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MATERIAL DE APOIO

Disciplina: Direito Civil


Professor: Nelson Rosenvald
Aulas: 31 e 32 | Data: 16/10/2015

ANOTAÇÃO DE AULA

SUMÁRIO

TEORIA GERAL DOS CONTRATOS


1. Principiologia contratual
1.1 Autonomia privada
1.1.1 Funcionalização do negócio jurídico
1.1.2 Boa-fé objetiva, função social do contrato e equilíbrio contratual
1.2 Boa-fé objetiva
1.2.1 Funções
1.2.2 Controle
1.2.2.1 Adimplemento substancial
1.2.2.2 Venire contra factum proprium
1.2.2.3 Supressio
1.2.2.4 Tu quoque
1.2.2.5 Duty to mitigate the (own) loss

1. Principiologia contratual

1.1 Autonomia privada


Os manuais tradicionais não se referiam à autonomia privada, mas sim a AUTONOMIA DA VONTADE, que não é o
paradigma dos contratos atuais. A autonomia da vontade era um paradigma VOLUNTARISTA dos contratos (a
vontade humana não tinha limites).

A autonomia da vontade pode ser entendida por três diretrizes:


a) liberdade contratual:

 liberdade positiva: as partes eram livres pra fixar o teor das cláusulas (conteúdo do contrato);

 liberdade negativa: a liberdade das partes em NÃO contratar (ninguém era obrigado a contratar).

b) intangibilidade do pacto (pacta sunt servanda): entendia-se que as partes tinham que cumprir o contrato da
forma como foi ajustado, custe o que custasse.

c) relatividade contratual: o contrato só interessa às partes, não atingindo terceiros.

Qual era a base da autonomia da vontade?

CF, art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa


senão em virtude de lei;

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CARREIRAS JURÍDICAS
Damásio Educacional
1.1.1 Funcionalização do negócio jurídico
Ocorre que esse paradigma voluntarista NÃO mais se aplica. A partir de agora, iremos estudar o PRINCÍPIO DA
AUTONOMIA PRIVADA.

Autonomia privada é o poder de autodeterminação do sujeito

Assim, por este principio, a autodeterminação dos agentes deve se enquadrar conforme os ditames do
ordenamento jurídico.

A autonomia privada atual pode ser visualizada neste artigo:

CF, art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho


humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios (...)

Portanto, atualmente, vivenciamos a FUNCIONALIZAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO.

Tradicionalmente, quando o direito civil estuda a autonomia privada, este ramo somente se volta à ESTRUTURA
(conteúdo) desta autonomia. Por quê? Porque o Direito civil sempre buscou entender a utilidade econômica da
iniciativa do agente (ex.: compra e venda, troca). Portanto, o que o legislador observava era a LICITUDE do ato
(art. 104, CC).

Entretanto, atualmente, o direito civil se reporta à FUNÇÃO (razão/missão) do ato de autonomia privada, ou seja,
observa-se se concretamente o ato praticado pelas partes comporta INTERESSES MERECEDORES DE TUTELA.

Imagine um contrato de plano de saúde. Uma das cláusulas afirma que a cobertura do plano é para somente 15
dias de tratamento hospitalar. Essa cláusula é válida?

Sob o ponto de vista estrutural, tal contrato (cláusula) é perfeito. Contudo, esta cláusula NÃO está de acordo com
a finalidade de um contrato de plano de saúde.

É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no


tempo a internação hospitalar do segurado (S. 302, STJ).

Veja o Informativo 532 do STJ de 19 de dezembro de 2013:

DIREITO DO CONSUMIDOR. COBRANÇA POR HOSPITAL DE VALOR ADICIONAL PARA ATENDIMENTOS FORA DO
HORÁRIO COMERCIAL.
O hospital não pode cobrar, ou admitir que se cobre, dos pacientes conveniados a planos de saúde valor adicional
por atendimentos realizados por seu corpo médico fora do horário comercial. A pedra de toque do direito
consumerista é o princípio da vulnerabilidade do consumidor, mormente no que tange aos contratos. Nesse
contexto, independentemente do exame da razoabilidade/possibilidade de cobrança de honorários médicos
majorados para prestação de serviços fora do horário comercial, salta aos olhos que se trata de custos que

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incumbem ao hospital. Este, por conseguinte, deveria cobrar por seus serviços diretamente das operadoras de
plano de saúde, e não dos particulares/consumidores. Além disso, cabe ressaltar que o consumidor, ao contratar
um plano de seguro de assistência privada à saúde, tem a legítima expectativa de que, no tocante aos
procedimentos médico-hospitalares cobertos, a empresa contratada arcará com os custos necessários, isto é, que
haverá integral assistência para a cura da doença. No caso, cuida-se de cobrança iníqua, em prevalecimento sobre
a fragilidade do consumidor, de custo que deveria estar coberto pelo preço exigido da operadora de saúde –
negócio jurídico mercantil do qual não faz parte o consumidor usuário do plano de saúde –, caracterizando-se
como conduta manifestamente abusiva, em violação à boa-fé objetiva e ao dever de probidade do fornecedor,
vedada pelos arts. 39, IV, X, e 51, III, IV, X, XIII, XV, do CDC e 422 do CC. Ademais, na relação mercantil existente
entre o hospital e as operadoras de planos de saúde, os contratantes são empresários – que exercem atividade
econômica profissionalmente –, não cabendo ao consumidor arcar com os ônus/consequências de eventual
equívoco quanto à gestão empresarial. REsp 1.324.712-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 24/9/2013.

Obs.: a autonomia privada pode ser tida como sinônimo de AUTONOMIA NEGOCIAL, que se divide em:

 autonomia patrimonial: realização de contratos com conteúdo econômico;

 autonomia existencial: realização de negócios jurídicos vinculados a direitos existenciais da personalidade.

CC, art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco
de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Quanto aos sujeitos, a autonomia privada pode ser da PESSOA JURÍDICA.

Veja o Informativo 544 do STJ de 27 de agosto de 2014:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE DE PESSOA JURÍDICA PARA IMPUGNAR DECISÃO QUE DESCONSIDERE
A SUA PERSONALIDADE.
A pessoa jurídica tem legitimidade para impugnar decisão interlocutória que desconsidera sua personalidade para
alcançar o patrimônio de seus sócios ou administradores, desde que o faça com o intuito de defender a sua
regular administração e autonomia – isto é, a proteção da sua personalidade –, sem se imiscuir indevidamente na
esfera de direitos dos sócios ou administradores incluídos no polo passivo por força da desconsideração. Segundo
o art. 50 do CC, verificado “abuso da personalidade jurídica”, poderá o juiz decidir que os efeitos de certas e
determinadas relações obrigacionais sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da
pessoa jurídica. O referido abuso, segundo a lei, caracteriza-se pelo desvio de finalidade da pessoa jurídica ou pela
confusão patrimonial entre os bens dos sócios/administradores com os da pessoa moral. A desconsideração da
personalidade jurídica, em essência, está adstrita à concepção de moralidade, probidade, boa-fé a que submetem
os sócios e administradores na gestão e administração da pessoa jurídica. Vale também destacar que, ainda que a
concepção de abuso nem sempre esteja relacionada a fraude, a sua figura está, segundo a doutrina,
eminentemente ligada a prejuízo, desconforto, intranquilidade ou dissabor que tenha sido acarretado a terceiro,
em decorrência de um uso desmesurado de um determinado direito. A rigor, portanto, a desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica resguarda interesses de credores e também da própria sociedade indevidamente
manipulada. Por isso, inclusive, segundo o enunciado 285 da IV Jornada de Direito Civil, “a teoria da
desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”. Nesse
compasso, tanto o interesse na desconsideração ou na manutenção do véu protetor, podem partir da própria
pessoa jurídica, desde que, à luz dos requisitos autorizadores da medida excepcional, esta seja capaz de

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demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à afirmação de sua autonomia,
vale dizer, à proteção de sua personalidade. REsp 1.421.464-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2014.

Nessa mesma linha dos sujeitos jurídicos, podemos afirmar que existe uma AUTONOMIA COLETIVA: quando uma
categoria profissional (sindicato) faz um ACORDO COLETIVO ou CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO, isso
caracteriza ato de autonomia coletiva.

1.1.2 Boa-fé objetiva, função social do contrato e equilíbrio contratual


Conforme estudamos, a autonomia privada é uma emanação do direito fundamental de liberdade.

ATENÇÃO: devemos nos atentar às seguintes afirmações:

 boa-fé, função social e equilíbrio econômico NÃO limitam a autonomia privada – o que existe é uma
CONFORMAÇÃO entre autonomia privada e os demais princípios sobreditos.

 NÃO está ocorrendo a publicização do direito privado – isso ocorria na época de Getúlio Vargas (dirigismo
contratual). Atualmente, visa-se transformar a sociedade através da concretização dos direitos
fundamentais.

1.2 Boa-fé objetiva


É um princípio que nos orienta no sentido de que as partes devem agir uma perante a outra com lealdade,
honestidade, cooperação (treu und glauben).

A boa-fé objetiva é um modelo de conduta, porque em qualquer relação obrigacional as partes têm que ajustar a
conduta aos parâmetros objetivos oferecidos pela boa-fé – isso gera SEGURANÇA JURÍDICA (gera estabilização de
expectativas sociais).

1.2.1 Funções
A boa-fé é TRIDIMENSIONAL (MULTIFUNCIONAL):

 função interpretativa (art. 113, CC): a boa-fé serve para interpretar os negócios jurídicos;

CC, art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme


a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

 função integrativa (art. 422, CC): a boa-fé integra qualquer relação obrigacional, desde a fase das
negociações preliminares até a fase pós-contratual.

CC, art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na


conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé.

 função controle (art. 187, CC): impõe ao juiz corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva.

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CC, art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que,
ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Diz o Enunciado 26, CJF - a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e,
quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de
comportamento leal dos contratantes.

A partir de agora iremos aprofundar na FUNÇÃO DE CONTROLE da boa-fé objetiva.

1.2.2 Controle
A função de controle da boa-fé visa evitar o abuso do direito no exercício do direito subjetivo.

Com efeito, o abuso do direito surge quando um determinado direito é exercitado sem proporcionalidade
(razoabilidade), ofendendo a boa-fé objetiva.

CC, art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que,
ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Esse artigo é a CLÁUSULA GERAL DO ABUSO DO DIREITO.

Veja o Informativo 551 do STJ de 3 de dezembro de 2014:

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. REAJUSTE DE MENSALIDADE DE SEGURO-SAÚDE EM RAZÃO DE ALTERAÇÃO DE


FAIXA ETÁRIA DO SEGURADO.
É válida a cláusula, prevista em contrato de seguro-saúde, que autoriza o aumento das mensalidades do seguro
quando o usuário completar sessenta anos de idade, desde que haja respeito aos limites e requisitos estabelecidos
na Lei 9.656/1998 e, ainda, que não se apliquem índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em
demasia o segurado. Realmente, sabe-se que, quanto mais avançada a idade do segurado, independentemente de
ser ele enquadrado ou não como idoso, maior será seu risco subjetivo, pois normalmente a pessoa de mais idade
necessita de serviços de assistência médica com maior frequência do que a que se encontra em uma faixa etária
menor. Trata-se de uma constatação natural, de um fato que se observa na vida e que pode ser cientificamente
confirmado. Por isso mesmo, os contratos de seguro-saúde normalmente trazem cláusula prevendo reajuste em
função do aumento da idade do segurado, tendo em vista que os valores cobrados a título de prêmio devem ser
proporcionais ao grau de probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor do
prêmio. Atento a essa circunstância, o legislador editou a Lei 9.656/1998, preservando a possibilidade de reajuste
da mensalidade de seguro-saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo,
algumas restrições a esses reajustes (art. 15). Desse modo, percebe-se que ordenamento jurídico permitiu
expressamente o reajuste das mensalidades em razão do ingresso do segurado em faixa etária mais avançada em
que os riscos de saúde são abstratamente elevados, buscando, assim, manter o equilíbrio atuarial do sistema.
Posteriormente, em razão do advento do art. 15, § 3º, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) que estabelece ser
"vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade",
impõe-se encontrar um ponto de equilíbrio na interpretação dos diplomas legais que regem a matéria, a fim de se
chegar a uma solução justa para os interesses em conflito. Nesse passo, não é possível extrair-se do art. 15, § 3º,
do Estatuto do Idoso uma interpretação que repute, abstratamente, abusivo todo e qualquer reajuste que se

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baseie em mudança de faixa etária, mas tão somente o aumento discriminante, desarrazoado, que, em concreto,
traduza verdadeiro fator de discriminação do idoso, por visar dificultar ou impedir a permanência dele no seguro-
saúde; prática, aliás, que constitui verdadeiro abuso de direito e violação ao princípio da igualdade e divorcia-se
da boa-fé contratual. Ressalte-se que o referido vício - aumento desarrazoado - caracteriza-se pela ausência de
justificativa para o nível do aumento aplicado. Situação que se torna perceptível, sobretudo, pela demasiada
majoração do valor da mensalidade do contrato de seguro de vida do idoso, quando comparada com os
percentuais de reajustes anteriormente postos durante a vigência do pacto. Igualmente, na hipótese em que o
segurador se aproveita do advento da idade do segurado para não só cobrir despesas ou riscos maiores, mas
também para aumentar os lucros há, sim, reajuste abusivo e ofensa às disposições do CDC. Além disso, os custos
pela maior utilização dos serviços de saúde pelos idosos não podem ser diluídos entre os participantes mais jovens
do grupo segurado, uma vez que, com isso, os demais segurados iriam, naturalmente, reduzir as possibilidades de
seu seguro-saúde ou rescindi-lo, ante o aumento da despesa imposta. Nessa linha intelectiva, não se pode
desamparar uns, os mais jovens e suas famílias, para pretensamente evitar a sobrecarga de preço para os idosos.
Destaque-se que não se está autorizando a oneração de uma pessoa pelo simples fato de ser idosa; mas, sim, por
demandar mais do serviço ofertado. Nesse sentido, considerando-se que os aumentos dos seguros-saúde visam
cobrir a maior demanda, não se pode falar em discriminação, que somente existiria na hipótese de o aumento
decorrer, pura e simplesmente, do advento da idade. Portanto, excetuando-se as situações de abuso, a norma
inserida na cláusula em análise - que autoriza o aumento das mensalidades do seguro em razão de o usuário
completar sessenta anos de idade - não confronta o art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, que veda a discriminação
negativa, no sentido do injusto. Precedente citado: REsp 866.840-SP, Quarta Turma, DJe 17/8/2011. REsp
1.381.606-DF, Rel. originária Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. João Otávio De Noronha, julgado em
7/10/2014.

Estabelece o Enunciado 412, CJF - as diversas hipóteses de exercício inadmissível de uma situação jurídica
subjetiva, tais como supressio, tu quoque, surrectio e venire contra factum proprium, são concreções da boa-fé
objetiva.

Pergunta: quais são as situações em que se concretiza a função de controle da boa-fé pela via do abuso do
direito?

1.2.2.1 Adimplemento substancial (inadimplemento mínimo)


Naquelas situações em que o agente já cumpriu a maior parte do programa obrigacional, e o que resta a cumprir
é uma parcela mínima diante da totalidade do projeto. Nessas circunstâncias, haverá abuso do direito do credor
se este resolver o contrato face o inadimplemento mínimo.

CC, art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a


resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento,
cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Embora o dispositivo apregoe a possibilidade de resolução, a teoria do adimplemento substancial impede esse
direito, uma vez que seria o exercício de um direito despido de razoabilidade.

Aduz o Enunciado 361, CJF - o adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a
fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.

Atenção: o adimplemento substancial no direito comparado chama-se SUBSTANCIAL PERFORMANCE.

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1.2.2.2 Venire contra factum proprium
É o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo titular
do direito. Ex.: cheque pós-datado (cheque é ordem de pagamento à vista).

Os quatros requisitos objetivos do venire contra factum proprium são:

 factum proprium: é o primeiro comportamento (ex.: aceitação do cheque pós-datado);

 nascimento de legítima expectativa de confiança na parte (ex.: respeito à data convencionada pelas
partes);

 venire: é o segundo comportamento (ex.: ato de depositar o cheque no mesmo dia do recebimento da
cártula).

 dano à contraparte: dano moral ou patrimonial (ex.: o nome foi ilegitimamente remetido a um cadastro
de inadimplentes).

Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-


datado (S. 370, STJ).

Veja o Informativo 558 do STJ de 6 de abril de 2015:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA POR MÁ-FÉ DO DEVEDOR.
Não se deve desconstituir a penhora de imóvel sob o argumento de se tratar de bem de família na hipótese em
que, mediante acordo homologado judicialmente, o executado tenha pactuado com o exequente a prorrogação
do prazo para pagamento e a redução do valor de dívida que contraíra em benefício da família, oferecendo o
imóvel em garantia e renunciando expressamente ao oferecimento de qualquer defesa, de modo que,
descumprido o acordo, a execução prosseguiria com a avaliação e praça do imóvel. De fato, a jurisprudência do
STJ inclinou-se no sentido de que o bem de família é impenhorável, mesmo quando indicado à constrição pelo
devedor. No entanto, o caso em exame apresenta certas peculiaridades que torna válida a renúncia. Com efeito,
no caso em análise, o executado agiu em descompasso com o princípio nemo venire contra factum proprium,
adotando comportamento contraditório, num momento ofertando o bem à penhora e, no instante seguinte,
arguindo a impenhorabilidade do mesmo bem, o que evidencia a ausência de boa-fé. Essa conduta antiética deve
ser coibida, sob pena de desprestígio do próprio Poder Judiciário, que validou o acordo celebrado. Se, por um lado,
é verdade que a Lei 8.009/1990 veio para proteger o núcleo familiar, resguardando-lhe a moradia, não é menos
correto afirmar que aquele diploma legal não pretendeu estimular o comportamento dissimulado. Como se trata
de acordo judicial celebrado nos próprios autos da execução, a garantia somente podia ser constituída mediante
formalização de penhora incidente sobre o bem. Nada impedia, no entanto, que houvesse a celebração do pacto
por escritura pública, com a constituição de hipoteca sobre o imóvel e posterior juntada aos autos com vistas à
homologação judicial. Se tivesse ocorrido dessa forma, seria plenamente válida a penhora sobre o bem em razão
da exceção à impenhorabilidade prevista no inciso V do art. 3º da Lei 8.009/1990, não existindo, portanto,
nenhuma diferença substancial entre um ato e outro no que interessa às partes. Acrescente-se, finalmente, que a
decisão homologatória do acordo tornou preclusa a discussão da matéria, de forma que o mero inconformismo do
devedor contra uma das cláusulas pactuadas, manifestado tempos depois, quando já novamente inadimplentes,
não tem força suficiente para tornar ineficaz a avença. Dessa forma, não se pode permitir, em razão da boa-fé que

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deve reger as relações jurídicas, a desconstituição da penhora, sob pena de desprestígio do próprio Poder
Judiciário. REsp 1.461.301-MT, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/3/2015, DJe 23/3/2015.

Estabelece o Enunciado 362, CJF - a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium)
funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 (abuso do direito) e 422 (boa-fé objetiva) do
Código Civil.

1.2.2.3 Supressio
É a situação do direito que deixou de ser exercitado em determinada circunstância e não mais possa sê-lo por, de
outra forma, contrariar a boa-fé.

Ex.: imagine que “x” (Aracaju) celebre com “y” (Belo Horizonte) um contrato de entrega de medicamentos. Ficou
acordado que “x” levará as mercadorias até Belo Horizonte para “y”. Ocorre, porém, que nos primeiros 6 meses,
“y” vai até São Paulo para receber a mercadoria. No sétimo mês, “y” envia notificação a “x” informando-o do
acordo. Esta notificação é válida? Não, porque houve a supressio.

CC, art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz


presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

Supressio x Venire contra factum proprium


No venire, as duas condutas sucessivas e contraditórias são comportamentos comissivos. Ao passo que na
supressio, o primeiro comportamento do agente é omissivo e o segundo comportamento é comissivo.

Veja o Informativo 523 do STJ de 14 de agosto de 2013:

DIREITO EMPRESARIAL. INCIDÊNCIA DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL.


Não é possível ao representante comercial exigir, após o término do contrato de representação comercial, a
diferença entre o valor da comissão estipulado no contrato e o efetivamente recebido, caso não tenha havido,
durante toda a vigência contratual, qualquer resistência ao recebimento dos valores em patamar inferior ao
previsto no contrato. Inicialmente, cumpre salientar que a Lei 4.886/1965 dispõe serem vedadas, na
representação comercial, alterações que impliquem, direta ou indiretamente, a diminuição da média dos
resultados auferidos pelo representante nos últimos seis meses de vigência do contrato. De fato, essa e outras
previsões legais introduzidas pela Lei 8.420/1992 tiveram caráter social e protetivo em relação ao representante
comercial autônomo que, em grande parte das vezes, ficava à mercê do representado, que alterava livre e
unilateralmente o contrato de acordo com os seus interesses e, normalmente, em prejuízo do representante, pois
economicamente dependente daquele. Essa restrição foi introduzida para compensar o desequilíbrio entre o
representado e o representante, este reconhecidamente mais fraco do ponto de vista jurídico e econômico. Nesse
sentido, nem mesmo as alterações consensuais e bilaterais são admitidas quando resultarem em prejuízos diretos
ou indiretos para o representante. Todavia, no caso em que a comissão tenha sido paga ao representante em
valor inferior ao que celebrado no contrato, durante toda a sua vigência, sem resistência ou impugnação por parte
do representante, pode-se concluir que a este interessava a manutenção do contrato, mesmo que em termos
remuneratórios inferiores, tendo em vista sua anuência tácita para tanto. Verifica-se, nessa hipótese, que não
houve uma redução da comissão do representante em relação à média dos resultados auferidos nos últimos seis
meses de vigência do contrato, o que, de fato, seria proibido nos termos do art. 32, § 7º, da Lei 4.886/1965. Desde
o início da relação contratual, tendo sido a comissão paga em valor inferior ao que pactuado, conclui-se que a
cláusula que estipula pagamento de comissão em outro valor nunca chegou a viger. Ainda, observa-se que, nessa

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situação, não houve qualquer redução da remuneração do representante que lhe pudesse causar prejuízos, de
forma a contrariar o caráter eminentemente protetivo e social da lei. Se o representante permanece silente
durante todo o contrato em relação ao valor da comissão, pode-se considerar que tenha anuído tacitamente com
essa condição de pagamento, não sendo razoável que, somente após o término do contrato, venha a reclamar a
diferença. Com efeito, a boa-fé objetiva, princípio geral de direito recepcionado pelos arts. 113 e 422 do CC/2002
como instrumento de interpretação do negócio jurídico e norma de conduta a ser observada pelas partes
contratantes, exige de todos um comportamento condizente com um padrão ético de confiança e lealdade, induz
deveres acessórios de conduta, impondo às partes comportamentos obrigatórios implicitamente contidos em
todos os contratos, a serem observados para que se concretizem as justas expectativas oriundas da própria
celebração e execução da avença, mantendo-se o equilíbrio da relação. Essas regras de conduta não se orientam
exclusivamente ao cumprimento da obrigação, permeando toda a relação contratual, de modo a viabilizar a
satisfação dos interesses globais envolvidos no negócio, sempre tendo em vista a plena realização da sua
finalidade social. Além disso, o referido princípio tem a função de limitar o exercício dos direitos subjetivos. A esta
função, aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios como meio de
rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando o instituto da supressio, que indica a
possibilidade de considerar suprimida determinada obrigação contratual na hipótese em que o não exercício do
direito correspondente, pelo credor, gerar ao devedor a legítima expectativa de que esse não exercício se
prorrogará no tempo. Em outras palavras, haverá redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de
uma das partes em exercer direito ou faculdade ao longo da execução do contrato, criando para a outra a
sensação válida e plausível — a ser apurada casuisticamente — de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.
Assim, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão do representante comercial de exigir
retroativamente valores que foram por ele dispensados, de forma a preservar uma expectativa legítima,
construída e mantida ao longo de toda a relação contratual pelo representado. REsp 1.162.985-RS, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, julgado em 18/6/2013.

Supressio x Prescrição
Há duas diferenças:
 todos os prazos prescricionais são delimitados pela lei. Ao passo que na supressio, o prazo varia conforme
as circunstâncias objetivas de cada lide.

 para que ocorra a prescrição, basta a inércia do titular do direito subjetivo. Ao passo que na supressio, a
inércia deve gerar na outra parte uma legítima expectativa de confiança de que aquele direito não mais
será exercido.

1.2.2.4 Tu quoque
Fundamenta-se no adágio: “não faça aos outros aquilo que tu não queiras que façam a ti mesmo” (visa reprimir a
malícia).

Ex.: imagine que “x” (16 anos) vende uma moto a “y”. Ocorre que, no momento da venda, “x” se declara maior
(18 anos). Após 15 dias, “x” se arrepende da venda. Ao promover a ação contra “y”, “x” alega que não estava
assistido no momento da venda. Isso é possível? Não.

CC, art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para
eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a
ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-
se, declarou-se maior.

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Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe
indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição,
ressalvado o direito ao cancelamento (S. 385, STJ).

Obs.: o erro do STJ foi sumular essa matéria, pois o abuso do direito deve ser analisado casuisticamente.

1.2.2.5 Duty to mitigate the (own) loss


Trata-se do dever de mitigar o (próprio) prejuízo.

O que significa o dever do credor de mitigar o próprio prejuízo? Significa que a qualidade de credor NÃO legitima
alguém a praticar ato abusivo da situação creditícia, bem como visa sancionar o credor diante da inércia em
solucionar o débito de forma célere.

Qual a situação mais pertinente do duty?

Ocorre quando o juiz fixa multa periódica (astreintes) no processo civil. Ex.: imagine que “d” tem a obrigação de
entregar um carro a “n”. Porém, “d” descumpre a obrigação e, por consequência, o juiz aplica astreintes. Ao invés
de executar a multa logo de início, o credor deixa a multa acumular, ultrapassando o valor do objeto da obrigação
estipulada.

Estabelece o Enunciado 169, CJF – o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do
próprio prejuízo.

Veja o Informativo 524 do STJ de 28 de agosto de 2013:

DIREITO DO CONSUMIDOR. ABUSIVIDADE DE CLÁUSULA EM CONTRATO DE CONSUMO


É abusiva a cláusula contratual que atribua exclusivamente ao consumidor em mora a obrigação de arcar com os
honorários advocatícios referentes à cobrança extrajudicial da dívida, sem exigir do fornecedor a demonstração de
que a contratação de advogado fora efetivamente necessária e de que os serviços prestados pelo profissional
contratado sejam privativos da advocacia. É certo que o art. 395 do CC autoriza o ressarcimento do valor de
honorários decorrentes da contratação de serviços advocatícios extrajudiciais. Todavia, não se pode perder de
vista que, nos contratos de consumo, além da existência de cláusula expressa para a responsabilização do
consumidor, deve haver reciprocidade, garantindo-se igual direito ao consumidor na hipótese de inadimplemento
do fornecedor. Ademais, deve-se ressaltar que a liberdade contratual, integrada pela boa-fé objetiva, acrescenta
ao contrato deveres anexos, entre os quais se destaca o ônus do credor de minorar seu prejuízo mediante soluções
amigáveis antes da contratação de serviço especializado. Assim, o exercício regular do direito de ressarcimento
aos honorários advocatícios depende da demonstração de sua imprescindibilidade para a solução extrajudicial de
impasse entre as partes contratantes ou para a adoção de medidas preparatórias ao processo judicial, bem como
da prestação efetiva de serviços privativos de advogado. REsp 1.274.629-AP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em
16/5/2013.

Obs.: na celebração de um contrato entre dois empresários prevalece a autonomia privada. Ao passo que se a
celebração for entre particular e empresário, haverá maior incidência dos princípios constitucionais (eficácia
horizontal dos direitos fundamentais).

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Aduz o Enunciado 29, I da Jornada de Direito Comercial – aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a
função social do contrato e a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as
especificidades dos contratos empresariais.

QUESTÃO
Ano: 2015 / Banca: VUNESP / Órgão: TJ-MS / Prova: Juiz Substituto

A respeito do direito contratual e os princípios que regem a matéria, afirma-se corretamente que
a) nos contratos paritários, em relação diversa da relação de consumo, não se admite a declaração judicial de
abusividade de cláusula contratual.

b) a aplicação do instituto da supressio é vedada no direito brasileiro, sobrepondo-se o princípio da segurança


jurídica.

c) o dirigismo contratual é vedado pela legislação brasileira, como forma de preservação ao princípio da liberdade
contratual.

d) o credor tem o dever de evitar o agravamento do prejuízo que lhe causou o devedor.

e) o adimplemento incompleto, mas significativo, das obrigações contratuais por uma das partes, não impede que
a parte contrária resolva o contrato, com fundamento em descumprimento contratual.

Resposta: alternativa “d”.

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