671
ALEXANDRE VERONESE
Doutor em Sociologia (Iesp/UERJ). Professor da Faculdade de Direito (UnB).
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Estado da arte 3 Ideologia concurseira: uma hipótese para o Brasil
4 Dados 5 Conclusão 6 Referências.
The Brazilian civil service examinations and the public service seeking ideology
CONTENTS: 1 Introduction 2 State-of-the-art 3 Public service seeking ideology: a hypothesis to
Brazil 4 Data 5 Conclusion 6 References.
ABSTRACT: After the 1988 Federal Constitution enactment, Brazil witnessed the emer-
gence of a new market: the civil servant selection. The numbers concerning civil servants
recruitment increase each year and a huge and profitable market acts: private entities
that organize competitive public examinations, preparation courses and publishers are
guided by Public Administration’s notices that prescribe a model of civil servant selec-
tion. This paper aims to reduce the gap between the impact of civil servant recruitment
on reality and the scientific discourse about it. In order to do so, this paper reviews a set
of scientific works that face this issue. It also presents a quantitative analysis on notices
for 41.214 civil service positions published by 20 different public agencies from 2001
to 2010. Finally, it suggests the existence of a public service seeking ideology.
1 Introdução
Assim, o que chamaremos deideologia burocrática será a tônica de uma nova racio-
nalidade gerencial da administração pública, a da gestão do Estado por um corpo
de funcionários selecionados por concurso público (WEBER, 1966). O primado da
técnica sobre a política ocorreu nas democracias modernas sobretudo através da
racionalização dos processos de seleção de elites estatais, o que, progressivamente
e não por acaso, se deu pela glorificação da forma escolar como principal método
de verificação de adequação entre o postulante e o saber neutro e necessário para o
exercício de determinada função.
Restava, ainda, o problema da necessária aproximação desta forma de seleção
de elites com outro valor de incontestável importância e que, em tempo algum,
poderia se chocar frontalmente com a república: a democracia. Uma palavra, re-
centemente criada, veio a representar o enlace entre estes dois titãs do ocidente
moderno: a meritocracia. Pela primeira vez, escrito e publicado em 1956, no célebre
“The rise of the meritocracy” (YOUNG, 1994), o termo apareceu como característica
de um novo modelo de seleção de elites que superava a aristocracia do sangue e a
plutocracia do dinheiro, instituindo uma verdadeira meritocracia do talento. Eviden-
temente, trata-se de uma ficção política escrita por um professor da London School of
Economics nos anos 50, que contava a história política da Inglaterra do final do sécu-
lo XIX até o início do XXI. O argumento central de Young consiste na impossibilidade
de instauração de um governo do povo, mas na possibilidade de luta pela maneira
mais justa de se selecionar as elites. Também destaca o autor a existência de forças
históricas que impulsionaram os Estados Modernos em direção aos processos racio-
nais de seleção devido ao horror de se desperdiçar talento, mercadoria primordial
num contexto de luta entre potências desde os conflitos imperiais franco-britânicos
até as duas grandes guerras mundiais da primeira metade do século XX. Até 1956, o
trabalho de Young era tido como um ensaio de história política. A partir desta data,
uma ficção política. Na ficção de Young, a Escola se torna a instituição fundamental
da República, e é ela que, através de um coeficiente atribuído, determinará a posi-
ção social de cada um. A realidade foi outra, mas, por ora, ficamos com a ideologia
meritocrática como aquela que vê, no resultado dos processos objetivos de medição
de performance, a expressão do mérito, definido por Young como esforço + talento.
A tentativa de universalização do saber e do savoir-faire necessários para a ple-
na integração do indivíduo no mundo público se deu escolar e profissionalmente. A
escola e o trabalho, representando as duas etapas fundamentais de socialização fora
do seio familiar – a força sanguínea da aristocracia –, seriam as maneiras pelas quais
as velhas elites seriam varridas da história. Isto se deu ao longo de muitas décadas e
por meio de práticas, crenças, discursos e projetos institucionais. Estava em questão
a construção social do Estado moderno.
Como corda estendida entre o mundo escolar e o profissional, os concursos
chegam à contemporaneidade com duas ideologias tributárias de sua história: a
ideologia acadêmica e a ideologia profissional. A ideologia acadêmica busca recrutar,
através dos certames, os melhores egressos do sistema de ensino. Primará, assim,
por formas de avaliação similares às da escola ou da universidade, pela presença
de docentes destas instituições nas bancas avaliadoras e por uma formação profis-
sional posterior ao certame. Este é o primado da meritocracia escolar. A ideologia
profissional busca recrutar, através dos certames, os jovens profissionais mais com-
petentes, que já apresentam as habilidades necessárias ao exercício do futuro cargo.
Primará, desta maneira, por formas de avaliação similares às rotinas de trabalho da
futura atividade (provas práticas), pela presença de profissionais ou mesmo mem-
bros já recrutados da carreira nas bancas avaliadoras e por um aprimoramento con-
tinuado posterior ao certame. É o primado da excelência profissional. Por ora, basta
afirmarmos que é fora do certame que ambas as ideologias encontrarão sua potência:
ou na trajetória confirmada no passado ou no potencial demonstrado para o futuro.
O presente nada mais é que uma etapa formal de certificação. O funcionário público
jamais tomará posse do seu cargo por ter passado pelo/no concurso, pois este não fez
mais que afirmar (ou confirmar) formalmente seu mérito, externo ao certame.
Nas próximas seções, faremos uma revisão na literatura científica acerca do
nosso tema. O trabalho prossegue com a análise quantitativa dos editais de abertu-
ra de certames para seleção de funcionários publicados entre 2001 e 2010 e que
recrutaram 41.214 servidores em 698 processos seletivos para os seguintes órgãos:
Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, Advocacia-Geral da União – AGU, Agência
Nacional do Cinema – ANCINE, Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA,
Banco Central do Brasil – BACEN, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES, Controladoria-Geral de União – CGU, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Comissão de Valores Mobiliários
– CVM, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT, Defensoria
Pública da União – DPU, Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Instituto Nacional de
Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial – INMETRO, Instituto Nacional da
Propriedade Industrial – INPI, Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP, Ministério das Relações Exteriores –
2 Estado da arte
Nos países que empreenderam com profundo afinco as duas primeiras ideolo-
gias acima mencionadas, duras críticas apareceram em meados dos anos sessenta
do século passado, advindas da interseção entre a Sociologia e a Pedagogia.
Na França, embora a escola tenha tido estatuto de relevância desde a fundação
da sociologia (DURKHEIM, 1938; 1973), foi apenas em 1964 e 1970, respectiva-
mente, que Bourdieu e Passeron publicam Les Héritiers et La Reproduction, firmando
o paradigma na sociopedagogia francesa sobre o tema. Numa sociologia de raiz
determinista, os autores identificam na escola o novo monopólio da violência sim-
bólica legítima, mantendo as estruturas de poder da sociedade, objetivando e, ao
mesmo tempo, ocultando a progressiva desvalorização da cultura popular em prol
do arbitrário cultural dominante. A força da escola estaria, ainda, na capacidade de
reprodução deste arbitrário cultural mesmo após a cessação da ação pedagógica.
Nem mesmo o contraponto interacionista de Boudon (1979) foi capaz de conter
o paradigma da reprodução no tocante à igualdade de chances no sistema escolar
francês. Ao longo dos anos, chegou-se mesmo a radicalizar este paradigma em alu-
são à “escola capitalista na França” (BAUDELOT; ESTABLET, 1971). Dentre os pes-
quisadores dedicados ao tema na França, a insuficiência da meritocracia escolar
na superação da determinação aristocrática nunca saiu de pauta. Demonstrou-se a
força da origem familiar na determinação da futura posição social (THELOT, 1982),
a primazia masculina sobre as mulheres nas fileiras de ensino correspondentes às
ideology refers to the processes that produces a specific pattern in social struc-
ture. An ideology, as structure, always embodies a particular arrangement of
power and affects life chances in a manner different from that of some other
ideology or arrangement of power. This means that ideology is not to be equa-
ted with culture or structure in general, or with social construction simply as
interactive process1. (1998, 225–226).
1 “Ideologia refere-se ao processo que produz um padrão específico na estrutura social. Uma ideologia,
considerada como estrutura, sempre corporifica um arranjo particular de poder e influi nas perspec-
tivas de vida de uma maneira diferente de alguma outra ideologia ou arranjo de poder. Isso significa
que ideologia não é o mesmo que cultura ou estrutura em geral, ou mesmo construção social enten-
dida simplesmente como um processo interativo” (tradução nossa).
e o mercado de cursinhos.
Esses diferentes atores adquirem identidades públicas em função da organiza-
ção do certame. Apesar disso, a discussão desse projeto ainda é pouco transparente
e enviesada pelo tratamento jurídico que reifica ainda mais a ideologia concurseira.
Para compreender melhor nossa proposta metodológica, tomamos como exem-
plo o que Scheingold (2004) descreve como o mito dos direitos nos Estados Unidos.
Ele afirma que a crença que o judiciário e o direito podem produzir mudança social
é, na realidade, uma ideologia.
Ao fazê-lo, ele chama a atenção para o fato de que “the myth of rights as an
ideology is not to downgrade its importance to American politics nor to deny the poli-
tical significance of rights”(SCHEINGOLD, 2004, p. 83)2; pelo contrário, ele pretende
explicitar tal ideologia para compreender o funcionamento das instituições e a
maneira como as pessoas se orientam.
Da mesma forma, tomar os editais como expressão de uma ideologia não di-
minui sua importância; pelo contrário, alça a reflexão sobre eles como uma parte
integrante dos múltiplos projetos institucionais, ou seja, como desejamos construir
e orientar as instituições do Estado.
Explicitar essa ideologia através dos editais nos permite conhecer os funda-
mentos desse projeto institucional de formar os quadros do Estado. Refletir sobre
isso abre possibilidades de se pensar alternativas para orientar pragmaticamente
as funções desse Estado.
Desse modo, decidimos analisar os elementos dos editais de forma a compre-
endê-los globalmente. Nosso objetivo é entender o que esses diferentes projetos
institucionais podem desvelar sobre a organização do certame. Por esse motivo,
os gráficos expressam sempre os elementos constantes dos editais. As mudanças
durante o período selecionado (2000-2010) refletem um padrão, isto é, uma ideo-
logia que produz esta organização dos certames. Assim, procuraremos demonstrar
através dos diferentes gráficos o quanto esta ideologia está presente na forma de
se constituir estes projetos institucionais.
2 “O mito dos direitos como uma ideologia não diminui sua importância para a política norte-americana
nem nega o significado político dos direitos” (tradução nossa).
4 Dados
4.1 Base de dados
Nesta seção, apresentaremos os dados colhidos a partir de editais de abertura
de certame em nível federal.
Nosso primeiro passo foi fazer um recorte temporal; escolhemos os certames
realizados na última década (intervalo entre os anos 2001 e 2010). Além disso,
excluímos de nosso universo de análise os certames locais, como os das Institui-
ções Federais de Ensino Superior – IFES, limitando-nos aos certames nacionais. Em
seguida, buscamos pelo registro das seleções realizadas neste intervalo de tempo.
Recebemos, então, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MP, tabela
que compila todas as portarias referentes aos certames por ele autorizados. Encon-
tramos, então, 550 portarias que contemplavam seleções de 104 órgãos. Embora
tratasse de órgãos federais, o documento não fazia distinção entre certames nacio-
nais e certames regionais. Após eliminarmos todos os certames regionais, chegamos
a um universo de 73 órgãos recrutadores.
Há de se ressaltar, primeiramente, que nosso intento era abarcar os 73 ór-
gãos mencionados. No entanto, face à quantidade de certames e de informações
extraídas de cada edital aliada às limitações de tempo e de orçamento, seleciona-
mos 20 órgãos. Essas instituições foram escolhidas tomando-se em considerações
dois critérios. Em primeiro lugar, pensamos em órgãos que são grandes recrutadores,
isto é, cujos certames destinam-se ao preenchimento de grande número de vagas,
atraindo, portanto, mais interessados na carreira pública. É o caso, por exemplo, do
Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, que organizou seleção para 1 milhão de
candidatos ao cargo de analista em 2012. Além desse critério, elegemos carreiras
jurídicas pela proximidade que temos com sua área de conhecimento; é também
essa relação bastante próxima que nos permitia vislumbrar que talvez fossem as
carreiras que alcançassem os mais altos salários.
A partir dessa categorização, chegamos aos seguintes órgãos: Agência Brasi-
leira de Inteligência – ABIN, Advocacia-Geral da União – AGU, Agência Nacional do
Cinema – ANCINE, Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, Banco Central
do Brasil – BACEN, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES, Controladoria-Geral da União – CGU, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Departa-
mento Nacional de Infraestrutura de Transporte – DNIT, Defensoria Pública da União
era bastante menor que nos anos atuais. É altamente provável que, a partir de
determinado momento, todos os certames previssem inscrição pela internet, o que
nos leva a inferir que o dissenso passou a ser em relação às outras formas, vistas
como subsidiárias. A presença de tais modos subsidiários de inscrição aponta para
o fato de que os órgãos recrutadores ou as entidades organizadoras entendem que
nem todos os candidatos têm acesso à internet ou que alguns têm acesso limitado.
Provavelmente, por se tratar de certames nacionais, são consideradas as diferen-
ças sociais entre as distintas regiões brasileiras.
Outro componente que esteve presente na maioria dos editais consiste na
previsão de assistência para candidatos com necessidades especiais. Essa postura
dos órgãos e das entidades organizadoras alinha-se a uma tendência recente de
ampliação dos direitos e garantias para as pessoas com necessidades especiais.
Frise-se que não se trata, aqui, de reserva de vagas – questão bem mais polêmica –
e sim de promoção de igualdade de condições para esse público. Abaixo podemos
ver o Gráfico 1 com todos os dados:
Gráfico 1 – Componentes dos editais (n-698)
A isenção das taxas foi tema bastante controvertido até o ano de 2008, quando
entrou em vigor o decreto no 6.593, de 2 de outubro de 2008, que garante a isenção
da taxa de inscrição para os casos em que o candidato tenha renda familiar mensal
inferior a três salários mínimos.
Tendo em vista, então, que até o ano de 2008, estava a critério do órgão recruta-
dor conceder ou não a isenção das taxas de inscrição, resolvemos observar em quais
casos eram mais ou menos comuns sua previsão.
Conferindo o Gráfico 1.a infra, vemos não somente que os casos mais frequentes
Para concluirmos essa subseção, não poderíamos deixar de mencionar uma im-
portante ausência. Não observamos em nenhum dos editais analisados a descrição
de habilidades ou de aptidões que o candidato deveria ter para exercer as funções
do cargo para o qual concorre. Ou seja, a Administração não apresenta para o can-
didato as habilidades ou aptidões que precisa ter ou precisaria desenvolver para
seu trabalho e tampouco considera tais características como partes integrantes do
processo seletivo. Estamos dizendo que os futuros servidores desconhecem o que de
fato o cargo requer e não têm suas habilidades testadas. A presença das atribuições
do cargo nos editais, como se demonstrará adiante, não ameniza o efeito de autono-
mia inferido aqui. Mais adiante, veremos que essa lacuna se alinha com uma forma
de seleção própria dos concursos públicos brasileiros.
Por ora, evidencia-se que há uma dinâmica mercadológica que governa a or-
ganização dos concursos objeto deste estudo. O que se pode questionar inicial-
mente é: essa dinâmica é saudável para o modelo de recrutamento? Ou ainda: o
Estado deve terceirizar esta atividade, uma vez que recrutar seus quadros é sem
dúvida um dos seus fins?
Algumas inferências podem ser feitas a partir desses dados. Observamos, pri-
meiramente, que a preponderância de vagas para a Engenharia talvez tenha relação
com as políticas públicas de aceleração do crescimento do país. Esse viés de de-
senvolvimento, todavia, não abre espaço para profissionais que lidam com questões
Nesse gráfico, temos a variação salarial de carreiras jurídicas e não jurídicas, fican-
do claro que nele estão presentes, em contraste, as cinco carreiras com maior e me-
nor remuneração na nossa amostra. Se tomarmos o exemplo do Procurador Federal,
veremos que seu salário aumentou em 250% ao longo de 10 anos. Esse patamar não
é acompanhado por nenhuma outra carreira. Nas carreiras com menor remuneração,
o aumento chegou, no caso do analista do INSS, a 216,25%. O técnico do CNPq teve
seu salário inicial aumentado em 150%. Trata-se de porcentagens relevantes, mas que
ainda reforçam o abismo que há entre os salários das profissões jurídicas e os demais.
Se em 2002 a diferença entre os salários do Procurador Federal e do analista do INSS
era de 535,72%, em 2010 essa distância chegou a 603,56%. Poder-se-ia afirmar que
a diferença se deve à titulação do Procurador Federal. Ele teria dedicado boa parte de
sua vida aos estudos, tendo alcançado, no mínimo, o título de bacharel para ocupar
aquela posição. Nossos dados, todavia, apontam que a titulação não é critério para
estabelecimento de salário, conforme o Gráfico 7:
Como pode ser visto, os profissionais mais bem remunerados são aqueles que
concluíram a graduação. Mestres estão bem mais próximos do salário de pessoas
que concluíram o ensino médio e doutores recebem cerca de 20% menos que os
bacharéis. Esta colossal distorção é a demonstração clara que a meritocracia escolar
não é minimamente uma referência a ser valorizada quando tratamos do recruta-
mento por certame. Frisamos que o gráfico foi baseado na média aritmética dos
salários iniciais oferecidos e os quatro grupos de concursos estabelecidos segundo
a titulação mínima exigida para a posse no cargo, dentro da nossa amostra.
os melhores egressos do sistema de ensino. São recrutados aqueles que têm mais
sucesso na realização de provas de certames. Vejamos os Gráficos 8, 9 e 10:
Gráfico 8 – Modos de seleção (n=608)
de vida pregressa e à passagem por provas orais. Em ambos os casos, todavia, em-
bora possamos supor que a Administração, ao requerer a inscrição no Conselho de
Classe ou experiência, tenha em vista recrutar profissionais mais preparados, esco-
lhe fazê-lo por meio de provas escritas, deixando de proceder a avaliações práticas.
A absoluta falta de coerência no trato e na combinação de categorias fundamentais
como (1) curso de formação, (2) experiência prévia, (3) titulação e (4) inscrição no
conselho de classe permite inferir que não há projeto institucional orientado para-
fora do certame na Administração Pública brasileira.
No tocante à sindicância de vida pregressa, que se aplica a aproximadamente
16% dos certames do nosso recorte, ela atinge apenas os seguintes órgãos: ABIN,
AGU, BACEN, CGU, DPF e RFB. À exceção da AGU, todos os demais também compor-
tam o curso de formação como etapa de seleção. Assim, essa etapa visa a estabele-
cer um controle que não toca apenas aos profissionais ligados à segurança pública,
mas também aos ligados às finanças públicas. Se cruzarmos a presença da sindicân-
cia de vida pregressa com a avaliação psicológica, teremos a AGU igualmente como
a única exceção em que esta segunda etapa não está presente. Se considerarmos
todos os órgãos que se utilizam do exame psicológico, além dos já citados, apare-
cem também a CVM e o MRE.
Com relação ao curso de formação, nos cumprem algumas extrações particula-
res da nossa base. Aplicado a aproximadamente um quarto dos certames que anali-
samos, está presente apenas nos seguintes órgãos: ABIN, BACEN, CGU, DPF, MP, MRE
e RFB. Uma hipótese que poderíamos levantar é a de que haveria uma correspon-
dência direta com a faixa salarial, uma vez que se trata de carreiras estratégicas para
o Estado, necessitando de uma formação em que se articulasse um saber particular
no seio da administração. De uma forma geral, o salário médio oferecido às carreiras
em que se exige curso de formação é maior do que aquele oferecido às carreiras que
não são recrutadas por este método: R$6.860,88 e R$4.045,00 respectivamente.
No entanto, se considerarmos, em cada um dos dois grupos, apenas aquelas com
remuneração acima de dez mil reais, teremos um resultado inverso: R$11.270,27
e R$12.050,74 respectivamente. Considerando que no segundo recorte o segundo
grupo é composto apenas pelos órgãos AGU, CVM e DPU, devemos ao menos relati-
vizar a ideia segundo a qual a presença de curso de formação no certame é indicati-
vo forte de um projeto institucional de uma carreira estratégica, ou de elite, o que se
comprovaria pela correspondência salarial. Essas inter-relações, a partir dos nossos
dados, são ao menos mitigadas.
Ainda que consideremos que, embora não haja prova prática, a qualidade do
profissional esteja satisfeita pela experiência e o registro em órgão de classe, re-
queridos como parte da seleção; isso não significa dizer que a experiência ou a com-
petência para o exercício das atividades que, uma vez servidor público, o candidato
deverá ter sejam aferidas. Nossa seleção concentra-se em um exame mais afeito à
academia, mas dela se distancia, como veremos a seguir, por diversos motivos. Ve-
mos que se não seleciona pessoas com base na titulação acadêmica, igualmente se
deixa de recrutar os melhores profissionais por não incorporar meios de avaliação
de suas competências estritamente profissionais e práticas. Devemos lembrar que
as habilidades e aptidões do candidato para o posterior exercício das funções de seu
cargo sequer fazem parte do edital.
O Gráfico 10 nos permite inferir a lógica de avaliação de profissionais de dife-
rentes níveis e algumas curiosidades surgem. Tomemos o exemplo do doutor. Ele é
avaliado, inicialmente, através de provas de múltipla escolha e discursivas. Passa
pela pontuação de seus títulos, raras vezes passa por exames médicos e psicoló-
gicos e, em 63,16% das seleções, deve produzir um memorial. Mais, é interessante
notar que as linhas para bacharéis, mestres e doutores pouco divergem entre si,
excetuando-se o fato de os doutores terem de redigir memoriais e de terem, mais
frequentemente, de comprovar experiência. Ainda, suas linhas pouco se diferenciam
daquela do egresso do ensino médio. Disso, podemos entender que o modelo ado-
tado é quase o mesmo, independentemente da titulação e das atribuições de cargos
de bacharéis, mestres e doutores que são diferentes entre si e distintas das do can-
didato de ensino médio.
Perguntamos, anteriormente, o que impulsiona as diferenças salariais? Seria a
seleção de melhores acadêmicos? Seria o recrutamento dos melhores profissionais?
Seria o nível de complexidade das atribuições? Vimos, até este ponto, que os cer-
tames não baseiam a remuneração em títulos, tampouco se valem de instrumentos
avaliativos que sejam capazes de trazer para o serviço público os acadêmicos mais
competentes. Por outro lado, vimos que a prática profissional não é avaliada e que
os candidatos selecionados raras vezes passam por uma formação promovida pela
Administração. Até aqui, portanto, não temos a resposta para esse questionamento,
mas chegamos à importante conclusão de que o certame recruta pessoas que sabem
melhor fazer suas provas.
O Gráfico 11 nos mostra que a remuneração média acompanha a complexidade
do certame, aqui expressa pelo número de fases:
Esse gráfico ilustra, com nitidez, a ideologia dos certames que chamamos de
concurseira. Aqueles que recebem os maiores salários são os que ultrapassaram 6
fases de provas. O que permite que ele alcance essa remuneração não é, como de-
monstramos anteriormente, sua formação ou sua experiência; seu salário é propor-
cional à complexidade do certame que prestou. Vemos, assim, uma hermeticidade ou
autorreferencialidade desse processo seletivo: ele afere apenas o que ele próprio
constrói como legítimo e relevante, excluindo de seu universo avaliativo critérios
importantes para o desenvolvimento das atividades exteriores a ele. Parece-nos que
uma das ferramentas corporativas de valorização simbólica e remuneratória de uma
carreira é o grau de complexidade do certame, o que aponta para uma força ainda
maior que a expressa neste trabalho.
5 Conclusão
À guisa de conclusão, pudemos demonstrar como tais concursos brasileiros são
organizados a partir de uma ideologia concurseira. Podemos, ainda, levantar alguns
pontos importantes a respeito dessa temática no Brasil.
A revisão da literatura aponta que existe uma bibliografia extensa sobre o perfil
dos funcionários públicos federais produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – IPEA. No entanto, há uma escassez flagrante no tocante aos concursos
públicos federais. Em relação aos objetos das pesquisas, constatamos que as pes-
quisas se debruçam sobre a preparação para o concurso, a produção do edital, a
6 Referências
ALBRECHT, P. A. T.; KRAWULSKI, E. Concurseiros e a busca por um emprego estável:
reflexões sobre os motivos de ingresso no serviço público.Cadernos de Psicologia
Social do Trabalho, v. 14, n. 2, p. 211–226, 1 dez. 2011.
ARROW, Kenneth; BOWLES, Samuel; DURLAUF, Steven (Dir.). Meritocracy and econo-
mic inequality. Princeton: Princeton University Press, 2000.
BERRIER, Astrid. Évaluer à l’oral: quelles questions? The French Educational Review,
v.64, n.3, 1991.
BOUDON, Raymond. L’inégalité des chances. La mobilité sociale dans les sociétés
industrielles. Paris: Armand Colin, 1979.
CASTELAR, I.; FERREIRA, R. T.; SOARES, I.; VELOSO, A. W. A. Uma análise dos determinan-
tes de desempenho em concurso público.Economia Aplicada, v. 14, n. 1, p. 81–98, 2010.
CICOUREL, Aaron V. Some basic theoretical issues in the child’s performance in te-
sting and classroom settings. In: CICOUREL, Aaron et al. Language use and school
performance. New York: Academic Press, 1974.
EWICK, P.; SILBEY, S. S. The common place of law: stories from everyday life. [S.l.]:
University of Chicago Press, 1998.
______. Problems of Meritocracy. In: ERIKSON, Robert; JONSSON, Jan. Can education
be equalized? Boulder: Westview Press, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
MEHAN, Hugh. Accomplishing classroom lessons. In: CICOUREL, Aaron et al. Lan-
guage use and school performance. New York: Academic Press, 1974.
______. The competent student. Sociolinguistic working paper number 61. Austin:
Southwest Educational Development Laboratory, 1979.
MINGAT, Alain. Expliquer la variété des acquisitions au cours préparatoire: les rôles
de l’enfant, la famille et l’école. Revue Française de Pédagogie, v.1, n.95, 1991.
SCHEINGOLD, S. A. The Politics of Rights: Lawyers, Public Policy, and Political Chan-
ge. Michigan: University of Michigan Press, 2004.
THELOT, Claude. Tel Père, Tel Fils ? Position Sociale Et Origine Familiale. Paris: Du-
nod, 1982.
______. Sobre a teoria das Ciências Sociais. São Paulo: Moraes, 1991.
YOUNG, Michael. The rise of the meritocracy. London: Transaction Publishers, 1994.
______. The Competition for Pupillages at the Bar of England and Wales (2000-2004).
Journal of Law and Society, v.28 (4), 2011.