação Abolicionista107. Sem se
destacar como orador – ao que parece, não gostava de falar para grandes platéias108 -, ele
exerceu, não obstante, papel de grande importância no movimento, chamando a atenção,
inclusive, para o problema agrário. Em seus artigos, ele fundamentava suas idéias com base
não em argumentos puramente filantrópicos, mas sim em ampla bibliografia e em experiência
adquirida no exterior, abordando temas como a estrutura da posse da terra e o
desenvolvimento de métodos agrícolas109. Abordaremos, em seguida, o pensamento agrário de
Rebouças, focalizando suas propostas reformistas para o setor.
Ainda que a maior parte das atividades de André Rebouças como abolicionista e
contestador social tenha se dado na década de 1880, já nos anos 70 ele comungava de uma
série de idéias críticas em relação à ordem social, então marcada pelo predomínio político dos
grandes proprietários rurais, pela estreiteza do sistema político-eleitoral, pela escravidão e por
uma intensa concentração fundiária. Conforme visto, já na década de 60 ele expressou um
ponto de vista crítico em relação a determinados aspectos da realidade brasileira. Na década
de 1870 – um período em que questões como as da transição do escravismo para o
capitalismo e a da utilização da mão-de-obra emergiram com mais força -, o engenheiro,
105
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit, capítulo 1, p. 35.
106
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 10, p. 185.
107
Cf. CONRAD, Robert. op. cit. , capítulo 10, p.189.
108
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 1, p.41.
109
Cf. PESSANHA Andréa Santos. op.cit., capítulo 1, p.42.
33
110
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 4, p.102.
111
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 3, p.143.
112
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op.cit., capítulo 5, p. 205.
113
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit.,p.171-177.
34
Brasil nas décadas finais da Monarquia. A idéia da extensão da propriedade da terra a uma
ampla parcela da população perpassa o livro que, bem como os estudos sobre Rebouças
empreendidos por alguns autores, servirá de referência para situarmos as características
principais de sua proposta de reforma agrária.
Tido como um “conservador progressista” por Joselice Jucá114, Rebouças foi estudado,
muitas vezes, como defensor de idéias avançadas para a época, com muitas sugestões de
atualidade, conforme ressaltado, por exemplo, por Sidney Santos. Sua abordagem da
problemática rural foi descrita como sendo de uma atualidade marcante, como se pode
perceber pela leitura dos textos de Andréa Pessanha e de José Augusto Pádua. Muitos
alertaram para o fato de, até hoje, a “subdivisão do solo”, como pregavam Rebouças e
diversos abolicionistas, não ter sido ainda efetivada. A proposta agrária de Rebouças,
conforme lembrado por Pessanha e por Santos, entre outros, inseria-se num amplo leque de
reformas sociais, que incluiriam o apoio à Educação, cujo acesso às camadas marginalizadas –
os libertos, os imigrantes e os trabalhadores pobres do campo – seria franqueado. Andréa
Pessanha destacou o evolucionismo social de Rebouças, como um fator importante para se
apreender suas idéias reformistas. Muito em voga no final do século XIX, o evolucionismo
social – que tinha em Spencer uma de suas referências centrais – acreditava numa igualdade
humana, em termos biológicos, mas, ao mesmo tempo, haveria uma escala evolutiva, em que
se distinguiriam povos evoluídos e outros mais atrasados. Os povos evoluídos, no caso,
seriam os povos europeus, estando as diversas nações – como as tribos africanas – em nítido
atraso. Constatava-se a idéia de uma superioridade da civilização ocidental, que Rebouças,
fortemente impregnado de um sentimento pró-Europa, parecia endossar. Apesar de no caso
dos chineses115 ele ter adotado uma postura darwinista – baseada na idéia de desigualdade
biológica entre as raças, nesse caso entre os ocidentais e os “chins”-, de um modo geral, em
relação a negros e a brancos a sua postura pode-ser identificada como evolucionista. Dentro
desta perspectiva, as reformas sociais por ele preconizadas auxiliariam, de modo decisivo, no
adiantamento da raça africana, após séculos de escravidão e de barbárie. O acesso à
propriedade rural, bem como à Educação, fariam parte desse programa, em que, no final, tanto
os negros como os brancos estariam no mesmo patamar.
114
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit., capítulo 4, p. 119.
115
Nas últimas décadas da Monarquia, foram formulados projetos de imigração de trabalhadores chineses, os “chins” ou
“coolies”, como forma de garantir um trabalho semi-servil para os fazendeiros de café. Os projetos terminaram sendo
rejeitados. Cf. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998,
capítulo 3, p. 184-188.
35
A questão agrária, de acordo com Joselice Jucá, constituía um dos centros da visão
social de Rebouças, por ela mais identificado com o tema do que Joaquim Nabuco. Enquanto
para ela o pernambucano era, sobretudo, um abolicionista - ainda que imbuído de uma visão
reformista da fase pós-abolicionista116-, Rebouças, para ela, era um “reformador social no
sentido de defender a implementação de uma reforma agrária, i.é, a eliminação do antigo
sistema da posse da terra associado à escravidão117”.
Examinemos agora as características principais do que André Rebouças chamou de
“Democracia Rural”. Rebouças vislumbrava o acesso à propriedade rural em termos não
apenas econômicos e sociais, mas também morais. Era como se esta transformasse o ser
humano, num sentido positivo. Em suas palavras: “Mas é na verdade singular: ser
proprietário, e sobretudo ser proprietário de terra, é uma circunstância que quase modifica
favoravelmente as condições morais do homem!118”.
Para Maria Alice Rezende de Carvalho, a concepção de propriedade de Rebouças
possuía uma conotação expansiva, vendo nela a possibilidade de garantir ao proprietário a
maior expansão de suas faculdades e associando-a aos ideais de paz, de justiça e de
equidade119. A natureza expansiva da propriedade levaria, no limite, à igualdade e aí a autora
chegou a perceber um ponto de aproximação entre Rebouças e o proudhonismo maduro. O
ponto de ligação se daria com a concepção de Proudhon da propriedade privada como um
freio ao crescente poder do Estado: ao absolutismo do Estado, opor-se ia um outro
absolutismo, o da propriedade privada120. Não devemos a partir daí, contudo, concluir por
uma identificação entre Rebouças e idéias anarquistas e socialistas e de esquerda em geral.
Embora mais de um ponto de convergência possa ser encontrado com o pensamento
esquerdista – a começar pela veemente crítica ao monopólio da terra -, seus projetos
reformistas mantinham uma forte sintonia com o espírito liberal e capitalista, conforme
abordado mais a frente.
Para o engenheiro, a aquisição de um pedaço de terra era “o limite das aspirações do
escravo121”. É interessante, também destacarmos uma citação do economista Joseph Garnier,
que ele acrescentou em um trecho de seu livro Agricultura Nacional: «Le moyen le plus
efficace et le plus énergique pour civilizer les barbares, ou semi-barbares de l’ Europe, de l’
116
Cf. JUCÁ, Joselice. In: REBOUÇAS, André. Agricultura Nacional, p. XII.
117
Cf. JUCÁ, Joselice. In: REBOUÇAS, André. op. cit., p. XII.
118
Cf. REBOUÇAS, André. Agricultura Nacional, p. 125.
119
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op.cit., capítulo 3, p. 157.
120
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 3, p.157.
121
Cf. REBOUÇAS, André. op.cit., p.125.
36
Afrique, de l’Amérique et de l’Asie, pour émanciper les serfs et les esclaves, consiste à leur
constituer une propriété foncière individuelle122.».
Fica nítida, aí, a influência do evolucionismo social, conforme analisado por Andréa
Pessanha. A aquisição de um lote, nesse caso, contribuiria e muito, para a “civilização” dos
povos incultos, junto com a extensão da Educação. Outro ponto importante é o caráter
inclusivo do seu projeto agrário, que beneficiaria tanto os libertos, como os imigrantes e os
trabalhadores pobres do campo. Era ele um ardoroso defensor da imigração, mas, ao contrário
de muitos dos chamados “imigrantistas”, como o médico e biólogo francês Louis Couty
(1854-1884123), não desvalorizava o trabalho dos libertos e dos demais brasileiros pobres.
Rebouças preocupava-se em garantir um uso racional e produtivo do solo e por isso
mesmo criticava veementemente o parasitismo de muitos latifundiários. Voltava-se contra os
grandes proprietários que deixavam parcelas imensas do solo sem qualquer uso produtivo,
enquanto que milhares de famílias permaneciam na pobreza, desprovidas de qualquer rasga de
terra. O parasitismo dos latifundiários – aos quais comparou com os landlords da Irlanda – era
por ele considerado algo absurdo e causa de grande prejuízo para a nação, ele que valorizava a
iniciativa individual e o trabalho. Este último traço, inclusive, ajuda a explicar a sua idéia de
que os lotes, quando do parcelamento da terra, não deveriam ser simplesmente doados124.
Mesmo nos casos em que previu uma desapropriação, como no caso de terrenos marginais a
estradas de ferro, estes deveriam ser vendidos – no caso, aos imigrantes. Em sua visão, o
trabalho e o esforço deveriam sempre ser condições do progresso, por isso os lotes deveriam
ser vendidos ou alugados por um preço justo. Um dos meios de se atingir tal fim seria a
adoção do Imposto Territorial, uma antiga bandeira defendida por diversos parlamentares e
tido por Rebouças como um complemento indispensável à abolição125. O imposto – que
deveria ser calculado sobre a superfície e isentando as pequenas propriedades – estimularia,
dentro da perspectiva do abolicionista, a subdivisão do solo, uma vez que taxaria as
propriedades fundiárias. Pessanha ressaltou o fato de que o cálculo do imposto tendo por base
a superfície possuída e não uma renda líquida tinha por fim viabilizar a cobrança do imposto,
uma vez que havia a dificuldade de se avaliar a renda líquida - que variava anualmente e de
acordo com o tipo de produto explorado - ficando-se na dependência das informações
122
Cf. REBOUÇAS, André. op.cit., p.125.
123
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Verbete: “Louis Couty”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p.490-491.
124
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit, capítulo 4, p.112.
125
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: UFRJ / Relume Dumará, 1996, parte II, capítulo 3, p.321.
37
fornecidas pelos proprietários126. A autora apontou, ainda, outro argumento utilizado por
Rebouças em defesa do imposto: este estimularia também o aperfeiçoamento das culturas, a
drenagem e uma série de progressos técnicos para a agricultura127. Vale lembrar que o
engenheiro demonstrou, em seus escritos, uma preocupação muito forte em relação à
agricultura, enfatizando a necessidade não apenas de uma exploração mais justa e racional do
solo, como também do aumento da produção.
Rebouças esperava - como os demais defensores do imposto - que os proprietários,
uma vez adotada tal medida, terminariam por se desfazer dos lotes ociosos, para não arcar
com o prejuízo de pagarem por terras incultas. De acordo com Rebouças,
O imposto sobre a renda favorece aos ociosos; nada produz; nada paga, ao passo que o
imposto sobre a superfície acoroçoa os diligentes; quanto mais produz menos paga
relativamente; um eterniza a aristocracia, o monopólio e o parasitismo; outro desenvolve a
democracia rural, promove a subdivisão do solo e anima o talento, a iniciativa e o
trabalho128.
Rebouças, de forma minuciosa, expôs vários detalhes das suas propostas agrárias. A
fim de viabilizar logo a cobrança do imposto ele sugeriu, de acordo com Pessanha, que se
tomassem por base, no caso das terras marginais às estradas de ferro, as plantas utilizadas para
a implantação das mesmas; para as demais, deveriam ser considerados os relatórios dos
proprietários. Posteriormente, se fixaria uma carta topográfica semelhante à realidade
agrária129. Ora, conforme lembrado pela autora, era de se esperar que, nas décadas de 70 e 80
já se houvesse efetuado um levantamento das terras brasileiras, seguindo as disposições da
Lei de Terras de 1850. A realidade marcada pela dificuldade de se constituir tal cadastro
territorial do Império vinha confirmar um fracasso da Lei de 1850, que como assinalou José
Murilo de Carvalho, “não pegou130”.
A idéia de Rebouças de incentivar o parcelamento por vias distintas da simples e
“radical” expropriação de terras131 e posterior distribuição de lotes às famílias pode ser
entendida como sendo coerente com sua crença na evolução por meios pacíficos, e nunca
violentos. Tal idéia fica mais evidente se levarmos em conta de que ele não se opunha ao
126
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 4, p.109.
127
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 4, p.109.
128
Trecho publicado na Revista Novo Mundo, página 82, abril de 1879 e reproduzido em Da Abolição da escravatura à
abolição da miséria, de Andréa Santos Pessanha, capítulo 4, p. 109-110.
129
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 4, p. 111.
130
Cf. CARVALHO, José Murilo de. op. cit., parte II, capítulo 3, p.318.
131
Nesse sentido, uma exceção foi a idéia de desapropriação de terras marginais a estradas de ferro, conforme citado mais
acima, mas tal fator não parece negar o conteúdo “moderado” do processo de democratização do solo. Além disso, a
desapropriação dessas terras poderia ser feita com indenização aos proprietários.
38
latifúndio em si; o que ele criticava era o latifúndio improdutivo132, tanto que em seus planos
de reforma ele concebeu um sistema de integração entre latifúndio e minifúndio via sistema
de Engenhos Centrais e Fazendas Centrais, de que nos ocuparemos a seguir.
Segundo Robert Conrad, Rebouças projetou um sistema em que o latifundiário,
conservando uma parte de sua propriedade – ao mesmo tempo em que vastas áreas seriam
vendidas ou alugadas aos trabalhadores rurais -, manteria, em seu centro, um engenho ou uma
usina de processamento, cuja função seria de recolher os produtos – aí incluídos também o
cacau, o fumo e o algodão - para prepará-los para serem exportados, utilizando-se de
modernas técnicas de beneficiamento do produto. Convém lembrar que Rebouças era um
fervoroso adepto do progresso tecnológico e científico, tendo sido membro da prestigiada
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e tomado contato com o mercado internacional
de equipamento. Entusiasta do desenvolvimento científico, ele defendia o favorecimento de
uma agricultura intensiva, rompendo com o modelo extensivo praticado por vários
latifundiários. Também previu ele a instituição de escolas, no centro da propriedade. No
projeto de Rebouças, “as tradicionais safras de exportação continuariam sendo cultivadas nas
propriedades menores133” e, após as colheitas, o produto seria entregue, por um preço justo,
aos proprietários, que então estariam já convertidos em verdadeiros “industriais rurais”. As
unidades em que o produto principal seria o açúcar seriam denominadas de “Engenhos
Centrais”, ao passo que aquelas dedicadas ao café constituiriam as “Fazendas Centrais134”.
Note-se que, nas décadas finais da Monarquia, foram estabelecidos alguns engenhos centrais,
mas seu resultado distanciou-se consideravelmente do ideal de “democracia rural” professado
por Rebouças135, mantendo, em suma, a exploração da força de trabalho, com o predomínio
das usinas. Santos traz à tona a questão de saber se tal programa esboçado por Rebouças -
essa “centralização agrícola”, no dizer do abolicionista – incluiria alguma dose de controle
das atividades econômicas, para em seguida negar qualquer caráter de restrição à iniciativa
individual136. As idéias de democracia rural de Rebouças estiveram sempre, a seu ver,
dissociadas do governo, “cuja intervenção ele execrava”. As autoridades deveriam, sim,
fomentar, estimular as transformações propostas. Conforme assinalou o autor, “Os
estabelecimentos centrais seriam assim resultantes de associações dos próprios produtores,
132
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 4, p.115-116.
133
Cf. CONRAD, Robert. op. cit, capítulo 10, p. 196.
134
Cf. REBOUÇAS, André. op.cit., p. 2.
135
Cf. CONRAD, Robert. op, cit, capítulo 10, p. 196 e Sydney M. G. dos SANTOS. André Rebouças e seu tempo. Rio de
Janeiro, 1985, capítulo 8, p.278.
136
Cf. SANTOS, Sydney M. G. dos. op. cit., capítulo 8, p.279.
39
sem donos plutocratas e muito menos pertencentes aos Governos, como postulariam os
regimes oficiais de esquerda e de direita137”.
Como podemos observar, Rebouças distanciava-se, nas medidas sugeridas, de
fórmulas de intervenção direta e ativa do Estado. Não por acaso, ele abertamente declarava
não ser filiado à doutrina comunista. O capitalismo nascente, que aos poucos penetrava na
sociedade escravista brasileira138, seria, de alguma forma, beneficiado com o plano, que, sem
dúvida, favorecia o fortalecimento de um mercado interno. De acordo com Pessanha (2005,
p.101), “Para ele (Rebouças) mudanças na relação de trabalho e na estrutura agrária
constituíam o motor que impulsionaria o desenvolvimento econômico interno139.”
Pode-se, a partir daí, especular sobre o significado da reforma agrária de Rebouças e
considerar, por exemplo, a hipótese dela se inserir numa perspectiva moderada e capitalista,
num modelo abordado por Paulo Sandroni140. Ainda que a análise deste último se concentre
no século XX, acreditamos que a tipologia de reformas agrárias que ele estabeleceu é bastante
útil para este trabalho, já que, de certa maneira, ela não se prende obrigatoriamente ao século
XX, podendo servir para diversos países e épocas distintas. No estudo de Sandroni, de um
lado, haveria uma perspectiva de reforma tendo em vista, principalmente, o alcance de
objetivos econômicos, visando o próprio fortalecimento do capitalismo. Uma outra reforma
seria a do tipo socialista, com a radical mudança de sistema econômico e social. Ele distinguiu
também uma reforma orientada por um objetivo de fomentar a justiça social, em que
concessões são feitas às classes marginalizadas, mas sem levar a uma mudança profunda que
implicasse a queda do sistema capitalista. Acreditamos que essa perspectiva é a que engloba o
pensamento de André Rebouças.
A reforma planejada por Rebouças pode, em algum sentido, ser interpretada como
tendo uma articulação fundamental com o capitalismo ascendente. Tal afirmação adquire
maior peso ainda se lembrarmos que, dentre os modelos sócio-econômicos aos quais
Rebouças fazia referências, um era o sistema de colonização desenvolvido nos Estados
Unidos naquela época, quando aquele país experimentava uma ascensão vigorosa do
capitalismo, associada à criação de um poderoso mercado interno e ao desenvolvimento
industrial. Uma frase sua é, a esse respeito, reveladora da admiração pelo modelo norte-
americano:
137
Cf. SANTOS, Sydney M. G. dos. op. cit,, capítulo 8, p.279.
138
Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1982.
139
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op.cit., capítulo 4, p.101.
140
Cf. SANDRONI, Paulo. Questão Agrária e Campesinato: a “funcionalidade” da pequena produção mercantil. São Paulo:
Polis, 1980, p.15-22.
40
Devemos ter em mente, ainda, suas atividades capitalistas nas décadas de 60 e 70,
demonstrando forte posicionamento em favor da livre iniciativa como fator impulsionador do
progresso econômico de uma nação. O engenheiro era contra qualquer forma de
protecionismo e monopólios, inclusive, é claro, contra o monopólio da terra. Tanto Maria
Alice Rezende de Carvalho quanto Andréa Pessanha destacaram o perfil empresarial de
Rebouças, ao passo que Sidney Santos lembrou a sua crítica à ação estatal. Já para Robert
Conrad, que abordou o debate sobre o apoio ou não dos industriais ao abolicionismo – e
consequentemente às reformas sociais, como um todo – Rebouças não pode ser apresentado
como um típico representante desses grupos, mesmo porque, segundo ele, não se pode falar
em apoio expressivo dos setores industriais da época à causa abolicionista (e
conseqüentemente, podemos supor, à reformas complementares, como a do sistema agrário).
Ao assim proceder, Conrad, de alguma forma, dissociou o reformismo de Rebouças de uma
postura mais conforme aos interesses do incipiente setor industrial da época142. Embora isso
não signifique afirmar que o Rebouças social fosse desvinculado do Rebouças capitalista,
abre-se margem, aí, para se pensar na visão de Rebouças como algo mais do que uma simples
ideologia pró-capitalista. Sydney Santos destacou a ênfase dada por Rebouças à caridade e ao
altruísmo143, o que remete a uma visão generosa da sociedade, longe de se basear unicamente
em critérios econômicos. É certo que ele era um liberal convicto, que citava em seus textos
autores como Adam Smith e François Quesnay144, além de admirar o fisiocrata Turgot145. No
entanto, se formos analisar o liberalismo exposto por Smith e propagado ao longo do século
XVIII e, em menor medida, no século XIX, iremos notar que, conforme assinalou Pierre
Rosanvallon, a defesa da economia liberal possuía uma conotação mais ampla e profunda146,
141
Cf. REBOUÇAS, André. Gazeta da Tarde, 1º de dezembro de 1880. In: PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da
escravidão da miséria à abolição da miséria: a vida e as idéias de André Rebouças, p.108.
142
Cf. CONRAD, Robert. op.cit., capitulo 9, p. 179. “(...) Sua antipatia pela grande propriedade agrícola não pode ser
explicada por uma aliança com industriais e capitalistas, muitos dos quais eram proprietários de grandes fazendas,
investidores em estradas de ferro e fábricas de têxteis. (...)”.
143
Cf. SANTOS, Sidney M.G. dos. op.cit., capítulo 8, p. 353.
144
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 3, p. 93.
145
Cf. SANTOS, Sidney M. G. dos. op. cit., capítulo 5, p. 125.
146
Cf. ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da idéia de mercado. Tradução Antônio Penalves Rocha.
SP: EDUSC, 2002.
41
indo muito além da conotação técnica e penetrando na esfera da moral. Não à toa, muitos
defensores do livre comércio no século XVIII, num contexto ainda marcado pelo predomínio
do absolutismo e do mercantilismo na maior parte da Europa, ao professarem tais idéias
revestiram-se de um caráter que hoje classificaríamos de “progressista”. Ora, André Rebouças
escreveu num contexto nacional ainda marcado pela manutenção de estruturas coloniais
arcaicas, das quais a escravidão representava o principal aspecto. Liberalismo, dentro desse
quadro, não necessariamente possuía a conotação que veio a ter posteriormente, de sistema
eminentemente preocupado com o florescimento do capitalismo e com o pouco interesse
acordado às questões sociais.
Tais considerações possibilitam apreender as propostas sociais de André Rebouças –
e, portanto a reforma agrária – dentro uma lógica em que o seu liberalismo, por mais
articulado que estivesse com o capitalismo ascendente, incluía uma preocupação social
sincera e forte. Alguns autores o descrevem como sendo partidário de um “liberalismo
social”, traço que, segundo Carvalho e Pessanha, caracterizou seu pensamento durante a
década de 70. Naquela década, o engenheiro apostou num modelo de progresso baseado
primordialmente na ação dos indivíduos e numa espécie de economia moral, onde o
empreendimento, o esforço individual e a dignificação do interesse impulsionariam a
renovação da sociedade. Rebouças - que segundo Maria Alice Rezende de Carvalho defendia
um “proudhonismo de ocasião147” - rejeitava então uma direção estatal das reformas, remando
contra a maré da nova geração dos liberais, partidários da atuação de um Estado reformista. A
autora lembrou que o engenheiro chegou a admitir, nos anos 70, a idéia de República,
contanto que construída sobre uma base de democracia rural148 – caso contrário, em sua
opinião seria preferível uma “Monarquia popular e democrática”, idéia que abraçaria com
força nos anos 80. A evolução de Rebouças rumo a uma ótica mais estatista começaria,
porém, ainda na década de 70. Nas palavras de Carvalho,
Podemos indicar como causa de tal evolução sua percepção de que a realidade
brasileira, marcada pela persistência de uma série de arcabouços arcaicos – como a escravidão
147
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op.cit., capítulo 3, p. 157.
148
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op.cit., capítulo 4, p. 170.
42
149
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p.258.
150
Cf. REBOUÇAS, André. Agricultura Nacional, p. 30.
151
Cf. REBOUÇAS, André. op. cit., p. 306.
43
jacobinismo revolucionário francês do final do século XVIII compartilhou de uma idéia bem
parecida, tendo Saint-Just associado a liberdade do cidadão ao acesso deste a um lote de
terra152. Aí, como no caso dos positivistas, observamos a existência de semelhanças entre a
visão agrária de Rebouças com a de grupos distintos de sua corrente teórica, inclusive
antagônicos em mais de um aspecto.
A sua declarada adesão aos princípios liberais também nos leva a considerar que seu
apelo ao Estado não deve ser confundido com um incentivo ao governo autoritário (à maneira,
por exemplo, dos positivistas). Ou, dito de outra forma: se havia alguma dose de cesarismo no
apelo de Rebouças ao monarca, isso teria se dado não por uma questão de ideologia, mas por
um fator circunstancial: dada a realidade brasileira da época, o Imperador teria sido
interpretado como o agente mais eficiente a poder fazer frente à reação “aristocrática-
fundiária” denunciada por Rebouças em seus artigos.
Das diversas análises feitas sobre André Rebouças, permanece a imagem de um
abolicionista avançado, embora moderado nos meios, e monarquista convicto. Embora em
alguns estudos a radicalidade de suas idéias possa permanecer oculta, diante de posições que
atribuem ao abolicionismo um caráter essencialmente conservador, estudiosos de sua
trajetória, como Maria Alice Rezende de Carvalho, admitem o conteúdo progressista de seu
projeto. José Augusto Pádua, num trabalho voltado para os teóricos da crítica ambiental no
Brasil monárquico, valorizou a visão de Rebouças: para o autor, o engenheiro defendia a idéia
de que a reforma agrária seria um ponto de partida para uma transformação da agricultura,
que deixaria de ser predatória e com isso nociva ao ambiente. Observa-se aí um aspecto
singular, o de que seu programa possuía um alcance não apenas social e econômico, mas
também ambiental, um aspecto, portanto, de uma atualidade flagrante. Robert Conrad,
igualmente, descreveu em termos bastante positivos o programa defendido pelos
abolicionistas como Rebouças, independentemente da opção pela via legal de luta pelas
reformas. Enfim, se por um lado é possível vermos nas propostas agrárias de Rebouças uma
influência direta da ideologia liberal-capitalista, também podemos vislumbrar nelas uma boa
dose de generosidade e de uma preocupação moral e altruísta, de cuja sinceridade acreditamos
não haver motivos para se suspeitar.
152
Cf. DUBY, Georges e MANDROU, Robert. Histoire de la civilisation française. 2. XVIIe siècle- XXe siècle. Paris :
Armand Colin Éditeur, 1984, parte III, capítulo 13, p. 207.
44
153
Cf. PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: a Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Editora do Museu
da República, 2005, capítulo 2, p. 29.
154
Cf. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um Pensador do Império.
155
Cf. PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: a Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Editora do Museu
da República, 2005, capítulo 2, p. 29.
156
Cf. GRINBERG, Keila. “José Thomas Nabuco de Araújo”, in: Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Direção:
Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.446-447.
45
tornar Senador do Império, seu avô paterno tomou assento na Câmara dos Deputados na
década de 1820. Sua mãe, por outro lado, pertencia uma antiga família de Pernambuco, sendo
sobrinha do Marquês do Recife157. Joaquim Nabuco inseria-se, assim, numa camada social
prestigiada, descendente de senhores de engenho. Seu caráter aristocrático seria destacado por
vários estudiosos e de fato, do ponto de vista cultural, ele não renegaria essa filiação,
mantendo o vínculo com os salões e adotando valores europeizados da alta sociedade
(especialmente na área da literatura e da política).
Logo após o nascimento de Joaquim, Tomás Nabuco de Araújo foi eleito novamente
deputado-geral, indo então residir no Rio de Janeiro. Como o filho era muito pequeno, a mãe
achou mais prudente confiá-lo aos cuidados dos tios e padrinhos Ana Rosa Falcão e Joaquim
Aurélio de Carvalho158. Na prática, o menino Nabuco foi cuidado, em seus primeiros anos,
pela tia, já que o padrinho falecera pouco tempo depois. O futuro político cresceu, desse
modo, nas terras do Engenho Massangana, tendo esse período de sua vida lhe causado
profundas impressões, segundo ele escreveu em Minha Formação.
Após o falecimento da tia, em 1857, o jovem Nabuco passou a residir com os pais no
Rio de Janeiro159, entrando em contato também com seus quatro irmãos (Sizenando, Rita de
Cássia, Vitor e Maria). De acordo com Maria Emília Prado, os doze anos seguintes foram
decisivos para que Nabuco se identificasse como liberal. Observa-se, nesse ponto, uma
influência do pai, por quem, aliás, Nabuco nutriu um profundo respeito e admiração. O
Senador Tomás Nabuco de Araújo havia pertencido ao Partido Conservador, mas, como
dissidente, optara por aderir ao Partido Liberal, do qual veio a se tornar um de seus mais
proeminentes líderes. Nabuco de Araújo manifestara idéias liberais em diversos momentos,
tendo exercido papel fundamental para o cumprimento da Lei Eusébio de Queiroz. Em outros
momentos, o político manifestou-se favorável à reforma agrária160.
Entre 1859 e 1860, Joaquim Nabuco freqüentou um colégio em Nova Friburgo, onde
teve aulas com o Barão de Tautphoes161, de quem se tornaria grande amigo mais tarde. O
barão teria exercido uma influência importante no pernambucano, contribuindo, por exemplo,
para a admiração pela Inglaterra, que se tornaria uma das marcas do líder abolicionista.
Também lhe teria passado certa visão crítica do Brasil, conscientizando Nabuco da fraqueza
do auto-governo no país. Após a estada em Friburgo, Nabuco foi matriculado no tradicional
157
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 2, p.29.
158
Cf. PRADO, Maria Emília, capítulo 2, p. 29.
159
Cf. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: Um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, parte I, capítulo 1,
p.34.
160
Cf. RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil, p. 68.
161
Cf. PRADO, Maria Emília. op.cit., capítulo 2, p.32.
46
Colégio Pedro II, na Corte, onde o barão passou a lecionar162. Nos anos de convivência com o
pai, Joaquim Nabuco pôde entrar em contato com liberais destacados que frequentavam sua
casa163, como Teófilo Ottoni e Tavares Bastos, autor de planos progressistas como a reforma
agrária.
Nabuco freqüentou, entre 1866 e 1870, as faculdades de Direito de São Paulo e de
Recife164. Ao longo dos anos de estudo, conviveu com pessoas como Castro Alves e Ruy
Barbosa, que acabariam se tornando importantes abolicionistas - e, no caso de Barbosa, seu
correligionário. Naquele período o pernambucano começou a escrever em jornais, como A
Reforma, defendendo posições abolicionistas165. Juntamente com Castro Alves e outros, ele
chegou a fundar um jornal, Independência, em que questões como a da emancipação e a da
imigração eram abordadas166. Iniciou a escrita de um livro, A escravidão, que, no entanto,
nunca foi concluído. No texto, o autor denunciava os malefícios do sistema escravista e
afirmava que ele “impedia o direito à propriedade, uma vez que os escravos se encontravam
impossibilitados de ser possuidores dos seus próprios corpos167”. Nabuco, que como
Rebouças chegou a inclinar-se pelo republicanismo, entrou em contato com as idéias de
Bagehot, banqueiro inglês que expôs concepções favoráveis à monarquia parlamentar e que
contribuíram fortemente para a opção de Nabuco pela monarquia. De acordo com o próprio
Nabuco,
A idéia principal que recebi de Bagehot foi essa da superioridade do gabinete inglês sobre o
sistema presidencial norte-americano: por outra, que uma monarquia secular, de origens
feudais, cercada de tradições e formas aristocráticas, como é a inglesa, podia ser um governo
mais direto e imediatamente do povo do que a República168.
162
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 2, p.33.
163
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 2, p.34.
164
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife – Eleições de 1884. Introdução e cronologia de Manuel
Correia de Andrade. Brasília: Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 28-29.
165
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte I, capítulo 1, p.35-36.
166
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 2, p. 36.
167
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 2, p.39.
168
Cf. NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Editora: Ediouro, 1990, capítulo 2, p. 31.
169
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte I, capítulo 1, p. 53.
170
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte I, capítulo 1, p.54;
47
1887. De outro, aprofundou seu gosto pela cultura européia e consolidou seu monarquismo,
tendo conhecido de perto o modelo inglês de governo de gabinete. Tal opção não se
desmentiu quando de sua estadia nos Estados Unidos entre 1877 e 1878, quando foi nomeado
adido da legação diplomática brasileira em Washington171. Pelo contrário, criticou o sistema
político americano, considerando que a república norte-americana era menos democrática, na
prática, do que a monarquia britânica.
Ao retornar ao Brasil, Nabuco ingressou na política, conseguindo – graças ao apoio de
políticos ligados ao pai – eleger-se para a legislatura de 1879, como membro do Partido
Liberal172. Naquele ano, iniciou, junto com Jerônimo Sodré e outros, a luta parlamentar pela
abolição da escravidão. Até então defendida principalmente em termos da adoção de medidas
graduais – de que foi exemplo a Lei de 28 de Setembro de 1871 – a extinção do cativeiro
passou a ser defendida com maior força e dentro de uma perspectiva de curto ou - no máximo
- médio prazo. Em 1880, Nabuco apresentou um projeto ao Parlamento de abolição gradual da
escravidão, no qual incluiu a criação de colônias agrícolas para libertos173, conforme veremos
mais adiante. Ativo abolicionista, foi em um dos salões de sua família que foi fundada em 7
de setembro de 1880 a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão174. Ao longo da década,
tornou-se grande amigo de André Rebouças, mantendo contato também com José do
Patrocínio e diversos outros abolicionistas, como Alfredo Taunay, conhecido defensor da
imigração. Tendo sido derrotado nas eleições de 1881, Nabuco seguiu para Londres, onde
permaneceu por três anos175. Durante a estadia, escreveu o livro O Abolicionismo, síntese
teórica do abolicionismo e que continha, ainda que muitas vezes de forma não aprofundada,
propostas de reformas sociais mais amplas. Em 1884, após uma acirrada disputa eleitoral,
venceu as eleições para o Parlamento176, dedicando-se, nos últimos anos antes da queda do
Trono, à propaganda abolicionista, com artigos e conferências, além dos discursos
parlamentares. Através do estudo de textos e discursos seus se pode perceber a existência de
um Nabuco engajado numa reforma profunda da sociedade brasileira, considerando a reforma
agrária como uma das medidas essenciais para atingir tal fim. Foi uma fase de sua vida em
que, segundo Marco Aurélio Nogueira, ele se caracterizou fundamentalmente por ser um
171
Cf. PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: A Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Museu da
República, 2005, capítulo 2, p.47.
172
Cf. PRADO, Maria Emília. Joaquim Nabuco: A Política como Moral e como História. Rio de Janeiro: Museu da
República, 2005, capítulo 3, p.54.
173
Cf. MACHADO, Humberto e SANTOS, Cláudia Regina Andrade dos. Verbete “Abolicionismo”, in: Dicionário do Brasil
Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.19.
174
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 3, p.67.
175
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte I, capítulo 2, p.84.
176
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 14, p. 266.
48
liberal avançado, na “vanguarda da revolução burguesa” que estaria em curso no país. Iremos
em seguida abordar o programa reformista de Nabuco.
As idéias sociais de Joaquim Nabuco podem ser apreendidas, em grande parte, através
da leitura de seu clássico O Abolicionismo, de discursos no Parlamento e, especialmente,
através do registro de seus discursos de campanha eleitoral no Recife em 1884. Muito de sua
visão agrária foi, inclusive, melhor exposta nos discursos, mais até do que em seu livro de
1883. A importância deste último se deu, sobretudo, pela base teórica que proporcionou ao
movimento abolicionista. Pode-se afirmar que o essencial da proposta de Nabuco de reforma
fundiária foi esboçado no livro177, ainda que nele o autor não tenha apresentado maiores
detalhes de seu programa agrário. Em O Abolicionismo, porém, encontramos as chaves para
se compreender todo o alcance de suas idéias reformistas. No livro, ficou muito clara a forma
como Nabuco e muitos outros abolicionistas conceberam o abolicionismo, que deveria ser um
movimento suprapartidário e ir muito além do ato formal de extinção da escravidão. Este
deveria ser apenas o início de um longo processo de desmantelamento dos efeitos da
escravidão, conforme, aliás, ele lembrou ao longo da campanha eleitoral.
Segundo o próprio Nabuco,
Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a
da democratização do solo (Longos aplausos). Uma é o complemento da outra. Acabar com a
escravidão não basta; é preciso destruir a obra da escravidão178.
Joaquim Nabuco acreditava que a escravidão havia impregnado o Brasil de forma tão
intensa, que seriam necessários vários anos – e até gerações – para livrar o país dos seus
efeitos perniciosos, imprimindo-lhe um rumo diverso, em direção à prosperidade e ao bem-
estar de sua população. De acordo com o abolicionista,
O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral,
acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a
177
Salles (2002) viu em O Abolicionismo uma das obras mais representativas das idéias abolicionistas de Nabuco e mesmo
do movimento abolicionista como um todo. Cf. Joaquim Nabuco: um Pensador do Império. op. cit., parte I, capítulo 3, p.
115.
178
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife – eleições de 1884, p. 75. Brasília: Senado Federal /
Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1992.
49
permear a sociedade brasileira. A empresa de anular essas influências é superior, por certo,
aos esforços de uma só geração, mas enquanto essa obra não estiver concluída, o
Abolicionismo terá sempre razão de ser179.
Nabuco, enquanto liberal, defendia a expansão dos direitos civis e é em parte sob esse
prisma que ele chegará a propor a adoção de todo um conjunto de medidas sociais. Nos
dizeres de uma autora,
Em sua visão, o avanço da cidadania era uma das condições para o Brasil trilhar os rumos da
modernidade, dentro de um ideal de civilização, que impregnou grande parte do movimento
abolicionista180. De acordo com Ricardo Salles, tratava-se de pensar a construção da nação,
imprimindo-lhe uma direção progressista. A abolição – após a qual viria a reforma agrária –
era tida como prioridade absoluta para o líder pernambucano, sendo uma reforma estrutural
fundamental para a construção da nacionalidade. Salles, ao abordar o debate historiográfico a
respeito do abolicionismo, lembrou a existência real de um projeto de país para o momento
que se seguiria à extinção formal do regime escravista. Este projeto teria a preocupação de
garantir, “através da incorporação dos antigos escravos e dos setores excluídos da população,
a constituição de uma cidadania democrática181”.
A instituição das reformas, portanto, vinculava-se à idéia de desmontar os efeitos da
escravidão e uma das formas de se atingir tal fim - e que é a que nos interessa particularmente
- era uma “lei agrária”, que permitiria o acesso à terra a libertos, trabalhadores rurais pobres e
imigrantes. Constata-se que, tal como Rebouças, Nabuco previa um plano de acesso a terra
pelos setores marginalizados em geral, não apenas focalizando um determinado grupo social
ou étnico. A presença de elementos racistas na argumentação de Nabuco em relação à
população negra, conforme lembrado por Ricardo Salles182 e por Humberto Machado183, não
chegou a minar, a nosso ver, o conteúdo progressista do plano, uma vez que não se
constituíram no eixo central de sua visão.
179
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 28.
180
Cf. texto de Humberto MACHADO, “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”,in: História e
Imprensa: representações culturais e práticas de poder. p. 142-151. Organizadores: Lúcia Maria Bastos P. Neves, Marco
Morel e Tânia Maria Bessone da Cruz Ferreira. RJ: DP &A Editora, 2006.
181
Cf. SALLES, Ricardo. op.cit., parte I, capítulo 3, p. 122.
182
Cf. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um Pensador do Império.
183
Cf. MACHADO, Humberto. “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”,in: História e Imprensa:
representações culturais e práticas de poder, p. 142-152.
50
[...] mantida ou não em seu íntimo, qualquer consideração sobre a pretensa inferioridade
racial dos negros não era efetivamente nem uma categoria de análise em seu pensamento,
nem um ponto em que ele apoiasse sua ação política. (SALLES, 2002, p.137)
Importava, para Nabuco, destruir o regime escravista e seus efeitos nefandos sobre a
nacionalidade. No caso, a reforma agrária, esta era por ele claramente percebida como um
complemento indispensável à abolição, tal como opinava Rebouças. Já em 1880 Nabuco, ao
apresentar um projeto de extinção gradual da escravidão (que seria completada em 1890),
sugeriu que se criassem colônias agrícolas em benefício dos libertos, incluindo também
artigos voltados para a educação dos libertos. Percebe-se, portanto, que desde o início de suas
atividades parlamentares Nabuco já demonstrava ser favorável a uma política social para o
período pós-abolição, em que a reestruturação do sistema fundiário exerceria importante
função. E isto, num momento em que ele ainda manifestava – ao menos no âmbito do
Parlamento – uma posição abolicionista moderada, sendo favorável a uma “abolição
negociada, no tempo e mediante indenização186”. Aos poucos, porém, Nabuco evoluiu para
um posicionamento mais avançado, defendendo uma abolição imediata e sem indenizações,
como postulado por Rebouças e outras personalidades. A questão agrária emergiu como uma
das principais a serem resolvidas. Partia ele de um diagnóstico segundo o qual a concentração
184
Cf. MACHADO, Humberto. op. cit., p. 146-147.
185
Cf. MACHADO, Humberto. op. cit., p. 147.
186
Cf. SALLES, Ricardo. op.cit., parte I, capítulo 3, p. 116.
51
Pois bem, senhores, não há outra solução possível para o mal crônico e profundo do povo
senão uma lei agrária que estabeleça a pequena propriedade, e que vos abra um futuro, a vós
e vossos filhos, pela posse e pelo cultivo da terra. Esta congestão de famílias pobres, esta
extensão de miséria – porque o povo de certos bairros desta capital não vive na pobreza, vive
na miséria-, estes abismos de sofrimento não tem outro remédio senão a organização da
propriedade da pequena lavoura. É preciso que os brasileiros possam ser proprietários de
terra, e que o Estado os ajude a sê-lo189.[...]
187
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p.120.
188
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p. 75.
189
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p. 74-75.
52
[...] não tenho receio de destruir a propriedade fazendo com que ela não seja monopólio e
generalizando-a, porque onde há grande número de pequenos proprietários a propriedade
está muito mais firme e solidamente fundada do que onde por leis injustas ela é o privilégio
de muito poucos191.
190
Cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. op. cit., capítulo 2, p. 99.
191
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p. 76.
192
Cf. NOGUEIRA, Marco Aurélio. op. cit, capítulo 2, p. 137.
193
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 4, p. 95.
194
Cf. NABUCO, Joaquim. Discursos parlamentares. Perfis Parlamentares, v.26. Introdução de Gilberto Freyre. Brasília:
Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, 1983, p. 332.
53
Outro aspecto a ser assinalado é a sua defesa, como meio de desfragmentar a grande
propriedade ociosa, do Imposto Territorial, cuja importância para o líder abolicionista pode
ser observada nos seguintes trechos extraídos de seus discursos: “O que pode salvar a nossa
pobreza não é o emprego público, é o cultivo da terra, é a posse da terra que o Estado deve
facilitar aos que quiserem adquiri-la, por meio de um imposto – o imposto territorial195.” Em
outro trecho, Nabuco viu na adoção de uma lei agrária um modo de se resolver o problema da
miséria:
Neste último trecho, devemos destacar o grau de avanço de sua proposta, uma vez que ele
mencionou diretamente a idéia de desapropriação. Fato sintomático de uma postura
progressista e pouco condizente com o perfil de “conservador” atribuído por alguns
historiadores a Nabuco.
É possível, claro, questionar se o abolicionista não teria proclamado tais idéias no
calor da campanha, em clima de entusiasmo eleitoral. Autores como Ricardo Salles, porém,
acreditam que elas eram sinais de um engajamento real de Nabuco na temática agrária, e não
apenas fruto de uma “radicalização eleitoral197”. Deve-se ter em mente, porém, que a defesa
da desapropriação não deve ser exagerada; o próprio Nabuco mostrou-se mais contrário ao
latifúndio improdutivo do que ao latifúndio em si. Para corroborar tal afirmação, lembramos
que Nabuco comungou, em O Abolicionismo, da idéia de uma conciliação de classes198,
inclusive entre os futuros libertos e os antigos senhores. Nada de muito surpreendente, se
tivermos em mente sua repulsão pela idéia de conflitos e choques violentos. Pois para ele, do
mesmo como modo como para Rebouças e outros liberais abolicionistas, as reformas
deveriam ser operadas dentro da ordem; achava que a abolição somente poderia ser
concretizada por uma ação do Governo.
Não por acaso, Nabuco também fez apelo a Coroa para que esta resolvesse a questão
abolicionista. E, embora fosse um monarquista convicto, ele atacou em diversos momentos a
política imperial; em O Abolicionismo, por exemplo, criticou Dom Pedro II, por considerar
195
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p. 75.
196
Cf. NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p.145.
197
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte I, capítulo 3, p.133.
198
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 171.
54
que ele poderia ter feito mais pela abolição ao longo do seu reinado199. O apelo ao poder
público era coerente também com a visão de que os abolicionistas eram “advogados
gratuitos200” dos escravos e dos ingênuos; isto é, os agentes que realizariam a abolição não
deveriam ser os próprios escravos ou a população em geral. A pressão popular era, para
Nabuco, essencial para que se destruísse a escravidão, mas esta deveria ser extinta pelos
meios legais, sem recorrer à revolução. A Coroa, nesse caso, apareceu claramente como o
agente mais capacitado para realizar tal obra; a reforma agrária que viria posteriormente seria,
do mesmo modo, produto de uma lei, e não imposta de baixo para cima através de conflitos
armados. Tal aspecto de seu pensamento levava em consideração a idéia de uma imaturidade
da sociedade brasileira, que então seria incapaz de se mobilizar adequadamente, devido
inclusive aos efeitos da escravidão.
Defensor de uma reforma agrária integrante de um amplo programa de reformas
sociais, Joaquim Nabuco comungou de um liberalismo que ia além dos aspectos jurídicos,
articulando, para um problema que via como global – a escravidão -, uma série de soluções
globais. De acordo com Marco Aurélio Nogueira,
Joaquim Nabuco ajudaria a dar ao liberalismo uma face nova, quase “revolucionária”,
realizando a parcela mais importante do projeto global dessa doutrina: explicar a sociedade
capitalista em formação, dando a ela consciência de si (de uma perspectiva burguesa, se
quisermos). Antecipando temas que apenas despontavam e que seriam enfrentados (mas não
resolvidos) apenas décadas depois – a questão dos direitos do trabalho e da reforma agrária,
por exemplo -, Nabuco pôde colocar-se na vanguarda da revolução burguesa em curso no
Brasil: foi, naquela curta mas importante fase, um de seus teóricos. (NOGUEIRA, 1979,
138).
É interessante observar que Nabuco, tal como Rebouças, fez referências aos Estados
Unidos da América, um país em que o incentivo à pequena propriedade foi consubstanciado
com a promulgação de leis. Se o engenheiro foi bem enfático ao se referir ao modelo de
colonização adotado nos Estados Unidos a partir do Homestead Act, Nabuco abordou a série
de transformações positivas que, segundo ele, marcaram a agricultura dos Estados do Sul,
após o fim da Guerra Civil (1861-1865), em que o desenvolvimento da pequena propriedade
apareceu como uma das conseqüências do período pós-abolição201.
Joaquim Nabuco continuou a defesa de seu projeto agrário após a eleição de 1884,
referindo-se à necessidade da democratização do solo no âmbito parlamentar. Num discurso
pronunciado em 14 de setembro de 1885 na Câmara dos Deputados, em que ele apresentou
199
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p.73-74.
200
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 35.
201
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 153-154.
55
seu projeto de Monarquia Federativa, ele destacou a questão fundiária como um dos objetivos
do abolicionismo. De acordo com o líder abolicionista,
[...] O abolicionismo significa a liberdade pessoal, ainda melhor a igualdade civil de todas as
classes sem exceção – é assim uma reforma social; significa o trabalho livre, é assim uma
reforma econômica; significa no futuro a pequena propriedade, é assim uma reforma
agrária202 [...]
Conforme podemos perceber, era o próprio termo de reforma agrária que era diretamente
usado para defender a desconcentração fundiária. Mas, de que reforma tratava-se? Cabe aqui
uma reflexão sobre a mesma, que iremos abordar correlacionando as propostas de Nabuco e
de Rebouças.
Pelo que foi examinado dos dois líderes abolicionistas, vislumbra-se a perspectiva de
se transformar o Brasil em uma nação de pequenos produtores, integrando tantos os ex-
escravos quanto os imigrantes, além dos trabalhadores rurais pobres. A imigração era por eles
valorizada, inclusive, no caso específico de Nabuco, em termos raciais, mas ela por si só não
era indicada como a solução para os problemas sociais do país e notadamente no que se
referia à mão-de-obra. Era uma reforma abrangente, que pensava na construção da nação em
termos sociais e econômicos: nesse sentido, ela coadunava com o capitalismo ascendente.
Não podia, por isso, se confundir com a reforma agrária do tipo socialista; ela antes
pertenceria ao segundo modelo delineado por Paulo Sandroni, isto é, uma reforma agrária
tendo em vista a fomentação da justiça social, porém sem questionar as bases do capitalismo.
No caso brasileiro, em que o escravismo ainda resistiu até 1888, uma proposta desse tipo
apresentada possuía um traço inequivocamente modernizador, revolucionário mesmo, se nos
referirmos à análise de Robert Conrad sobre as propostas do movimento abolicionista, do qual
Nabuco era um dos principais expoentes. Tanto Rebuças como Nabuco, de acordo com Marco
Aurélio Nogueira, fizeram parte de um abolicionismo que estava “na vanguarda da revolução
burguesa em armação no país”. O que é certo é que suas idéias sociais marcavam uma
202
Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Joaquim Nabuco, Perfis Parlamentares 26. Introdução de Gilberto Freyre. Brasília:
Câmara dos Deputados, 1983, p. 367.
56
203
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 4, p.103.
204
Cf. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo, p. 170.
57
205
Cf. MACHADO, Humberto. “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”,in: História e Imprensa:
representações culturais e práticas de poder. Organizadores: Lúcia Maria Bastos P. Neves, Marco Morel e Tânia Maria
Bessone da Cruz Ferreira. RJ: DP &A Editora, 2006, p. 146.
206
Cf. MATTOS, Hebe e SANTOS, Cláudia Regina Andrade dos. Verbete: “Abolicionismo”, in: Dicionário do Brasil
Imperial, organizado por Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 21.
207
Conferir, a esse respeito, Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, de José
Augusto Pádua. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
58
como José Bonifácio décadas antes, outro personagem de relevo a ter defendido a pequena
propriedade.
O programa social dos novos liberais – e em especial aquele referente ao setor rural -
revelava-se, desse modo, avançado para a época e ainda plenamente atual para a sociedade
brasileira de hoje, em que o acesso a terra ainda constitui a aspiração de milhões de
brasileiros. Sob essa ótica, é possível analisarmos os projetos agrários de André Rebouças e
de Joaquim Nabuco como que dotados de uma perspectiva inclusiva, sem que isso entrasse
em contradição com o espírito liberal-capitalista que os nortearam. Esses aspectos, mais do
que contraditórios, antes interagiram e se ajustaram, oferecendo uma alternativa para um país
que passava pelo delicado processo de superação do escravismo e ingresso definitivo na
economia capitalista.
59
2
O SISTEMA POLÍTICO IMPERIAL E A QUESTÃO
AGRÁRIA
208
Cf. CONGRESSO AGRÍCOLA DO RECIFE. Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. Recife:
Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978.
209
Cf. BOTELHO, Ângela Vianna e REIS, Lianna Maria. Dicionário Histórico Brasil: Colônia e Império. Belo Horizonte: O
Autor, 2001, p.217.
210
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “João Linz Vieira Cansansão de Sinimbu”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção:
Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.405.
60
Como acabo de dizê-lo, a população livre nacional oferece-nos fonte suficiente, amplo
viveiro de trabalho braçal; o que é mister é faze-la convergir para a Grande Lavoura, quer na
qualidade de parceira quer de salariada214.
211
Cf. PERRUCI, Gadiel. Introdução. In: Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. CONGRESSO
AGRÍCOLA DO RECIFE. Recife: Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978, p. XXIX.
212
Cf. PERRUCI, Gadiel. Introdução. In: Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. CONGRESSO
AGRÍCOLA DO RECIFE. Recife: Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978 p. XXIX.
213
Idem, ibidem, p. XXIX.
214
Cf. CONGRESSO AGRÍCOLA DO RECIFE, p.315.
61
Acresce que a fixidade de domicilio não remedia à causa principal da falta de braços, a qual
reside antes de tudo nas distancias. Não se daria ela, se, por exemplo, na zona das matas,
onde se acha concentrada a cultura da cana, se concentrasse de duas em duas léguas um
povoado, onde residissem pequenos proprietários que precisassem pedir ao salário algum
suplemento à sua produção agrícola ou fabril218.
215
Cf. CONGRESSO AGRÍCOLA DO RECIFE, p. 315.
216
Idem, ibidem, p.129.
217
Idem, ibidem, p.129-130.
218
Idem, ibidem, p.432.
62
idéias que a fundamentaram havia sido a de fazer com que o imigrante empregasse-se na
grande lavoura. A diferença é que, enquanto pela Lei o acesso à propriedade da terra pelo
imigrante deveria ocorrer somente após algum tempo de trabalho nos latifúndios, o
trabalhador, pela proposta de Milet, já teria esse acesso concretizado previamente, porém de
modo a que tivesse necessidade de complementar os seus ganhos com o trabalho para o
senhor. De acordo com Perruci, a proposta de Milet não significava, rigorosamente, uma
defesa do pequeno e médio produtor. Nas palavras do autor,
[...] a única referência à criação de uma camada de pequenos proprietários rurais feita por
Milet diz respeito tão somente a uma tentativa de abordagem do problema da mão-de-
obra219.
Por outro lado, é interessante observarmos que Milet detinha plena consciência da
dificuldade que teria para convencer os outros proprietários a aderirem a tais idéias. Para
ilustrar tal afirmação, leia-se o seguinte texto, extraído de seu discurso, em seguida à defesa
de criação de núcleos de pequenos proprietários:
É medida que teria de sofrer grande oposição por parte de nossos senhores de engenho; e
com efeito apresenta muitos inconvenientes no dia de hoje, mas é indispensável, com vistas
no dia de amanhã, como mostrei na memória que li neste congresso na sessão de 4ª feira220.
Trata-se de um discurso com vistas para o futuro e nesse sentido Milet conseguiu
escapar à perspectiva de soluções imediatistas, tendo concebido um sistema que,
supostamente, traria benefício para todos. E, se o trabalhador nacional foi o que recebeu maior
atenção em sua fala, Milet tampouco deixou de se referir ao imigrante, declarando-se
favorável ao impulso à imigração espontânea. Deve-se observar, entretanto, que ele valorizou
mais, em seus discursos, o trabalhador brasileiro, criticando, inclusive, a “inútil e perigosa
colonização européia221” levada a cabo no Sul do Império. Milet comungava aí, do
pensamento geral do Congresso do Recife, crítico em relação à política imperial de incentivo
à imigração dirigida no Sul. Também se declarou contrário à opção pelo trabalho de asiáticos,
como então era defendido pelo Ministério da Agricultura como uma forma de suprir a lavoura
cafeeira de mão-de-obra barata – política essa denunciada por várias personalidades, como
Nabuco e Rebouças, como sendo uma escravidão disfarçada. Quanto à população negra, as
principais referências feitas por Milet se concentraram no projeto voltado para o caso dos
219
Cf. PERRUCI, Gadiel. Introdução. In: Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. CONGRESSO
AGRÍCOLA DO RECIFE. Recife: Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978, p. XXXI.
220
Cf. CONGRESSO AGRÍCOLA DO RECIFE, p.432.
221
Idem, ibidem, p.316.
63
ingênuos, tendo ele defendido a implantação de colônias agrícolas para neles serem educados
os filhos de escravas222, nascidos livres pela Lei de 28 de Setembro de 1871. Ele chegou,
inclusive, a citar o exemplo concreto de uma colônia agrícola fundada com esse intuito, a
Colônia Isabel. No entanto, como é de conhecimento da historiografia, poucas foram as
crianças ingênuas efetivamente entregues à guarda do Estado223.
Além dessas medidas, Milet incentivou ainda a adoção de técnicas modernas na
agricultura e a diversificação agrícola (cacau, trigo, açúcar e café, etc) – sem, contudo, pregar
o fim da monocultura. Apoiou a instalação de usinas centrais224, podendo-se aí fazer um
paralelo com a proposta de Rebouças.
Algumas das idéias pregadas por Milet eram compartilhadas por outros membros do
congresso, como a valorização da mão-de-obra nacional, incentivada, por exemplo, pelo
próprio presidente do congresso, Manoel do Nascimento Machado Portella. José Bezerra de
Barros Cavalcanti, por sua vez, defendeu a criação da pequena propriedade e da divisão do
trabalho225. O engenheiro Joaquim Álvares dos Santos Souza destacou-se por ter apresentado
o projeto de fundação de uma colônia agrícola industrial em Pernambuco226. Defensor da
aplicação no Brasil de uma espécie de lei de Homestead Act e ao mesmo tempo favorável à
criação de “leis de repressão à vagabundagem227”, ele formulou uma proposta concreta que, se
levada a cabo, possibilitaria o acesso à terra à “todos os indivíduos proletários, ociosos e os
filhos de mulher escrava228” de sua província. A colônia por ele projetada manteria um
sistema interno de policiamento e estimularia a educação agrícola e industrial, e, ao cabo de
um determinado tempo o colono receberia um prazo de terras, bem como instrumentos de
trabalho agrícola, animais e cereais. Depois de alguns anos, a colônia seria emancipada e
teriam se formado “ativos e aproveitáveis braços para a grande e pequena lavoura229”.
Pelo que se pode perceber, ao seio do congresso foram formuladas algumas
proposições de caráter progressista, ainda que elas viessem ao encontro dos interesses da
classe agrária. No parecer final do congresso, contudo, não se mencionou concretamente o
apoio à maioria dessas idéias. Se a comissão chegou a mencionar, no relatório do dia 12 de
222
Idem, ibidem, p.149.
223
Pela Lei de 28 de Setembro de 1871, a criança nascida livre deveria permanecer sob a guarda do senhor até os oito anos de
idade, quando este poderia optar entre entregar a criança aos cuidados do Estado e receber uma indenização, ou mantê-la
consigo até a idade de 21 anos. Ao que consta, a maioria dos senhores optou pela segunda alternativa. Cf. BOTELHO,
Ângela Vianna e REIS, Liana Maria. Dicionário Histórico Brasil: Colônia e Império. Belo Horizonte: O Autor, 2001, p. 258-
259.
224
Cf. PERRUCI, Gadiel. op.cit., p. XXXVI.
225
Cf. CONGRESSO AGRÍCOLA DO RECIFE, p.305.
226
Idem, ibidem, p.294-295.
227
Idem, ibidem, p.291.
228
Idem, ibidem, p.294.
229
Idem, ibidem, p.291.
64
outubro230 a mão de obra nacional, ao lado do braço imigrante, como alternativa ao “elemento
servil”, o fez sugerindo a instituição de medidas de coerção para combater a “preguiça” do
trabalhador pobre, em consonância com idéias então em voga a respeito da mão-de-obra
nacional. Quanto à proposta de criação de núcleos de pequenos proprietários, ela não constou
do parecer, bem como não se aludiu à proposta do engenheiro Tavares de se criar uma colônia
agrícola-industrial, ainda que este projeto, bem como o de Milet, não propusesse a subversão
da hierarquia social, uma vez que os trabalhadores, mesmo tendo acesso a terra,
permaneceriam subordinados aos senhores, como mão de obra substituta ao braço escravo.
Chegou-se também a defender a criação do Imposto Territorial, porém, pelo que transpareceu,
dentro de uma perspectiva economicista, pensado mais como um substituto ao imposto de
exportação do que como uma medida visando a desfragmentar as grandes propriedades.
A comissão, pelo que se pode apreender, estava basicamente preocupada com uma
forma de reproduzir a exploração da mão-de-obra num contexto de advento do braço livre.
Milet e Tavares, membros integrantes da classe dos fazendeiros e defensores de seus
interesses, foram mais perspicazes e demonstraram uma visão mais ampla do que a maioria
dos congressistas, sobretudo Milet, cujo tom em relação à população de homens nacionais
livres foi, de um modo geral, positivo.
230
Idem, ibidem, p.440.
231
Os dados foram extraídos do verbete de Keila Grinberg consagrado a Henrique de Beaurepaire-Rohan no Dicionário do
Brasil Imperial, organizado por Ronaldo Vainfas no Rio de Janeiro, em 2002, pela Editora Objetiva.
65
Skeys, descendente da Casa de Rohan. O pai chegou ao Brasil junto com a corte de Dom João
e seguiu uma carreira militar, tendo se tornado marechal de campo e um estudioso de
geografia, adquirindo grande prestígio na corte. Seu prestígio pode ser avaliado pelo fato de
que o filho Henrique teve como padrinhos o Príncipe Dom Pedro (futuro imperador do Brasil)
e a Rainha Carlota Joaquina. Henrique Beuaurepaire-Rohan, seguindo os passos do pai,
alistou-se como praça de cadete em 1819 e chegou a ser Ministro da Guerra em 1864.
Também foi Ministro do Supremo Tribunal Militar, Conselheiro de Guerra (1876), Tenente
Geral do Exército (1880) e, já na República, Marechal de campo (1890). Casado com
Guilhermina Muller de Campos, Beaurepaire foi também presidente das províncias do Pará
(1856) e do Ceará (1857), além de membro do Conselho de Estado (a partir de 1887), tendo
feito parte de instituições científicas, como o Instituto Fluminense de Agricultura. Ao longo
de sua carreira, Beaurepaire-Rohan – feito Visconde de Beaurepaire - efetuou uma série de
viagens pelo interior do Brasil, em missões de exploramento organizadas pelo governo
imperial, tendo estado à frente da comissão da Carta do Império (1873-1876). Segundo Keila
Grinberg, “a experiência adquirida nessas viagens teria sido responsável pelo
desenvolvimento de idéias favoráveis à emancipação dos escravos (...) e à redistribuição das
terras do país232”.
No texto publicado em 1878, Beaurepaire-Rohan pretendia esclarecer suas idéias a
respeito da questão de mão-de-obra levantada no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro.
Dirigido abertamente ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o texto
também aparentava ser destinado aos fazendeiros. Beaurepaire-Rohan antevia o fim próximo
da escravidão, tendo afirmado profeticamente que a escravidão, dentro de dez anos, estaria
terminada, como de fato ocorreu. Consciente dessa perspectiva e objetivando fornecer
estratégias para garantir o desenvolvimento agrícola, o militar formulou propostas para
garantir o suprimento de mão-de-obra à lavoura, mas incluindo um uso mais racional do solo,
permitindo que muitos trabalhadores tivessem acesso a terra.
Distinguindo, como Milet, a grande lavoura da grande propriedade, Beaurepaire-
Rohan incluiu, em seus planos, tanto o imigrante europeu como o lavrador nacional pobre e o
liberto. Todos teriam acesso a terra, porém, com variações importantes. No caso dos
europeus, o militar era favorável à imigração espontânea. Citou as vantagens que adviriam
caso se pusessem em prática os planos expostos pelo Senador Vergueiro, em que este
defendeu a criação de núcleos coloniais em terrenos férteis situados em torno de estradas de
232
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “Henrique de Beaurepaire-Rohan”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo
Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.334.
66
ferro, nos quais os imigrantes teriam acesso a pequenas propriedades233. Para Beaurepaire-
Rohan, com o aumento do número de pequenas propriedades haveria um “aumento,
aperfeiçoamento e desenvolvimento dos nossos produtos234”. Para ele, a divisão da terra
estava diretamente associada ao fim da escravidão, uma idéia cara a diversos abolicionistas
como Rebouças e Nabuco. Nas palavras do visconde,
Esse sistema não importa a destruição da grande propriedade; muda-lhe apenas o regime.
Conservando o domínio direto de suas terras, o fazendeiro cede entretanto o domínio útil a
foreiros perpétuos. Tem desta sorte seguro um rendimento liquido anual, sem mais ônus
algum, sem as preocupações que atualmente o acabrunham236.
233
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. O futuro da grande lavoura e da grande propriedade no Brazil. Rio de
Janeiro: 1878, p.9-10.
234
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op. cit., p. 6.
235
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op. cit., p. 10.
236
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.10.
237
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.11.
67
238
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op. cit., p.10.
239
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.10.
240
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op. cit, p.11.
241
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op. cit, p.12.
242
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN Henrique de. op. cit, p.12.
243
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.12.
244
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p. 13.
68
[...] Este (refere-se ao grande proprietário), além de foro anual a que é obrigado o colono,
deverá ter uma quota de rendimento daqueles produtos, que tiverem de ser preparados nas
fabricas centrais a seu cargo245 [...]
[...] as propostas assim apresentadas não revelavam qualquer preocupação com a divisão das
grandes propriedades. Ao contrário, Rohan sugeriu alternativas para a agricultura nacional de
acordo com os interesses das classes dominantes aqui representadas pelos fazendeiros.
(JUCÁ, 2001, p. 85)
245
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de, op. cit. p. 12.
246
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.13.
247
É importante retermos tal fato, pois ajuda a esclarecer um fenômeno que discutiremos mais adiante neste trabalho, qual
seja o da atitude do governo do Império frente a políticas de reforma agrária. Nesse caso específico, o governo monárquico
apareceu como desinteressado em instituir medidas agrárias reformistas em proveito dos ex-escravos. E é pouco provável que
tal episódio tenha ocorrido diferentemente do que o militar narrou, uma vez que ele, sendo uma personalidade extremamente
ligada à Monarquia, dificilmente criticaria a política imperial sem partir de um embasamento sólido.
248
Cf. BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. op.cit, p.15.
249
A notar, contudo, uma ausência de referência à população indígena.
250
Cf. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, parte I, capítulo 2, p. 117.
69
Não obstante esse traço conservador por ela apontado, Jucá considerou Beaurepaire-
Rohan como um dos precursores de André Rebouças - este último tido por ela como um
reformador social de idéias bastante avançadas. Podemos, é verdade, ver nas propostas do
visconde uma maneira de preservar a hierarquia social e a posição da grande lavoura. No
entanto, não nos parece que esta tenha sido a única grande motivação de seu texto. Conforme
ele assinalou em algumas passagens, o visconde tinha em mente a “riqueza pública” e o
aumento da produção agrícola, objetivos que evidenciam uma preocupação com a nação como
um todo. Um ponto de vista que podemos considerar como sendo perfeitamente condizente
com uma pessoa do perfil social de Beaurepaire-Rohan, um militar e político de prestígio que
percorreu e explorou vastas extensões do território nacional. Seria, assim, um projeto
tributário de uma visão de longo prazo, típico de uma visão preocupada com o bem-estar
público. Homem totalmente integrado na ordem imperial e partidário das instituições políticas
vigentes, não surpreende que Beaurepaire-Rohan tenha buscado uma forma suave de transição
para o trabalho livre, sem provocar abalos na principal atividade econômica do país na época
– a agricultura – e em sua camada dominante. Mas ele buscou integrar, em seu programa,
segmentos marginalizados da sociedade, fazendo concessões e conferindo-lhes o usufruto real
da terra, ainda que ela nominalmente permanecesse propriedade de poucos. Ocorreria uma
efetiva redistribuição da terra, porém os tradicionais proprietários obteriam vantagens. De
certa forma, podemos enquadrar tal projeto numa perspectiva de modernização conservadora,
permitindo mudanças e concessões, mas dentro dos limites da ordem política e social.
Concebendo-o desse modo, fica mais fácil também compreender as motivações que levaram
vários fazendeiros a adotarem parte daquilo proposto por Beaurepaire-Rohan, Milet e outros
pensadores, conforme estudaremos em seguida.
Os casos de fazendeiros que tomaram a iniciativa de conceder lotes de terras aos seus
escravos ou a imigrantes tornaram-se objetos de pesquisa de alguns historiadores, dentre os
quais Isabela Torres de Castro Innocencio e José Carlos Barreiro. Isabela Innocencio251
estudou o caso de uma fazenda em Paraíba do Sul (RJ), entre 1882 e 1932, palco de uma
251
Liberdade e acesso à terra: Fazenda de Cantagalo, Paraíba do Sul (1882-1932). Vassouras: USS, 2005.
70
252
A fazenda compreendia uma extensa área de terras entre os rios Paraíba, Piabanha e Paraibuna. A sede localizava-se na
atual cidade de Três-Rios. Conferir página 19 de Liberdade e acesso à terra, de Isabela Torres de Castro INNOCENCIO.
253
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra: Fazenda de Cantagalo, Paraíba do Sul (1882-
1932). Vassouras: USS, 2002, introdução, p. 19.
254
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. op.cit., capítulo 1, p.74-75.
255
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. op.cit., capítulo 1, p.74.
71
angariar pontos no plano espiritual256. Por outro lado, e é o que aqui devemos enfatizar, a
Condessa de Rio Novo teria estado, de acordo com a autora, sob a influência de idéias de
democratização do solo, em voga naquele momento histórico257. Conforme temos analisado
ao longo deste trabalho, abolicionistas e personalidades eminentes do Império defendiam
então abertamente a idéia de subdivisão das grandes propriedades, idéia essa defendida
também por positivistas e setores republicanos. Tais idéias circulavam em jornais e eram
defendidas em reuniões públicas, além de constarem de debates parlamentares e de relatórios
oficiais – como iremos examinar mais adiante. A defesa da progressiva inserção da massa
escrava à sociedade poderia, então, de acordo com Innocencio, ter de fato influenciado a
condessa, estimulando nela uma visão social mais ampla e renovada. Nas palavras da autora,
256
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. op.cit., capítulo 1, p.23-30.
257
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. op.cit., capítulo 1, p.64-68.
258
Cf. INNOCENCIO, Isabela Torres de Castro. op. cit,. conclusão, p.138.
259
Cf. BARREIRO, José Carlos. “Lutas sociais e questão agrária no limiar da República: a idéia de autonomia e a utopia da
riqueza”. In: História, número especial 100 anos de República. São Paulo: UNESP, 1989.
72
O autor situou o debate que ocorreu na época entre fazendeiros e governos provinciais,
mostrando como ele se traduziu em ações concretas e como a redistribuição de terra em favor
dos imigrantes se deu, muitas vezes, em função da crise experimentada por diversas unidades
cafeeiras. “Esse debate materializou-se na ação conjunta do setor agrário e bancário da
burguesia cafeeira, comprando e dividindo grandes propriedades, transformando-as em
pequenos lotes e vendendo-os aos trabalhadores”. (BARREIRO, 1989, p. 38). A “burguesia
cafeeira260” e bancária teriam se aproveitado da crise dessas unidades e comprado algumas
fazendas, loteando-as e vendendo-as em seguida. A ação do Estado, segundo Barreiro, foi
igualmente importante, tendo o governo imperial criado em 1886 várias colônias de pequenos
proprietários261, dentre as quais a de Sant’Anna, São Bernardo, Barão de Jundiaí, Antônio
Prado, Boa Vista, etc.
Barreiro destacou o discurso voltado para a “felicidade” e o “bem estar” do pequeno
camponês262 por trás da defesa explícita da pequena propriedade. A valorização da pequena
propriedade em si chama, de fato, a atenção, de vez que muitos discursos favoráveis a ela
usavam argumentos de ordem mais técnica, não se voltando tanto para a “felicidade” do
camponês. O autor, contudo, examinando mais a fundo o sentido desse discurso e o da prática
que dele resultou, estima que houve, no fundo, uma dupla motivação por parte do que ele
chama de burguesia cafeeira: uma razão de ordem econômica e outra ligada a um projeto de
dominação política.
Em relação ao primeiro ponto, a formação de uma classe de pequenos proprietários
traria benefícios importantes para os fazendeiros, pois estimularia a mecanização e um melhor
beneficiamento do café263. Quanto à motivação política, deve-se dizer que a concessão de
260
Barreiro (1989) utilizou-se do conceito de burguesia para referir-se aos setores ligados à grande propriedade cafeicultora,
opção que preferimos não adotar em nossa pesquisa, por entender que o uso do conceito de “burguesia”, num estudo voltado
para o século XIX brasileiro, poderia gerar mal entendidos, uma vez que o conceito foi empregado por vários autores – como
Jacob Gorender – para referir-se principalmente a setores de perfil capitalista, geralmente urbanos (comerciantes, bancários e
industriais) e que teriam se desenvolvido gradualmente ao longo do Oitocentos, não tendo chegado a atingir uma posição
política e social hegemônica durante o Império. De acordo com Gorender (1982, p. 33), “a cafeicultura de São Paulo, no
período pós-Abolição, ao explorar o trabalho de colonos, tampouco adquiriu caráter capitalista. Por isso, considero errôneo
chamar os fazendeiros paulistas daquela época de “burguesia cafeeira”.
261
Cf. BARREIRO, José Carlos. “Lutas sociais e questão agrária no limiar da República: a idéia de autonomia e a utopia da
riqueza”. In: História, número especial 100 anos de República. São Paulo: UNESP, 1989, p.39.
262
Utilizamos o conceito de “camponês” tal como este foi definido por Mário Grynszpan no Dicionário da Terra (p.72-5),
enquanto “aquele que tem acesso a uma parcela de terra para produzir”, tendo no trabalho familiar a base dessa produção. O
autor igualmente vincula ao termo uma noção de identidade cultural, afirmando que diversos personagens – posseiros,
foreiros, pequenos proprietários, etc – se reconhecem como camponeses. Os conceitos, diz Grynszpan, devem poder dar
conta da complexidade da realidade social e histórica. Para Barreiro, toda uma parte da historiografia – especialmente a de
cunho marxista – tendeu a desprezar uma análise mais extensa do camponês, por considerá-lo demasiado apegado à ordem e
ao reacionarismo, devido a seu apego a terra.
263
Os fazendeiros, explica Barreiro, dispunham de um contingente numeroso de colonos, de grande importância para o
momento da colheita, mas bem menos requisitado em outras épocas do ano. Isso originava receios, entre os fazendeiros, de
terem que sustentar uma população ociosa durante parte do ano. Tal fato igualmente inibia-os a adotarem máquinas. Com a
presença de pequenos proprietários nas proximidades das fazendas, os cafeicultores poderiam dispor de uma mão-de-obra
73
lotes teria como objetivo principal aliviar as tensões sociais – para as quais ele chama a
atenção, conforme veremos mais adiante. Um aspecto importante que merece também ser
ressaltado é a maneira como Barreiro explicou tal processo de valorização da pequena
propriedade em pleno contexto de ascensão da monocultura do café. Longe de serem
incompatíveis, tais fenômenos teriam se integrado, conforme ficou claro no seguinte trecho de
Barreiro:
As evidências até aqui apontadas dispensam qualquer exegese teórica mais complicada, para
demonstrar que, nesse momento a própria racionalidade da reprodução do capital e o
acirramento das lutas sociais requeriam a existência da pequena propriedade camponesa
como forma compatível e adequada da exploração capitalista. (BARREIRO, 1989, p.46).
Em seu estudo, José Barreiro chegou a utilizar o termo “reforma agrária”, valorizando
o acesso a terra pelo pequeno lavrador imigrante como uma medida que, em si, seria
progressista. Mas isto não significa que ele tenha considerado essa política, adotada por
fazendeiros e Estado, como eminentemente progressista. A concepção de reforma agrária do
autor está diretamente ligada a uma noção de justiça social e a algo verdadeiramente
renovador, capaz de proporcionar ao imigrante “bem-estar material e auto-gestão de seu
trabalho e de sua propriedade264”. Baseia-se, de certa forma, numa concepção de reforma
agrária mais próxima da de André Rebouças do que a de Henri Milet. Por isso, criticou em
seu texto a reforma empreendida pelos fazendeiros, por ele eivada de conservadorismo, tendo
facilitado a aquisição de lotes de terra aos imigrantes numa perspectiva favorável, no fundo,
principalmente aos interesses dos grandes proprietários. Do jeito que foi empreendida, a
distribuição de terras teria ajudado a bloquear o avanço das lutas sociais. Barreiro afirmou, a
esse respeito, que existia no complexo cafeeiro uma tensão importante entre colonos e
fazendeiros, a ponto de estes últimos temerem as investidas dos primeiros, cercando-se de
capangas e de medidas de controle e de segurança265. É preciso ressaltar, aí, que Barreiro, ao
citar o processo de distribuição de pequenas propriedades, o fez inserindo-o dentro de um
contexto de predomínio crescente do colonato como sistema de relações de produção, sistema
esse que, conforme amplamente analisado por José de Souza Martins em O Cativeiro da
Terra266, engendrava formas de exploração do trabalhador imigrante pelo fazendeiro.
temporária. Muitos pequenos proprietários poderiam trabalhar nas colheitas, o que ajudaria a melhorar a qualidade e a
produtividade destas. Conferir, a respeito, p.41-44 de História.
264
Cf. BARREIRO, José Carlos. op. cit., p.46.
265
Cf. BARREIRO, José Carlos. op. cit., p.44-45.
266
Cf. O Cativeiro da Terra. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
74
267
Cf. BARREIRO, José Carlos. op. cit., p.46.
268
Cf. BARREIRO, José Carlos. op. cit., p.46.
75
Podemos observar esse fenômeno através da consulta aos relatórios oficiais. Afim de melhor
examinar o conteúdo desses documentos, iremos analisar os relatórios do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras, entre os anos de 1871 e 1889.
Organizados de acordo com suas respectivas áreas, os relatórios ministeriais eram
apresentados pelos ministros perante a Câmara dos deputados, expondo um balanço de sua
atuação e sugerindo medidas. Como poderemos verificar, em diversos momentos foram
apresentadas propostas que, se aplicadas, levariam a uma reestruturação do setor fundiário.
De modo a facilitar a análise dos textos, optamos por enfocar a questão agrária
distinguindo três momentos políticos, correspondentes, cada um, ao predomínio de um dos
partidos imperiais no poder. Tal método permite que se analise melhor uma série de questões
que, por estarem articuladas entre si, seriam mais difíceis de serem analisadas isoladamente,
tais como a proposta de um imposto territorial, o programa de reforma da Lei de Terras e a
valorização do braço nacional e imigrante. Assim sendo, distinguiremos os seguintes
períodos: 1871-1878 (Partido Conservador no poder); 1878-1885 (Partido Liberal no poder) e
1885-1889 (Partido Conservador). O período de poder dos liberais em 1889 não será
focalizado aqui, uma vez que em princípio não houve nenhum relatório apresentado pelo
Ministro da Agricultura do Ministério Ouro Preto que, como se sabe, caiu junto com o regime
monárquico no final de 1889, tendo durado pouco mais do que cinco meses269.
Não pretendemos, com o esquema de abordagem proposto, afirmar que essa
demarcação temporal seja necessariamente a mais apropriada em relação a outras
delimitações. Poderíamos, por exemplo, para os fins a que nos propomos examinar, demarcar
o período que vai de 1871 a 1889 em função do avanço do abolicionismo (diferenciando duas
fases: uma fase moderada entre 1871 e 1879 e uma mais intensa, a partir de 1879). Mas, uma
vez que temos como meta o estudo da posição de órgãos ligados à administração monárquica
quanto a uma eventual reforma agrária, nos pareceu mais prática uma demarcação baseada na
alternância dos dois partidos que se revezaram, precisamente, na administração do Império.
Também destacaremos, sempre que isso se tiver verificado, a implantação de medidas efetivas
tomadas pelo governo no sentido de estimular uma reforma do setor fundiário, por menos
abrangente que possam ter sido.
269
A posição do Ministério Ouro Preto quanto à questão fundiária será, contudo, abordada no capítulo IV, quando da análise
dos debates parlamentares.
76
270
Cf. ABREU, Martha. Verbete: “José Maria da Silva Paranhos”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002, p.438-439.
271
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.670.
272
Cf. ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: A geração 1870 na crise do Brasil Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
273
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.667.
77
imposto territorial e a possibilidade de vendas a prazo de pequenos lotes, idéias essas que
permitiriam uma mais ampla distribuição de terras e que se aproximam de idéias como
aquelas defendidas por Rebouças e Beaurepaire-Rohan.
No relatório referente ao ano de 1872 e que foi assinado no dia 13 de maio de 1873, as
medidas acima mencionadas foram claramente expostas. O ministro José Fernandes, aludindo
ao momento de transição pelo qual passava a agricultura brasileira rumo ao fim da escravidão,
expôs a necessidade de se tomar medidas para assegurar o seu desenvolvimento. Sugeriu o
ministro que se aproveitasse a mão-de-obra nacional, fazendo referência às “forças produtivas
que se perdem no interior do país274” e defendendo que se as aproximasse do mercado. Para
ele, não era somente a imigração e a colonização estrangeira que deveriam receber apoio, a
colonização nacional também deveria ser objeto de tal ajuda. Consciente das dificuldades
opostas à consecução de sua idéia, o ministro enumerou os obstáculos principais, sendo o
primeiro evidenciado no seguinte trecho:
Um imposto territorial módico, restrito à parte dessas propriedades rurais que, segundo as
forças de cada um dos possuidores, não possa por eles ser cultivada276 [...]
Conforme podemos notar, o ministro fez menção a uma alteração importante da Lei de
Terras, ao pedir que se a modificasse no sentido de permitir concessões gratuitas ou vendas a
longo prazo, o que traria como resultado uma maior facilidade para a obtenção de terras,
274
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 6.
275
Cf. RELATÓRIO DO MINISTERIO DA AGRICULTURA, COMMERCIO E OBRAS PUBLICAS, 1872, p. 7.
276
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 7.
277
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 7.
78
José Fernandes da Costa Pereira Júnior aludiu, ainda, à sua presidência à frente do
Espírito Santo entre 1861 e 1863, quando ele teria tentado colocar em prática o projeto de
facilitar a aquisição de terras a trabalhadores, através do incentivo à Colônia Santa Isabel280.
Caso o governo imperial – segundo o ministro – tivesse atendido a proposta feita por ele na
época de conceder terras (por doação ou venda a longo prazo) a lavradores mineiros que
pretendiam migrar para a região, vastas extensões incultas e desertas teriam já então recebido
um grande impulso. E o mesmo poderia, segundo ele, ser feito em várias outras áreas do país.
Transpareceu, aí, uma clara preocupação com o povoamento e com a prosperidade nacional;
uma ação firme do governo, nesse caso, seria, na visão do ministro, de grande importância.
Não à toa, em trechos anteriores ele manifestou idéias divergentes da de um puro liberalismo
econômico, pregando,ao contrário, a ação do Estado. A população nacional pobre, amparada
pelo governo, poderia trazer benefícios a si e a sociedade como um todo. Leia-se a seguinte
passagem:
Sem facilidade e muitas vezes sem meios de transporte, sem capitais para adquirir
instrumentos agrários, esta população, que continua quase inútil a si e a sociedade, em breve
aumentaria as suas colheitas, se, auxiliada pelo Governo, pudesse remover-se para distritos
mais favoráveis, e aí obter as terras necessárias281.
278
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 8.
279
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 7.
280
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p. 7-8.
281
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1872, p.8.
79
282
Cf. ZARTH, Paulo. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
283
Cf. ZARTH, Paulo. op. cit., capítulo 4, p. 174.
284
Cf. FARIA, Sheila de Castro. Verbete “Colonização”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Organizador: Ronaldo Vainfas.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.152-154.
285
Cf. A crise do escravismo e a grande imigração.
286
Cf. MESSIAS, Rosane Carvalho. O cultivo do café nas bocas do sertão paulista: Mercado interno e mão-de-obra no
período de transição. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
80
dos lavradores nacionais, ela, em muitos casos, já estava sendo aproveitada e inclusive, no
caso do Sul, articulada com a questão da imigração européia.
Nos relatórios apresentados em 1873 e 1874, percebemos o mesmo tom de valorização
da pequena propriedade e de valorização do uso produtivo da terra, já presente no texto de
1872. O ministro José Fernandes continuou, em 1873, a referir-se, positivamente, à mão-de-
obra brasileira livre, ainda que se possa notar uma ênfase grande na questão da imigração
estrangeira. Abordando a colonização, ele continuou defendendo medidas visando a facilitar a
aquisição de terra287, citando também, no mesmo documento, a proposta de criação de um
Imposto Territorial288. No relatório de 1874 (assinado no dia 2 de maio de 1875), a defesa do
aproveitamento do trabalho dos camponeses nacionais ficou bem nítida, estando vinculada à
idéia de possibilitar a eles o acesso a terra. Esse ponto foi bem sintetizado no trecho
reproduzido mais abaixo, em que o ministro lembrou a lei instituída em 1860 autorizando o
governo a equiparar o trabalhador nacional ao europeu:
O aproveitamento dos braços que inativos ou quase inativos existem em muitos pontos do
país, congregando-se em núcleos agrícolas tantos elementos de trabalho até hoje
desaproveitados, e fazendo-se convergir para a indústria em que residem principalmente a
riqueza e força do Império o esforço de milhares de indivíduos, que privados do poderoso
estimulo da propriedade territorial arrastam existência inútil a si e á pátria, é providência
salutar de que cogitou a lei de 27 de setembro de 1860, dando ao governo autorização para
equiparar, quanto aos favores que outorgasse, o colono nacional ao europeu289.
José Fernandes deixou claro, contudo, que seria preciso dar um passo a mais para que se
conseguisse desenvolver os “núcleos agrícolas”, sendo necessário modificar dispositivos da
Lei de Terras. De acordo com o político,
As medidas, porém, autorizadas pela citada lei de 1860, não são completas, ainda mesmo
concorrendo a disposição do art. 1º da lei de 18 de setembro de 1850, que se restringe á
limitada zona das fronteiras. Convém amplia-las, autorizando a venda de terras a prazo,
mesmo fora da circunscrição dos distritos coloniais, porque nem todos procuram estabelecer-
se nesses distritos, e tão limitados são eles, por enquanto ao menos, que o beneficio da lei
vigente não se estenderia a todas as províncias do Império290.
287
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1873, p. 163.
288
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1873, p. 170.
289
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1874, p. 14.
290
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1874, p. 14.
291
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.670.
81
Tomás José Coelho de Almeida292. Nos relatórios por ele apresentados, observa-se uma
continuidade com as idéias fundiárias do ministro José Fernandes. Como ele, Tomás Coelho
também propôs uma alteração da Lei de Terras, programa esse que ficou evidenciado nos
relatórios dos anos de referentes ao ano de 1876. Em relação a este ano, foram, com efeito,
apresentados dois relatórios: o primeiro, datado de 15 de janeiro de 1877 (relatório 1876-1) e
o segundo de 1º de junho de 1877(relatório 1876-2). O ministro abordou, nos relatórios, a
dificuldade de se aplicar a Lei de Terras, citando, no documento de 1876-1, o número
reduzido de concessões revalidadas e de concessões legitimadas, bem como o fracasso da
política de discriminação das terras públicas das terras privadas293. Defendeu a revisão da
legislação, de modo a permitir concessões gratuitas que poderiam se fazer, na prática, através
do aforamento e da venda a prazo, o que permitiria aos colonos nacionais e estrangeiros uma
maior facilidade para a aquisição de terras. Como se vê, a referência era feita tanto a colonos
estrangeiros, como a nacionais. A esse respeito, inclusive, deve-se registrar o caso da Colônia
Pedro II, em Minas Gerais. Citada no relatório de 1876-2, de acordo com os dados expostos
pelo ministro, a colônia, além de ser povoada por 1.202 alemães, era integrada também por
148 brasileiros294.
Ao mesmo tempo em que Tomás Coelho mostrou-se favorável a uma política que, se
levada a cabo, implicaria num estímulo à pequena lavoura, não deixou ele de apoiar com
firmeza ações em prol da grande propriedade. Nesse sentido é que, no relatório de 1876-1, ele
teceu considerações importantes a respeito da questão da mão-de-obra destinada à grande
propriedade, fazendo referências ao contexto de extinção gradual da escravidão no Brasil. De
acordo com o ministro, a imigração européia não seria uma solução ideal, uma vez que,
afirmou ele, a grande maioria dos imigrantes fixava-se em colônias do Estado ou formavam
núcleos coloniais. Uma alternativa seria, para ele, a introdução de trabalhadores asiáticos295
(os chins ou coolies). Tal projeto, que encontraria eco em parte do meio político e agrário e
que seria fortemente combatido, na década de 80, por Rebouças e outros abolicionistas296,
seria retomado pelo gabinete liberal do Visconde de Sinimbu, como veremos em seguida.
292
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.667.
293
RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1876-1, p. 394-395.
294
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1876-2, p. 176. Em
outros relatórios, verificou-se a presença significativa de brasileiros em colônias de imigrantes, parecendo-nos que tal fato
precisa ser analisado com certa cautela, merecendo um estudo específico sobre tais colônias.
295
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1876-1, p. 20.
296
Cf. PESSANHA, Andréa. op. cit.
82
A leitura dos relatórios dos ministros do Império (até 1860) e da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas (de 1860 a 1889) é um contínuo reafirmar das frustrações dos ministros e
funcionários encarregados de executar a lei frente aos obstáculos de vária natureza que se
lhes antepunham. No que se refere especificamente a terras, os pontos mais importantes eram
o registro paroquial, a separação e medição das terras públicas, a revalidação das sesmarias e
a legitimação das posses com as respectivas medição e demarcação. (CARVALHO, 1996, p.
313).
297
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.667.
298
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.671.
299
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial /Teatro de sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ / Relume Dumará, 1996.
300
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial /Teatro de sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ / Relume Dumará, 1996, parte II, capítulo 3, p.318.
83
cobrança de foro) e a possibilidade de vendas a prazo, facilitando desse modo o seu acesso.
Nas palavras do Presidente do Conselho de Ministros,
A pequena lavoura é ainda uma aspiração, enquanto a grande cultura, já organizada, tendo
por si a tradição, adotada em nossos hábitos e trabalhos, representa avultadíssimo cabedal
que cumpre salvar dos perigos a que se acha exposto. Sejam quais forem as razões de
preferência com que preconizem as vantagens da pequena sobre a grande cultura, não é pela
só vontade dos homens que se operam as evoluções sociais, e o que se observa está longe de
fazer esperar, que a transição se realize a tempo de preservar-nos da inevitável ruína que
ameaça os nossos estabelecimentos agrícolas, si as causas da sua decadência forem
abandonadas ao seu curso natural305.
301
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 36.
302
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 37.
303
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ / Relume Dumará, 1996, parte II, capítulo 3, p.316-317.
304
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 22.
305
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 22.
84
Por isso, ainda que a pequena propriedade fosse digna de consideração e de incentivo, era
fundamental que se priorizasse o atendimento da grande lavoura em suas necessidades
prementes, como sejam os braços e capitais, mencionados por Sinimbu como tendo sido
reclamados pelos proprietários reunidos no Congresso Agrícola de 1878.
Para resolver a questão de braços, Sinimbu descartou a opção tanto do imigrante
europeu como do camponês nacional, pelo menos dentro de curto prazo. Em relação ao
primeiro, o visconde considerava que, uma vez que o maior empenho do imigrante seria o de
se constituir de modo autônomo e livre – tanto mais que, lembrou o visconde, o Brasil era
vastíssimo e na maior parte desabitado -, com ele a grande lavoura não poderia contar para a
composição de sua mão-de-obra em substituição ao braço escravo306. O regime de parceria,
dentro desse contexto, estaria fadado ao insucesso, sendo incapaz de prover aos anseios da
grande lavoura. O uso da mão-de-obra nacional igualmente seria inviável, de acordo com
Sinimbu, que citou a inadaptação do camponês nacional ao trabalho nas grandes fazendas e o
elevado salário pago ao mesmo, como fatores que obstaculizariam sua absorção pela lavoura.
Tendo recusado a opção do elemento europeu e a do nacional como duas alternativas
para o trabalho nas grandes propriedades, o Ministro da Agricultura defendeu a importação de
trabalhadores asiáticos307. Apesar de eivado de preconceitos raciais contra os chineses – assim
como boa parte da elite política de seu tempo -, Sinimbu viu neles a solução ideal para atender
as necessidades “urgentes” da grande lavoura, apoiando uma política de importação de um
determinado número de chineses que, após o término de seus respectivos contratos,
retornariam ao seu país de origem.
Chamou a atenção, pelo que foi possível apreender do relatório de 1877, o modo como
de um lado o seu redator apoiou medidas progressistas de modificação da Lei de Terras,
beneficiando imigrantes e nacionais – que teriam mais chances de obter terras- e, de outro
lado, demonstrou-se um declarado partidário da importação de asiáticos para a solução da
questão da mão-de-obra que afligia a grande lavoura. Esse projeto foi posteriormente
denunciado como uma forma de renovar o trabalho escravo, dadas as condições de trabalho
que seriam ministradas aos chineses nas fazendas e estando estes dispostos a aceitá-las. A
proposta de reforma da Lei de 1850 se converteu, pouco depois, em projeto, ao passo que o
projeto de imigração asiática seria defendido pelo governo, inclusive durante o Congresso
Agrícola do Rio de Janeiro, convocado por Sinimbu.
306
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS. 1877, p. 23.
307
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS. 1877, p. 24.
85
A apresentação simultânea dos dois programas pode parecer curiosa, mas pontos de
convergência entre ambos são facilmente identificáveis. Independentemente do caráter
progressista ou conservador de cada um dos projetos, devemos observar que, nos dois casos, é
possível se enxergar a articulação de uma política de imigração que, em última instância
beneficiaria a grande propriedade, ainda que a idéia de reformar a Lei de Terras, se aplicada,
traria inegavelmente conseqüências positivas para o desenvolvimento da pequena
propriedade308. Mesmo quanto a este ponto, basta recordarmos Milet, para entender como a
constituição de núcleos de pequenos proprietários – que deveriam surgir, tendo em vista a
maior facilidade de obtenção de terras - poderia servir de reserva de mão-de-obra para as
fazendas. No entanto, a pretendida reforma da Lei de 1850 parece ter tido como motivações
principais outros fatores309 que não o do benefício direto à grande lavoura, uma vez que de
acordo com o ministro a solução principal para a carência de mão-de-obra deste setor residiria
– pelo menos dentro de curto prazo – numa política de importação de trabalhadores asiáticos.
Seja como for, acreditamos que, com base nas declarações de Sinimbu, a defesa da pequena
propriedade foi feita numa perspectiva, sobretudo, pragmática, motivada por intenções
diversas – como a aplicação da Lei de 1850 e a povoação do território-, mais do que sendo
valorizada enquanto um fim em si a ser atingido.
Enfim, outro ponto a ser ressaltado após a leitura do relatório de 1877 diz respeito à
referência feita - nas páginas do relatório consagradas a explicação dos processos de medição
de terras nas províncias - à distribuição de terras a nacionais e a indígenas. Assim, por
exemplo, em Pernambuco, de acordo com o ministro, foram medidos e demarcados 427 lotes,
dos quais 140 foram entregues aos índios e suas famílias, compostas de 329 indivíduos310. Já
em Alagoas, foram medidas ou legitimadas terras ocupadas por índios e nacionais311. A
importância dessas citações – que não são as únicas do gênero e carecem de investigação mais
aprofundada – está no fato de que revelam que, pelo menos segundo a linguagem oficial,
haviam medições e demarcações destinadas aos índios, em aldeamentos, fugindo um pouco à
difundida versão que atribui um conteúdo eminentemente conservador à Lei de Terras.
Nos relatórios seguintes, quando outros liberais assumiram o Ministério da
Agricultura, encontramos novos e importantes indícios da intenção governamental de abordar
a problemática fundiária de modo a se expandir a pequena propriedade – ainda que, como se
308
Abordaremos outros aspectos do projeto de reforma da Lei em outro momento deste trabalho.
309
Dentre esses fatores, podemos citar a própria vontade governamental de tornar efetiva a Lei de Terras, ajustando-se alguns
pontos de maneira a tornar mais viável seu cumprimento. Conferir, a esse respeito, José Murilo de Carvalho. Teatro de
Sombras, op. cit., capítulo 3, p. 303-325.
310
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 39.
311
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1877, p. 43.
86
pôde perceber, a intenção principal pudesse ser mais de favorecer a ocupação do território ou
colonizar, do que apoiar a pequena propriedade em si – idéia essa destacada por José Murilo
de Carvalho em Teatro de Sombras. Dois ministros fizeram comentários particularmente
significativos, Manoel Buarque de Macedo e João Ferreira de Moura. Macedo, ministro entre
1880 e 1881 durante o gabinete presidido pelo liberal José Antônio Saraiva (1880-1882312),
no relatório referente ao ano de 1879 e datado de 11 de maio de 1880, manifestou apoio à
continuidade do projeto de introdução de chineses, também concebendo os benefícios da
imigração européia numa perspectiva de longo prazo. No entanto, diferentemente de Sinimbu,
Macedo pareceu ser mais otimista quanto ao emprego da mão-de-obra nacional pela grande
propriedade, como ficou evidente no seguinte trecho:
[...] cumpre atrair para a lavoura a população nacional, facilitando-lhe a aquisição de terras,
fundando núcleos coloniais em situações escolhidas, e ministrando-lhes em escolas praticas
ou fazendas-modelos útil ensinamento da aplicação dos métodos de cultura, do emprego de
maquinismos e de instrumentos, e de todos os trabalhos próprios da lavoura313.
[...] o governo apresentará ao Poder Legislativo, logo que julgue oportuno, um projeto de
reforma da Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, reforma cujo fim principal consistirá não
só em ampliar as atuais concessões gratuitas, como facilitar, mediante foro módico ou
pagamento a prazo, a aquisição de terras devolutas, quer por imigrantes, quer por nacionais,
quer finalmente por empresas de viação, como auxilio menos oneroso do que as garantias de
juro314.
Como pode ser observado, tanto os nacionais como os imigrantes europeus constituíam o foco
do projeto de reforma, ainda que se possa observar um foco maior no imigrante europeu.
312
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.671.
313
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1879, p. 40.
314
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1879, p. 65.
87
315
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1882, p. 165-166.
316
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1881-1, p. 113.
317
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1881-1, p. 113.
318
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1881-1, p. 113.
88
Não foi meu único fim mandar medir terras devolutas para colocar imigrantes, mas
também discriminar as devolutas das possuídas, por modo que os nacionais possam adquirir
pequenos lotes, onde se estabeleçam.
No meu grande empenho de atrair imigração, não me tenho
descuidado da colonização nacional, e seria feliz se pudesse conseguir, não só que os
estrangeiros procurassem o país, como que os nacionais que andam esparsos e inativos,
chegassem a fixar-se em terras públicas, fizessem-se proprietários, e dessem incremento a
qualquer indústria.
Verifiquei que há muitas terras públicas possuídas por
indivíduos, cujo titulo é a ocupação. Mandei que lhes fosse dado o titulo legítimo, mediante a
indenização legal. Deste modo, o Estado afiança o titulo de propriedade aquele que ocupa as
terras de boa fé, e converte-se o intruso em proprietário319.
Pareceu-nos bem nítida, aí, a valorização do pequeno lavrador nacional, ainda que
uma política para ele tenha aparecido como que seguindo a reboque de outra política, aquela
voltada para o imigrante. Igualmente pode-se perceber o reconhecimento da posse como um
meio legítimo e fundamental para o acesso a terra, desde que tenha sido praticada “de boa fé”.
Em outros trechos do relatório de 1884, o ministro João Ferreira de Moura, ao comentar o
serviço de imigração levado à cabo pelo governo, demonstrou-se otimista quanto ao aumento
do número de imigrantes rumo ao Brasil, afirmando que “nenhum imigrante tem deixado de
encontrar lote para estabelecer-se320”. Citando a situação de Santa Catarina quanto ao fluxo de
imigrantes, o ministro disse que estes estavam se fixando em fazendas, em regime de parceria,
mas que uma parte dos europeus manifestara preferência pela aquisição de terras próprias,
uma demanda que o governo estaria procurando preencher. Moura também defendeu a
disseminação da imigração pelo Norte do país, além de assinalar o apoio encontrado junto à
Sociedade Central de Imigração321 – informação essa importante para nosso trabalho, uma vez
319
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1884, p. 353.
320
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1884, p. 358.
321
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1884, p.359.
89
que, conforme visto no primeiro capítulo, aquela organização apoiava firmemente o regime da
pequena propriedade, contando com a atuação de Rebouças e Taunay, dentre outros nomes.
Como se pode observar, a postura de João Ferreira de Moura diferia da de alguns de
seus antecessores, para os quais a solução imediata da questão da mão-de-obra para a grande
lavoura residiria na importação de asiáticos, em regime de submissão aos fazendeiros. Para
Moura, a imigração era de uma importância central e tinha plenas condições de viabilizar a
transição do braço escravo para o livre, tendo ele, inclusive, aludido ao compromisso firmado
pelo ministério de “solver a questão servil322”. É preciso termos em mente, ainda, que o
gabinete havia sido formado após a queda do governo presidido pelo abolicionista Manoel
Dantas, estando ainda para ser votada a Lei dos Sexagenários. Curiosamente, apesar da
importante referência feita à colonização nacional, é o imigrante que pareceu ser o alvo
principal da política de substituição do braço escravo pelo livre.
O conteúdo do relatório referente a 1884 indica que essa opção pelo imigrante europeu
como substituto ao escravo se havia consolidado entre uma ampla gama de políticos
imperiais, sendo defendida tanto por liberais como por conservadores. A pequena propriedade
foi, nesse caso, valorizada por Moura como sendo um estímulo para o desenvolvimento da
imigração, demonstrando mais uma vez como os dois conceitos estavam sendo articulados
entre si. Mas, mesmo com o vínculo entre o projeto ministerial e os interesses dos
cafeicultores, pode-se pensar também em uma visão até certo ponto esclarecida, na medida
em que, ao fazer concessões aos trabalhadores, a política defendida pelo ministro oferecia
uma perspectiva para o desenvolvimento da pequena propriedade no Brasil, ainda que atrelada
aos interesses da grande lavoura. As próprias vantagens da imigração, em determinado trecho,
foram dissociadas dos impactos na grande lavoura323. O ministério Cotegipe, que assumiu em
20 de agosto de 1885, substituindo Saraiva, manteria o foco no trabalho imigrante - já sob a
influência direta do chamado grupo “imigrantista” – mas, assim como seu antecessor, não
deixando de aludir ao nacional, aspecto abordado adiante.
322
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1884, p.357.
323
Moura chegou a afirmar que os imigrantes europeus, mesmo que eventualmente não viessem a substituir os escravos,
ainda assim poderiam se constituir em “novos agentes de produção”, o que caracteriza – nem que seja apenas ao nível da
retórica – uma visão voltada para os interesses da nação como um todo, não estando presa exclusivamente à questão da mão-
de-obra nas grandes propriedades. Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS
PÚBLICAS, 1884, p. 357.
90
O projeto de reforma mencionado por Prado foi considerado por José Murilo de
Carvalho como tendo um perfil nitidamente paulista, contrastando com o projeto original da
324
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “João Maurício Wanderley”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo
Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 441-442.
325
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p. 671.
326
Cf. FIRMO, João Sereno e NOGUEIRA, Octaciano. Parlamentares do Império. Brasília: Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973, p.668.
327
Cf. BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.35-38.
328
Projeto esse que analisaremos com maior cuidado no capítulo IV, assim como outro apresentado em 1880.
329
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1885, p.20.
91
Lei de Terras, de 1843, que teria sido apoiado especialmente pelos cafeicultores
fluminenses330. Mantinha a idéia de alterar a Lei de modo a que ela pudesse ser efetivamente
cumprida, possibilitando um maior desenvolvimento da pequena propriedade. O uso
produtivo da terra, por sua vez, continuava uma meta a ser atingida. A finalidade do projeto
poderia estar ligada à idéia de estimular a vinda de imigrantes, atendendo aos anseios de
cafeicultores paulistas interessados em substituir o escravo pela mão-de-obra livre do
imigrante, aspecto esse que pudemos verificar anteriormente, ao destacarmos o estudo de José
Carlos Barreiro sobre o Oeste paulista e a pequena propriedade. Nesse caso, novamente a
defesa da pequena propriedade teria sido feita com base numa perspectiva pragmática, mais
do que fundada numa valorização própria. Mas, se nos fiarmos a José Murilo de Carvalho, a
reforma também poderia ter sido motivada pela intenção do governo em remediar aos
fracassos da execução da Lei de Terras. Examinaremos melhor a reforma ao longo do último
capítulo desta dissertação, quando abordaremos sua discussão pelos senadores.
A questão agrária esteve presente também nos relatórios posteriores a 1885. Rodrigo
Silva, no relatório referente a 1886, insistiu na necessidade de reorganizar o serviço de
medição de terras e de venda das terras públicas, facilitando aos imigrantes uma “pronta e
conveniente colocação331”.
O relatório incluiu, em anexo, um documento apresentado pelo Tenente-Coronel
Francisco de Barros e Accioli de Vasconcellos, da Inspetoria Geral das Terras e Colonização,
em que este alertou para o fato de que a Lei de Terras seguiria sendo desrespeitada enquanto
ela não fosse modificada. Abordou o projeto de reforma encaminhado pelo governo e que
estava sendo discutido pelo Senado, lembrando que a reforma deveria permitir a legitimação
de posses com cultura efetiva e morada habitual, impondo-se uma limitação ao tamanho das
mesmas332. Os juízes comissários desempenhariam um papel ativo nesse programa, tendo o
tenente-coronel recomendado um tom conciliatório para com os posseiros, evitando-se tanto
conflitos como a destruição das “pequenas plantações” das “classes menos favorecidas333”.
Estas últimas mereceram um comentário bastante simpático da parte do tenente-coronel, que
destacou o fato de que muitas famílias de camponeses nacionais não tinham como
desenvolver suas modestas plantações, estando elas na incerteza quanto à permanência nas
terras, vivendo “em constante sobressalto” e “sem a menor garantia para o seu trabalho334”.
330
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996, parte II, capítulo 3, p. 317.
331
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.29.
332
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.AF-29.
333
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.AF-30.
334
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.AF-30.
92
[...] tenho prestado atenção á necessidade de estabelecer núcleos coloniais, onde possam
colocar-se os imigrantes que desejarem constituir-se proprietários de terra e cultivá-la de
própria conta. Deste tipo, que muito conveniente será generalizar, como meio de propaganda,
e ensaio de pequena propriedade, foi recentemente fundado um estabelecimento na
vizinhança da cidade de Barbacena338 [...]
335
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.AF-30.
336
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1886, p.AF-30.
337
O primeiro foi apresentado em 14 de Maio de 1888 e o segundo já no ano de 1889.
338
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1887, p. 37.
339
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1887, p.7.
93
340
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1887, p. 22.
341
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1887, p. 22.
342
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1888, p. 3-5.
343
Cf. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1888, p. 55.
94
3
RELATÓRIOS DE PRESIDENTES DE PROVÍNCIA
344
Devido ao grande número de relatórios dedicados a um mesmo ano (fato ocasionado, entre outras causas, por posses de
presidentes interinos), especificaremos, quando for o caso, o relatório pela classificação numérica: primeiro, segundo,
terceiro ou quarto. Quando um ano tiver sido objeto de um único relatório – como o ano de 1873, no caso do Rio Grande do
Sul -, sua indicação nas notas se fará sem referência numérica.
345
Minas Gerais, de acordo com historiadores, foi palco de experiências mais intensas com o trabalhador rural nacional,
enquanto que o Espírito Santo foi alvo de uma política de colonização e imigração. Por isso, seria especialmente interessante,
num estudo posterior, focalizar as duas províncias.
346
Cf. LEI DE TERRAS – íntegra do texto disponível no site http://www.webhistoria.com.br/lei1850.html#N.º (reproduzido
no Anexo A deste trabalho).
95
347
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL. 1876 (primeiro relatório), p. 37-43.
348
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL. 1873, p. 22.
349
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL. 1873, p. 24.
350
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1872 (primeiro relatório), p. 31.
351
É preciso, no entanto, termos cuidado com a referência aos índios, uma vez que, para vários historiadores, como Paulo
Zarth (2002), grande parte da colonização gaúcha no século XIX se fez em detrimento das populações indígenas e/ou
caboclas. Daí deriva o fato de que uma observação mais detalhada aqui quanto ao tratamento dado pelos governos provinciais
aos índios necessitaria de um estudo mais aprofundado das fontes, o que foge à alçada da presente dissertação.
352
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996, parte II, capítulo 3, p. 315.
96
Paraná), de núcleos coloniais europeus com base na pequena propriedade familiar353. Alberto
Passos Guimarães354 e Raymundo Laranjeira355 reconheceram algum sucesso quanto à política
de colonização européia no Rio Grande do Sul, que teria levado, ao desenvolvimento da
“colônia de povoamento356”, em contraposição ao modelo de “colônia de exploração357” que
teria marcado a colonização do país como um todo.
Segundo Paulo Zarth, a política de colonização com base no braço europeu no Rio
Grande do Sul objetivou o aumento da produção e o povoamento do território. Ela permitiu,
para o historiador, o desenvolvimento da pequena propriedade, mas sem alterar a estrutura
agrária. Para ele, “quanto ao latifúndio e à pequena propriedade, a estratégia foi a distribuição
de pequenos lotes de terras aos imigrantes, preservando, deste modo, o latifúndio pastoril.
Este processo foi incentivado pelo Estado358”. Na visão de Zarth, a colonização no Rio
Grande do Sul teve como fim preencher uma função de abastecimento do mercado interno –
função essa bem sucedida-, num processo, como pudemos verificar, claramente apoiado pelo
Estado monárquico. Num trecho anexado ao relatório de 7 de março de 1874, Luiz Kremer
Walter, da Repartição de Colonização, identificou o aumento da população e o da produção
como um dos objetivos da colonização promovida pelo governo do Rio Grande do Sul359.
A despeito do relativo sucesso da colonização na província gaúcha, ela também se
deparou com algumas dificuldades comuns no resto do país, como se pôde verificar em outros
trechos dos relatórios, em que foram registradas muitas críticas à invasão de terras públicas –
aspecto também lembrado por Paulo Zarth360-, bem como críticas às terras oferecidas para
algumas colônias, em detrimento de outras melhores monopolizadas por poucos proprietários.
O presidente Henrique d’Ávila foi um dos que criticaram a “monopolização da terra”. De
acordo com o administrador,
O governo da metrópole pela imprevidência que durante o nosso regime colonial procedeu
na distribuição de terras, a avidez com que os nossos antepassados se apoderaram de vastos
territórios que não podiam cultivar e a largueza com que foram concedidas essas terras, que
presentemente seriam as mais aptas para a colonização, eis a primeira causa geral das
dificuldades com que temos lutado em matéria de colonização361.
353
Cf. FARIA, Sheila de Castro. Verbete: “Colonização”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002,
p.152-154.
354
Cf. Quatro Séculos de Latifúndio. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
355
Cf. Colonização e Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
356
Cf. LARANJEIRA, Raymundo. Colonização e Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983,
capítulo 1, p. 19.
357
Cf. LARANJEIRA, Raymundo. Colonização e Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983,
capítulo 1, p. 19.
358
Cf. ZARTH, Paulo. op. cit., considerações finais, p. 283
359
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL. 1874 (primeiro relatório), p. S2-9.
360
Cf. ZARTH, Paulo. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.
361
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1881 (segundo relatório), p. 44.
97
362
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1878 (segundo relatório), p.31.
363
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1886, segunda parte, p.49. O
relatório está dividido em duas partes: a primeira, que vai da página T-1 a 45, corresponde ao relatório apresentado em 8 de
maio de 1886 pelo presidente Henrique Pereira de Lucena ao vice-presidente Manoel Deodoro da Fonseca. A segunda parte,
situada entre a segunda página T-1, estende-se até a página 63 e constitui o relatório exposto por Manoel Deodoro da Fonseca
a Miguel Calmon du Pin e Almeida, no dia 9 de novembro de 1886.
364
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1888 (segunda parte do segundo
relatório), p.54. O segundo relatório referente ao ano de 1888 encontra-se dividido em duas partes: a primeira, que vai da
página T-1 a página 40, corresponde ao texto apresentado em 27 de janeiro de 1888 por Joaquim Jacinto de Mendonça ao seu
sucessor, Rodrigo de Azambuja Villanova. A segunda parte estende-se da segunda página T-1 a página 85, sendo
correspondente ao documento apresentado por Villanova ao seu sucessor na administração da província, o Barão de Santa
Thecla, no dia 9 de agosto de 1888. Encontram-se, ainda páginas anexadas ao relatório.
98
1º Nem uma concessão será maior de 100 hectares se as terras forem destinadas à lavoura, ou
de 400 hectares se o forem a criação de gado.
2º Nos territórios adjacentes aos núcleos coloniais, a área da concessão não excederá de 30
hectares, sendo preferidos os brasileiros ou estrangeiros com família já residentes nos ditos
núcleos, e cujos antecedentes e costumes afiançarem o aproveitamento das terras
pretendidas.
3º Nenhuma concessão se fará nas zonas privilegiadas das estradas de ferro, bem como numa
facha de 20 quilômetros de cada margem dos rios navegáveis e das estradas de rodagem;
ficando reservados tais territórios à formação de núcleos coloniais de estrangeiros e
brasileiros365.
Configurou-se uma clara tentativa, por parte do governo do Império, de impor limites ao
processo de concentração fundiária, bem como a intenção de procurar reservar terras de fácil
acesso para a colonização, tanto de estrangeiros como de nacionais. Mendonça, pelo que
afirmou, deu conhecimento do aviso à tesouraria da fazenda e ao inspetor especial interino de
terras e colonização do aviso, cuja íntegra foi também apresentada por um presidente de
Pernambuco.
Quanto ao eventual acesso a terra pelos antigos escravos – já no contexto de
dissolução final da escravidão-, a presidência do Rio Grande do Sul foi uma das poucas,
dentre os relatórios das seis províncias pesquisadas, a demonstrar uma preocupação com a
sorte dos libertos, antevendo um acesso destes a terra, ainda que essa preocupação tenha sido
exposta com uma finalidade de preservar a ordem, conforme ficou claro no seguinte trecho,
em que Rodrigo de Azambuja Villanova defendeu a permanência dos libertos nas fazendas:
Com este intuito muito conviria que se organizassem associações municipais á imitação da
que se acaba de instalar em Gravataí e se propõe, no interesse de promover o melhoramento
material do município e evitar a dispersão e conseqüente vagabundagem dos libertos, _
convidar os proprietários de grandes áreas incultas a parcelarem suas terras e cederem-nas
mediante venda, arrendamento ou mesmo gratuitamente, sob certas condições aos libertos a
fim de cultivá-las366.
[...] propus ao Governo Imperial, quando ainda se não podia determinar a latitude da lei de
cuja promulgação futura apenas se falava, a criação de colônias agrícolas em forma do art.
4º, parágrafo 5 da lei n. 3270 de 28 de Setembro de 1885367.
365
RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1888 (segundo relatório, primeira parte,
referente ao dia 27 de janeiro de 1888), p.34-35.
366
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1888(segundo relatório, segunda
parte, referente a 9 de agosto de 1888), p.70.
367
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1888 (segundo relatório, parte
referente a agosto e novembro de 1888), p. 72.
99
Pode-se notar a vinculação da medida proposta com uma das disposições da Lei dos
Sexagenários - por nós abordada no capítulo I -, concernente à criação de colônias agrícolas,
onde seriam instalados libertos. Também é perceptível o fato de que idéias próximas daquelas
pregadas por Beaurepaire-Rohan encontravam eco entre alguns funcionários da Monarquia,
como Villanova, que chegou a propor uma região específica para a instalação das colônias –
no caso, o Alto Uruguai368. Igualmente foi feita menção à reforma da Lei de Terras, o que
mostra a presença de tal questão em distintos órgãos políticos do regime imperial.
368
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO GRANDE DO SUL, 1888 (segundo relatório, segunda
parte, referente a 9 de agosto de 1888), p. 72.
369
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1876 (primeiro relatório), p.91-92.
370
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1876 (primeiro relatório), p.94.
371
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1876 (primeiro relatório), p.88.
372
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1876 (primeiro relatório), p.83.
100
do território foi, de fato, feito na base da expulsão do elemento nativo, processo confirmado
por historiadores como Sílvio Coelho dos Santos, para quem “a colonização, entretanto,
pouco a pouco foi aumentando em força e agressividade. A cada dia mais terras eram
solicitadas, e a floresta era conquistada. O território que os índios podiam utilizar foi
diminuindo373”.
Por outro lado, se nas descrições das colônias as referências diretas a um “ideal” de
pequena propriedade, enquanto regime a ser valorizado, são mais escassas do que no caso do
Rio Grande do Sul, traços comuns a esse sistema, como a policultura, estiveram bem
presentes nos textos. No primeiro relatório referente a 1885, por exemplo, a Colônia de
Blumenau foi citada como um exemplo de incentivo à policultura374. A inclusão de nacionais
nos projetos colonizadores ficou bem evidente em um trecho do relatório de 1886,
reproduzido adiante:
Fazendo-se a distribuição dos lotes em cada núcleo, de maneira que sejam ocupados
interpoladamente por nacionalidades diversas [...]. Nem dessa distribuição devem ser
excluídas famílias nacionais, visto que nosso fim não é estrangeirar os que nasceram no país,
mas, proporcionando vantagens aos estrangeiros úteis, levar os nacionais de um país novo a
aprenderem o que aqueles sabem pela experiência do velho mundo375 [...]
Imposto territorial
Não temos ainda tal fonte de renda no Brasil: mas tel-a-hemos brevemente, pois é ele que
fornece nos outros países a porção da receita, a mais abundante, racional e justa. Dificílimo
373
Cf. SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova História de Santa Catarina. 5. ed. rev. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004,
capítulo 12, p. 75.
374
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1885 (primeiro relatório), p. 39.
375
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1886 (primeiro relatório), p.199.
376
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SANTA CATARINA, 1888, (primeiro relatório, apresentado
em 11 de outubro de 1887), p.301.
101
como é estabelecer as suas bases e iniciar a sua execução, principalmente entre nós (o que
agora mesmo dá lugar na Corte a luminosa discussão) o projeto agora apresentado para esta
província merece especial consideração, porquanto a série de raciocínios, dados e hipóteses
que nele se encontram, fornecerão guias de muito valor para chegar a mais sensata resolução.
Recomendo-vos, pois, esse projeto, como aquele que mais deve atrair a vossa esclarecida
atenção377.
(...) alguns defeitos da nossa legislação civil a propriedade territorial esterilizada pelos
grandes proprietários que a inutilizam á falta do respectivo imposto; a carência de um
cadastro que a discrimine do domínio publico, e medida e dividida em lotes, se torne
acessível ao pequeno lavrador e ao colono; são, com outras, as causas que embaraçam a
colonização nacional e estrangeira e o desenvolvimento de nossa agricultura em uma terra
mais que própria para atrair os braços que lhe podem dar vida379.
377
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVINCIA – SANTA CATARINA, 1888 (segundo relatório), p.19.
378
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1876, p.79.
379
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1876, p. 77-78.
102
380
Cf. BEVIR, Mark. Mind and method in the history of ideas. Middletown, 1997, p. 167-189.
381
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1872, p. 66.
382
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1872, p.52.
383
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1872, p.51-52.
384
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1872, p.63-64.
103
assinalados. A concessão de terras aos índios parece ter se vinculado muito à catequese, sendo
os dois temas geralmente abordados numa mesma seção. No segundo relatório de 1879 o
presidente Rodrigo Otávio de Oliveira Menezes, buscando pacificar uma determinada região
da província, chegou a pedir autorização ao governo imperial para “mandar medir uma área
de terreno devoluto para a colocação dos índios385”.
Em alguns relatórios foram encontradas referências bastante positivas quanto à mão-
de-obra nacional, inclusive ao acesso desta a lotes de terra em colônias, como a Colônia de
Superaguy, formada majoritariamente, de acordo com o segundo relatório de 1879, de
nacionais386. Em relação ao já comentado ano de 1876, localizamos nos textos um caso de
uma valorização maior do lavrador nacional, mais até do que o imigrante europeu, quando o
presidente Adolfo Lamenha Lins abordou a colônia do Assunguy, afirmando que os nacionais
eram “incontestavelmente mais aptos para cultivar aquela região387”. No mesmo documento o
presidente Lamenha, ao descrever o aldeamento de São Pedro de Alcântara, chamou a atenção
para a situação do camponês nacional, como pode ser observado no texto abaixo:
Cumpre com todo o esforço animar aquele estabelecimento com a abertura de estradas que
dêem saída aos produtos para os mercados mais próximos, facilitando-se aos nacionais a
aquisição de terrenos para o desenvolvimento de sua cultura; em vez de venderem-se as
terras a um real e meia a braça quadrada, seria conveniente entregar-lhes a titulo gratuito,
lotes de terras suficientes para sua cultura; o nacional, que não tem em seu país os auxílios
que encontra o imigrante europeu, reclama com direito este favor388.
Grupos de pequenos lavradores nacionais, pelo que se pode observar, eram admitidos em
aldeamentos indígenas. A sugestão do presidente Lins se destaca também por incluir a idéia
de concessão gratuita de terras, indo além de medidas como a venda a prazo ou o aforamento,
ainda que estas últimas práticas levassem também a um fácil acesso aos lotes.
Diversas outras menções foram feitas ao acesso de pequenos lavradores nacionais a
terras. Assinalou-se também, em 1886, a transformação da Colônia Militar do Jataí em
“centro agrícola389”, indicando a presença da pequena lavoura em áreas militares. Enfim, em 3
de maio de 1886, o presidente Alfredo d’ Escragnolle Taunay (1843-1899390) – membro do
Partido Conservador e, como Nabuco e Rebouças, também ele um monarquista e
385
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1879 (segundo relatório), p.77.
386
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1879 (segundo relatório), p. 69.
387
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1876, p. 83.
388
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1876, p. 99.
389
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1886 (segundo relatório), p. 101.
390
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Verbete: “Alfredo d’Escrangolle Taunay”, in: Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889).
Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.37-38.
104
abolicionista-, em seu relatório assinado em Curitiba, teceu uma das mais eloqüentes defesas
da colonização por nacionais, conforme perceptível no trecho abaixo:
Os nacionais não querem ficar á retaguarda dos estrangeiros, e conquistam já muito terreno.
Dizem eles: “Dêem-nos terra e um pequeno auxilio, que, como os estrangeiros, saberemos
trabalhar, e cultivar as plantas próprias do nosso país; pobres porém como somos, se nos
faltar o apoio de um Governo protetor, ficaremos ociosos, porque nos faltam todos os
elementos que são as boas terras, e o exemplo de que aproveitamos muito.
E realmente, Exm. Sr., fiquei completamente abismado. O núcleo Sesmara, quase todo
abandonado dos estrangeiros, e ocupado por intrusos nacionais, era, há meses, coberto de
mato, até por cima das estradas! [...] Entretanto, hoje, depois que eles tiveram seus títulos
distribuídos por ordem de V. Ex., promessas ali ficarem, e estímulo e esperanças,
transformaram tudo: A estrada já é franca, podendo até transitar carros391. [...]
Palco por excelência das experiências de colonato392, São Paulo também viu se
desenvolver em seu território alguns núcleos coloniais instituídos pelo poder público, em que,
ao menos a princípio, seria facultada a obtenção da pequena propriedade aos imigrantes. José
Carlos Barreiro, como observamos anteriormente no capítulo II, registrou iniciativas nesse
sentido por parte das autoridades públicas. O desempenho dos núcleos, contudo, deve ser
analisado com cautela, ao menos durante a década de 1870. De fato, para Emília Viotti da
Costa, naquela década a política de criação de núcleos coloniais foi marcada por insucessos.
De acordo com a pesquisadora,
A política de núcleos coloniais não vingou também nesse período, não tendo passado de
medíocres tentativas feitas, algumas vezes, pelo governo provincial, outras vezes por
instâncias do governo imperial. Os fazendeiros de café continuavam a manifestar pouco
entusiasmo por empreendimentos que tinham origem em pensamentos teóricos e idealistas,
visando estimular a pequena propriedade. A maior parte dos projetos permaneceu no papel.
(COSTA, 1998, p. 181).
391
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PARANÁ, 1886 (primeiro relatório), p.53.
392
Utilizamos aqui o conceito tal como foi empregado por José de Souza MARTINS em O Cativeiro da Terra, em que ele
distinguiu claramente o colonato difundido pelos fazendeiros, daquele em que o colono se tornava proprietário da terra,
característico dos núcleos coloniais oficiais. Martins (2004) destacou, nesse sentido, o maior êxito do colonato difundido
pelos fazendeiros. Raymundo Laranjeira, em Colonização e Reforma Agrária no Brasil também fez semelhante distinção
entre dois modelos de colonato.
105
Seja como for, o certo é que em diversos relatórios notificaram-se atos que, de alguma
maneira, incentivavam um acesso a terra por parte de segmentos marginalizados da sociedade,
como os índios. Assim como no caso do Paraná, as referências às populações indígenas foram
relativamente numerosas, porém no caso paulista pudemos destacar comentários mais
simpáticos quanto aos nativos. Esse aspecto foi bem evidenciado num trecho do primeiro
relatório do ano de 1878, no qual Sebastião José Pereira denunciou uma chacina de
indígenas393. Em outros textos, os presidentes advogaram a concessão de terras aos índios,
tidos inclusive por José Fernandes da Costa Pereira Júnior, no primeiro relatório do ano de
1872, como uma opção viável para solucionar a falta de braços na agricultura394. No terceiro
relatório relativo ao ano de 1878, Sebastião José Pereira defendeu a fixação de índios no
núcleo colonial de São Bernardo, “dando-se a cada família um lote de terras e sujeitando-os
ao regime dos núcleos395”. No relatório de 1880, o presidente Laurindo Abelardo de Brito
apoiou a criação de uma colônia para índios Chavantes e Coroados e lavradores nacionais em
região situada entre os rios Tietê e Paranapanema396. Ao que parece, ao menos na linguagem
de alguns presidentes, era viável o desenvolvimento de uma política colonizadora com os
nativos, contrariando a idéia de que apenas os imigrantes seriam alvos da preferência dos
paulistas. Os índios, por sua vez, também reivindicaram a concessão de terras, conforme
exposto no seguinte trecho escrito por Francisco de Carvalho Soares Brandão, revelador de
um – pelo menos aparente - apoio governamental:
Também vieram a esta capital trinta e tantos índios guaranis, residentes no município da
Conceição de Itanhaem, reclamar a concessão de algumas terras, que dizem devolutas,
existentes no Cubatão, em Santos, e denominadas do Tatinga.
Mandei-os recolher á hospedaria dos imigrantes e dar-lhes alguns auxílios e, finalmente, em
25 de novembro, enviei-os ao delegado de polícia de Santos, para atendê-los
convenientemente, no pedido das terras, acima declaradas, de modo que fiquem
satisfeitos397.
393
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1878 (primeiro relatório), p. A9-3.
394
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1872 (primeiro relatório), p. 83.
395
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1878 (terceiro relatório), p. 72.
396
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1880 (primeiro relatório), p. 172.
397
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1883 (primeiro relatório), p. 61.
106
Com a aplicação da ciência à agricultura, foi-se reconhecendo cada vez mais a necessidade
da conservação da grande propriedade, porque os processos novos que vieram substituir o
trabalho primitivo, dependem de grandes capitais e direção inteligente, que não podem
convir às pequenas explorações401.
398
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1885 (primeiro relatório), p. 96.
399
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1886 (primeiro relatório), p. 42.
400
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), p.120.
401
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), p.120.
107
Ele citou, em seguida, a Alemanha e a Inglaterra, como exemplos de países com agricultura
bem desenvolvida, com base na conservação da grande propriedade402. A seu ver, a grande
propriedade rural não impedia o desenvolvimento da pequena propriedade; para ele, esta
deveria ser formada com base na imigração de trabalhadores europeus que, sendo em sua
maioria de baixa renda, levavam algum tempo até adquirirem os meios de se tornarem
proprietários. Não por acaso, elogiou o sistema que forçava, na prática, o imigrante a trabalhar
nas fazendas por um período, até poder tornar-se proprietário403.
O ponto de vista do barão assemelhava-se àquele que via na imigração européia a
solução para a transição do braço escravo para o livre, com a aplicação de uma política de
incentivo à vinda de europeus para o trabalho nas fazendas de café. Tratava-se, na verdade, da
defesa da política de subvenção à imigração, de que nos ocuparemos em outros trechos deste
trabalho. As posições assumidas pelo presidente coincidiam, dessa forma, com os de
importantes setores da grande lavoura; não por acaso, elogiou ele o regime da monocultura
(no caso, o café), demonstrando pouca crença numa ampla diversificação agrícola404.
É interessante registrar que, nesse mesmo relatório em que se apoiou diretamente a
grande propriedade, encontramos, em seu anexo, a defesa de um ponto de vista bem distinto
ao do barão e que foi sintetizado pelo Inspetor Geral de Imigração, o doutor Frederico José
Cardoso de Araújo Abranches, que, em texto introdutório ao relato sobre alguns núcleos
coloniais (Cascalho, em Rio Claro e Canas em Lorena), defendeu abertamente a pequena
propriedade rural e a valorização da colonização nacional, com as mesmas vantagens
concedidas aos imigrantes. De acordo com o inspetor,
402
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), p.121.
403
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), p. 121.
404
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), p. 122.
405
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), A-10-5.
108
406
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), A-10-5.
407
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), A-10-5.
408
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), A-10-5.
409
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (primeiro relatório), A-10-5.
410
No segundo relatório referente a 1887, assinala-se o título de “Visconde do Parnaíba”, ao invés de “Barão do Parnaíba”.
411
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1887 (segundo relatório), p. 36.
412
Publicado em 1829 no folheto A Letter from Sidney, o projeto de E. G. Wakefield abordava a colonização da Austrália,
onde a terra era barata e mão-de-obra escassa e cara. Wakefield, visando garantir mão de obra para as grandes propriedades,
propôs então que se encarecesse artificialmente o preço da terra, de modo que o imigrante fosse obrigado a trabalhar por
algum tempo nas fazendas antes se poder adquirir seu próprio lote. Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da
Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política imperial. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ,
1996, capítulo 3 (Teatro de Sombras), p.304-305.
413
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (primeiro relatório), p. 31-32.
109
Em trecho anterior, Rodrigues Alves revelou uma mudança de postura em relação àquela
defendida no seu primeiro relatório:
A política de limitação da pequena propriedade aos núcleos coloniais, assim, foi assim
criticada por um político de prestígio, que pregou ainda a associação entre fazendeiros e
governo para promover a subdivisão das propriedades. A proposta, contudo, parecia estar
mais vinculada à necessidade de garantir a mão-de-obra para as fazendas, do que a uma
defesa direta da pequena propriedade em si. Acreditamos, porém, que caso ela tivesse sido
instituída em vastas regiões, ela poderia possibilitar uma expansão real da pequena
propriedade. Alves assinalou os contatos feitos com fazendeiros no sentido de efetivá-la e não
podemos esquecer dos casos abordados por José Barreiro em seu estudo sobre o Oeste
paulista.
414
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (primeiro relatório), p. 32.
415
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (segundo relatório), p.65.
416
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (segundo relatório), p. 68.
417
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (segundo relatório), p.69.
418
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1888 (segundo relatório), p.69.
110
Temos fazendas que não poderão ser mantidas na sua integridade; terras ubérrimas, mas
incultas [...]. Daí a conveniência de apressar-lhes a posse e domínio das terras destinadas a
sua atividade420.
O Presidente Pedro Vicente de Azevedo parece ter sido, de fato, o mais ardoroso
defensor da pequena propriedade, dentre os presidentes provinciais até agora focados. Ainda
no relatório de 1889, ele fez menção, no contexto do advento do trabalho livre, de uma aliança
entre capital e trabalho421, idéia essa, como vimos, apoiada também por Joaquim Nabuco e
que faria escola na política brasileira do século XX. Enfim, antes de concluirmos o item
dedicado ao estudo dos relatórios paulistas, iremos reproduzir, adiante, um trecho do texto de
Azevedo revelador da forma como a idéia de uma reforma agrária encontrava eco entre
políticos do Império:
Se com o trabalho livre parte da grande lavoura não se puder manter, será substituída pela
multiplicidade das pequenas indústrias agrícolas, que se constituirão o receptáculo da
atividade de muitos indivíduos: e, afinal, a mudança se limitará apenas á forma, mas em
condições incomparavelmente superiores.
O proveito que nos trouxeram os grandes domínios territoriais é muito contestável.
Eles não passavam de extensas reservas do fazendeiro, que nunca teve braços suficientes
para os cultivar, e que os adquiriu na esperança de acumular fortuna destinada a seus
herdeiros.
A realidade, pois, desses domínios, a sua realidade útil, era nenhuma.
Obrigar o proprietário a dividir essas terras, a constituí-las em lotes de pequenas dimensões,
para que possam ser cultivadas, é torná-lo rico, mesmo contra a vontade.
O trabalho livre há de consolidar a propriedade agrícola da Província422.
419
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1889 (primeiro relatório), p.27.
420
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1889 (primeiro relatório), p.143.
421
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1889 (primeiro relatório), p. 145.
422
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – SÃO PAULO, 1889 (primeiro relatório), p.145.
111
423
Cf. LAFORET, Maria Regina Capdeville. “A colônia de Nova Friburgo” in: Teia Serrana: Formação Histórica de Nova
Friburgo. Coordenação de João Raimundo de Araújo e de Jorge Miguel Mayer. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2003,
capítulo 2, p. 49-50.
424
Cf. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, capítulo VII,
p.131.
425
O relatório, por ter sido apresentado à Assembléia provincial em 8 de setembro de 1870, não está, a rigor, dentro do
limite temporal definido para este trabalho. No entanto, pelo fato de ter sido impresso em 1871, pela proximidade das datas e
pela própria relevância de seu conteúdo, decidimos incluí-lo nesta análise, do mesmo modo como qualquer outro relatório do
período 1871-1889.
112
426
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1870 (segundo relatório), p. 54. As terras
citadas pela Câmara de Nova Friburgo estavam, de acordo com ela, situadas em áreas de difícil acesso, no alto das serras,
enquanto que aquelas mencionadas pela câmara de Rio Claro, localizadas na Freguesia de Santo Antônio do Capivari, no alto
da serra de Angra dos Reis e Mangaratiba, achavam-se ocupadas por foreiros. Nas terras devolutas existentes em
Mangaratiba, na região de Jacareí e Ingaíba, havia, de acordo com a Câmara Municipal, pessoas afirmando possuir direitos
sobre as mesmas.
427
Além dos municípios mencionados, devemos lembrar o de Itaboraí, cuja Câmara Municipal, de acordo com o relatório,
afirmou não possuir terras devolutas, a menos que se considerassem como tais as terras do antigo aldeamento indígena de São
Barnabé, na paróquia de Nossa Senhora das Dores de Itambi. Mesmo assim, essas terras já estavam ocupadas por foreiros e
arrendatários. Os municípios de Araruama, Barra de São João, Petrópolis, São Fidélis e Saquarema não forneceram qualquer
informação ao governo provincial sobre a existência, ou não, de terras devolutas em seus territórios. Cf. RELATÓRIO
DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1870 (segundo relatório), p. 54.
428
Cf. COSTA, Emília Viotti da. op. cit., parte I, capítulo 2, p.119.
429
Na página do Center for Research Libraries (site onde estão disponíveis, em internet, os relatórios e que está indicado no
final deste trabalho, junto às fontes), cometeu-se um erro, ao indicar que o presidente em exercício, em 8 de setembro de
1870, era o Conselheiro Josino do Nascimento Silva, ao invés de José Maria Corrêa de Sá e Benevides (nome que consta da
página de abertura do relatório). O Conselheiro Silva foi, de fato, presidente do Rio de Janeiro, porém entre 1871 e 1872. Cf.
LACOMBE, Lourenço Luiz. Os chefes do Executivo fluminense. Petrópolis: Ministério da Educação e Cultura, 1973, p.39-
41.
430
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1870, p. 55.
431
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p.24-25.
113
Joaquim Cornélio dos Santos432. O presidente reproduziu, nas páginas do relatório, as regras
da colônia, que previam a concessão gratuita de terras a imigrantes, no segundo parágrafo do
artigo II433. De acordo com o relator, viviam na colônia 18 famílias, originárias das Canárias,
num total de 90 pessoas, e os colonos estariam “satisfeitíssimos434”. Não temos, aqui,
obviamente, meios de confirmar ou refutar tal afirmação; mas podemos supor que o acesso a
terra deveria constituir para os colonos um real incentivo, ainda que se tratasse, no caso, de
cessão de domínio útil, e não da terra enquanto propriedade jurídica do colono. Por esse
prisma, podemos comparar tal iniciativa às idéias pregadas por Beaurepaire-Rohan.
Percebemos assim, através do relatório apresentado por José Godoy e Vasconcellos, a
defesa do imigrante como opção para o trabalho escravo nas fazendas. Para atrair o europeu, o
presidente apoiou a aquisição de terra para este. O camponês nacional tampouco deixou de ser
incluído como alternativa. Vasconcellos citou o caso do Joaquim Floriano de Godoy, senador
por São Paulo, que afirmou que outrora tinha uma “má opinião” do trabalhador nacional, mas
que mudara de idéia a respeito435. O senador apresentou dados – que foram reproduzidos no
relatório - para comprovar o elevado número de trabalhadores rurais nacionais desocupados.
Segundo tais dados, o total de “braços livres desocupados” em seis províncias (Minas Gerais,
Ceará, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro) era de 2.822.583 pessoas, em
contraposição aos 650.540 escravos e 1.434.170 braços livres empregados nas lavouras das
mesmas províncias436. O número de camponeses “desocupados” ultrapassaria, portanto, a
soma da população de escravos e dos trabalhadores rurais “ocupados”.
É possível notarmos que, assim como no caso de Milet, Beaurepaire-Rohan e tantos
outros, o acesso à terra por parte de setores menos abastados da sociedade era defendido com
o claro intuito de formar um estoque de mão-de-obra para as fazendas, valorizando-se o
imigrante, mas também o elemento nacional. Comparando-se, porém, com o que se passava
naquele momento em São Paulo, a Província do Rio de Janeiro parecia distanciada do
programa de colonização, fato denunciado por José Cesário de Faria Alvim no relatório
apresentado em Niterói no dia 9 de março de 1885 à Assembléia Legislativa Provincial437. A
própria defesa de uma política imigratória para o Rio de Janeiro somente passou a ser mais
constante nos anos finais do Império, quando a extinção da escravidão já estava prestes a ser
sancionada. E, quando isso se verificou, nos deparamos novamente com a idéia de facilitar ao
432
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p. 26-27.
433
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p. 28.
434
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p.27.
435
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p. 33.
436
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1884, p.33-34.
437
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1885 (primeiro relatório), p. 10.
114
imigrante o acesso a terra, conforme ficou exposto em relatórios referentes aos anos de 1886,
1887 e 1888. No documento de 1886, o presidente Antônio da Rocha Fernandes Leão afirmou
que:
[...] é necessário facilitar ao imigrante a aquisição de terras férteis, situadas nas proximidades
dos centros populares e mercados consumidores e servidos por boas vias de comunicação
[...].
Nesta província me parece de conveniência preferir para esse fim os terrenos marginais das
estradas de ferro que gozam de garantia de juros, os da estrada de ferro de Cantagalo nas
proximidades desta capital, Teresópolis, cujo clima e fertilidade permitem todas as culturas
européias, e finalmente os municípios marítimos do extremo sul438.
438
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA - RIO DE JANEIRO, 1886, p.11.
439
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA - RIO DE JANEIRO, 1887, p. 43.
440
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1888, p. 89.
441
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – RIO DE JANEIRO, 1888, p. 89.
115
442
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p. 36.
443
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p.40.
444
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p.40.
445
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p.40.
446
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p.40.
447
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p. 40.
448
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (primeiro relatório), p.40.
116
Num relatório apresentado em 1871, após a aprovação da Lei do Ventre Livre, foi
comunicada a conversão em 13 de outubro daquele ano, da antiga Colônia Militar de
Pimenteira em uma colônia agrícola nacional, com a mesma denominação449. O presidente
Manoel do Nascimento Machado Portella informou que as terras seriam demarcadas e
medidas pelo engenheiro Luis José da Silva e destacou a localização da colônia em terras
férteis e afirmou que nela os nacionais deveriam ter preferência sobre os estrangeiros450. Já
havia na área de Pimenteira, pelo que se pode ler no relatório, uma população de 1.123
pessoas e que mostrava-se “laboriosa e dominada pelo desejo de se constituir proprietária451”,
no que seria estimulada pelo governo. Mais adiante, o relator aludiu ao intento do governo
provincial em demarcar e medir terras do aldeamento do Riacho do Mato, intento esse
frustrado por estar o aldeamento submetido à legislação especial “reguladora dos aldeamentos
dos índios452”.
A referência às populações indígenas, já perceptível no caso do Riacho do Mato,
voltou á tona em diversos relatórios posteriores, inclusive no de 1874, em que foi citada a
extinção do referido aldeamento453. Se tal ato pareceu indicar a existência de uma política
fundiária lesiva aos interesses dos índios, outras medidas encontradas nos documentos
apontam para a existência de uma preocupação em garantir lotes de terras às famílias nativas.
No primeiro relatório de 1875, o desembargador Henrique Pereira de Lucena abordou os
problemas das populações de aldeamentos, citando inclusive a espoliação de que seriam
vítimas os índios pelos brancos454. Propôs ele a distribuição de lotes de terra de 22,500 braças
quadradas às famílias de índios “que se mostrarem amigas do trabalho e capazes da atividade
agrícola455”, com a medição e demarcação das terras dos extintos aldeamentos da Escada, São
Miguel e do próprio Riacho do Mato456. No segundo relatório apresentado em 1875, também
por Lucena, fez-se menção à futura distribuição de lotes pelos habitantes de Ipanema,
aldeamento extinto naquela época457. Em 1877, o presidente Manoel Clementino Carneiro da
Cunha citou a distribuição de lotes a 243 índios do já citado aldeamento do Riacho do Mato,
afirmando que se estava procedendo a igual serviço nas extintas aldeias de Brejo dos Padres
(comarca de Tacaratu) e Ipanema (em Águas Belas)458. No relatório apresentado em 20 de
449
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (segundo relatório), p. 23.
450
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (segundo relatório), p. 24.
451
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (segundo relatório), p. 24.
452
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1871 (segundo relatório), p. 24.
453
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1874, p. 63.
454
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1875 (primeiro relatório), p. 146.
455
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1875 (primeiro relatório), p.147.
456
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1875 (primeiro relatório), p. 146-147.
457
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1875 (segundo relatório), pg.10.
458
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1877 (primeiro relatório), p. 80.
117
maio de 1878 – que examinaremos mais adiante – fez-se referência a uma série de
distribuição de lotes a índios, inclusive em antigos aldeamentos como o de Riacho do Mato e
São Miguel de Barreiros459.
Como podemos verificar, políticas de incentivo a pequena propriedade eram apoiadas
abertamente pelas autoridades pernambucanas, que em diferentes documentos incluíram em
seus planos tanto os índios como os nacionais e os imigrantes. No relatório de 1879, a
“pequena lavoura” foi diretamente elogiada por fornecer a base da alimentação da
população460.
Em meio às freqüentes demonstrações de simpatia do governo provincial pela pequena
propriedade rural, um trágico evento impulsionou o incentivo oficial a tal sistema agrário,
levando o governo a financiar importantes experiências de colônias agrícolas nacionais: a
grande seca de 1877-79 que assolou várias províncias do Norte461. No relatório apresentado
em 15 de fevereiro de 1878 pelo desembargador Francisco de Assis Oliveira Maciel ao vice-
presidente Adelino Antônio de Luna Freire, foi anunciada a intenção do governo de criar uma
colônia agrícola em Riacho do Mato, para abrigar os retirantes da seca462, que então afluíam
em grande número em Pernambuco.
Em 20 de maio do mesmo ano de 1878, o vice-presidente, em seu relatório
apresentado ao presidente Adolfo Barros Cavalcante de Lacerda, inseriu um importante texto
escrito pelo já citado engenheiro Luiz José da Silva. Este narrou a fundação, no mês de abril,
da Colônia Socorro, em Riacho do Mato463, dirigida pelo Frei Cassiano de Comachio e
contando, até o momento em que escreveu, com 700 retirantes464, todos “míseros” e
“maltrapilhos465”, tendo recebido, de acordo com o engenheiro, rações, sementes e utensílios
agrícolas. Silva revelou-se um grande defensor da democratização do solo, tendo elogiado a
iniciava governamental de criar a colônia e citado André Rebouças, tido por ele como “uma
das glórias do nosso país466”. O engenheiro propôs também a desapropriação de terrenos
459
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878 (segunda parte), p. 49-50. O relatório
está dividido em duas partes: a primeira, da página T-1 à página 12, correspondente ao texto apresentado em 15 de fevereiro
de 1878, e a segunda, que vai da segunda página T-1 à página 52, correspondente ao relatório apresentado em 20 de maio de
1878.
460
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1879 (lido em 19 de dezembro de 1878, mas
impresso em 1879), p. 62.
461
A região Norte aqui é entendida como compreendendo tanto atuais estados do Norte como do Nordeste, levando-se em
consideração que no Brasil imperial a diferenciação entre regiões se dava, sobretudo, entre as províncias do Sul e as do
Norte, conforme registrado por Evaldo Cabral de Mello (1999).
462
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878 (primeira parte), p.9-10.
463
O relatório apresentado por Lourenço Cavalcanti de Albuquerque em 1º de março de 1880 informou, na página 35, que a
colônia foi fundada em 3 de abril de 1878 e transferida no dia 16 de abril para o local denominado “Sertãozinho”.
464
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878, (segunda parte), p. 9.
465
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878, (segunda parte), p. 8.
466
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878 (segunda parte), p. 8.
118
contíguos ao antigo aldeamento - denominados Tabocas e Tombador – para que, anexados aos
existentes no lugar chamado Pau Brasil, pudessem estabelecer um grande número de
retirantes467. As idéias agrárias reformistas de Luiz José da Silva ficaram bem evidenciadas
num trecho, que reproduzimos em seguida:
[...] permita que congratule-me com V. Exc. pela sua acertada iniciativa468, que nada mais é
do que a realização de uma medida de importante alcance econômico: a divisão da grande
propriedade rural, e como conseqüência imediata a fundação da pequena lavoura e da
colonização nacional, com os benéficos resultados que se traduzem nas sublimes palavras –
democracia rural -; igualmente conceda que repita o que a respeito disse no relatório
apresentado ao desembargador Lucena(único dos presidentes da situação passada, que
alguma coisa meritória realizou nesta província) por ocasião de dar conta dos trabalhos
executados na colônia Isabel. “Hoje é esta uma das mais ativas questões da propaganda dos
mais adiantados publicistas sinceramente desejosos do aumento progressivo deste auspicioso
país. Quem conhece o interior de nossas províncias terá por mais de uma vez se contristado
com o espetáculo desolador de suas vastas propriedades rurais. A par da esplendia
magnificência da natureza, o mais completo abandono de seus possuidores! Que importa a
espantosa fertilidade do solo, que compensa na razão centupla aqueles que se utilisam de sua
fecunda produção? Aqui mesmo nesta província, para plena convicção do exposto, basta
percorrer-se a estrada de ferro de S. Francisco. Extensos domínios apenas com insignificante
área cultivada, o silencio e o desânimo por toda a parte! Como explica-se tanta pobreza no
centro das mais opulentas riquezas?”
Terminando, ainda empregarei as frases de ouro do ilustre engenheiro Rebouças, encontradas
em seus escritos de propaganda recentemente publicadas, onde esse insigne pugnador do
progresso do nosso país, coloca-se na altura de seu real merecimento.
Eis as suas palavras: “Fixar os retirantes nessas terras, subdivididas em lotes coloniais, é
irrecusavelmente o melhor dos projetos para combater e minorar a calamidade atual e
prevenir sua repetição no futuro469. [...]
Raramente, num relatório oficial, verificou-se uma defesa tão acerba da pequena propriedade
rural combinada com uma crítica direta ao latifúndio; percebemos também a similitude de
pontos de vista entre os engenheiros José Silva e André Rebouças quanto à questão agrária.
Nos relatórios seguintes, novas informações foram fornecidas sobre a Colônia
Socorro, comprovando inclusive o seu crescimento populacional, tendo chegado a reunir, de
acordo com o presidente Franklin Américo de Menezes Doria, 8.000 retirantes470. O
historiador Evaldo Cabral de Mello referiu-se a essa experiência agrícola, afirmando que a
Colônia Socorro, fundada no município de Palmares, tivera como objetivo declarado
“fomentar a divisão da grande propriedade, lançando as bases da policultura” e “da pequena
lavoura471”. No relatório apresentado em 18 de setembro de 1879, o presidente Adolfo de
Barros Cavalcanti de Lacerda destacou o progresso da colônia, classificando-a de “importante
467
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878, (segunda parte), p. 9.
468
Referência à criação da Colônia Agrícola Socorro.
469
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1878 (relatório de 20 de maio), p. 10.
470
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1881(primeiro relatório), p. 50.
471
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império: 1871-1889. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, p.91.
119
A pequena lavoura, em que tão espontâneo se ostenta o solo desta província, ainda não
satisfaz às exigências do consumo, tanto que são importados em grande escala dos países
estrangeiros e de outras províncias produtos semelhantes de tal espécie de lavoura477.
472
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1879 (segundo relatório), p. 7.
473
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. op. cit., p.91.
474
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1880 (quinto relatório), p. 13.
475
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1880 (quinto relatório), p.14.
476
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1881 (primeiro relatório), p.50.
477
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1881 (primeiro relatório), p.90.
120
Constando ao Ex. Sr. Ministro e secretário de Estado dos Negócios de Agricultura que nesta
província há proprietários que possuem mais de uma propriedade agrícola, onde, por falta de
trabalhadores, desejam estabelecer imigrantes para cultivá-las, dividindo-as em lotes de terra
mediante concessões vantajosas, tenho resolvido, no intuito de habilitar o Governo Imperial
a providenciar a respeito, convocar para o dia 19 de fevereiro, próximo vindouro a 1 hora da
tarde neste Palácio, uma reunião de agricultores e outras pessoas, diretamente interessadas
pelo progresso e prosperidade da lavoura da província478.
Vê-se que havia, portanto, a idéia de uma divisão de terras, ainda que numa perspectiva
conservadora, já que seu vínculo com a questão da mão-de-obra para a lavoura transpareceu
com clareza. Também devemos ter em mente a preocupação, afirmada publicamente, com a
imigração estrangeira a Pernambuco, política que, como se sabe, não teve os mesmos êxitos
que no Sul do Império; conforme assinalado por Evaldo Cabral de Mello, o Norte do país, em
matéria de imigração, não recebeu a mesma atenção dispensada pelo Governo Imperial às
províncias do Sul479. “As poucas tentativas de estabelecer imigração para o nordeste
fracassaram por ausência de uma política imigrantista definida para a região480”.
Nova referência foi feita, no relatório de 1887, quanto ao malogro das políticas
voltadas para a pequena propriedade. O Presidente Pedro Vicente de Azevedo – que, como já
pudemos observar, foi citado como sendo o Presidente da Província de São Paulo em 1889 -,
dirigindo-se à Assembléia Provincial de Pernambuco no dia de sua instalação, em 2 de março
daquele ano, denunciou os problemas de abastecimento que marcavam diversas regiões do
país em decorrência do predomínio do latifúndio. Eis o texto:
A pequena lavoura, que compreende a cultura de cereais, frutos, legumes e outros gêneros,
não oferece a quantidade necessária para o consumo da capital e dos centros produtores em
sua totalidade.
É assim que figuram entre os gêneros importados o feijão, o milho, o arroz, a farinha de
mandioca, a goma, etc, etc, quando a província podia produzi-los, não só para o
abastecimento de seus mercados, como ainda para exportar.
Não é que falte á província terras uberrimas e apropriadas para qualquer gênero de cultura,
nem as vantagens de procura e compensação nos mercados. A pequena lavoura,
completamente desprezada por causa da cultura da cana e do algodão, vai definhando
consideravelmente481.
478
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1885 (segundo relatório), p. 38.
479
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império: 1871-1889. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
480
Cf. FARIA, Sheila de Castro. Verbete: “Imigrantismo” in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 355.
481
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1887 (primeiro relatório), p.60.
121
vários relatórios, para somente voltarem a ser fornecidas em 1887. Um texto datado de 30 de
novembro daquele ano e anexado ao segundo relatório referente a 1888, escrito pelo Inspetor
Especial de Terras e Colonização, José Ozório de Cerqueira, apresentou um estudo
objetivando impulsionar projetos de colonização nacional e estrangeira. Mencionou então as
terras da antiga Colônia Socorro como uma opção para a colonização, revelando, porém,
preferência, como sede do 1º núcleo colonial a ser fixada, as propriedades Fervêdor e
Brejinho, mais próximas, segundo ele, da capital482.
Nos anos finais do Império encontramos algumas das mais significativas referências a
políticas de promoção da pequena propriedade fundiária, dentro do contexto de supressão da
escravidão. No relatório apresentado em 15 de setembro de 1888, meses após o 13 de Maio, o
presidente provincial Joaquim José de Oliveira Andrade recomendou aos ex-senhores que
concedessem certos direitos aos ex-escravos para mantê-los em suas fazendas; entre esses
direitos figurou o de possuir uma pequena lavoura483.
A questão da mão-de-obra, como em outras províncias, suscitou também a
preocupação, entre os dirigentes de Pernambuco, em atrair o imigrante europeu, aproveitar o
trabalho do liberto e o do camponês nacional. Referindo-se aos libertos, Andrade afirmou ter
aconselhado os proprietários no sentido de que “se aproveitassem dos emancipados existentes
no Ceará, que desejavam passagens para esta província484”.
Em relação aos imigrantes, Andrade reproduziu um texto da Sociedade Promotora da
Colonização e Imigração de Pernambuco apoiando, entre outras medidas para o incentivo à
imigração espontânea, a concessão de “lotes de terras apropriadas à cultura”, a serem
vendidos por um “preço razoável485”. A utilização de imigrantes na lavoura foi defendida em
associação com a colonização nacional; de acordo com o presidente, o imigrante permitiria
introduzir culturas novas e instrumentos agrícolas não utilizados no Brasil, estimulando o
brasileiro “pobre, indolente e mal preparado para o trabalho486”. Percebemos aí claramente a
presença de um corriqueiro preconceito contra a mão-de-obra nacional.
Encontramos a indicação de que medidas efetivas chegaram a ser ensaiadas pelo
governo de Pernambuco. Ainda no relatório de 15 de setembro de 1888, assinalou-se a
concessão de um crédito de cinqüenta contos de réis para a fundação de núcleos coloniais na
província e a instituição de um ato imperial em 18 de janeiro de 1887 incumbindo o
482
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888 (segundo relatório), AJ-4 e AJ-5.
483
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888(primeiro relatório), p.3.
484
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNMABUCO, 1888 (primeiro relatório), p. 63.
485
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888 (primeiro relatório), p. 61-62.
486
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888 (primeiro relatório), p. 64.
122
engenheiro Licurgo José de Mello de explorar a zona das terras devolutas que melhor se
prestassem à colonização em Pernambuco487. A fundação de núcleos coloniais, contudo,
esbarrou, de acordo com o relator, na falta de terras devolutas nas proximidades de estradas de
ferro, o que exigiria a compra de terras particulares, acarretando aí uma despesa
consideravelmente maior488.
Novas informações quanto à concessão de meios financeiros para a fundação de
núcleos coloniais reapareceram nos últimos relatórios de presidentes da Província de
Pernambuco. Como em outras províncias, o incentivo real à pequena propriedade parecia se
fazer dentro da ótica de beneficiar a grande lavoura, fornecendo-lhe uma mão-de-obra
abundante. Todavia, em Pernambuco o governo pareceu demonstrar uma simpatia maior em
relação à pequena propriedade rural. Nesse sentido, concluiremos o capítulo III com a
reprodução de um trecho redigido pelo Barão de Caiará em seu relatório de 1889, em que
registrou um caso bastante interessante para a nossa pesquisa, que foi o de concessão de terras
a pequenos posseiros:
Tendo em consideração que muitos nacionais se acham sem terras para as suas plantações,
tendo sido sempre ocupados nos trabalhos da lavoura, merecendo do governo os favores que
devem garantir sua manutenção e de suas famílias, e atendendo que muitos têm solicitado
comprar lotes na fazenda Suassuna, residindo há muito tempo nessa propriedade onde
possuem casas e plantações, e sendo de benefício comum localizá-los, acrescendo que entre
os requerentes encontra-se ex-praças do exercito, voluntários da pátria, com direito ao prazo
de terras determinado na lei, em qualquer das colônias do Estado, autorizo V. S. a designar-
lhes os respectivos lotes, com cláusulas garantidoras para o roteamento das terras e
pagamento de sua importância, recebendo-a mensalmente dos que se propuserem o fazer e
anualmente dos demais, para o que se expedirá títulos provisórios, que, findo o pagamento,
serão substituídos pelos definitivos, convindo que fiquem reservado 50 lotes rústicos e 100
urbanos, devendo verificar-se as despesas efetuadas e divididas proporcionalmente segundo
a área e natureza das terras, afim de fixar-lhe o preço de cada lote489.
Essa atitude do barão, somando-se a outros atos mencionados ao longo deste capítulo e do
anterior, demonstra que, ao menos para parte dos dirigentes imperiais, o trabalhador nacional
era visto com alguma simpatia, bem como a possibilidade deste de ter acesso a terra. Teremos
uma ocasião importante para apreciaremos essa postura ao analisarmos os debates políticos
em tornos de uma eventual reforma agrária, assunto do último capítulo deste trabalho, situado
em seguida.
487
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888 (primeiro relatório), p. 63.
488
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1888 (primeiro relatório), p. 63.
489
Cf. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA – PERNAMBUCO, 1889 (quinto relatório), p. 35.
123
4
DEBATES POLÍTICOS E A PERSPECTIVA DE
EFETIVAÇÃO DE UMA REFORMA AGRÁRIA
Em 1880, o governo dirigido pelo liberal José Saraiva apresentou aos deputados, por
intermédio do Ministro da Agricultura, Manoel Buarque de Macedo (deputado por
Pernambuco490), um projeto de modificação de algumas disposições da Lei n. 601 de 18 de
setembro de 1850 (a Lei de Terras) - projeto esse já mencionado no capítulo II. Nas páginas
dos Anais Parlamentares da Câmara dos Deputados correspondentes à sessão do dia 22 de
setembro foi reproduzido o referido projeto, de número 121. Este alterava a Lei de Terras ao
permitir o governo de “dispor das terras devolutas, vendendo-as, aforando-as ou concedendo-
as a título gratuito”491. Também previa um cadastro das terras, de maneira a permitir a
discriminação das terras cultivadas e das não-cultivadas, além de uma reforma da Inspetoria
490
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império: 1871-1889. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: 1999, p.82.
491
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 5, p.160.
124
Geral de Terras e Colonização492. Conforme estipulava em seu artigo 6º, o produto da venda e
aforamento das terras seria aplicado exclusivamente com o serviço de discriminação das
terras públicas e das terras particulares e com a posterior medição e divisão das terras
devolutas493. Também deveria ser utilizado para prover a construção de estradas coloniais e a
aquisição de terras para imigrantes. Observamos aí a já citada articulação entre a questão da
terra e a da mão-de-obra. O parecer das comissões de fazenda, estatística e de colonização –
assinado no dia 24 de setembro por Soares Brandão, Saldanha Marinho, Barros Pimentel, José
Caetano, J. M. Malheiros e Bezerra Cavalcanti – foi favorável ao projeto, com algumas
ressalvas que não alteravam o seu “espírito”494. O parecer destacou o fato de que a proposta
tinha como meta principal facilitar a obtenção de terras devolutas para a colonização
estrangeira e, principalmente, a colonização nacional, “de que não cogitou a citada lei de
1850”495.
A reforma da legislação fundiária proposta por Buarque de Macedo foi tema de
importantes debates, pelo que podemos verificar ao abordarmos uma sessão extraordinária de
22 de dezembro de 1880496, quanto o próprio ministro defendeu seu projeto perante os
deputados. Pelo que se pode perceber da fala dos oradores, tratava-se já de um projeto
substitutivo ao original, mas com as principais linhas deste mantidas. Ao longo do debate,
sobressaíram-se os deputados Martinho Campos (deputado por Minas Gerais), Antônio Carlos
(deputado por São Paulo) e, sobretudo, Manoel Alves de Araújo, como veremos mais adiante.
Os dois primeiros teceram críticas importantes ao projeto, sobretudo Martinho Campos, que
criticou tanto a venda a prazo como o aforamento, previstos no projeto, defendendo a plena
manutenção da Lei de Terras. Para Campos, o projeto incentivava a doação gratuita de terras;
para ele, inclusive, o aforamento na prática já seria uma forma de concessão gratuita. Segundo
o deputado, a “concessão gratuita de terras é um mau princípio, ao qual não devemos voltar, e
o aforamento de terras não é senão uma concessão gratuita, atenta à dificuldade presumível da
cobrança de foros497”. Campos teceu uma crítica à política de concessão gratuita de terras para
pessoas abastadas, que para ele poderia levar a uma excessiva concentração fundiária. Foi
também categoricamente contrário à concessão de terras a pessoas pobres, pois elas não
disporiam dos meios adequados para desenvolver os lotes que lhes fossem entregues pelo
492
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 5, p.160.
493
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 5, p.160.
494
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 5, p.167.
495
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 5, p.167.
496
Tal sessão encontra-se transcrita no volume 6 dos Anais refeentes ao ano de 1880. A notar, contudo, que o livro disponível
no IHGB indica, em sua lombada, a numeração “4”, enquanto que a capa original dos Anais assinala corretamente o número
“6”.
497
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.445.
125
governo. Este último acabaria tendo de vir em seu auxílio498, acarretando despesas para os
cofres públicos, não sendo, portanto, uma solução racional, de acordo com o deputado.
Respondendo às críticas formuladas por Martinho Campos, o Ministro Buarque de
Macedo afirmou que o projeto original continha de fato a idéia de concessão gratuita, mas que
havia sido retirada do projeto substitutivo499. Macedo defendeu a venda a prazo e o foro,
tendo como beneficiários o colono estrangeiro ou o nacional500. Podemos identificar, nessa
defesa, uma preocupação em incentivar a pequena propriedade rural. De acordo com Macedo,
tanto o foro como a venda a prazo eram medidas essenciais para permitir que os colonos se
tornassem proprietários. “Se não tivermos a venda a prazo, dificilmente poderemos esperar
que no nosso país o colono se torne proprietário501”, afirmou o ministro, que destacou ainda o
fato de que a venda a prazo, na prática, já era efetuada nos núcleos oficiais, em que os colonos
recebiam seus lotes e pagavam por eles ao longo de um período. Já em relação ao foro, o
ministro argumentou que essa medida seria uma forma de se evitar grandes conflitos entre o
Estado e os indivíduos que haviam se apossado de terras públicas; na opinião do político, uma
eventual reconquista dessas áreas pelo Estado não se faria sem uma “luta terrível”, que devia
ser evitada502. Lembrou, a esse respeito, que grande parte da cidade de Curitiba se achava
ilegalmente ocupada; para recuperar as terras, o conflito seria intenso, de “tristíssimos
resultados503”. O estabelecimento de um foro módico a ser pago por aqueles indivíduos seria
uma chance para eles de legalizar sua situação e ao mesmo tempo atenderia aos interesses do
Estado. Em suma, de acordo com Buarque de Macedo, a proposta sugerida agradaria a gregos
e troianos. Para ele, o foro tinha o mérito de “oferecer um meio pelo qual pode o governo de
alguma forma observar a lei e auferir certas vantagens dessas propriedades que se acham
indevidamente em poder de particulares504”. Podemos observar aí a velha preocupação em
garantir o cumprimento da legislação agrária e também uma preocupação com a ordem, que
voltou a ser expressa, como veremos, em outros momentos do debate.
Uma importante intervenção, que devemos abordar, foi a de Antônio Carlos, deputado
por São Paulo, comentando o projeto de reforma relativo às terras devolutas. Menos
intransigente do que Campos, Antônio Carlos apoiou a instituição de um foro que garantisse
ao foreiro um domínio útil da terra e ao governo, a conservação de sua propriedade505.
498
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.444.
499
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.445.
500
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.446.
501
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.446.
502
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.446.
503
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.446.
504
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.446.
505
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447-448.
126
O grande desejo, a maior aspiração que devemos ter é estabelecer uma população numerosa,
sã de corpo e de espírito, que venha tomar a si o aproveitamento das riquezas sem conta que
encerram as entranhas desta terra do Brasil; isto deve se dar, parece-me, não só levantando
estabelecimentos de cultura, mas organizando a propriedade de modo tal que seja lícito
esperar a criação de grandes viveiros de trabalhadores, que preencham as necessidades de
nossa agricultura. É por isto que no projeto atual a medida de maior importância para mim é
aquela que autoriza o governo a aforar perpetuamente, a dar em emprazamento as terras
devolutas àqueles que a quiserem cultivar e estabelecer-se nelas506.
Tal medida permitiria, segundo ele, reunir um “grande número de braços em pontos
determinados507”, devendo-se procurar fixar o camponês ao solo. Antônio Carlos articulou o
aforamento à política de incentivo à imigração, demonstrando seu apoio à vinda de imigrantes
europeus para o meio rural brasileiro. Num curioso momento de sua fala, o deputado chegou a
defender a vinda ao Brasil de socialistas alemães, alegando que aqui eles não causariam os
males que poderiam causar em seu país, uma vez que o Brasil ofereceria melhores condições
para que satisfizessem suas necessidades508. Também é interessante registrarmos o modo
como o deputado elogiou o socialismo científico, contrapondo-o ao socialismo acima citado.
Segundo Antônio Carlos,
Quando eu falo dos socialistas, me refiro aos abusos praticados em nome de um pretenso
socialismo, mas não ao socialismo considerado cientificamente, porque a crítica social da
organização, quer da propriedade, quer da sociedade em geral, é coisa muito diversa daquela
espécie de socialismo a que me referi, é coisa que merece o nosso estudo e em grande parte a
nossa aprovação509.
Observamos uma preocupação em fazer certas concessões aos meios populares, dentro de
uma perspectiva ordeira. O aforamento perpétuo era visto pelo deputado como garantidor de
uma propriedade indiscutível, um “domínio útil que não pode ser tirado510”, capaz de ligar o
camponês ao solo, ao mesmo tempo em que mantinha a propriedade jurídica nas mãos do
governo. Martinho Campos criticou a proposta de aforamento, estimando que o colono não se
satisfaria com a concessão do domínio útil. Antônio Carlos retrucou, e em sua resposta
obtemos elementos que permitem esclarecer uma idéia por trás do projeto, qual seja a de
conceder para preservar, como ficou claro no seguinte trecho:
506
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447.
507
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447.
508
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447.
509
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447.
510
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.447.
127
[...] Compreendo que se prefira o domínio absoluto quando é possível tê-lo, notando o nobre
deputado que agora não se trata de proprietários, mas das terras do governo. Não obstante,
quero responder ao aparte do nobre deputado. Se não quiserem dividir o domínio, tempo virá
em que serão obrigados a vender as suas terras por um preço diminuto ou vê-las sem valor
algum, e então perderão muito mais511.
A última frase soava como um alerta aos fazendeiros, numa bela demonstração de
clarividência política. O deputado, longe de pretender atacar os grandes fazendeiros, via as
concessões de domínio útil como plenamente conciliáveis com os seus interesses. Para
Antônio Carlos,
O meu desideratum é atingir a dois fins, já que me levaram para esta digressão: conservação
da grande propriedade ao mesmo tempo com parcelamento dela, o que parece uma
contradição, mas que se realiza pelos contratos de emprazamento; a propriedade parcela-se,
mas conserva-se em sua generalidade na mão do grande proprietário que, se for inteligente,
terá dez mil vezes mais influência do que tem hoje512.
Como podemos verificar, há uma similitude entre as idéias pregadas por Antônio Carlos e
aquelas apoiadas dois anos antes por Beaurepaire-Rohan, quando propusera a subdivisão das
grandes propriedades com a manutenção da propriedade jurídica das terras nas mãos de cada
fazendeiro.
Dentre os demais oradores focalizados na sessão de dezembro de 1880, houve um que
se destacou dos demais, quanto à defesa de uma política de redistribuição de terras em
benefício dos setores mais desfavorecidos: Manoel Alves de Araújo, deputado pelo Paraná.
Em sua intervenção referente ao projeto de reforma da Lei de Terras, o político foi enfático no
apoio à instituição de uma política que levasse em conta os interesses tanto do camponês
nacional como do imigrante, além de referir-se de modo muito favorável ao indígena.
Araújo considerou que algumas disposições da Lei de Terras deveriam ser
modificadas. Ele criticou a concentração fundiária desenvolvida desde os tempos da
aprovação da Lei, estimando que os pequenos agricultores não haviam lucrado com nenhum
dos benefícios previstos pela Lei513. Defensor da colonização nacional, o deputado lembrou,
muito oportunamente, que a Lei – aspecto pouco divulgado - previra algum estímulo à
colonização nacional em seu artigo 21514, além de ter reservado terras para a colonização de
índios e a fundação de povoados. A não-observância dessas disposições constituía, para
511
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.448.
512
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.448.
513
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.449.
514
Conforme pode ser observado no texto integral da Lei de Terras, reproduzida no Anexo A.
128
Araújo, uma prova inequívoca de que havia algum vício na Lei que deveria ser removido515.
Um dos caminhos por ele sugeridos foi a criação de colônias nacionais. Segundo o deputado,
As leis do trabalho, Sr. Presidente, oferecem um presente sombrio por qualquer face porque
as encaremos, e é minha opinião, que entre as medidas que garantam o melhor futuro é das
mais urgentes o estabelecimento de colônias nacionais, pelas maiores facilidades que a
modificação da lei das terras deve oferecer aos filhos do país, que são os donos desta terra516.
A linguagem utilizada foi, como vemos, bastante avançada, em favor dos “filhos do país,
donos desta terra”. Araújo estendeu-se sobre o projeto de colônias nacionais, defendendo a
concessão gratuita para um grande número de famílias pobres. Essa medida, segundo ele,
traria inúmeros benefícios ao país, tendo ele enumerando esses benefícios. Citou a melhoria
no abastecimento de alimentos, o reforço das receitas através do recolhimento de mais
impostos, a fundação de povoados e o aumento da segurança nas áreas mais afastadas e o
aumento do valor das terras próximas às terras coloniais517. Partindo do pressuposto de que a
criação de um grande número de colônias nacionais seria mais difícil nas províncias mais
ricas e populosas, onde o valor da terra era elevado e seriam raras as terras públicas518, Alves
de Araújo recomendou sua implantação em províncias em que a desproporção entre a
extensão do território e a população seria muito forte, como Goiás, Mato Grosso, Amazonas e
o próprio Paraná, além de várias outras519. Ou seja, tratava-se um plano adaptável para um
grande número de regiões brasileiras.
Incluindo em sua defesa da colonização nacional a idéia de concessão gratuita, Alves
de Araújo explicou que a concessão definitiva da terra ao camponês seria efetuada após a
passagem de um período de tempo, em que este pudesse se dedicar ao lote atribuído a ele pelo
governo e assim se mostrar merecedor de tal ato520. Apoiou com firmeza o camponês
nacional, denunciando as discriminações que este sofria em proveito do imigrante europeu.
Em suas palavras,
515
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.449.
516
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.449.
517
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.450.
518
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.450.
519
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
520
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.450.
521
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.450.
129
Ficou nítida nesse trecho a crítica ao tratamento dado pelo poder público ao trabalhador rural
brasileiro, bem como o espírito progressista que marcava a idéia de reforma da Lei de 1850,
na visão do deputado do Paraná. Igualmente transpareceu uma pioneira preocupação
ecológica, na denúncia à devastação das matas. Por outro lado, em outro momento, Manoel
Alves de Araújo demonstrou um claro interesse com a questão de fornecimento de braços
para a agricultura e revelou uma preocupação com a manutenção da ordem – traço esse
comum a tantos reformistas, como já tivemos a ocasião de observar. Após aludir à concessão
de terras devolutas para pequenos agricultores brasileiros, o deputado, referiu-se à criação de
núcleos de povoamento e é nesse contexto que se inseriu a seguinte frase, reveladora da
preocupação com a “ordem”:
Imaginemos que se fundem por este modo várias povoações anualmente; serão novos centros
de ordem e de resistência a idéias subversivas que tentem quebrar a harmonia, a abundância
que os cercará e o bem estar que proporcionar-lhes uma protetora legislação.
[...] Terra ubérrima, certeza do título de propriedade são garantias de segurança que
tranqüiliza o braço e o trabalho522.
522
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
523
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
524
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
525
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
130
forma, constituíam uma alternativa para o índio obter o acesso a terra, dentro da legislação
agrária vigente.
Valorizando segmentos marginalizados da população brasileira, Alves de Araújo fez
prova, em sua intervenção, de adesão a ideais reformistas, que, se levadas a efeito, poderiam
levar a uma espécie de reforma agrária. Reproduzimos, em seguida, um trecho que, a nosso
ver, sintetiza bem a forma progressista como ele concebeu uma alteração da Lei de 1850:
Meu empenho é conceder à colonização todos os favores que uma legislação sensata
determina, venha o colono de países estrangeiros ou nasça no Brasil; e se um regime de
privilégio se organiza eu votarei para que a estes aproveite.
De outro modo faltará o legislador à sua missão por uma falsa noção de justiça e economia e
pelo iníquo tratamento à numerosa classe dos nacionais, cujos interesses espero serão
atendidos. (Muito bem; muito bem)526
O registro, no final de tal trecho, de apoios vindos de outros deputados constituiu uma
indicação quanto à aceitação que algumas idéias reformistas podiam obter ao seio do
Parlamento imperial. Por ironia do destino, Manoel Alves de Araújo foi posteriormente
Ministro da Agricultura entre janeiro e julho de 1882, sob o gabinete presidido por Martinho
Campos, que se demonstrou – ao menos na sessão por nós abordada – contrário às alterações
da Lei de Terras apresentadas por Buarque de Macedo.
O projeto de reforma, que também havia sido enviado ao Conselho de Estado, chegou
a ser aprovado em primeira discussão pela Câmara dos Deputados, mas “não foi adiante527”.
Um novo projeto de alteração da Lei de Terras seria submetido ao Parlamento em 1886-87,
com importantes debates no Senado, foco da nossa atenção na segunda parte deste capítulo.
Projetos de modificação da estrutura fundiária também foram manifestados através do
pedido de criação do Imposto Territorial que, conforme mencionado no precedente capítulo,
foi mencionado em alguns relatórios ministeriais. No caso da Câmara dos Deputados, nós
destacamos, como exemplo, uma proposta apresentada em 13 de setembro de 1882 pelo
jornalista pernambucano José Mariano (1850-1912528), sob o gabinete liberal do Marquês de
Paranaguá.
Abolicionista convicto, o deputado José Mariano apresentou um projeto de criação de
um Imposto Territorial como um substitutivo ao imposto de exportação. O projeto, na
verdade, lhe havia sido entregue em 16 de junho pelo engenheiro André Rebouças, conhecido
526
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1880, vol. 6, p.451.
527
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996, parte II, capítulo 3, p. 315.
528
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “José Mariano”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 439-440.
131
adepto de tal idéia529. Tratava-se de uma medida que, em princípio, prendia-se mais a
questões orçamentárias do que a uma política voltada especificamente para o meio agrário,
mas seu cunho reformista era facilmente perceptível. O imposto deveria abranger tanto as
áreas urbanas como as áreas rurais, compreendendo propriedades situadas próximas ao litoral,
às margens de rios e lagos navegáveis, às estradas de ferro e às estradas de rodagem530. A
medida sugerida instituía uma vinculação entre o imposto e a legitimidade da terra, como
ficou claro no seguinte trecho:
O imposto, portanto, ainda que tivesse como finalidade principal suprir uma necessidade
orçamentária, traria importantes implicações ao meio agrário, indo ao encontro dos anseios de
abolicionistas e reformadores sociais como Joaquim Nabuco. A proposta, porém, não chegou
a ser implantada. Conforme autores como José Murilo de Carvalho532 e Alberto di Sabbato533
mostraram, o Imposto Territorial foi proposto diversas vezes ao longo do Segundo Reinado,
permanecendo, contudo, no plano das intenções até o final do regime monárquico.
529
Cf. REBOUÇAS, André. Diários e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1938, capítulo VI, p.
295.
530
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1882, p.479.
531
Cf. Anais da Câmara dos Deputados, 1882, p.479.
532
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Editora da UFRJ, 1996.
533
Cf. SABBATO, Alberto di. Verbete: “Imposto Territorial Rural”, in: Dicionário da Terra. Organizadora: Márcia Motta.
132
534
O debate foi registrado em dois livros dos Anais do Senado: em Discurso, Volume I, de 1887 (páginas 3 a 10) e no Livro
I, volume I, (páginas 208 a 212). No Discurso I, o texto corresponde ao que foi reproduzido, de forma resumida, entre as
páginas 208 e 210 do Livro I. Optamos por fazer uso do conteúdo de Discurso e em seguida do Livro I, o qual registrou, a
partir da página 210, a resposta de Antônio Prado a Meira de Vasconcellos, não incluída no livro dos discursos.
535
Cf. Por ser muito extensa, a íntegra do projeto foi inserida junto aos anexos, bem como as emendas apresentadas pela
Câmara dos Deputados, pelo Senado e pelo parecer da Comissão Especial, de que falaremos mais adiante.
536
Cf. NOGUEIRA, Octaciano e FIRMO, João Sereno. Parlamentares do Império. Brasília: Senado Federal, 1973, p. 671.
537
Cf. FARIA, Sheila de Castro. Verbete: “Antônio da Silva Prado”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo
Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 49-50.
538
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império: 1871-1889. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
539
Cf. Anais do Senado, 1887, volume I, p. 211.
540
Cf. BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
541
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império: 1871-1889.2. ed. rev.Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
542
Para José Murilo de Carvalho, porém, o controle do poder político pelo grupo dos proprietários, sob o Império, não foi de
alcance nacional, de modo que possibilitasse aplicar uma política nacional de imigração subvencionada. Apenas em São
Paulo, no final da Monarquia, é que, pelo controle assumido na província, os proprietários teriam condições de aplicar tal
política. Cf. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política imperial. 2. ed. rev. Rio de
Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996, parte II, capítulo 3, p.320.
133
Se nas atuais condições econômicas e sociais do país devemos esperar que a grande
propriedade do domínio privado terá de ser dividida, razão demais para que o Estado, pela
sua parte, tratando-se de terras que são do seu domínio, procure por meio de uma lei adaptar
a sua propriedade às novas exigências das nossas indústrias.
Se a propriedade do domínio privado tende necessariamente a dividir-se e a subdividir-se
pela sucessão necessária e pelo desaparecimento do trabalho escravo, como há de servir o
tipo de lei de 1850, que não limita a concessão da propriedade das terras devolutas?547
Mais adiante, Silva afirmou declarou-se favorável à adoção de medidas mais específicas do
projeto, como a instituição de um valor fixo para as terras a serem vendidas e aforadas548, bem
como destacou a importância de se efetuar um registro de terras, que serviria de base a para a
criação do Imposto Territorial549. Progressistas em si, tais idéias também podem ser vistas
como passíveis de reforçarem o controle das questões fundiárias pelo governo, então
administrado pelo Partido Conservador – partido considerado, por autores como José Murilo
543
Cf. CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial / Teatro de Sombras: a política
imperial. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará / UFRJ, 1996, parte II, capítulo 3, p.317.
544
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.4.
545
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.4.
546
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.4.
547
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, Volume I, p.4.
548
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.4.
549
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.5.
134
Existe em todo o Brasil uma grande massa de cidadãos que não podem dedicar-se à
agricultura por sua conta, porque lhes faltam terrenos para cultivar; vivem do salário, no dia
em que trabalham, e no dia em que não trabalham, vão pescar ou caçar, e sempre na
indigência, e passando uma vida nômade; é urgente aproveitá-los para a lavoura.
É preciso aproveitar essa população nacional, e deve ser este o esforço do governo nessas
províncias, em que houver terras devolutas pertencentes ao Estado, e para onde não aflui a
imigração552.
550
Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5. ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2004.
551
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.6.
552
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.7.
135
se também de limitar terras devolutas com terras possuídas por particulares553”. O político
combateu, ainda, a fixação de um prazo de um ano para a revalidação de terrenos em situação
irregular, tendo afirmado ser um prazo muito curto para os proprietários.
Ao lado das críticas, Meira de Vasconcellos expôs o aceitamento de alguns pontos do
projeto de reforma, como o aforamento, que reconheceu não constar da Lei de 1850. Mas tal
medida, afirmou, deveria abranger também terrenos agrícolas554. No final de sua intervenção,
o senador liberal, negando ser um enfático opositor ao projeto – antes achava que ele deveria
ser mais discutido, sofrendo emendas - Vasconcellos afirmou encontrar algumas lacunas no
projeto. Propôs a inclusão de algumas idéias progressistas – que hoje soariam como uma
demonstração de consciência ecológica-, como a retirada, do projeto, da venda de terras
devolutas, de áreas que abrigassem florestas (tendo em vista a preservação de mananciais) e
de terras para a fundação de povoados555. Igualmente apoiou que a fixação de regras especiais
para a indústria extrativista no Pará, no Amazonas e no Maranhão, pregando a necessidade de
se preservar as árvores existentes, plantando novas e as cultivando.
Em resposta às críticas do senador Vasconcellos, Antônio Prado apresentou uma
decidida defesa do projeto governamental. Tido como escravocrata por Robert Conrad556 e
destacado por Paula Beiguelman557 enquanto um dos principais representantes da corrente
paulista em favor da imigração, Prado, naquele contexto, posicionou-se claramente em favor
da extensão da pequena propriedade a parcelas mais pobres da sociedade, especialmente os
imigrantes. O tom de sua resposta pôde ser verificado na acusação que ele fez a Vasconcellos,
logo no início de seu discurso, de ser um “campeão da grande propriedade558”, fato que não
coadunaria com o seu liberalismo.
Prado refutou as acusações de beneficiamento a São Paulo, justificando o recente
sucesso da imigração em virtude da iniciativa dos fazendeiros da província e da ajuda do
governo provincial. A ação do governo imperial, teria sido, portanto, mínima no caso. Em
relação às diversas disposições criticadas por Vasconcellos, o senador paulista procurou
justificar cada uma delas. Citando o exemplo dos Estados Unidos e da Austrália, ele lembrou,
entre as medidas sugeridas, que o estabelecimento de um preço fixo para as terras a serem
vendidas ou aforadas, apesar de ter seus inconvenientes, era preferível, pois do contrário o
553
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p. 8.
554
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p.8.
555
Cf. Anais do Senado, 1887, Discurso, volume I, p. 9.
556
Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil.
557
Cf. BEIGUELMAN, Paula. A crise do escravismo e a grande imigração.
558
Cf. Anais do Senado, 1887, Livro, volume I, p.210.
136
processo seria muito mais difícil559; tratava-se, pois, de viabilizar a política de aforamento e
de terras devolutas, evitando-se empecilhos. O ex-ministro da Agricultura defendeu também
os limites máximos dos terrenos a serem vendidos, suficientes, a seu ver, para permitir o bom
desenvolvimento da agricultura.
Nos dias seguintes, os debates deram margem à abertura para temas de cunho
progressista, como a criação de colônias agrícolas e o acesso do liberto a terra. Assim ocorreu,
por exemplo, durante o debate realizado no dia 1º de junho de 1887, quando um importante
político liberal e ex-Presidente do Conselho de ministros, José Saraiva, tomou a palavra. Ele
criticou o conservadorismo do governo e o fato, segundo ele, de não ter criado “uma só
colônia agrícola, mostrando-se nisto mais atrasado que os próprios proprietários de escravos,
dos quais alguns têm estabelecido o escravo livre nas suas fazendas560”. O Ministro da
Fazenda, Belisário, rebateu tal acusação, lembrando a Saraiva a aprovação, pelo governo, de
uma legislação prevendo a conversão de fazendas em núcleos agrícolas. De acordo com o
ministro,
A criação das colônias agrícolas dependia, pois, do fato dos senhores oferecerem os seus
escravos para a transformação do trabalho, convertendo as fazendas em núcleos agrícolas
livres.
Assim, o governo não deixou de dar execução à lei; a solicitação, que ele pressupõe e exige,
não apareceu561.
Mais adiante, a reforma do governo foi defendida por Rodrigo Silva, julgada por ele
como indispensável. Por outro lado, na sessão do dia 3 de junho devemos destacar a
apresentação de um outro projeto: o de extinção do regime escravista e criação de colônias
agrícolas, proposto pelo Senador Dantas, o ex-presidente do Conselho de Ministros que, como
vimos no primeiro capítulo, era imbuído de pensamentos positivos quanto à pequena
propriedade. Dantas abordou o contexto de dissolução do trabalho escravo, referindo-se à
necessidade de se preparar o período pós-abolição. Ao mesmo tempo em que estimou ser
preciso instituir um código rural que combatesse a vadiagem, o liberal propôs, de forma muito
clara, a criação de colônias para abrigar os libertos, dando-lhes, portanto, algum amparo.
Adiante, reproduzimos o projeto:
559
Cf. Anais do Senado, 1887, Livro, volume I. p.211.
560
Afirmação que vai de encontro com o que analisamos no segundo capítulo, quanto ao fato de ter existido discursos e atos
concretos em favor da transformação do escravo em colono agrícola.
561
Cf. Anais do Senado, 1887, vol.2, p.4.
137
§ 1º Está em vigor e em toda a sua plenitude e para todos os seus efeitos a lei de 7 de
novembro de 1831.
§ 2º No mesmo prazo ficarão absolutamente extintas as obrigações de serviços impostos
como condição de liberdade e a dos ingênuos em virtude da lei do 28 de Setembro de 1871.
§ 3º O governo fundará colônias agrícolas para a educação de ingênuos e trabalho dos
libertos, a margem dos rios navegados, das estradas ou do litoral.
Nos regulamentos para essas colônias, se proverá à conversão gradual do foreiro ou rendeiro
do Estado em proprietário dos lotes de terra que utilizar o título de arrendamento.
Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.
Paço do Senado, 3 de junho de 1887.
Dantas – Afonso Celso – G.S. Martins – Francisco de Sá – J. R. de Lamare – F. Otaviano –
C. de Oliveira – Henrique d’Ávila – Lafayette Rodrigues Pereira – Visconde de Pelotas –
Castro Carreira – Silveira da Motta – Ignácio Martins – Lima Duarte562.
562
Cf. Anais do Senado, 1887, vol. 2, p. 18.
563
Baseamo-nos no texto integral, apresentado na sessão do Senado do dia 26 de julho de 1887.
138
O texto também estabelecia a organização do cadastro das terras públicas e das terras
possuídas, numa clara preocupação do governo em extremar as terras públicas das
particulares. O pagamento a prazo deveria ser feito em 3 anos,sendo que a compra à vista
conferia ao comprador o imediato acesso ao título de proprietário. Percebe-se, pelas regras do
texto, que o desenvolvimento da pequena propriedade rural era favorecido. Em outro ponto,
defendeu-se a utilização de parte das terras devolutas para a criação de colônias agrícolas.
Quanto à imigração, esta foi abordada de forma discreta, porém as disposições que a ela se
referiam eram de importância real. Assim, por exemplo, o governo recomendou, no projeto,
que se dessem preferência, nas terras a serem medidas, àquelas de fácil acesso, inclusive
aquelas situadas próximas a portos. A questão da imigração, aliás, foi uma das que mais
suscitaram controvérsias, como observaremos mais a frente.
Já aprovado pela Câmara dos Deputados antes de ser debatido no Senado em maio de
1887, o projeto reformista recebeu algumas emendas por parte dos deputados, mas não de
natureza a modificar-lhe seriamente o espírito. Na verdade, as medidas sugeridas pelos
deputados denotaram uma preocupação em fixar uma limitação mais ampla ao processo de
concentração fundiária (reduzindo-se o valor dos preços das terras a serem vendidas), em
incentivar a imigração (com a cessão gratuita de terra a empresas de colonização e imigração)
e a instituir medidas que hoje seriam classificadas de ecológicas.
As alterações propostas pelos senadores foram, por seu turno, mais amplas, a ponto de
descaracterizar alguns pontos importantes do projeto. Observemos, primeiramente, as
emendas do Senado. Chamou-nos a atenção o cuidado tido pelos senadores, nas emendas
formuladas, em manter explicitamente a Lei de Terras, como se o governo tivesse a intenção
de revogá-la – e não reformá-la, apenas, como pretendia. Sugeriu-se uma variedade de preços
das terras, de acordo com a situação de cada região. O pagamento a prazo dos lotes passaria a
ser de cinco anos e o foro, previsto no projeto original para ser pago num período de dez anos,
seria pago em doze anos. Determinou-se, nas emendas, a preservação de áreas florestais e
minerais, que não poderiam ser vendidas como terras devolutas. Aos estrangeiros que
adquirissem terras nas zonas de fronteira, a naturalização seria obrigatória (ao invés de terem
de “prometer” naturalizar-se, conforme previsto no projeto original).
O aspecto mais importante dessas emendas, no entanto, pareceu-nos ter sido a inclusão
de um projeto aprovado na Câmara em 1886, o qual proibia a revalidação de posses e
ocupações não registradas até 1858, além de determinar a divisão de terrenos de seringais.
Ora, essa medida, se aplicada, poderia gerar fortes reações, a ponto de tornar inviável sua
execução, já que sujeitaria milhares de indivíduos – desde grandes a pequenos posseiros – à
139
perda dos terrenos por eles reivindicados. Compartilhando da crença de que os documentos
históricos devem ser lidos nas entrelinhas, devendo-se ater às reais intenções dos agentes que
os produziram564, somos levados a colocar em aberto a questão da intencionalidade real dessa
emenda: teria sido uma disposição para aprimorar o projeto, ou, ao contrário, teria tido como
fim inviabilizá-lo? Seja como for, é preciso ainda observar um outro traço, qual seja o de uma
maior ênfase dada à questão da imigração; com efeito, os autores das emendas previram que
metade da verba arrecadada com vendas das terras devolutas serviria à divisão de terras para
imigrantes, distanciando-se do projeto original, que destinara tal verba aos cofres públicos –
sem especificar se o dinheiro seria ou não usado com imigração.
Tendo sido encarregada de examinar o projeto de lei do governo uma comissão
especial do Senado – composta por Escragnolle Taunay, José Antônio Saraiva, Diogo Velho e
Cândido de Oliveira – apresentou em 5 de julho de 1887, um projeto substitutivo,
reproduzido, nos Anais do Senado, na sessão do dia 26 de julho, quando foi criticado por
Antônio Prado. Mantendo, assim como as emendas dos senadores, a referência à preservação
da Lei de Terras, o projeto alterado incluiu dispositivos que estimulavam a ocupação efetiva
das terras, assim como medidas de proteção a áreas florestais e minerais. Ele manteve, do
mesmo modo que as emendas, o foro de 12 anos e a aquisição de lotes por venda a prazo.
Assim como no projeto original, seria dada prioridade às terras próximas a vias de
comunicação, como portos. Quanto a concessões gratuitas, foi prevista a concessão a
indivíduos que se instalassem em zonas fronteiriças, a empresas voltadas para a imigração e a
colonização, a companhias industriais e a engenhos centrais. Os 10 primeiros nacionais e os
20 primeiros imigrantes a requerem lotes em um novo território teriam também direito a
concessão gratuita da terra, obtendo-se o título de proprietário após o cumprimento de certas
exigências.
Podemos verificar a articulação entre o projeto da comissão e a questão da imigração,
aspecto esse abertamente exposto, aliás, pela comissão em seu parecer introdutório ao projeto,
que aludiu à “imperiosa necessidade de atrair ao Brasil a corrente migratória da Europa565”.
Acreditamos que o acesso a terra, de acordo com tal projeto, beneficiaria mais o imigrante do
que o trabalhador nacional. Podemos aí fazer um aparte e ponderar que a questão da
imigração, apesar das afirmações em contrário dos homens do governo, constituiria a real
motivação por trás de uma modificação da Lei de Terras, tanto mais que alguns de seus
564
Idéia explicitada por diversos pesquisadores, como, por exemplo, as professoras Maria do Pilar de Araújo Vieira, Maria
do Rosário da Cunha Peixoto e Yara Maria Aun Khoury. A pesquisa em História. São Paulo: Editora Ática, 1991, 1991,
capítulo 3, p. 53-54.
565
Cf. Anais do Senado. 1887, volume III, p. 272.
140
defensores, como vimos, eram ligados à corrente imigrantista. Seja como for, nos parece que
a pequena propriedade, aí também encontrava mecanismos que incentivariam sua expansão,
mesmo que em benefício prioritário do europeu.
Em relação às revalidações e legitimações de posses, a comissão não viu com bons
olhos a proposta de se conceder mais um ano de prazo para a regularização das posses, pois
isso para ela estimularia novas invasões, uma vez que os infratores poderiam imaginar que
sempre seriam anistiados, no futuro, pelo poder público566. Previu, porém, meios para que
algumas revalidações pudessem ocorrer e aí nós percebemos um ponto desfavorável aos
pequenos posseiros. No parágrafo 3º do artigo 5º - artigo que restabeleceu a Repartição Geral
das Terras Públicas -, estipulou-se que poderiam ser reconhecidas posses adquiridas após a
instituição da Lei de Terras, mas elas deveriam obrigatoriamente ser separadas do domínio
público por linhas divisórias, feitas por engenheiros e agrimensores do governo, à custa dos
posseiros567. Somente após o cumprimento dessa medida é que os posseiros teriam o direito
aos títulos de propriedade. Ora, é fácil imaginar que nem todos os posseiros teriam condições
de arcar com as despesas com engenheiros e agrimensores; logo, os pequenos posseiros
seriam impedidos, na prática, de legalizarem suas terras, enquanto que os mais abastados não
estariam sujeitos a tais dificuldades. Esse traço conservador do projeto nos remete à própria
Lei de Terras que, ao determinar a medição e demarcação das terras pelos seus ocupantes, na
prática também beneficiou pessoas mais ricas em detrimento das mais pobres, muitas vezes
sem condições financeiras de proceder às medições.
Em sua réplica à comissão de Senado, Antônio Prado, criticou o projeto por ela
apresentado, classificando-a de lei de colonização568 e apontando contradições. Esclarecendo
que o projeto governamental tratava da reforma - e não da extinção – da Lei de Terras, Prado
afirmou que essa medida tinha por fim principal promover a cultura do solo, favorecendo-se o
desenvolvimento da pequena propriedade, bem como proceder à revalidação e legitimação
das terras em situação irregular. De acordo com o político,
566
Cf. Anais do Senado. 1887, volume III, p. 274.
567
Cf. Anais do Senado. 1887, volume III, p. 289.
568
Cf. Anais do Senado. 1887, volume III, p. 295.
141
Claro está que, pelo menos do ponto de vista retórico, havia uma defesa da pequena
propriedade em si, contida no projeto de reforma da Lei de 1850. Igualmente é perceptível, no
trecho reproduzido, a defesa feita do princípio da propriedade. O registro das terras possuídas,
também presente no projeto substitutivo, foi reafirmado por Prado. O ponto maior de sua
crítica, porém, parece ter se concentrado na questão da imigração; para ele, a comissão do
Senado havia distorcido a reforma proposta pelo governo, praticamente ignorando o aspecto
fundiário e apoiando uma mera lei voltada tão somente para a questão da colonização e
imigração, tendo seu relator se inspirado, inclusive, de uma lei instituída em 1876 pelo
governo da Argentina570.
No entender de Antônio Prado, o plano da comissão buscava reativar a política de
núcleos coloniais, ainda que de maneira não-declarada571. A política de imigração, para ele,
deveria ocorrer tal como então já estava ocorrendo em São Paulo, isto é, com a subvenção do
poder público, auxiliando financeiramente colonos e fazendeiros572. É essa política que ele, de
acordo com suas próprias palavras, desejava que fosse adotada pelo Governo do Império e
que - pelo que podemos perceber - não deveria se confundir com a reforma da Lei de Terras,
por ele proposta.
Sendo Prado um dos principais líderes do setor imigrantista, somos levados a refletir
sobre o sentido do projeto reformista do gabinete chefiado por Cotegipe. Conforme visto,
confrontando-o com o substitutivo apresentado pela comissão de senadores, ele destacava-se
como sendo menos vinculado à questão da imigração. Mas nem por isso o texto original
deixava de ter uma ligação com a imigração; o próprio Antônio Prado reconheceu tal fato,
alegando, porém, que essa vinculação não constituía o seu traço principal. Após a leitura de
seus dispositivos, acreditamos que, independentemente das reais intenções de seus autores, o
projeto de reforma incluía, de fato, dispositivos capazes de permitir um desenvolvimento
amplo da pequena propriedade. Nesse sentido, é possível identificar nele um aspecto
progressista. Mas, quando contraposto ao modelo de reforma agrária pregada pelos
abolicionistas, o projeto adquire um perfil mais conservador: não se fez referência direta, por
exemplo, aos libertos, como possíveis beneficiários das medidas propostas.
569
Cf. Anais do Senado, 1887, volume III, p. 291.
570
Cf. Anais do Senado, 1887, volume III, p. 295.
571
Cf. Anais do Senado, 1887, volume III, p. 295.
572
Cf. Anais do Senado, 1887, volume III, p. 303.
142
Projeto
573
Cf. Anais do Senado, 1888, volume I, p.112.
143
Considerando, que antes da lei n. 3.353 já existia grande número de cidadãos brasileiros sem
emprego, quer neste serviço agrícola, quer em outros ramos da indústria, pela concorrência
de trabalho escravo;
Considerando que o número de braços livres aumentou em mais de meio milhão pela
libertação dos escravos;
Considerando que é de transcendente vantagem à produção aproveitar os serviços de
indivíduos nascidos no Império, já habituados ao trabalho do campo, ou que para eles
possuem a precisa aptidão;
Considerando que, sem desprezar o recurso da imigração estrangeira, será de suma e
imediata utilidade o emprego de braços livres nacionais, com menor escala relativa;
Considerando que a distribuição dos benefícios decretados pelo Estado devem ser proferidos
a nacionais, sem ofensa dos princípios de humanidade e direitos de terceiros;
A Assembléia Geral Legislativa decreta:
Art.1º O Governo fica autorizado a fundar colônias agrícolas de nacionais com as mesmas
vantagens e regime com que são ou forem fundadas colônias estrangeiras.
Art.2º Serão concedidos aos agricultores que localizarem em suas terras trabalhadores
nacionais as mesmas vantagens e sob as mesmas condições que são ou forem concedidas aos
agricultores que receberem trabalhadores estrangeiros.
Parágrafo único. Aos Brasileiros que pretenderem estabelecer-se em terras públicas como
proprietários, o governo as cederá pelo preço mínimo, ou gratuitamente, conforme a sua
situação.
Art.3º Para ocorrer às despesas necessárias à execução da presente lei será aplicada metade
da verba votada neste e nos exercícios futuros para introdução de imigrantes.
Art.4º Ficam revogadas as disposições em contrário.
S.R. Paço do Senado, 21 de maio de 1888 – Barão de Cotegipe574.
O projeto foi aprovado e, de acordo com a informação contida nos Anais, iria entrar
“na ordem de trabalhos575”. Não encontramos, entretanto, novas referências ao projeto do
barão, o que nos permite deduzir que permaneceu na esfera das intenções. Mas a formulação
de tal projeto denotou, sem dúvida, uma vontade de contemporizar por parte de alguns setores
conservadores. Cotegipe foi descrito por ampla faixa da historiografia como político
associado aos interesses dos grandes proprietários escravocratas; por isso, acreditamos que a
leitura de tal projeto deve ser feita com um cuidado especial, uma vez que seu autor pertencia
a um campo ideológico muito distinto daqueles de reformadores como Dantas e Nabuco. A
instituição de colônias agrícolas poderia, então, ter oferecido uma perspectiva de reforma
moderada, permitindo o acesso de milhares de indivíduos a lotes de terra de áreas públicas,
sem com isso desmembrarem-se as grandes fazendas.
A crença do projeto de Cotegipe como sendo uma medida conciliatória pareceu-nos
especialmente relevante, quando temos em mente a reação do barão à Lei Áurea. De fato, nas
vésperas de sua promulgação, na sessão do dia 12 de maio de 1888, o político baiano
demonstrou verdadeiro temor de que a extinção da escravidão levasse a adoção de outras
medidas, como a reforma agrária. O trecho reproduzido abaixo é bastante revelador:
Enfim, senhores, decreta-se que neste país não há propriedade, que tudo pode ser destruído
por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos adquiridos, nem a inconvenientes futuros.
574
Cf. Anais do Senado, 1888, volume I, p. 66-67.
575
Cf. Anais do Senado, 1888, volume I, p. 81.
144
Sabeis quais as conseqüências? Não é segredo: daqui a pouco se pedirá a divisão das terras,
do que há exemplo em diversas nações, desses latifundia, seja de graça ou por preço mínimo,
e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização!
E, senhores, dada a diferença entre o homem e a coisa, vê-se que a propriedade sobre a terra
também não é de direito natural. Não é aquela propriedade natural de que fala o jurisconsulto
Cardoso576.
O temor de que a grande propriedade fundiária fosse colocada em questão foi bem
sintetizado por Cotegipe e reapareceu em outros momentos dos debates, quando dos pedidos
de indenização defendidos por senadores como Leão Veloso. Este último, um membro do
Partido Liberal, em sessão do dia 27 de julho de 1888, apoiou a indenização ou o auxílio do
governo imperial aos grandes proprietários, por ele tido como um dos baluartes principais da
riqueza do país e – é importante retermos isso – da Monarquia. Criticou os abolicionistas e
acusou-os de quererem promover a “democracia agrícola”. Reproduzimos adiante um trecho
de sua intervenção:
[...] o que ia dizendo é que a propaganda abolicionista agora se empenha em alcançar dos
poderes públicos medidas que tendam para o que chamam a democratização do solo, como
conseqüência lógica da lei de 13 de Maio.
Abstendo-me de entrar na velha e debatida questão de preferência da grande ou da pequena
propriedade, não contesto que há de ser um dos resultados econômicos da lei de 13 de Maio
a divisão da propriedade territorial, mas que deve vir por uma evolução natural, no influxo
de irresistível economia; não é isto, entretanto, o que querem os abolicionistas, querem que a
transformação se realize pela ruína da grande propriedade, contra a qual trabalham.
E não é senão por ser este seu alvo, que não cessam de declarar com uma franqueza que
louvo-lhes, que o partido abolicionista não desapareceu com a lei da abolição577.
A perspectiva de uma reforma agrária, portanto, aparecia como uma possibilidade muito real,
tanto mais que, conforme lembrado por Veloso, o movimento abolicionista não se encerrou –
ao contrário do que hoje se pensa – com o advento da Abolição. Richard Graham, em
Escravidão, Reforma e Imperialismo, destacou bem o medo de Veloso e de outros defensores
da grande propriedade diante de uma eventual política de subdivisão do solo. Para o
brasilianista, esse temor dos proprietários teve um peso decisivo na queda do Império,
conforme veremos na última parte deste capítulo.
Alguns senadores manifestaram-se ante as acusações levantadas por Veloso. Taunay
afirmou que a pequena propriedade “nunca foi uma espoliação578” e Dantas, importante líder
do mesmo Partido Liberal do qual fazia parte Veloso, rebateu as críticas aos abolicionistas.
De acordo com Dantas,
A pequena propriedade há de vir pela ordem natural das coisas; não está no poder de
ninguém impedir-la. [...]
576
Cf. Anais do Senado, 1888, volume I, p. 35.
577
Cf. Anais do Senado, 1888, volume II, p. 188.
578
Cf. Anais do Senado, 1888, volume II, p. 188.
145
A grande propriedade se manterá com a associação e com esforços de outra ordem, mas a lei
de 13 de Maio dará lugar a que haja também a pequena propriedade579.
O abolicionista deixou claro que a expansão da pequena propriedade, por ele tido como um
fenômeno irreversível, não acarretaria o desaparecimento da grande propriedade. Nisto,
inclusive, lembrava Beaurepaire-Rohan e mesmo Rebouças, que não atacou a grande
propriedade em si, mas sim os latifúndios improdutivos. Veloso, porém, mostrou-se
irredutível e ainda acusou os abolicionistas de quererem promover uma agressiva política de
“demolição de uma ordem de coisas existentes”. Veloso, do mesmo modo como Cotegipe,
lembrou a importância, para o regime imperial, de manter a confiança e o respeito dos grandes
proprietários de terra. Uma indicação, bem nítida, da importância que assumiu, nos últimos
meses do Império, a possibilidade de uma reforma agrária, fenômeno assinalado por alguns
historiadores - como Joselice Jucá e Marco Antônio Villa – e que abordaremos na parte final
do capítulo.
Ainda no ano de 1888, Manoel Dantas, em sessão do Senado em 26 de setembro,
voltou a defender medidas de fortalecimento da pequena propriedade rural, ao discorrer sobre
a criação de núcleos coloniais para a fixação de imigrantes. Nessa sessão – mencionada por
Conrad580 -, Dantas apoiou a necessidade da reforma da Lei de Terras para facilitar a política
de imigração581 e aludiu à defesa do projeto de fundação de núcleos coloniais por parte do
Ministro da Agricultura, defendendo ainda a escolha de locais adequados para a instalação
dos mesmos582.
579
Cf. Anais do Senado, 1888, volume II, p. 188.
580
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 10, p. 198.
581
Cf. Anais do Senado. 1888, volume 4, p. 226.
582
Cf. Anais do Senado. 1888, volume 4, p. 227.
583
Cf. GUIMARÃES, Lúcia. Verbete: “D. Pedro II”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p.198-201.
146
como seu temperamento conservador, foram alguns dos traços assinalados pelos
pesquisadores. Para a nossa discussão, chamaremos a atenção para um aspecto que, nos
últimos anos, vem sido destacado por alguns autores, qual seja a da existência de um “duplo”
Pedro II: o homem público e o homem privado.
José Murilo de Carvalho, em recente trabalho publicado sobre o Imperador584, foi um
dos autores que ressaltaram as diferenças entre o monarca, enquanto figura pública e enquanto
indivíduo, com suas opiniões próprias. Carvalho destacou a seriedade e a probidade do
soberano, bem como o seu lado pessoal introvertido e sua paixão pela leitura. Dom Pedro II
teria, então, mantido uma distância entre as suas próprias crenças e sua ação como chefe de
estado, o que explicaria, por exemplo, sua ação moderada frente ao problema da escravidão, a
despeito de seu conhecido abolicionismo. O autor não abordou, contudo, as posições do
soberano frente à questão fundiária. Na verdade, nos parece que esse aspecto não foi ainda
suficientemente explorado pela historiografia, ainda que alguns pesquisadores, como Emília
Viotti da Costa e Joselice Jucá, tenham abordado a questão.
Emília Viotti, examinando o processo de estímulo a colonização e aos núcleos
coloniais, durante a transição do trabalho escravo para o livre, chegou num momento a
focalizar a opinião de Dom Pedro II frente à pequena propriedade. De acordo com a autora, a
preferência do monarca teria recaído justamente no sistema de núcleos coloniais baseados na
pequena propriedade familiar, conforme evidenciado no seguinte trecho, em que se referiu à
Dom Pedro:
Visitando, em 1875, a Colônia Nova Lousa585, onde Monte Negro introduzira um sistema de
colonização assalariada, julgado modelar, manifestou a sua opinião de que tal sistema era um
tanto “patriarcal” em relação às circunstâncias do Brasil, cujo progresso lhe parecia
lisonjeiro, dizendo ainda que o sistema de colonização devia ser baseado no sistema da
propriedade. (COSTA, 1998, p. 114).
Joselice Jucá, em seu estudo sobre Rebouças, destacou a ligação entre o abolicionista e
o Imperador, observando que este último demonstrava simpatia, no final do seu reinado, pelas
idéias reformistas de apoio à pequena propriedade, tendo tido consciência da necessidade,
após a Lei Áurea, de “reformas complementares que permitissem a concessão da propriedade
da terra aos ex-escravos e imigrantes586”. Conrad destacou os laços de proximidade entre
Dom Pedro e os abolicionistas, após a Lei Áurea, e seu apoio à continuação das reformas587.
584
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Dom Pedro II: Ser ou não ser. Coleção Perfis Brasileiros. Coordenação Elio Gaspari e
Lília M. Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
585
Localidade situada na então Província de São Paulo.
586
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit., capítulo 5, p. 137.
587
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 10, p. 198-199.
147
Jucá, no entanto, partiu também da idéia de separação entre o monarca, enquanto indivíduo, e
o monarca enquanto personagem da vida pública brasileira. Parte da postura de Dom Pedro II
frente à questão agrária pôde ser apreendida, na análise de Jucá, com base nos próprios relatos
de Rebouças sobre seus encontros com o Imperador ao longo do decisivo ano de 1889.
Amigo pessoal de André Rebouças, o monarca, segundo autoras como Joselice Jucá e
Maria Alice Rezende de Carvalho, manteve com ele uma relação bastante próxima nos
últimos anos do regime imperial, freqüentando o mesmo círculo de amizades e participando
de reuniões com membros da Sociedade Central de Imigração588 (da qual faziam parte
Rebouças, Beaurepaire-Rohan e Taunay589). Nessas reuniões, Dom Pedro, de acordo com
Jucá, participou de debates envolvendo diversas questões, como a do casamento civil, a
naturalização dos imigrantes e a do incentivo à pequena propriedade. Para Jucá, o monarca
esteve de fato imbuído de idéias progressistas, conforme podemos perceber no trecho que
segue adiante:
A correspondência pessoal de Rebouças mostra que Dom Pedro II se mostrava muito mais
do que um mero simpatizante da Abolição. Ele acompanhou com interesse a campanha em
defesa das reformas sociais, contribuiu com sugestões pessoais durante reuniões informais
realizadas pelo grupo de reformadores e com freqüência expressava seu entusiasmo pelas
novas idéias, além de estimular Rebouças e seu grupo da Sociedade Central de Imigração.
Frequentemente, o imperador discutia questões básicas, como a da abolição da pobreza, o
fim do monopólio da terra e a possibilidade de adotar-se medidas específicas, como a do
Cadastro, Triangulação e Imposto Territorial.
Essa participação, no entanto, ocorreu de uma maneira discreta e pode ser atribuída,
sobretudo, ao componente intelectual e humano da personalidade de Pedro II, do que nas
suas posturas como imperador. (JUCÁ, 2001, p.173-174).
Essa imagem de Dom Pedro II como uma pessoa interessada nas grandes questões do
momento, como a agrária, contrasta um pouco com a imagem de um imperador velho e
apático nos anos finais do regime - encontrada em muitos livros. Mas essa passagem do texto
de Jucá também evidenciou a forma como, segundo ela, as convicções pessoais do monarca,
de cunho progressista, não encontravam um amplo desdobramento em suas atitudes concretas
como Imperador.
É possível apreendermos mais elementos a respeito da posição agrária do soberano,
através da leitura das Falas do Trono. Do ponto de vista formal, elas expressavam a política
do gabinete, mas, como é de conhecimento notório da historiografia, o parlamentarismo
brasileiro funcionava de maneira “às avessas”, em que o Imperador, através do Poder
Moderador, mantinha um papel fundamental para o funcionamento das instituições. O poder
de decisão quanto à manutenção, ou não, de um gabinete, em última instância residia no
588
Cf. JUCÁ, Joselice. op. cit., capítulo 5, p. 137.
589
Cf. JUCÁ, Joselice. Op. cit., capítulo 5, p. 139.
148
Imperador e não no Parlamento. De acordo com Ângela Botelho e Liana Reis, “nesse
parlamentarismo às avessas, o poder era exercido pelo Imperador, e não pelo poder
legislativo590”. Por isso, acreditamos que as Falas do Trono, que abriam e fechavam
anualmente as sessões parlamentares, no mês de maio e setembro (ou outubro, dependendo do
ano), respectivamente, podem ajudar a entender a atitude de Dom Pedro diante de uma
eventual reforma agrária.
Examinando-se as Falas pronunciadas entre 1871 e 1889, encontramos nos anos de
1886, 1887, 1888 e 1889, referências significativas. É sintomático, aliás, que elas tenham se
dado nesses anos, justamente no momento final do Império, quando se vivenciou a extinção
completa da escravidão e esteve em aberto, como vimos, a possibilidade de uma reforma da
Lei de Terras.
Na sessão de abertura do ano de 1886, Dom Pedro aludiu à política de incentivo à
imigração e pregou a necessidade de se proporcionar, aos imigrantes, “meios de empregarem-
se como pequenos proprietários do solo, ou como trabalhadores agrícolas591”. Defendeu, para
este fim, a revisão da Lei de Terras, consoante com a proposta agrária defendida pelo gabinete
Cotegipe, por nós já examinada. Na Fala do Trono de 1887 – lida no dia 3 de maio pelo
Ministro do Império, o Barão de Mamoré, em virtude do delicado estado de saúde do
Imperador592 -, não se fez referência direta à reforma da Lei de 1850, porém defendeu-se, ao
lado da imigração, o apoio à colonização nacional, “para conseguir o povoamento e cultura
das terras devolutas do Estado593”. No mesmo ano, a Fala lida pela Princesa Imperial Isabel
(1846-1921594) – regente do Império entre 1887 e 1888, devido à viagem de Dom Pedro à
Europa, por motivos de tratamento médico -, conteve uma breve alusão à “reforma da lei de
terras públicas595”.
Nos anos de 1888 e 1889, no contexto da extinção da escravidão, novas
demonstrações de apoio a medidas agrárias reformistas foram encontradas, tanto em falas do
Imperador como em de sua filha. Embora, obviamente, a Princesa tivesse suas próprias idéias,
é lícito supor que suas intervenções não destoavam do pensamento do pai e do gabinete. A
Princesa, ao abrir a sessão do ano de 1888, no dia 3 de maio, já então às vésperas da Lei
Áurea, fez referência à importância de se extinguir a escravidão e à necessidade de se
590
Cf. BOTELHO, Ângela Vianna e REIS, Liana Maria. op. cit., p.275.
591
Cf. Falas do Trono, 1886, p.491.
592
Cf. Falas do Trono, 1887, p. 497.
593
Cf. Falas do Trono, 1887, p.498.
594
Cf. ABREU, Martha. Verbete: “Princesa Isabel”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 591-593.
595
Cf. Falas do Trono, 1888, p.501.
149
tomarem providências para promover a utilização das terras devolutas do país596. Ainda no
mesmo ano de 1888, em 20 de novembro, Dom Pedro leu, após seu retorno ao Brasil, a fala
de encerramento dos trabalhos legislativos, tendo afirmado que o governo apressaria o
povoamento das terras do Império597.
A última Fala do Trono que foi lida por Dom Pedro II em 3 de maio de 1889, é talvez
aquela que mais visibilidade deu à intenção do governo em promover uma política de reforma
agrária e foi citada por vários historiadores, como Manoel Correia de Andrade, Leôncio
Basbaum, Joselice Jucá, José Augusto Pádua e Marco Antônio Villa, dentre outros.
Reproduzimos, em seguida, o trecho em que se explicitou o projeto agrário do governo:
Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertida em
lei, como julgar de vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade
territorial e facilitar a aquisição e cultura de terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis sobre
a conveniência de conceder ao Governo o direito de desapropriar, por utilidade pública, os
terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e
podem servir para núcleos coloniais598.
A medida sugerida ia além da proposta da reforma da Lei de 1850, tendo sido expressada sob
o gabinete conservador de João Alfredo. Ali, Dom Pedro pediu abertamente a desapropriação
de terras incultas599, indo ao encontro do pensamento de abolicionistas como André Rebouças
e Joaquim Nabuco. Lembramos, novamente, que do ponto de vista formal, a Fala do Trono
explicitava a política do gabinete. Mas, sabendo da forte influência do Poder Moderador ao
longo do Segundo Reinado e levando-se em consideração as afirmações de alguns autores
quanto à simpatia do monarca pela pequena propriedade, acreditamos poder atribuir ao
soberano, senão um apoio ativo, ao menos um consentimento a tal política, que pode ser vista
como uma reforma agrária moderada.
Diante dos documentos acima citados, e atendo aos comentários de Rebouças sobre
suas conversas com o Imperador, expostos em seus diários dos anos de 1888 e 1889,
acreditamos ser possível afirmar que Dom Pedro II possuía uma simpatia pelos projetos de
expansão da pequena propriedade no país. Devemos lembrar, a esse respeito, que, entre os
assuntos abordados em suas conversas com o engenheiro, destacaram-se a proposta de criação
do Imposto Territorial, o cadastro das terras, a imigração e a colonização nacional. No diário
do dia 4 de março de 1889, Rebouças assinalou a conversa tida com o monarca, tendo
596
Cf. Falas do Trono, 1888, p. 504.
597
Cf. Falas do Trono, 1888, p. 508.
598
Cf. Falas do Trono, 1889, p.511.
599
Richard Graham e Manuel Correia de Andrade notaram uma semelhança entre a proposta agrária contida na Fala do
Trono de 1889 e um projeto que foi apresentado pelo Presidente João Goulart em 1963, poucos meses antes de sua derrubada
pelos militares. Cf. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979, capítulo 8, p.
191 e ANDRADE, Manuel Correia de. op. cit., capítulo 3, p. 37.
150
600
Cf. REBOUÇAS, André. Diários e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1938, capítulo 7, p. 330.
601
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O Quinto Século: André Rebouças e a Construção do Brasil. Rio de Janeiro:
Revan: IUPERJ / UCAM, 1998, capítulo 6, p.224.
602
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 6, p. 224.
151
foco principalmente os imigrantes – ainda que muitos núcleos possam ter abrigado nacionais,
conforme estudado no capítulo III.
Todavia, independente do teor mais ou menos progressista de cada programa de
reforma agrária, o fato é que essa idéia constou dos planos de membros de destaque dos dois
partidos políticos imperiais. Recebeu, assim, apoio de personalidades ligadas ao regime
monárquico, quando não monarquistas convictas (caso de um Taunay, por exemplo). O
conservador João Alfredo Correia de Oliveira (1835-1919603) foi criticado por abolicionistas
por tentar auxiliar os antigos escravocratas – através de abertura de crédito -, mas foi também
sob sua gestão à frente do gabinete (1888-1889) que se deu a leitura, por Dom Pedro II, do
programa prevendo a criação de colônias agrícolas em torno de estradas de ferro. André
Rebouças assinalou uma conversa que teve com João Alfredo, na sala dos ministros, sobre o
“monopólio territorial”, tendo pedido-lhe a instituição de medidas em favor da Democracia
Rural604. Esse registro indica que os reformadores, como Rebouças, tinham acesso direto às
salas ministeriais, como que a provar que suas idéias estavam longe de serem repelidas pela
classe política.
André Rebouças foi, provavelmente, a personalidade que mais se empenhou no
período pós-abolição para a consecução de uma política de reforma agrária. Seus diários
revelam, com efeito, uma atividade grande em prol de seu projeto agrário. Encontrou-se com
João Alfredo605 e com Antônio Prado606, procurando convencê-los da importância de se adotar
o programa de Democracia Rural. Manteve contatos com outros adeptos da pequena
propriedade agrária, como Alfredo d’Escragnolle Taunay607, Manoel Buarque de Araújo608 e
Joaquim Nabuco609. Rebouças, de acordo com Joselice Jucá, articulou uma “reforma social
monárquica”, na qual a reforma agrária deteria um papel central. Porém, conforme
abordaremos mais adiante, ao abolicionista teria faltado certa dose de realismo político,
quanto à viabilidade de aprovação da reforma.
Em relação a Joaquim Nabuco, é preciso registrar que ele também não abandonou seus
ideais reformistas após a aprovação da Lei Áurea, tendo ele pregado a necessidade de
reformas populares, em discursos proferidos no Parlamento, meses após o 13 de Maio610.
603
Cf. GRINBERG, Keila. Verbete: “João Alfredo”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p.
398-399.
604
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dia 10/07. IHGB, Lata 464, doc. 2 a 7.
605
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dias 29/04 18/07. IHGB, Lata 464, doc. 2 a 7.
606
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dia 23/07.
607
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dia 26/12.
608
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dia 01/08.
609
Cf. REBOUÇAS, André. Diários. 1888, dias 24/07.
610
Cf. NABUCO, Joaquim. Discursos Parlamentares. Perfis Parlamentares, v.26. Introdução de Gilberto Freye. Brasília:
Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, 1983, p.426-433.
152
611
Cf. “Carta de Joaquim Nabuco a João Clapp”, in: D. Isabel I a Redentora: Textos e documentos sobre a Imperatriz exilada
do Brasil em seus 160 anos de nascimento. Organizador: Bruno Antunes da Silva de Cerqueira. Rio de Janeiro: Instituto
Cultural Dona Isabel a Redentora, 2006, p.153.
612
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 17, p. 335.
613
Cf. GERSON, Brasil. O Sistema Político do Império. Rio de Janeiro: Progresso Editora, 1970, p. 97.
614
Cf. GUIMARÃES, Lúcia. Verbete: “Afonso Celso”, in: Dicionário do Brasil Imperial. Direção: Ronaldo Vainfas. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002, p. 28-29.
615
Cf. ANDRADE, Manuel Correia de. Abolição e Reforma Agrária. São Paulo: Editora Ática, 1987. capítulo 3, p. 38.
616
Cf. CELSO, Afonso (Visconde de Ouro Preto). Perfis parlamentares. Introdução de Costa Porto. Brasília: Câmara dos
Deputados / José Olympio Editora, 1978, p. 425.
153
começo da República, ao que Ouro Preto rebateu como sendo a inutilização da república617.
A estratégia era clara: para salvar a Monarquia, ameaçada pelo movimento republicano, o
Presidente do Conselho procurava instituir uma série de reformas que esvaziassem o conteúdo
programático do Partido Republicano. As reações, contudo, foram bastante intensas,
culminando com um Viva a República618, lançado pelo padre João Manuel, deputado do
Partido Conservador, e recebido por aplauso por parte dos presentes nas galerias e no recinto
da Câmara. A réplica de Ouro Preto foi viva e enérgica, como pode ser verificado no seguinte
trecho:
Viva a República, não! (Aplausos prolongados no recinto e nas galerias). Não e não; pois é
sob a monarquia que temos obtido a liberdade, que outros países nos invejam e pudemos
mantê-la em amplitude suficiente para satisfazer às aspirações do povo mais brioso!
(Continuam os aplausos).
Viva a monarquia! Forma de governo que a imensa maioria da nação abraça e a única que
pode fazer sua felicidade e a sua grandeza!619
617
Cf. CELSO, Afonso (Visconde de Ouro Preto). op. cit., p. 424.
618
Cf. CELSO, Afonso (Visconde de Ouro Preto). op. cit., p. 433.
619
Cf. CELSO, Afonso (Visconde de Ouro Preto). op. cit., p. 433.
620
Cf. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.
154
Há outra explicação para o apoio dos latifundiários ao republicanismo [...] e apresento uma
sugestão para ulterior pesquisa em arquivos brasileiros ou em documentos privados dos
latifundiários. Eles aderiram ao movimento republicano não tanto por despeito e amargura,
mas para evitar aquilo que lhes parecia um desastre até maior do que aquele da abolição: a
reforma agrária. Haviam descoberto que nem eles nem as estruturas políticas do Império
eram suficientemente fortes para impedir a abolição, e sabiam que a reforma agrária era parte
do “saco” abolicionista. Tendo recuado diante de uma questão, procuravam agora defender-
se contra outra. Sentiam que o Imperador era demasiado fraco e a estrutura partidária muito
caótica para evitar o sucesso daqueles que organizavam a investida abolicionista.
(GRAHAM, 1979, p.183).
621
Cf. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979, capítulo 8, p. 180-184.
622
Cf. Richard GRAHAM. op. cit., capítulo 8, p.192-193.
623
Cf. VILLA, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 1999, capítulo 3, p. 98.
624
Cf. SALLES, Ricardo. op. cit., parte II, capítulo 4, p. 150.
625
Cf. VILLA, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. 3 ed. São Paulo: Editora Ática, 1999, capítulo 3, p. 98.
155
A hipótese da deposição de Dom Pedro II como uma forma de se evitar uma eventual
reforma agrária foi abordada por outros autores. José Augusto Pádua, por exemplo,
demonstrou por ela certa simpatia, embora tenha se abstido de dar um parecer decisivo,
colocando-a como uma questão em aberto626. A antipatia dos grandes proprietários pelo
Império, de todo modo, foi ressaltada por diversos pesquisadores, como José Honório
Rodrigues, Robert Conrad e Joselice Jucá. “Enfrentando exigências de mais mudança social, a
elite tradicional conservou seu poder e autoridade e, depois, varreu o movimento democrático
no golpe de estado que provocou o desaparecimento de D. Pedro II e estabeleceu uma
república conservadora627”.
A possibilidade de o Império adotar uma política agrária reformista foi admitida como
uma idéia plausível por Maria Alice Rezende de Carvalho, em seu estudo sobre André
Rebouças. “Ao que parece, a continuidade do regime monárquico, naquele contexto, levaria o
imperador a assumir as reformas propugnadas por Rebouças628”, escreveu Carvalho. A autora
endossou a tese de que o medo de uma reforma agrária, por parte dos grandes proprietários,
teria sido muito mais determinante do que o ressentimento gerado com a Abolição. De acordo
com a pesquisadora,
As perdas sofridas pelos plantadores com a abolição do trabalho escravo não os afetavam
tanto quanto o que supunham resultar de uma diminuição de sua base de poder econômico e
prestígio político, o que explicaria a facilidade com que aderiram ao golpe de 15 de
novembro. (CARVALHO, 1998, p.225).
626
Cf. PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-
1888). 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, capítulo 5, p. 279.
627
Cf. CONRAD, Robert. op. cit., capítulo 17, p. 336.
628
Cf. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. op. cit., capítulo 6, p. 225.
629
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 3, p. 73.
156
governo monárquico. Leôncio Basbaum, por exemplo, analisou o Império como sendo um
regime sustentado fundamentalmente pelos latifundiários do açúcar do Nordeste e pelos
grandes proprietários da Província do Rio de Janeiro630; a crise destes setores, com a
progressiva extinção da escravidão, teria solapado as bases da Monarquia. Mas, mesmo
assinalando o aspecto conservador do governo imperial, Basbaum destacou a perspectiva de
reformas no final do Império, como a da criação de colônias agrícolas631.
A oposição dos latifundiários a uma reforma agrária, por outro lado, parece não ter
sido apreendida em toda sua dimensão por protagonistas importantes do confronto, como
André Rebouças. Segundo Jucá, as demonstrações de insatisfação por parte de fazendeiros,
após a Lei Áurea, foram por ele percebidas como constituindo uma demonstração de
ressentimento dos antigos escravocratas, deixando de ver que o motivo real da oposição era o
modo como o governo vinha encaminhando a questão da terra. Comentando a postura do
abolicionista, a pesquisadora afirmou que:
Rebouças pareceu, assim, não se aperceber do grau de dificuldade política oposta à realização
da reforma agrária, como fica claro no seguinte trecho:
Ele não vislumbrou as barreiras existentes contra a implantação de uma reforma agrária, e
entre esses obstáculos, um dos mais sérios era viabilizá-lo politicamente. Ele insistia em
afirmar que a República brasileira era incapaz de promover reformas econômicas e sociais,
devido ao seu “espírito militarista e escravocrata”, que constituía no motivo mais importante,
mais forte, da queda da Monarquia. (JUCÁ, 2001, p. 146).
630
Cf. BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República. Volume 1: das origens a 1889. 5. ed. São Paulo: Editora Alfa-
ômega, 1986, quarta parte, capítulo 1, p. 237.
631
Cf. BASBAUM, Leôncio. op. cit., parte IV, capítulo 1, p. 232-233.
632
Cf. JUCÁ, Joselice, op. cit., capítulo 5, p. 139.
157
633
Cf. RÉMOND, René. “O retorno do político”, in: Questões para a história do presente. Organização: A.Chauveau e Ph.
Tétard. Tradução: Ilka Stern Cohen. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
158
O fato disto635 não ter ocorrido não foi culpa dos líderes do abolicionismo, que se recusaram
a debandar da Confederação Abolicionista depois de seu principal objetivo ter sido
alcançado em 1888, tendo mantido a organização como um centro para a promoção de novas
reformas. Foi o resultado, sim, de uma poderosa reação dos antigos proprietários de escravos
nos meses que se seguiram à abolição, da dispersão do movimento de forma radical depois
da queda do Império em 1889 e da reconsolidação, nos anos seguintes, de disposições
tradicionais e da conservação de grande parte do espírito e da organização do antigo regime.
(CONRAD, 1975, p. 193-194).
A queda do governo de Dom Pedro II teria tido, nessa perspectiva, um impacto negativo para
o projeto agrário. Jucá, mesmo cética quanto à possibilidade do Império vir a instituir a
reforma, considerou que instauração da República provocou a dispersão do movimento
reformista, admitindo o apoio dos latifundiários à derrubada do regime636, cuja conseqüência
foi a derrota da “reforma social monárquica” pregada por Rebouças e outros abolicionistas.
O apoio maciço dos grandes proprietários ao golpe de 15 de Novembro, se ocorreu de
fato, como parece ter sido o caso, merece ainda alguns breves comentários. Graham lembrou
que a República, em seus cinco primeiros anos, esteve dominada por grupos urbanos e
militares, fugindo ao controle dos fazendeiros637. Ora, os republicanos também contavam com
elementos radicais e, como destacou Ângela Alonso, alguns deles eram favoráveis à pequena
propriedade rural (como, por exemplo, setores positivistas638). Na visão de Graham, os
proprietários teriam aderido ao republicanismo devido a um cálculo político; o regime
republicano, embora pudesse para eles comportar alguns riscos, seria um caminho mais
seguro para o encaminhamento de seus interesses, já que, em sua ótica, a Monarquia havia se
revelado incapaz de deter o processo abolicionista639. A conseqüência disso, como sabemos,
foi a promulgação da Lei Áurea, a qual não incluiu a indenização reivindicada pelos
fazendeiros. Tendo em vista a forte hegemonia política alcançada pelas oligarquias agrárias –
634
Cf. GORENDER, Jacob. A Burguesia Brasileira. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.21.
635
Referência à reforma agrária.
636
Cf. JUCÁ, Joselice. op, cit., capítulo 5, p. 141.
637
Cf. GRAHAM, Richard. op. cit., capítulo 8, p. 182.
638
Cf. ALONSO, Ângela. op. cit., capítulo 3, p. 254
639
Cf. GRAHAM, Richard. op. cit., capítulo 8, p. 183-184.
159
capitaneadas pelos cafeicultores paulistas – sob a Primeira República640, acreditamos que tal
hipótese ajuda-nos, realmente, a explicar as causas da derrota dos projetos agrários defendidos
por monarquistas de diversas correntes políticas. A reforma agrária, permitindo uma ampla
difusão da pequena propriedade agrária, permaneceria como uma meta a ser alcançada, ainda
hoje, passados mais de cem anos após a escrita dos textos e dos debates analisados neste
trabalho.
640
Uma famosa frase do historiador Sérgio Buarque de Holanda sintetiza bem esse fenômeno: “A verdade é que o império
dos fazendeiros, mas agora dos fazendeiros das áreas adiantadas, porque os outros vinham perdendo cada vez mais sua
importância, só começa no Brasil com a queda do Império”. In: Evaldo Cabral de Mello. O Norte Agrário e o Império –
1871-1889. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, Prefácio, p.25.
160
5
CONCLUSÃO
A análise dos diversos textos e documentos, bem como a ajuda preciosa fornecida pela
bibliografia nos permitiu perceber a importância conferida à questão agrária por parte de
iminentes personagens da vida pública do Império, a ponto de uma eventual reforma agrária
(ou algo próximo a isso) constar do programa de reformas do gabinete do Visconde de Ouro
Preto, o último do regime monárquico. Concluiremos este trabalho com uma breve reflexão
final sobre os principais aspectos dos planos de reforma agrária e a causa de sua não
implantação efetiva.
De um modo geral, pudemos distinguir alguns aspectos comuns aos demais programas
reformistas. Todos procuraram aproveitar as terras ociosas, incentivando-se um uso racional e
produtivo do solo. Buscava-se desenvolver, com a subdivisão da terra em proveito de
milhares de famílias camponesas, um aumento da produção de alimentos. Tais fatores
inspiraram a política de criação de núcleos coloniais, sobretudo no Sul do Brasil, onde, de
fato, a pequena propriedade agrária encontrou incentivos concretos por parte dos poderes
públicos. Notamos também uma referência constante, nos projetos agrários abordados, tanto a
imigrantes quanto a nacionais, fato que despertou nossa atenção, uma vez que, conforme uma
idéia amplamente divulgada, os imigrantes europeus constituíram o foco principal da política
de colonização do Brasil oitocentista.
O apego à ordem representou outro ponto de contato entre os diferentes textos, a
despeito da real diferença verificada entre o espírito da reforma agrária dos liberais
abolicionistas (André Rebouças, Joaquim Nabuco, Manoel Dantas) e o daquela apoiada por
conservadores e fazendeiros (Henrique de Beaurepaire-Rohan, Henrique Milet, etc);
Rebouças, por exemplo, expressou fortemente sua repulsa a qualquer transformação por via
de meios armados, enquanto que Nabuco falou em conciliação entre classes. É interessante
observarmos que um trecho dos discursos de campanha eleitoral do pernambucano em
1884641, citado no primeiro capítulo, conteve idéia semelhante àquela professada várias
décadas mais tarde pelo Presidente João Goulart: a de salvaguarda da propriedade através do
acesso a ela por parte de milhares de pequenos camponeses642. Vimos também que o próprio
641
NABUCO, Joaquim. Campanha Abolicionista no Recife. Brasília: Senado Federal / Fundação Casa de Ruy Barbosa,
1992, p. 76.
642
Ver, a esse respeito, o livro de Caio Navarro de Toledo. O governo Goulart e o golpe de 64. 12. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1993, p. 54-55.
161
latifúndio foi poupado pelos dois líderes abolicionistas; conforme visto, sua crítica recaiu
sobre o latifúndio improdutivo.
Contudo, ao lado desses pontos de convergência, percebemos importantes distinções
entre os projetos. Com efeito, os planos dos abolicionistas possuíram um traço mais inclusivo
– abarcando os camponeses nacionais, os imigrantes e, sobretudo, os libertos –, em que a
reforma agrária foi vista como um “complemento indispensável” à Abolição e como um
instrumento importante para a afirmação da cidadania. Tanto Rebouças como Nabuco
deixaram claro o fato de que à Abolição deveria se seguir toda uma série de reformas. E, a
julgarmos por seus escritos e pelas intervenções de Dantas no Senado, a reforma agrária
constituía uma das principais medidas defendidas pelo abolicionismo para o período posterior
ao Treze de Maio. Por mais moderada que esta reforma pudesse ser, acreditamos que sua
implantação poderia representar um passo importante para a transformação da sociedade
brasileira, ainda marcada pelo predomínio da grande propriedade monocultora, com a
submissão da população rural aos latifundiários.
As propostas defendidas por Beaurepaire-Rohan e Milet, embora sem deixar de ter um
caráter inegavelmente progressista ao possibilitar o acesso real aos lotes de terra por pequenos
camponeses, nos pareceram dar uma ênfase menor à questão da justiça social, enquanto se
valorizava mais a idéia de manutenção da ordem pública, e da hierarquia social. Beaurepaire-
Rohan foi bem explícito, nesse sentido, ao afirmar que sua proposta de desmembramento das
grandes propriedades não visava extinguir o latifúndio em si, mas sim conservá-lo, através da
entrega do domínio útil – mas não jurídico – aos camponeses. Ficou nítida a preocupação em
adaptar o mundo agrário à extinção da escravidão, de modo a se evitar sobressaltos ou uma
revolução e garantindo a permanência de uma vasta mão-de-obra nas fazendas. Esta
concepção de reforma agrária é que, no fundo, norteou o projeto de reforma da Lei de Terras,
em que ficou bem evidente a articulação entre a questão agrária e a da mão-de-obra. Ainda
que no projeto de reforma da Lei de 1850 tenha-se admitido a concessão do título de
proprietário aos camponeses – nacionais ou imigrantes -, sua motivação pareceu estar ligada,
fundamentalmente, à vontade de solucionar o problema da mão-de-obra para a grande
lavoura.
Percebemos assim, ao longo do estudo, a combinação de elementos progressistas e de
traços conservadores nos projetos de reforma agrária; poderíamos dizer que eles se inseriram
num plano de modernização conservadora, que mantinha o regime monárquico vigente e
coadunava-se com o capitalismo ascendente, devendo ser efetuada pelo Estado, isto é, de
cima para baixo, seguindo uma via prussiana. Porém, ao contrário do que se verificou na
162
Alemanha de Bismarck, o Estado imperial brasileiro, de acordo com José Murilo de Carvalho,
não pôde realizar plenamente essa modernização conservadora. Teriam faltado, para o autor,
as condições para o êxito de um “reformismo do Poder Moderador”, inexistindo a aliança, do
lado da sociedade, entre os “barões do aço” e os “barões do café”, e, do lado do Estado, entre
este e o Exército643.
Todavia, a despeito de não ter sido instituída uma política nacional de reforma agrária
ou de ter sido alterada a Lei de Terras, verificamos, através dos documentos, que foram
registrados diversos atos favoráveis à pequena propriedade rural, ainda que em escala
regional, em sua maioria. Presidentes de província, ministros da agricultura, presidentes do
conselho e o próprio Imperador Dom Pedro II deram mostras de apoiar a expansão desse
regime econômico. Alguns dos mais ardorosos defensores da reforma foram, como vimos,
monarquistas convictos, como Beaurepaire-Rohan, Joaquim Nabuco e André Rebouças,
defensor de uma “reforma social monárquica”. Nos projetos, focalizaram-se os camponeses
nacionais e os libertos. As populações indígenas foram várias vezes mencionadas pelos
presidentes provinciais, que em mais de um momento relataram atos que, em princípio, lhes
seriam favoráveis. Observamos também, em alguns relatórios, a existência de posições
claramente pró-grande propriedade, bem como a indicação de que o governo imperial, em
mais de um momento, deixou de apoiar experiências frutíferas de colônias agrícolas, de que
foi um nítido exemplo o abandono da Colônia Socorro pelos poderes públicos, em
Pernambuco, após o fim da grande seca.
É inegável que a Monarquia brasileira manteve, ao longo de sua duração, um lado
conservador, dada à ligação existente entre ela e as elites agrárias, fenômeno amplamente
estudado pela historiografia. Porém, o conteúdo dos relatórios oficiais, as últimas Falas do
Trono e as atitudes de monarquistas iminentes nos levam a crer que esse conservadorismo não
impediu de ter se desenvolvido uma corrente monárquica francamente reformista, que
defendia, entre outras metas, o estabelecimento de uma política de reforma agrária, tendo
vários de seus propugnadores apoiado a concessão de lotes de terra aos libertos e aos índios.
A variação de posições, encontrada nos relatórios e citada mais acima, seria, para nós, um
indicativo da existência de uma tensão entre correntes mais conservadoras e outras mais
progressistas - como ficou claro após a análise de um relatório de São Paulo referente ao ano
de 1887- no coração do sistema imperial. De certa forma, isto nos remete à Emília Viotti da
Costa, que viu na política imperial a marca de uma constante oscilação, sendo definida de
643
Cf. CARVALHO, José Murilo de. op. cit., parte II, capítulo 3, p. 322.
163
acordo com que corrente estivesse no poder, distinguindo duas orientações principais: os
setores mais ligados à política de criação de núcleos coloniais e aqueles vinculados
diretamente aos interesses da grande lavoura644.
É difícil, enfim, saber o que teria advindo do projeto de reforma agrária caso o Império
tivesse perdurado. O que é certo é que, no ano de sua queda, idéias de democratização do solo
estavam sendo pregadas abertamente pelo movimento abolicionista e encontrando algum
respaldo ao seio do governo. Muitos historiadores se perguntam, no entanto, se o regime
imperial teria realmente adotado tal política. Pesquisadores como Emília Viotti da Costa e
Marco Aurélio Nogueira enfatizaram o conservadorismo do sistema imperial, tendo o último
autor destacado a alta rotatividade dos gabinetes como um fator que dificultaria a implantação
das reformas. Não negamos tal afirmação, mas, tomando-se como base as análises de autores
como Richard Graham, José Murilo de Carvalho e Evaldo Cabral de Mello, podemos afirmar
que o Império, em contraposição ao regime que o substituiu, a Primeira República (1889-
1930), provavelmente dispunha de maiores condições ou de uma margem maior de autonomia
para fazer a reforma agrária e resistir às pressões contrárias vindas das elites agrárias que,
como se sabe, dominaram o primeiro regime republicano.
Após a queda da Monarquia, a almejada reforma do sistema fundiário, defendida por
Rebouças, Nabuco e tantos outros, efetivamente não saiu do papel. É verdade que a
Constituição republicana de 1891 instituiu o Imposto Territorial, mas este se revelou
inteiramente ineficaz, devido à inexistência de cadastros confiáveis de imóveis rurais e à
influências político-partidárias, entre outros fatores645. Os engenhos centrais que se
desenvolveram nos últimos anos do Império e ao longo da República não corresponderam
nem de longe àqueles idealizados por Rebouças, mantendo-se um padrão de exploração dos
trabalhadores rurais que, infelizmente, segue existente ainda atualmente.
Quanto aos reformadores abolicionistas, a queda da Monarquia provocou sua
dispersão e afastamento da vida pública. Rebouças acompanhou voluntariamente a Família
Imperial ao exílio. Longe do Brasil, intensificou ainda suas idéias reformistas e chegou
mesmo a vislumbrar a perspectiva de uma democracia rural na África, continente onde ele
acabaria falecendo em 1898646. Joaquim Nabuco, por sua vez, permaneceu no ostracismo
político por dez anos, até aceitar a participar da política diplomática republicana a partir de
1899, mas nunca mais participou diretamente da vida política interna do Brasil, vindo a
644
Cf. COSTA, Emília Viotti da. op. cit., parte I, capítulo 2, p. 113.
645
Cf. SABBATO, Alberto di. Verbete: “Imposto Territorial Rural”, in: Dicionário da Terra. Organizadora: Márcia Motta.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.252-253.
646
Cf. PESSANHA, Andréa Santos. op. cit., capítulo 5, p.149.
164
falecer nos Estados Unidos em 1910647. A ausência da reforma agrária, tida por ele, Rebouças
e Dantas como um dos complementos indispensáveis da extinção da escravidão, suscitaria no
século XX inúmeras lutas pela terra por parte de movimentos sociais, especialmente a partir
da década de 50, sem, contudo, ter sido realmente concretizada de forma ampla. Ela chega,
assim, aos nossos dias como uma das questões chave da sociedade brasileira, sendo uma
medida social indispensável para extinguir a obra da escravidão, conforme explicitado pelos
abolicionistas e reformadores sociais do final do Império.
647
Cf. PRADO, Maria Emília. op. cit., capítulo 3, p. 84.
165
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Brasiliense, 1993. 128 p.
VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
754 p.
VEIGA, José Eli. O que é Reforma Agrária. 14. ed. SP: Brasiliense, 1994. 35 p.
VILLA, Marco Antônio. Canudos: O povo da terra. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999. 278 p.
ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX.
Ijuí: Editora Unijuí, 2002. 320 p.
172
ANEXO A
LEI DE TERRAS (LEI N. 601) ∗
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de
sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse
mansa e pacífica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a
título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias
de nacionais e de estrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização
estrangeira na forma que se declara.
D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional
e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Súditos, que a Assembléia
Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte:
Art. 1. Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de
compra. Excetuam-se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em
uma zona de 10 léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente.
Art. 2. Os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derribarem matos, ou
lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitoras, e demais sofrerão a
pena de dois a seis meses de prisão e multa de 100$000, além da satisfação do dano causado.
Esta pena, porém, não terá lugar nos atos possessórios entre heréus confinantes.
Parágrafo único. Os Juízes de Direito nas correições que fizerem na forma das leis e
regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento destes delitos
põem todo o cuidado em processá-los e puni-los, e farão efetiva a sua responsabilidade,
impondo no caso de simples negligência a multa de 50$000 a 200$000.
Art. 3. São terras devolutas:
§ 1. As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou
municipal.
§ 2. As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem
havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em
comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3. As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que,
apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4. As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título
legal, forem legitimadas por esta Lei.
Art. 4. Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial,
que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo
sesmeiro ou concessionário, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida
qualquer das outras condições, com que foram concedidas.
Art. 5. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou
havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura e
∗
Texto acessado em 12 de janeiro de 2008 e disponível no site de internet
http://www.webhistoria.com.br/lei1850.html#N.º.Encontra-se disponível também no site
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L0601-1850.htm
173
ANEXO B
LEI DOS SEXAGENÁRIOS (LEI N. 3.270)∗
DA MATRÍCULA
Art. 1° Proceder-se-á em todo o Império a nova matrícula dos escravos, com declaração
do nome, nacionalidade, sexo, filiação, se for conhecida, ocupação ou serviço em que for
empregado idade e valor calculado conforme a tabela do §3º.
§1° A inscrição para a nova matrícula far-se-á à vista das relações que serviram de base à
matrícula especial ou averbação efetuada em virtude da Lei de 28 de setembro de 1871, ou à
vista das certidões da mesma matrícula, ou da averbação, ou à vista do título do domínio
quando nele estiver exarada a matrícula do escravo.
§2° A idade declarada na antiga matrícula se adicionará o tempo decorrido até o dia em que
for apresentada na repartição competente a relação para a matrícula ordenada por esta lei.
A matrícula que for efetuada em contravenção às disposições dos §§ 1° e 2° será nula, e o
Coletor ou Agente fiscal que a efetuar incorrerá em uma multa de cem mil réis a trezentos mil
réis, sem prejuízo de outras penas em que possa incorrer.
§3° o valor a que se refere o art. 1° será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o
máximo regulado pela idade do matriculando conforme a seguinte tabela:
Escravos menores de 30 anos 900$000;
de 30 a 40 " 8005000;
de 40 a 50 " 600$000;
de 50 a 55 400$000;
de 55 a 60 200$000;
§4° O valor dos indivíduos do sexo feminino se regulará do mesmo modo, fazendo-se, porém,
O abatimento de 25% sobre os preços acima desta.
§5° Não serão dados à matrícula os escravos de 60 anos de idade em diante; serão, porém,
inscritos em arrolamento especial para os fins dos §§ 10 a 12 do art, 3º.
§6° Será de um ano o prazo concedido para a matrícula, devendo ser este anunciado por
editais afixados nos lugares mais públicos com antecedência de 90 dias, e publicados pela
imprensa, onde a houver.
∗
Texto disponível no site: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthistbr/imperio/sexagenarios.htm, acessado em 27 de janeiro
de 2008. Foi reproduzido também por Robert Conrad. Cf. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Apêndice, p. 370-375.
177
§7° Serão considerados libertos os escravos que no prazo marcado não tiverem sido dados à
matrícula, e esta cláusula será expressa e integralmente declarada nos editais e nos anúncios
pela imprensa.
Serão isentos de prestação de serviços os escravos de 60 a 65 anos que tiverem sido arrolados.
§8° As pessoas a quem incumbe a obrigação de dar à matrícula escravos alheios, na forma do
art. 3° do Decreto n° 4.835 de 1° de dezembro de 1871, indenizarão aos respectivos senhores
o valor do escravo que, por não ter sido matriculado no devido prazo, ficar livre.
Ao credor hipotecário ou pignoratício cabe igualmente dar à matrícula os escravos
constituídos em garantia.
Os Coletores e mais Agentes fiscais serão obrigados a dar recibo dos documentos que lhes
forem entregues para a inscrição da nova matrícula, e os que deixarem de efetuá-la no prazo
legal incorrerão nas penas do art. 154 do Código Criminal, ficando salvo aos senhores o
direito de requerer de novo a matrícula, a qual, para os efeitos legais, vigorará como se tivesse
sido efetuada no tempo designado.
§9° Pela inscrição ou arrolamento de cada escravo pagar-se-á 4$ de emolumentos, cuja
importância será destinada ao fundo de emancipação, depois de satisfeitas as despesas da
matrícula.
§10º Logo que for anunciado o prazo para a matrícula, ficarão relevadas as multas incorridas
por inobservância das disposições da Lei de 28 de setembro de 1871, relativas à matrícula e
declarações prescritas por ela e pelos respectivos regulamentos.
A quem libertar ou tiver libertado, a título gratuito, algum escravo, fica remetida qualquer
dívida à Fazenda Pública por impostos referentes ao mesmo escravo.
O Governo, no Regulamento que expedir para execução desta lei, marcará um só e o mesmo
prazo para a apuração da matrícula em todo o Império.
Art. 2.° O fundo de emancipação será formado:
I - Das taxas e rendas para ele destinadas na legislação vigente.
II - Da taxa de 5% adicionais a todos os impostos gerais, exceto os de exportação. Esta taxa
será cobrada desde já livre de despesas de arrecadação, anualmente inscrita no orçamento da
receita apresentado à Assembléia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios da Fazenda.
III - De títulos da dívida pública emitidos a 5%, com amortização anual de 1/2%, sendo os
juros e a amortização pagos pela referida taxa de 5%.
§1° A taxa adicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se
extinguir a dívida proveniente da emissão dos títulos autorizados por esta lei.
§2° O fundo de emancipação, de que trata o n° I deste artigo, continuará a ser aplicado de
conformidade ao disposto no art. 27 do regulamento aprovado pelo Decreto n.° 5.135, de 13
de novembro de 1872.
§3° O Produto da taxa adicional será dividido em três partes iguais:
A 1ª parte será aplicada à emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que for
estabelecido em regulamento do Governo.
A 2a parte será aplicada à deliberação por metade ou menos de metade de seu valor, dos
escravos de lavoura e mineração cujos senhores quiserem converter em livres os
estabelecimentos mantidos por escravos.
A 3a parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte
de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de qualquer
natureza.
§4° Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos
178
avaliação dos escravos, para os diversos meios de libertação, com o limite fixado no art. 1°,
§3.°
§8° São válidas as alforrias concedidas, ainda que o seu valor exceda ao da terça do
outorgante e sejam ou não necessários os herdeiros que porventura tiver.
§9° É permitida a liberalidade direta de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que se
exiba preço deste.
§10º São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que
entrar em execução esta lei, ficando, porém, obrigados a titulo de indenização pela sua
alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos.
§11º Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade,
não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado
com relação ao prazo acima declarado.
§12º É permitida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente à metade
do valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 anos de idade.
§13º Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço de que trata o §10º,
continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los,
e tratá-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se
preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juizes de Órfãos os julgarem
capazes de o fazer.
§14º É domicilio obrigado por tempo de cinco anos, contados da data da libertação do liberto
pelo fundo de emancipação, o município onde tiver sido alforriado, exceto o das capitais.
§15º O que se ausentar de seu domicílio será considerado vagabundo e apreendido pela
polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas.
§16º O Juiz de Órfãos poderá permitir a mudança do liberto no caso de moléstia ou por outro
motivo atenuável, se o mesmo liberto tiver bom procedimento e declarar o lugar para onde
pretende transferir seu domicílio.
§17º Qualquer liberto encontrado sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar
seus serviços no prazo que lhe for marcado pela polícia.
§18º Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da polícia,
será por esta enviado ao Juiz de Órfãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de
serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colônia
agrícola no caso de reincidência.
§19º O domicílio do escravo é intransferível para província diversa da em que estiver
matriculado ao tempo da promulgação desta lei.
A mudança importará aquisição da liberdade, exceto nos seguintes casos:
1° transferência do escravo de um para outro estabelecimento do mesmo senhor;
2° Se o escravo tiver sido obtido por herança ou por adjudicação forçada em outra província;
3° Mudança de domicilio do senhor;
4.° Evasão do escravo.
§20º O escravo evadido da casa do senhor ou de onde estiver empregado não poderá,
enquanto estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação.
§21º A obrigação de prestação de serviços de escravos, de que trata o §3° deste artigo, ou
como condição de liberdade, não vigorará por tempo maior do que aquele em que a
escravidão for considerada extinta.
DISPOSIÇÕES GERAIS
180
Art. 4° Nos regulamentos que expedir para execução desta lei o Governo determinará:
o
1 ) os direitos e obrigações dos libertos a que se refere o §3° do art. 3° para com os seus ex-
senhores e vice-versa;
2.°) os direitos e obrigações dos demais libertos sujeitos à prestação de serviços e daqueles a
quem esses serviços devam ser prestados;
3.°) a intervenção dos Curadores gerais por parte do escravo, quando este for obrigado à
prestação de serviços, e as atribuições dos Juizes de Direito, Juizes Municipais e de Órfãos e
Juizes de Paz nos casos de que trata a presente lei.
§1° A infração das obrigações a que se referem os nos 1e 2 deste artigo será punida conforme a
sua gravidade, com multa de 200$ ou prisão com trabalho até 30 dias.
§2° São competentes para a imposição dessas penas os Juízes de Paz dos respectivos distritos,
sendo o processo o do Decreto n.° 4.824, de 29 de novembro de 187I, art. 45 e seus
parágrafos.
§3° O açoitamento de escravos será capitulado no art. 260 do Código Criminal.
§4° O direito dos senhores de escravos à prestação de serviços dos ingênuos ou à indenização
em títulos de renda, na forma do art. 1°, §1°, da Lei de 28 de setembro de 1871, cessará com a
extinção da escravidão.
§5° O Governo estabelecerá em diversos pontos do Império ou nas Províncias fronteiras,
colônias agrícolas, regidas com disciplina militar, para as quais serão enviados os libertos sem
ocupação.
§6° A ocupação efetiva nos trabalhos da lavoura constituirá legitima isenção do serviço
militar.
§7° Nenhuma província, nem mesmo as que gozarem de tarifa especial, ficará isenta do
pagamento do imposto adicionai de que trata o art. 2°
§8° Os regulamentos que forem expedidos peio Governo serão logo postos em execução e
sujeitos à aprovação do Poder Legislativo, consolidadas todas as disposições relativas ao
elemento servil constantes da Lei de 28 de setembro de 1871e respectivos Regulamentos que
não forem revogados.
Art. 5° Ficam revogadas as disposições em contrário.
ANEXO C
∗
Apresentamos nas páginas seguintes uma cópia de um trecho dos Anais do Senado (ano de 1887, volume III),
compreendido entre as páginas 276 e 289 (com exceção das páginas 286 e 288, que estão em branco), incluindo o projeto
governamental de modificação de reforma da Lei de Terras, as emendas dos deputados e dos senadores. Objetivando manter
o número de páginas anexadas dentro dos limites do trabalho proposto, não foi incluído o voto em separado do senador
Antônio Prado, comentado de todo modo, ao longo do capítulo IV.
183
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