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Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o contexto musical do candomblé ketu com ênfase
no sequestro das linhas-guia ocorrido nas melodias coletadas por Camargo Guarnieri em 1937.
Pretende-se demonstrar que a música executada pelos instrumentos de percussão tem extrema
importância nos rituais dessa religião. A coleta realizada pelo maestro e compositor, entendida aqui
como uma metodologia inadequada ao registro dessa música, será utilizada para evidenciar como as
estruturas rítmicas e melódicas, quando analisadas à luz de uma epistemologia rítmica pertinente,
podem revelar elementos que as conectam com práticas semântico-musicais e arquétipos referentes
aos orixás e aos toques específicos.
Resumen: En este artículo se presenta un estudio sobre el contexto musical de Ketu Candomblé
haciendo hincapié en el secuestro de claves ocurrido en las melodías recogidas por Camargo
Guarnieri en 1937. Se demonstró que la música interpretada por la percusión es muy importante en
los rituales de esta religión. La colección hecha por el maestro y compositor, entendida aquí como
una metodología inadecuada para grabar la música, se utilizará para mostrar cómo las estructuras
rítmicas y melódicas, cuando se examina a la luz de una epistemología rítmica relevante, pueden
revelar los elementos que conectan con las prácticas semântico- musical y arquetipos relacionados
con los orishas y toques específicos.
1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo apresentar parte de um trabalho que vem
sendo desenvolvido sobre o contexto musical do candomblé ketu. Nesse momento
procura indicar o sequestro das linhas-guia nas melodias coletadas por Camargo
Guarnieri em 1937. Em suas transcrições – é importante ressaltar que nenhum
registro mecânico foi realizado nesta ocasião e o registro foi realizado através de
informantes deslocados de seus contextos culturais - Guarnieri anotou unicamente
as melodias cantadas, e, em raros casos, somente um instrumento de percussão
dos quatro que tradicionalmente formam o conjunto musical do candomblé.
A ausência desses instrumentos nesse registro etnográfico, entretanto, não
diminui a importância desta coleta nos estudos de música de matriz africana no
Brasil, seguramente um dos trabalhos pioneiros neste âmbito. Ao contrário,
1
Luciano da Silva Candemil, mestrando em etnomusicologia, UDESC, especialista, bacharel e
licenciado em música pela UNIVALI, lucianocandemil@hotmail.com.
2
Luiz Henrique Fiammenghi, doutor em música pela UNICAMP, Professor Adjunto na Faculdade de
Música da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), lhfiaminghi@yahoo.com.br.
procuramos neste estudo tratar as ausências dessas peças-chaves como um
elemento detonador de um processo investigativo amplo e interdisciplinar, que
sobrepõe informações provenientes das novas metodologias de estudo da música
africana com a prática e criação musical. Sendo assim, pretende-se demonstrar que
a música executada pelos instrumentos de percussão tem extrema importância na
realização dos eventos litúrgicos, e que toda a sua complexidade deve ser
considerada nas pesquisas a respeito dessa prática musical.
A respeito da coleta de Camargo Guarnieri, o compositor brasileiro recolheu
melodias de várias modalidades de candomblés baianos durante viagem para
Salvador (BA), por ocasião do Segundo Congresso Afro-brasileiro realizado no ano
de 1937. Este trabalho etnográfico, que contempla cerca de duzentas e dez
melodias, foi feito com o apoio do Departamento de Cultura de São Paulo sob
direção de Mário de Andrade, tornando-se um valioso registro etnográfico.
Essas melodias foram reunidas e publicadas em ‘Melodias Registradas por
Meios Não-Mecânicos’, material organizado por Oneyda Alvarenga (1946). No
entanto, apesar da sua importância histórica e sociocultural, esse registro apresenta
uma visão parcial do fenômeno musical, pois ao emoldurar essas melodias sem a
indicação adequada dos instrumentos de percussão, ficaram obscurecidas suas
perspectivas rítmicas mais características, sublinhadas pelas linhas-guia.
No que se refere ao candomblé ketu, os instrumentos de percussão são
fundamentais para a realização das cerimônias sagradas, do qual ressaltamos o
gan, que tem a função de tocar as linhas-guia, que como veremos adiante merece
todo o destaque dado a sua importância de orientar a execução musical e os gestos
coreográficos dos deuses africanos.
2. O que é candomblé?
A respeito da definição do termo candomblé podemos encontrar diferentes
significados conforme cada ponto de vista. No que tange a questão de território
social, Carneiro esclarece que o nome candomblé define o lugar “em que os negros
da Bahia realizam as suas características festas religiosas”, mas que, “antigamente
significou somente as festas públicas anuais das seitas africanas, e em menor
escala os nomes de terreiro, roça, ou aldeia” (Carneiro 1991: 33).
Levando em conta a etimologia e as origens étnicas, Biancardi define o
candomblé como “um modelo ritual-religioso fortemente influenciado pelas religiões
daometana e iorubá” (Biancardi 2006: 304). Barros, em seu livro “O banquete do rei
– Olubajé: uma introdução à música sacra afro-brasileira”, explica que o candomblé
é “o resultado da reelaboração de diversas culturas africanas, produto de várias
afiliações, existindo, portanto, vários Candomblés” (Barros 2009: 17). O candomblé
também pode ser designado como o resultado de uma ação contínua de reinvenção
religiosa, da África para o Brasil, “como produto de invenções – de adaptações e de
síntese – dos vários sistemas de crenças provenientes do continente africano
durante mais de três séculos do período da escravidão” (Teixeira 1999: 133-134).
No que se refere à mistura cultural das etnias africanas que vieram para o
Brasil, Prandi apresenta a seguinte definição para o candomblé: “é o nome dado à
religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos
iorubás, ou nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos fons, aqui
denominados jejes, e residualmente por grupos africanos minoritários” (Prandi 2005:
20-21). Verger aponta que foram os negros oriundos de Ketu que fundaram os
primeiros terreiros de candomblé no Brasil (Verger 1999: 33). Ketu é o “nome de um
importante reino iorubá, atualmente localizado no Benim” (Lühning 1990: 233).
Considerando a função social da música e sua relação com eventos extra-
sonoros, Cardoso informa que o termo candomblé é utilizado genericamente para
denominar as religiões afro-brasileiras que compartilham certas características, entre
elas, a importância da música e o fenômeno da possessão (Cardoso 2006: 1).
Ôxalá, nas suas duas formas, dança quebrando o corpo, com ligeira flexão
dos joelhos; Xangô, com as mãos para cima, os braços em ângulo reto;
Yansã, como que afastando alguma coisa de si; Ômolu, velho, com as mãos
para o chão, o corpo curvado, cambaleando; (...); Ôgún, traçando espada,
com movimentos de esgrimista; Óxóce, com as mãos imitando uma
espingarda, apontando para atirar, Ôxún, sacudindo a mão direita, como se
fosse um leque; Yêmanjá, curvada para frente, encolhendo os braços para
si, à altura do baixo ventre (Carneiro 1991: 78).
4. O gan e as linhas-guia
O gan (gã) é um instrumento de percussão da família dos idiofones3 que
dentro das práticas musicais do candomblé ketu assume a importante tarefa de
iniciar os toques e de executar uma espécie de linha rítmica que serve de referência
para os ritmos tocados nos atabaques. “Os polirritmos são iniciados pelo gã,
apresentando a frase rítmica, e, em seguida, combinadamente, os atabaques
3
São os instrumentos musicais que produzem som pela vibração do próprio corpo.
começam a ser percutidos” (Lody & Sá 1987: 62). Biancardi confirma essa questão:
“o toque inicial na cerimônia do candomblé [ketu] é dado pelo agogô, que reproduz
uma frase rítmica, entrando, em seguida, os atabaques” (Biancardi 2006: 313).
Sobre essa condução rítmica tocada pelo gan, Fonseca destaca que “o papel
das linhas-guias dentro da realização ritual é o de explicitar a base sobre a qual se
dará a execução dos tambores, além de servir de referência à linha melódica dos
cânticos e de apoio à dança” (Fonseca 2002: 18). Em muitas pesquisas sobre
músicas de matriz africana o termo timeline é empregado para designar o referencial
rítmico realizado pelo gan. Sobre suas funções musicais, Barros informa que o gan
marca “o compasso a que se submetem os outros instrumentos. Seu timbre é
estridente, com um padrão rítmico fixo e curto” (Barros 2009: 75).
Relacionando o som do gan com o timbre, Graeff informa que esses
instrumentos executam padrões rítmicos que são repetidos “constantemente por um
único som, ao contrário das demais sequências tímbricas” (Graeff 2014: 11). Esses
sons geralmente possuem uma frequência sonora aguda que facilita a sua distinção
dos sons produzidos pelos atabaques, e por conta disso, são utilizados “como o
principal nível de orientação temporal” (ibid.). Em relação à sonoridade do gan
(agogô) e sua função rítmica, Cardoso (2006) explica a questão da linha-guia:
A respeito do timeline, de acordo com Kofi Agawu (2003) esse termo foi
cunhado por Kwabena Nketia em 1963, e desde então outros termos estão sendo
empregados com o mesmo sentido entre eles: bell patterns, bell rtythm, guideline ou
claves. Para Toussaint (2003) timeline trata-se de um ostinato particular de fácil
reconhecimento e memorização que orienta os músicos em relação ao caráter
cíclico das músicas de matriz africana. Já para Sandroni, o timeline é utilizado como
um tipo de metrônomo tocado por palmas ou por algum instrumento percussivo de
timbre agudo que conduz outras linhas rítmicas simultâneas (Sandroni 2001: 19).
Por outro lado, Agawu considera a comparação da linha-guia com o
metrônomo como uma analogia não totalmente feliz. Segundo o autor, o metrônomo
tem a função de marcar o tempo mediante batidas sonoramente uniformes e
equidistantes enquanto a linha-guia marca um padrão rítmico formado por sons
curtos e longos (Agawu 2006: 7-8). A combinação e quantidade desses sons curtos
e longos é que vai caracterizar a linha-guia específica para cada orixá, ordenando a
execução dos toques pelo conjunto instrumental e a movimentação coreográfica.
Têm, portanto, um caráter semântico, inexistente no conceito metronômico que
apenas mede o tempo. Independente do ajuste do andamento, o metrônomo não
tem informação suficiente para determinar qual toque será tocado num ritual de
candomblé ketu. É por essa razão que o gan é tocado antes dos atabaques visando
anunciar o próximo ritmo.
Graeff analisando a performance musical do candomblé observou que pelo
fato da linha-guia fornecer a orientação temporal, “resulta natural que o ritmo das
cantigas se atrelem a ela(s) – ou o ritmo das linhas-rítmicas é que se atrelaram às
sílabas cantadas em idiomas africanos no passado” (Graeff 2014: 17). Sobre a
ligação entre canto e linha-guia (linha temporal), Péres Fernández afirma que “por
sua estreita vinculação rítmica com o canto, as linhas temporais costumam refletir à
maneira de arquétipos, os elementos rítmicos básicos dos padrões melódicos”
(Pérez Fernandez 1988: 64 apud Carvalho 2010: 789).
Tendo em vista a importância dos instrumentos de percussão para o
candomblé ketu, durante a realização de um estudo sobre essa prática musical
chamou a atenção o fato dos cânticos coletados por Guarnieri não indicarem
nenhuma linha-guia tocada pelo gan. A ausência dessa informação foi considerada
como o sequestro das linhas-guia. Na sequência serão apresentadas algumas
hipóteses, decorrentes desta pesquisa, para evidenciar as estruturas rítmicas de
algumas melodias presentes no material organizado por Alvarenga (1946).
6. Considerações Finais
Mediante uma abordagem teórica e prática, este trabalho procurou
demonstrar que os ritmos executados pelos instrumentos de percussão têm extrema
importância para o contexto litúrgico no candomblé ketu. Os toques, como são
chamados os ritmos pelos membros da comunidade religiosa, estão intimamente
relacionados com outros elementos presentes nos rituais como o canto e a dança.
Para enfatizar a relação entre as estruturas rítmicas e as linhas melódicas, os
cânticos do candomblé ketu coletados pelo compositor Camargo Guarnieri em 1937
foram analisados e confrontados com teorias recentes sobre música africana, como
por exemplo, o conceito de linha-guia ou timeline. Nos dois exemplos selecionados
procurou-se evidenciar que, apesar do sequestro das linhas-guia ocorrido nos
cantos coletados por Guarnieri, as estruturas rítmicas inerentes aos toques
específicos podem ser revelados através de elementos adjacentes não
necessariamente rítmicos, como os arquétipos dos orixás, por exemplo.
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