FILIPE (GRAVAR APENAS ÁUDIO): Geralmente, a frase “a literatura nos faz
viajar” soa como um clichê. No entanto, ainda que muitos textos literários não nos descrevam lugares ou nos transportem para outros mundos, é um fato de que muitos o fazem. Desde as fantasiosas Terra Média, Hogwarts ou Westeros, dos best-sellers O Senhor dos Anéis, Harry Potter e As crônicas de Gelo e Fogo até as ruas de Lisboa ou do Rio de janeiro, do século XIX, das literaturas realistas de Eça de Queiros e Machado de Assis, a literatura, sim, nos faz viajar. É possível ir às fictícias República de Gilead, com Os contos da Aia, Panem, com Jogos Vorazes ou ao reimaginado mundo helênico da Antiguidade Clássica com a Odisseia, ou à Dublin do século XX com Ulysses. Autoras e autores, com suas obras, nos transportam para muitos lugares. Dessa forma, nesse momento de isolamento, no qual até visitar um outro bairro é desaconselhável, a literatura pode ser uma ótima pedida na pandemia. Mary Shelley, autora do clássico Frankenstein, de 1818, obra na qual inaugura a literatura de horror e de ficção científica, aborda uma situação pandêmica e de total isolamento social no romance O Último Homem, de 1826, no qual aborda uma praga que assolou a humanidade e volta ao tema da solidão, já abordado em m O último homem, diz a voz do narrador: Frankenstein. E URIEL (GRAVAR UM VIDEO COM BOA ILUMINAÇÃO EM FUNDO NEUTRO) A solidão tornou-se intolerável - coloquei minha mão no coração pulsante de Idris, curvei minha cabeça para obter o som da sua respiração, para assegurar-me de que ela ainda existia – por um momento duvidei se não devia acordá-la, então um delicado horror percorreu meu corpo. [...] Os habitantes das cidades menores abandonavam suas casas, montavam tendas nos campos, movendo-se isoladamente dos outros indiferentes à fome e à inclemência dos céus, enquanto imaginavam ter evitado a doença mortal. Os fazendeiros e os camponeses, ao contrário, com o impacto do medo da solidão e ansiando desesperadamente por auxílio médico, migravam em massa para as cidades. [...] Ela mal preservou a aparência de uma cidade habitada; a grama crescia forte pelas ruas; as praças estavam tomadas por arbustos, as casas trancadas, enquanto o silêncio e a solidão caracterizavam as partes mais ocupadas da urbe. [...] Adoecidos e exíguos, os campesinos nem partiam para semear nem para ceifar; mas andavam a pé pelos prados ou recostavam-se nas cercas, quando o inclemente céu não os fazia abrigarem-se no teto mais próximo. Muitos dos que restaram, isolaram-se; alguns haviam estocado provisões, o que deveria evitar a necessidade de deixar suas casas; – alguns renunciaram à mulher e filhos, e imaginaram que eles mantinham-se seguros na extrema solidão. LUCAS(GRAVAR APENAS ÁUDIO) Outro romance que explora a temática da pandemia e que voltou a ser comentado nesse duro período é A Peste, de Albert Camus, de 1947, no romance, o autor expõe a forma como a doença afeta às pessoas e incide sobre seus modos de vida. Em A Peste, diz a voz do narrador: MELISSA (GRAVAR UM VIDEO COM BOA ILUMINAÇÃO EM FUNDO NEUTRO)Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Flutuavam números na sua memória, e dizia a si próprio que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. [...] A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deu-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio. [...] uma mudança da epidemia fora assinalada pelo rádio quando deixou de anunciar as centenas de óbitos por semana para passar a comunicar noventa e dois, cento e sete e cento e vinte mortos por dia. “Os jornais e as autoridades brincam de espertos com a peste. Imaginam que lhe tiram alguns pontos porque cento e trinta é um número menos impressionante que novecentos e dez.” JOCIÉLIO (GRAVAR APENAS ÁUDIO) - Mais próximo de nossa realidade, na América do Sul, o autor colombiano Gabriel García Marquéz publica, em 1985, o romance Amor nos Tempos do Cólera, no qual também apresenta a peste, a quarentena, a enfermidade e a necessidade de seu enfrentamento pelo poder público. Em Amor nos Tempos do Coléra, diz a voz do narrador: MURILLO (GRAVAR UM VIDEO COM BOA ILUMINAÇÃO EM FUNDO NEUTRO)O doente morreu quatro dias depois, sufocado por um vômito branco e granuloso, mas nas semanas seguintes não se descobriu nenhum outro caso, apesar do alerta constante. Pouco depois, o Diário do Comércio publicou a notícia de que duas crianças tinham morrido de cólera em diferentes lugares da cidade. Comprovou-se que uma delas tinha disenteria comum, mas a outra, uma menina de cinco anos, parecia ter sido, com efeito, vítima do cólera. Seus pais e três irmãos foram separados e postos de quarentena individual, e todo o bairro foi submetido a uma vigilância médica estrita. Uma das crianças contraiu o cólera e se recuperou muito depressa, e toda a família voltou para casa quando passou o perigo. Onze casos mais se registraram no curso de três meses, e no quinto houve um recrudescimento alarmante, mas no final do ano considerou-se que os riscos de uma epidemia tinham sido conjurados. Ninguém pôs em dúvida que o rigor sanitário do doutor Juvenal Urbino, mais do que a eficiência de sua pregação, tinha tornado possível o prodígio. Desde então, e quando já avançara muito este século, o cólera ficou endêmico não só na cidade como em quase todo o litoral do Caribe e a bacia do Madalena, sem tornar a recrudescer como epidemia. O alarme serviu para que as advertências do doutor Juvenal Urbino fossem atendidas com mais seriedade pelo poder público. TATÁ (GRAVAR APENAS ÁUDIO) Logo, seja escolhendo uma obra que nos ajude a pensar e a refletir sobre a pandemia, como O último Homem, A Peste o u Amor nos tempos do cólera, seja escolhendo uma obra que nos ajude a exercitar o clichê “a literatura nos faz viajar”, esse presente, legado à humanidade pelas Musas, que é a literatura, pode nos ajudar a vivenciar de uma forma mais leve esses tempos de incertezas, angústias e mudanças. Na leitura de um gênero curto, como poesias, contos e peças, ou de um longo, como epopeias e romances, temos um refúgio. Nos fazendo refletir ou viajar, a literatura em tempos de pandemia é uma forte aliada nessa luta.