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FiLIPE ~KiU ~C’~ ci ai
Estas últimas definições diagnósticas, baseadas numa toriamente de intensidade ligeira ou moderada; podem
abordagem essencialmente descritiva, foram percursoras no entanto ter lugar em qualquer fase da evolução. Em
da solução classificativa que viria a ser adoptada pelo contrapartida, o DSM-IV autoriza episódios depressivos
DSM-1117. Os trabalhos de Akiskal no final dos anos 708 major de qualquer intensidade (depressão dupla), desde
viriam a influenciar decisivamente a individualização da que não ocorram nos primeiros dois anos de evolução.
distímia como entidade clínica pertencente ao grupo das Fundamentalmente, estas diferenças implicam uma
perturbações do humor. Contudo, o termo distímia não se definição diversa da fronteira entre distímia e pertur
tornou sinónimo de qualquer uma das entidades anterior bação depressiva major.
mente diagnosticadas (por exemplo da depressão neu
rótica do DSM-II ou da neurose depressiva da ICD-9), DIVISÃO DIAGNÓSTICA
abrangendo apenas uma parte da população identificada Akiskal9 admitiu ser a distímia a via clínica final
por essas definições diagnósticas. Uma percentagem pela qual se traduz um conjunto variado de situações
importante desses casos encontra correspondência na médicas e psiquiátricas, mas ao mesmo tempo consi
perturbação depressiva major (não melancólica), ou seja, dera que o conceito faculta um quadro de referência
esta categoria engloba também um número significativo conveniente para a investigação das depressões cróni
das anteriores depressões neuróticas. Portanto, como de cas menores.
resto foi demonstrado nos estudos de Akiskal et a18, tanto Nessa fase da sua investigação, Akiskal9 propõe a
as depressões major (exceptuando-se o tipo melancólico) divisão da distímia em 1) depressões de início tardio com
como as distímias têm correspondência com o clássico cronicidade residual, 2) disforias crónicas secundárias e
conceito de depressão neurótica. 3) depressões caracteriais de início precoce. Este último
A divisão diagnóstica da distímia proposta por grupo é subdividido em duas categorias designadas por
Akiskal9 constituiu um quadro de referência importante espectro de perturba ções do carácter e perturbações dis
para o trabalho de investigação e conceptualização das tímicas subafectivas. Para além de aspectos sintoma
formas menores de depressão. tológicos e evolutivos, os critérios diferenciadores
A influência destas concepções fez-se sentir no DSM baseiam-se nos antecedentes familiares de doença afecti
III R~0, que adoptou a distinção entre distímia primária va, resposta terapêutica aos antidepressivos e redução da
e secundária. A presença de outro diagnóstico psiquiá latência do sono paradoxal.
trico no eixo 1 ou diagnósticos de doença física no eixo No mesmo estudo é admitido que a distímia subafecti
III definem o tipo secundário, sendo consentido que a va poderá ter relações de proximidade biológica e genéti
distímia primária se associe a diagnósticos de perturba ca com a doença bipolar. Do ponto de vista evolutivo,
ção da personalidade no eixo II. Outra inovação foi a exi alguns dos doentes com esse diagnóstico revelam ten
gência da distímia se iniciar de forma insidiosa, pelo que dências bipolares, nomeadamente viragens para estados
passou a ser excluída a possibilidade dela ser diagnosti maniformes induzidas pelos antidepressivos tricíclicos;
cada se ocorrer na sequência de um episódio depressivo também a história familiar revela muitas vezes casos de
major. doença bipolar. Daí ser sugerido que uma proporção
O DSM-1V11 não inclui uma referência expressa à importante das distímias subafectivas esteja mais próxi
divisão primário 1 secundário mas, em termos classifica ma da ciclotímia e das perturbações bipolares tipo II do
tivos, é proposto um agrupamento das perturbações que da doença unipolar.
depressivas que respeita essa distinção. Akiskal9 aborda o problema do reconhecimento clíni
Numa tentativa de aproximação à terminologia e con co da distímia subafectiva, cuja importância se coloca
ceptualização do DSM-IV, a ICD-l0’2 reconhece a dis não apenas em termos de investigação mas também no
tímia como categoria diagnóstica e considera-a também plano clínico, pois condiciona as decisões terapêuticas e
uma forma clinicamente atenuada de patologia afectiva; a definição do prognóstico. Propõe um conjunto de
não existe contudo uma total identificação com as critérios fenomenológicos com potencial valor heurísti
exigências diagnósticas do DSM-1V13. Estão em causa co, que incluem: idade de início precoce, sendo habitual
diferenças que dizem respeito tanto ao limiar sintomáti que as manifestações clínicas surjam antes dos 25 anos;
co para a definição de distímia, como ao significado evolução crónica com flutuações; intensidade ligeira ou
diagnóstico da ocorrência de episódios depressivos moderada (subsindromática) do quadro depressivo, mas
major. Segundo a ICD-l0, a distímia comporta muito podendo ocorrer episódios depressivos de maior gravi
poucos ou nenhuns episódios depressivos major, obriga- dade; presença de pelo menos duas de entre um conjun
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CONCEITO DE DISTI\IIA
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características biológicas da distímia parecem correspon se problemática a existência de fronteiras internas dentro
der preferencialmente a marcadores de traço (e não a do espectro da doença afectiva. Tal como o argumento é
marcadores de estado) da doença afectiva. construído, se a distímia é no essencial idêntica a outras
Akiskal29 afirma que as evidências disponíveis são formas de doença afectiva, qual o sentido da sua individ
congruentes com a noção de que a distímia pertence ao ualização? A dúvida é tanto mais pertinente se se consid
espectro das perturbações afectivas primárias e deve ser erar a evidência de que, mesmo nos planos sindromático,
diferenciada dos síndromes neuróticos. Em concordân evolutivo e terapêutico, a distímia não difere substan
cia com esta noção, propõe actualmente uma interpre cialmente das perturbações depressivas major. A este
tação teórica, de inspiração kraepliniana, segundo a qual propósito, é sugestivo o comentário cauteloso do próprio
o ten?peralnento depressivo, a distímia e os episódios autor: “(...)no que diz respeito à frequente associação e
afectivos major seriam variantes clínicas e/ou etapas de sobreposição sintomatológica entre a distímia e a
um mesma doença. depressão majol tal não deve ser considerado como um
Julgamos inquestionável o valor pragmático do con desafio à validade da distímia, mas como uma indicação
ceito de distímia, no sentido em que é reconhecido por dasfronteirasfluidas dentro do espectro da doença afec
Akiskal: as depressões menores e crónicas passam a ser tiva.
consideradas como patologias que merecem um diagnós A controvérsia actual sobre o estatuto nosológico das
tico cuidadoso e são acessíveis a tratamentos bem formas menores de depressão parece longe de estar esgo
definidos. As implicações desta evolução conceptual não tada. O conceito actual de distímia é fortemente devedor
podem também ser ignoradas. Entre elas, parece funda do trabalho de H. S. Akiskal. Os dados disponíveis pare
mental a noção de que a doença afectiva pode manifes cem confirmar a sua hipótese principal, segundo a qual
tar-se por quadros clínicos pouco intensos ou mesmo há formas menores de depressão que são variantes da
subsindromáticos, abrindo-se assim caminho à identifi doença afectiva, e são congruentes com a sua concepção
cação de tipos clínicos que constituiriam formas atenua geral de espectro de doença afectiva, de inspiração
das da doença. kraepliniana. Já a validade das distinções classificativas
Importa fazer notar que o próprio Akliskal9 começa correntes, incluindo as actuais definições de distímia,
por reconhecer a heterogeneidade clínica e biológica da não parece garantida pelos dados disponíveis, havendo
distímia, formulando, como já foi referido, divisões clas lugar a interpretações divergentes. São certamente
sificativas entre formas genuínas de doença afectiva (dis necessárias novas investigações para estabelecer, ou não,
tímias subafectivas) e perturbações depressivas não- a validade das actuais distinções classificativas no que
afectivas. Esta perspectiva surge esbatida em publica respeita às perturbações depressivas, nomeadamente às
ções mais recentes29, onde propõe o reconhecimento de formas de menor intensidade sintomática, sem carac
duas grandes variantes essenciaimente clínicas distí
-
terísticas melancólicas ou psicóticas, e de curso arrasta
mias primárias e ansiosas sem contudo atribuir espe
-
do.
cial significado nosológico a esta distinção.
A adopção desta posição teórica condiciona a interpre BIBLIOGRAFIA
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CONCEITO DE DISTIMIA
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