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05/04/2020 ConJur - Diário de Classe: Lições do modelo boliviano à jurisdição constitucional brasileira

DIÁRIO DE CLASSE

As lições do modelo boliviano à jurisdição constitucional brasileira


28 de abril de 2018, 8h01

Por Tatiane Alves Macedo

Nos últimos anos, as decisões do Supremo Tribunal Federal têm provocado uma enxurrada de textos.
As pesquisas jurídicas no Brasil chegaram próximo da definição dada por Hart[1] ao pensamento
norte-americano sobre a natureza do Direito “marcada por uma concentração, quase ao ponto de
uma obsessão” pelo problema da decisão judicial e sobre o modo como os juízes raciocinam ou
deveriam raciocinar em casos específicos.

O professor Lenio Streck, otimista, afirmava acreditar que o constrangimento epistemológico que
estava sendo feito em relação às decisões faria com que os membros do Tribunal revisassem sua
posição (ler aqui), contudo, parece que devemos reconhecer que eles não são dados a
constrangimentos!

Propomos então uma reflexão sobre a própria natureza da jurisdição constitucional no Brasil, e da necessidade de discutirmos
uma maior abertura democrática no que se refere ao processo de escolha dos juízes.

Pois bem, na obra Jurisdição Constitucional, Hans Kelsen[2] ensina que o órgão incumbido de anular os atos inconstitucionais
deve ser distinto do Parlamento, independente dele e, portanto, de qualquer outra autoridade estatal: esse órgão deve ser uma
jurisdição ou um tribunal constitucional.

Quanto à composição das Cortes, Kelsen[3] afirma que não se pode propor um modelo uniforme de Jurisdição Constitucional
para todas as Constituições possíveis, devendo a organização da jurisdição constitucional adaptar-se às peculiaridades de cada
uma. Contudo, indica as seguintes soluções de alcance e valor gerais:

a) O número de seus membros não poderá ser muito grande, pois deverá deliberar sobre questões de direito,
cumprindo uma missão puramente jurídica de interpretação da Constituição. Entre as modalidades de recrutamento
mais típicas, não há como advogar sem ressalvas a eleição pura e simples pelo Parlamento, nem tampouco a nomeação
de responsabilidade exclusiva do Chefe do Estado ou do governo. Talvez se possa conjugá-las, fazendo com que os
juízes sejam eleitos pelo Parlamento em lista elaborada pelo governo, o qual deveria designar vários candidatos para
cada vaga a preencher;

b) É de suma importância dar, na composição da jurisdição constitucional, o devido lugar a juristas profissionais. Um
procedimento interessante para tal seria outorgar às Faculdades de Direito ou a uma comissão de que todas participem
o direito de apresentar candidatos para, pelo menos, parte dos cargos ou, ainda, outorgar ao próprio tribunal o direito
de apresentar candidatos para cada vaga, que seria provida mediante eleição;

c) É importante excluir da jurisdição constitucional os membros do Parlamento e do governo, pois são justamente seus
atos os que serão controlados por ela. Manter a jurisprudência do tribunal a salvo de toda influência política será uma
tarefa tão difícil quanto desejável.

De modo contrário aos ensinamentos do mestre de Viena, a nomeação dos membros do STF no Brasil se dá por ingerência do
presidente da República, por critério político, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal, os quais, na
maioria das vezes, não cumprem adequadamente seu papel. A arguição dos senadores no Brasil é meramente formal, tanto que
na história republicana brasileira, ao longo de 128 anos (1889 a 2017), o Senado rejeitou apenas cinco indicações presidenciais
para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal – todas durante o governo Floriano Peixoto (1891 a 1894).[4]

A forte influência política no tribunal e a relação pessoal entre a entidade nomeante e o juiz nomeado acabam por comprometer
a independência, a credibilidade e a legitimidade da justiça constitucional no Brasil, tanto que, atualmente, há mais de trinta
propostas de Emenda Constitucional em trâmite no Congresso Nacional, buscando modificar o modelo de recrutamento dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, as quais gravitam em torno de estabelecer um mandato com prazo determinado (sete a
12 anos), ou a inclusão de outros atores no processo de escolha dos ministros, como participação da Câmara dos Deputados, do
Senado Federal, do Conselho Nacional de Justiça, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil, entre outros.

Contudo, nenhuma das propostas em tramitação no Parlamento prevê a possibilidade de eleições para composição dos tribunais.
Nesse ponto, entendemos que o modelo boliviano apresenta vários aspectos positivos, e a análise dos dois processos eleitorais
que já ocorreram no país vizinho (2011 e 2017) é de extrema relevância para repensar o modelo brasileiro.

Historicamente, na Bolívia, o Poder Judicial e a Suprema Corte de Justiça foram instáveis e fracos. Durante o século XX, o
Tribunal Supremo foi reorganizado mais de vinte vezes e, no período de 1900 a 2009, o Tribunal funcionou sem 53% do total de

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seus membros, e entre 1900 e 2008, apenas 8% dos juízes cumpriram seu mandato no cargo.[5]

Com a promulgação da Constituição boliviana de 2009, os membros da Suprema Corte de Justiça, do Tribunal Agroambiental, do
Tribunal Constitucional Plurinacional e do Conselho da Magistratura passaram a ser escolhidos por meio de eleição direta.

O capítulo da Constituição boliviana que organiza o Poder Judiciário estabelece, nas disposições gerais, que o poder de distribuir
justiça emana do povo boliviano e é fundado nos princípios da “independência, imparcialidade, segurança jurídica, publicidade,
probidade, velocidade, gratificação, pluralismo jurídico, interculturalidade, equidade, serviço à sociedade, participação cidadã,
harmonia social e respeito por direitos” (Art. 178 da Constituição boliviana).[6]

O Tribunal Constitucional Plurinacional é composto por sete juízas e juízes titulares e sete juízas e juízes suplentes, todos eleitos
via pleito direto organizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O principal ator no processo democrático da Bolívia é o Órgão
Eleitoral.

A Constituição boliviana de 2009, na parte que organiza os poderes, inova inserindo o Órgão Eleitoral como um quarto poder
que atua ao lado dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso o processo eleitoral passa a ser conduzido pelo poder
Eleitoral Plurinacional, que tem a mesma hierarquia constitucional dos demais poderes para garantir a democracia intercultural
na Bolívia.[7]

O processo para eleição dos juízes que comporão o Tribunal Constitucional Plurinacional se inicia na Assembleia Legislativa
Plurinacional, que recebe as propostas dos candidatos e realiza a pré-seleção. Os candidatos podem apresentar-se individual e
diretamente ou ser propostos por meio de organizações da sociedade civil ou nações indígenas ou por universidades públicas ou
privadas, associações profissionais e instituições civis devidamente reconhecidas.[8]

Para ser elegível para o Tribunal Constitucional Plurinacional, são necessários, além dos requisitos gerais estabelecidos para os
servidores públicos, ter completado trinta e cinco anos de idade, possuir diploma de Direito e Registro Público de Advogado,
possuir especialização ou experiência de mais de oito anos nas disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo ou Direitos
Humanos.

Na primeira fase, a Assembleia Legislativa Plurinacional examinará o cumprimento dos requisitos pelos postulantes e publicará
a lista dos habilitados, que irão para a fase de avaliação que é realizada com a participação do Sistema Universitário Boliviano.
Esta etapa é composta pelas fases de avaliação curricular, avaliação escrita e entrevista. O sistema de avaliação curricular inclui
as seguintes áreas: especialização (Formação Acadêmica e Produção Intelectual); experiência profissional (trajetória profissional
geral e trajetória profissional específica) e qualidade da autoridade indígena campesina.[9]

A etapa de qualificação do mérito é uma etapa excludente para os participantes. A soma obtida nesta fase será adicionada com a
ponderação do exame escrito para que eles possam ser qualificados para a entrevista. A Comissão Conjunta entrevistará cada
candidato qualificado para avaliar oralmente seu conhecimento, desenvolvimento, capacidade de argumentação, análise e
comunicação, conhecimento da área, gestão e propostas.

A Assembleia Legislativa deve obedecer a dois tipos de cotas para os candidatos: 50% devem ser mulheres e, dentre os pré-
selecionados deve haver candidatos oriundos da justiça comunitária e/ou indicados por organizações indígenas. Os candidatos
ao Tribunal Constitucional Plurinacional disputarão a eleição em nível regional.

A apresentação dos candidatos ao eleitorado é feita exclusivamente pelo Órgão Eleitoral, pois assim como qualquer pessoa, não
podem realizar campanha eleitoral em favor de suas candidaturas, sob pena de desqualificação.

Os sete candidatos mais votados serão os magistrados titulares do Tribunal Constitucional Plurinacional, e os sete candidatos
seguintes na votação serão suplentes. Pelo menos dois magistrados serão oriundos do sistema indígena camponês original, por
autoidentificação pessoal. Por fim, os eleitos cumprirão mandatos de seis anos, sem direito à reeleição.

Trata-se de um método de escolha único na região e no mundo, mas com um cenário regional. No passado, na América Latina, o
sufrágio para eleger juízes foi implementado no México na Constituição de 1857, na Nicarágua e em Honduras no século XIX.[10]
No entanto, hoje não existe outro país em que juízes dos tribunais são eleitos por meio do sufrágio universal.

 
[1] Hart, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

[2] Kelsen, H.A. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[3] Kelsen, H.A. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 154.

[4] Mello Filho, J.C. de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). 4. ed. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 2014.
Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoPublicacaoInstitucionalCuriosidade/anexo/Notas_sobre_o_Supremo_Tribunal_2014_e
Acesso em: 4 fev. 2018.

[5] Helmke, G.; Ríos Figueroa, J. Introducción. In: Ríos Figueroa, J.; Helmke, G (Coord.). Tribunales constitucionales en América
Latina. México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2010. p. 1-46.

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[6] Estado Plurinacional da Bolívia. Constituición Política del Estado Plurinacional de Bolívia. Disponível em:
<http://www.tcpbolivia.bo/tcp/content/leyes>. Acesso em: 20 jan. 2018.

[7] Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Lei nº 18/2010. Disponível em: <https://www1.oep.org.bo/wp-
content/uploads/2017/01/Ley_018.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2018.

[8] Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Reglamento de Preselección de Candidatas e Candidatos para
la Conformación del Tribunal Constitucional Plurinacional y Tribunal Supremo de Justicia: Art. 11, p. 9. Disponível em:
<http://senado.gob.bo/sites/default/files/REGLAMENTO%20PRESELECCIO%2024062017.pdf >. Acesso em: 22 jan. 2018.

[9] Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Reglamento para las Elecciones de Altas Autoridades del
Órgano Judicial y Del Tribunal Constitucional Plurinacional. 2017. Aprobado mediante Resolución de Sala Plena TSE-RSP-ADM n°
200/2017 de 24 de mayo 2017. Disponível em: <http://www1.oep.org.bo/wp-
content/uploads/2017/10/reglamento_elecciones_judiciales_2017.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2018.

[10] Carey, J. Palace Intrigue: missiles, treason and the rule of law en Bolivia. Perspectives on Politics, v. 7, n. 2, p. 351-356, 2009.

Tatiane Alves Macedo é mestre em Direito pela PUC-GO, doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos), professora da Unifimes, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Rede para
Constitucionalismo Democrático Latino-americano.

Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2018, 8h01

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