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Admirável Homem Novo

Brave new man

Resumo O presente artigo agrega-se aos estudos desenvolvidos


pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Deficiências
e Tecnologias (GEPEDTEC) da Universidade Estadual de Londri-
na, mais especificamente ao projeto intitulado Concepções de
deficiên­cia emergentes do entrelaçamento dos discursos da Edu-
cação Especial e Engenharia Genética. Daremos ênfase aos pres-
supostos e influências da eugenia nas concepções de homem
do início do século XX e às projeções que sinalizam o conserto/
desaparecimento das deficiências com o desenvolvimento da
engenharia genética na busca por construir o humano ideal,
suscitando questões que vão desde o avanço e a importância
adquiridos pela tecnologia na contemporaneidade até as nor-
malizações do corpo e sua constituição.
Palavras-chave educação; deficiência; eugenia.

Abstract Here we will emphasize the assumptions and influ- Simone Moreira de Moura
ences of eugenics in the conceptions of man from the early Universidade Estadual de
twentieth century and projections indicate that the repair / dis- Londrina (UEL)
simonemoura@uel.br
appearance of deficiencies with the development of genetic en-
gineering in the quest to build the ideal human, raising issues Morena Dolores Patriota Silva
ranging from the breakthrough and the importance acquired by Universidade Estadual de
the contemporary technology to the normalization of the body Londrina (UEL)
and its constitutionlieves. morenadolores81@gmail.com
Keywords education; disabilities; eugenics.

Introdução

A
o fazer uma retrospectiva acerca dos pressupostos eu-
gênicos, buscaremos repensar os impactos que tais pro-
posições podem acarretar na vida social do deficiente na
contemporaneidade na medida em que um “novo” pensamento,
nomeado eugenia liberal, tem suscitado o retorno de algumas
discussões que podem afetar diretamente a vida destes sujeitos.
Logo, esta investigação justifica-se pela necessidade de re-
conhecer que o discurso eugênico tem ganhado novos contor-
nos na atualidade. Pretendemos, portanto, analisar as influên-
cias que tais concepções têm no pensamento contemporâneo
e na visão social do deficiente, considerando tanto os discursos
de melhor qualidade de vida para as pessoas que apresentam
algum tipo de deficiência, como projeções que sinalizam seu
conserto/desaparecimento.
O presente estudo teve como referen- p.760). Em 1976, foi fundada a primeira em-
cial metodológico as proposições do para- presa de biotecnologia do mundo, a Genen-
digma indiciário, conforme caracterizado por tech, em São Francisco (Estados Unidos), res-
Carlo Ginzburg (2003), que admite uma meto- ponsável pela criação da insulina sintética, a
dologia que valoriza o pensamento conjectu- primeira proteína comercializável; para tanto,
ral, exploração de vários textos, fontes e pro- utilizaram-se de técnicas de engenharia gené-
dutos culturais. Nesta perspectiva, o artigo se tica (cf. FEIO, 2010).
apresenta sob a forma de ensaio, reportando-
-nos para tanto, de publicações acadêmicas, As sociedades liberais convivem
literatura, jornais. com o pluralismo ideológico, são
sociedades de maiorias e minorias.
Desenvolvimento Um Estado Constitucional Demo-
A eugenia nasceu com a pretensão de crático, além disso, se pretende
ser uma ciência que promovesse o melhora- inclusivo. Este é o pano de fundo
mento racial em nome do desenvolvimento da moralização da natureza huma-
e manutenção de raças superiores. Neste na, isto é, da recuperação do pen-
sentido, interessante pontuar que o termo samento ético que não encontra
“eugenia” vem do grego, que significa “bem mais auxílio na tradição metafísica.
nascido”, tendo sido utilizado pela primeira A “dignidade humana”, argumenta
vez por Francis Galton, no final do século XIX, Habermas, não é uma propriedade
tendo como base a teoria evolucionista de Da- que se pode “possuir” por nature-
rwin (cf. DIWAN, 2007). za, como a inteligência e os olhos
Entretanto, a eugenia foi desacreditada azuis. Tal moralização só pode en-
científica e eticamente por conta das grandes contrar objetividade, segundo Ha-
atrocidades nazistas, de maneira que tal ter- bermas, em um processo jurídico de
mo foi tirado de circulação. Mas a busca pela normatização discursiva. A moral,
perfeição continua presente, embora pela uti- em Habermas, é completada pelo
lização de outros instrumentos. Exemplo disto direito. A partir dessa perspectiva,
é o laboratório de Cold Spring Harbor, dirigido impõe-se a questão de saber se a
hoje pelo geneticista James Watson, um dos tecnicização da natureza humana
descobridores da estrutura de dupla hélice do altera a autocompreensão ética da
DNA, que tem propagado ideias eugenistas. espécie de tal modo que não possa-
mos mais nos compreender como
Avanços científicos vêm sendo di- seres vivos eticamente livres e mo-
recionados à identificação de “in- ralmente iguais, orientados por nor-
desejáveis”, como a utilização de mas e fundamentos. (HABERMAS
exames que detectam doenças ge- apud FEIO, 2010, p. 762).
néticas por companhias de seguro e
planos de saúde e o uso de bancos I
de DNA no controle de imigração. É possível afirmar que o homem sempre
(GUERRA, 2006, p. 5). praticou o melhoramento genético de espé-
cies, seja na seleção das melhores sementes
A modificação genética não é algo novo, no intuito de melhorar o nível de produção de
pois desde 1973 já é possível moldar o DNA e determinada planta, ou na escolha do cruza-
criar novas moléculas; “tornou-se possível ‘fa- mento entre os melhores animais para formar
zer com o DNA o que hoje qualquer proces- descendentes mais desenvolvidos. Entretan-
sador de textos faz com as palavras: cortar, to, o grande dilema dá-se em relação ao DNA
copiar, colar’” (WATSON apud FEIO, 2010, recombinante humano.

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Em 2001, foi publicado na Folha de S. Pau- soas. Logo, o Vaticano coloca-se contra os
lo o artigo “Genética: Avanços da área criam procedimentos que resultam no descarte de
temor de que a ciência esteja indo longe e embriões, como o diagnóstico genético e pré-
rápido demais”, noticiando a criação de um -implantação para a detecção de doenças he-
macaco geneticamente modificado por cien- reditárias em embriões.
tistas americanos que afirmam ter o intuito de
utilizá-lo para realizar avanços na medicina, na É compatível com a dignidade hu-
busca da cura do câncer, Alzheimer e diabetes. mana ser gerado mediante ressalva
Existem dúvidas a respeito desta criação estar e, somente após um exame genéti-
realmente relacionada à medicina e o temor co, ser considerado digno de uma
de que a escolha de um animal com caracte- existência e de um desenvolvimen-
rísticas semelhantes ao homem revele a inten- to?” Podemos dispor livremente da
ção de que as próximas experiências sejam natureza humana para fins de sele-
com humanos, para a criação de pessoas ge- ção? (HABERMAS, 2004, p. 29).
neticamente modificadas (GENÉTICA, 2001).
Ao mesmo tempo, também na Folha de A natureza humana seria um “bem dis-
S. Paulo, encontramos um artigo de 9 de abril ponível” (FEIO, 2010)?
de 2003, intitulado “James Watson quer Esta-
do fora da genética”. Watson é um dos des- A crítica de Habermas concentra-se
cobridores da estrutura do DNA e afirma que na instrumentalização e na redução
da vida humana à condição de ob-
os governantes não devem se intro- jeto manipulável. Isto porque ela
meter na decisão de cada pessoa está distorcendo a noção de sub-
sobre o que fazer com os próprios jetividade: a partir do momento
genes – inclusive nos casos de mani- em que o indivíduo não tem mais
pulação de DNA humano para criar direito de poder ser-si-mesmo, an-
bebês “sob medida” (JAMES WAT- tes de sequer ser pensado como
SON, 2003, p. A-13). ser vivo, deixa de compartilhar com
os demais membros da espécie, em
Neste sentido, um representante do todos os tempos passados e pre-
Vaticano afirmou que os avanços dos testes sentes, a categoria da qual deveria
genéticos têm causado uma disseminação da participar. (SALVETTI, 2008, p. 86).
eugenia, utilizando, para tanto, o controle da
hereditariedade no esforço pela melhora da Habermas, em sua análise, problematiza
qualidade de vida. Neste sentido, segundo a proposta liberal, ressaltando a dificuldade
monsenhor Rino Fisichella (VATICANO ALER- encontrada no âmbito teórico da bioética,
TA, 2009), a mesma mentalidade encontrada defendendo que a legislação deve proteger
nas concepções eugênicas está crescendo, o embrião como um indivíduo, não como um
embora utilizando diferentes nomenclaturas amontoado de células (cf. HECK, 2006). Corro-
e camuflada em campanhas publicitárias de borando (FELDHAUS, 2007, p. 94-95), mani-
interesses biomédicos. festa-se contrário à
Ele reconheceu ainda que os avanços
médicos advindos do Projeto Genoma Hu- clonagem humana, à eugenia liberal,
mano “oferecem possibilidades concretas à pesquisa com células embrionárias
para evitar doenças genéticas”, entretanto, meramente especulativas, e ao diag-
alertou para o fato de tecnologias estarem nóstico genético de pré-implantação
sendo desenvolvidas no intuito de oferecer […] [pois] tanto a técnica genética,
uma suposta normalização da vida das pes- quanto a escravidão são incompatí-

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veis com os direitos humanos e com questão, além disso, acordos e tra-
a dignidade humana. tados internacionais, como é o caso
da “Declaração dos Direitos sobre o
Feio (2010) afirma que Habermas dei- Genoma Humano”. Nesse sentido, a
xa clara sua posição sobre a necessidade de liberdade e autonomia humana têm
regulamentação da intervenção genética ao limites. Resta saber como definir es-
perceber que esse aumento de liberdade não ses limites em uma sociedade liberal,
tem sido acompanhado legalmente, pois, como a nossa. (FEIO, 2010, p. 759).
com o desenvolvimento da engenharia gené-
tica, dúvidas e questões éticas surgem, neces- Sendo assim, percebe-se que
sitando de regulamentação.
as novas tecnologias nos colocam
Em que medida e até que ponto o diante de novos problemas, para
Estado pode intervir nas relações os quais não existem respostas nos
privadas ampliadas pelas novas sistemas éticos até agora elabora-
tecnologias? É fato notório que as dos, é necessário um modelo que
novas tecnologias ampliaram o le- pense para além do presente, que
que de possibilidades das relações seja capaz de contemplar gerações
privadas […] a possibilidade de in- futuras. (PONTIN, 2007, p.18).
tervenção no genoma humano com
fins terapêuticos é uma questão que É necessário um modelo capaz de ga-
reclama por solução, à luz do direito. rantir os direitos futuros dos indivíduos, supe-
Quando se trata de intervenção no rando o imediatismo. A manipulação genética
reino vegetal, o impacto social disso do ser humano traz consequências, muitas
parece não ser tão forte quanto o é a vezes, desconhecidas, influenciando, inclusi-
intervenção no reino animal e, mais ve, sua concepção existencial e natural e des-
especificamente, a recombinação pertando, assim, novas questões éticas e a
gênica de DNA humano. A questão necessidade da formulação de um código que
moral que se põe, de imediato, é a oriente e controle tal manipulação (cf. PON-
possibilidade da prática de eugenia TIN, 2007).
[…] até que ponto o mercado pode
regular, pela lei da oferta e procura, Existem várias questões em relação
produtos da recombinação gênica, ao objetivo geral da biotecnologia,
e em que medida o direito pode re- que parece ser o de aprimorar a hu-
gulamentar isso. Em outras palavras, manidade, que dizem respeito ao
quais os limites do mercado biotec- quê, exatamente, se deve ou pre-
nológico tendo em vista a proteção cisa aprimorar. Deveríamos pensar
dos direitos fundamentais? O mer- somente em doenças específicas,
cado biotecnológico não é ficção sem cura neste momento histórico,
científica, é um mercado real cujas tais como diabetes juvenil, câncer
cifras de arrecadação anual já estão ou Alzheimer? Nessa lista não deve-
em bilhões de dólares. Mercado, a ríamos também incluir as doenças
rigor, é algo regido pelas regras do mentais e enfermidades, desde o re-
Direito Privado. Ocorre que, no caso tardamento à depressão, da perda
em questão, o do mercado biotec- de memória à melancolia, entre ou-
nológico, está em pauta a defesa tras? Além do mais, não deveríamos
de direitos fundamentais, assegura- também considerar aquelas “limita-
dos constitucionalmente. Estão em ções” constitutivas da natureza hu-

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mana, sejam corporais ou mentais, aos preceitos éticos, para torná-los
incluindo a realidade implacável do verdadeiramente humanos. (YEGA-
declínio e morte? Trata-se somente NIANTZ, 2001, p. 164).
de suprimir a doença e o sofrimento
ou poder-se-ia incluir nesse rol tam- II
bém predisposições a sensações, Habermas classificou a eugenia liberal
estados da percepção ou tempe- em positiva e negativa. A eugenia positiva
ramento, especialmente aqueles consiste na busca de uma técnica que vise ao
geralmente nefastos, que levam ao melhoramento da espécie, enquanto a eu-
mau humor, falta de entendimento genia negativa é considerada uma medicina
e desespero? O aperfeiçoamento preventiva. Para o autor, não é possível, nem
deve ser limitado à eliminação des- justo, chegarmos a um acordo a respeito de
ses e outros males ou deve estar critérios para uma possível excelência gené-
voltado também ao aprimoramento tica considerada digna para reprodução con-
daquela parte das potencialidades siderando imoral alguém ter a pretensão de
humanas consideradas positivas, determinar e impor os critérios de excelência
tais como beleza, força, memória, dos genes do ser humano que está por vir (cf.
inteligência, longevidade e felicida- PONTIN, 2007).
de? (PESSINI, 2006, p. 128).
A diferença fundamental entre os
Daí a defesa da construção de uma le- procedimentos médicos que buscam
gislação que oriente a ética dentro da enge- minimizar o sofrimento de um pa-
nharia genética. A bioética possui, segundo ciente, e os experimentos que procu-
Yeganiantz (2001), conceitos variados que ram acabar com determinados tipos
ocasionam divergências, mas, ao mesmo de sofrimento é que enquanto de
tempo, complementaridades sobre as novas um lado reconhece-se a diferença, a
tecnologias e descobertas, inclusive a enge- demanda de alguém que surge e pre-
nharia genética, de maneira a humanizar os cisa ser atendido, de outro procura-
conhecimentos científicos. -se [sic] justamente acabar com esta
demanda, acabar com determinados
Como a ciência e a técnica são emi- tipos de sofrimento que seriam in-
nentemente inventivas e criam um dignos. […] A assunção de um poder
novo mundo, assim a ética precisa que legitima que se descarte um em-
inventar-se, isto é, descobrir-se brião que não teria uma vida digna
sempre de novo. O surgimento da determina uma espécie de vida que
Bioética na área de ética aplicada, pode ser morta sem que se cometa
mais que um modismo, é uma ne- assassinato: de fato, reconhecemos
cessidade de sobrevivência e cons- que o embrião está vivo, mas o esta-
titui um desafio a uma visão míope, tuto jurídico deste embrião permite
ou então legalista normativa e poli- que este seja descartado sem que
cialesca dominante, tanto no mun- isto implique em um assassinato.
do político, social, como também (PONTIN, 2007, p. 83-84).
na comunidade científica até pou-
co tempo atrás. Apenas o simples A concepção humana que temos vai se
processo experimental da ciência perdendo a partir do momento em que é per-
não conduz à sabedoria: é neces- mitido, ao analisar as características genéticas
sário submeter os seus resultados de um embrião, decidir-se pela implantação
à elaboração filosófico-conceitual, ou descarte de acordo com sua aptidão.

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Trata-se de uma tentativa de ace- doenças, ou livre, pelo menos, de
lerar o processo natural evolucio- certos males. (PONTIN, 2007, p. 90).
nário, sobre o qual sabemos mui-
to pouco: tentamos fazer nascer Surge, como consequência, a eliminação
indivíduos mais aptos a viver em dos embriões ou fetos que não correspon-
sociedade, mas não temos certeza dam a tais expectativas, ao almejar um ideal
o que significa esta aptidão, preci- de homem. Amaral afirma:
samos de uma teleologia objetiva
que nos dê este modelo ideal de a diferença significativa, o desvio,
ser humano. Buscamos o modelo a anomalia, a anormalidade, e, em
ideal na biologia, no que ela nos diz conseqüência, o ser/estar diferen-
sobre a constituição normal do in- te ou desviante, ou anômalo, ou
divíduo, e na medicina, quando ela anormal, pressupõem a eleição de
nos informa sobre quais doenças critérios, sejam eles estatísticos
podem impossibilitar o convívio em (moda e média), de caráter estru-
sociedade. No entanto, quais des- tural/funcional (integridade de for-
tes critérios de normalidade, e de ma/funcionamento), ou de cunho
impossibilidade de convívio futuro psicossocial, como do “tipo ideal”.
em sociedade, são, de fato, objeti- (1998, p. 13).
vos, e quais não estabelecem, pelo
contrário, apenas uma tentativa de O caráter estatístico divide-se em dois
excluir o surgimento do diferente tipos: a “média” – que consiste no quociente
na dimensão pública? O fantasma da divisão da soma pelo número das parce-
da pureza de raça assombra, o tem- las; a altura média dos homens, por exemplo,
po todo, estas tentativas de deter- consiste na soma das alturas divididas pelo
minação a partir de fora de critérios número de pessoas; as pessoas que se afas-
do como viver para indivíduos futu- tarem demais dessa média são consideradas
ros. (PONTIN, 2007, p. 83-86). diferentes. O outro tipo é a “moda”, que se
refere à frequência de determinadas caracte-
Em relação à seleção pré-natal, surge a rísticas. O exemplo dado por Amaral (1998) é
questão dos critérios a serem eleitos, de ma- a grande frequência de mulheres professoras
neira que se busca que a criança esteja den- do ensino fundamental, em detrimento do
tro dos ideais de homem tidos pela sociedade número de homens.
atual, escolhendo, assim, características que O segundo caráter, o estrutural/funcio-
se enquadrem nos padrões prédeterminados, nal, diz respeito ao que Amaral define como
sejam características físicas relacionadas à “integridade da forma quanto à competên-
estética (como cor de olhos, tipo de cabelo cia da funcionalidade” (1998, p. 13), ou seja,
etc.), ou ausência de deficiências ou enfermi- a presença ou ausência de características no
dades. Neste sentido, indivíduo que causem um não funcionamen-
to, ou mau funcionamento, de determinadas
a clonagem e o diagnóstico de pré- atribuições do organismo (“deficiências”).
-implementação1 de embriões são E o último, o psicossocial, normalmente
oferecidos como forma de viabilizar abarca os dois primeiros, na medida em que
a construção de uma civilização sem busca construir, na relação com os outros cri-
térios, um ideal de homem.
“O chamado DGPI (diagnóstico de pré-implantação) é
1
Nos três critérios descritos por Amaral
uma técnica capaz de fornecer informações genéticas
aos futuros pais sobre embriões de seus filhos ainda (1998) está presente a necessidade social de
no estágio de oito células” (AYMORÉ, 2006, p. 1). aproximação, seja da média, da moda, da es-

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trutura física/estrutural ou, ainda, do padrão mento natural, à inviolabilidade das
social. De acordo com o pensamento da esco- características naturais, à identidade
la de Frankfurt, a sociedade busca uma homo- não-planejada, à imperfeição”. As
geneização. Neste sentido, consequências de um recuo àquilo
que é indisponível por natureza faz
quando Adorno e Horkheimer afir- com que “[o] direito humano trans-
mam que a civilização atual a tudo forma-se novamente em direito
confere um ar de dessemelhança, natural; e ações da medicina repro-
eles definem o traço característico dutiva e da tecnologia genética ad-
da indústria cultural: a padroniza- quirem a qualidade de peccata con-
ção. Produto do Iluminismo, a in- tra naturam. (HECK, 2006, p. 44-45).
dústria cultural elimina as diferen-
ças, uniformizando a vida segundo Habermas defende que se deve pre-
os padrões da racionalidade técni- servar o direito de ser humano, de decidir a
ca. (ORTIZ, 1985, p. 14). respeito de seu próprio corpo e o direito de
“poder-ser-si-mesmo”, devendo ser este um
Pautados nesta racionalidade técnica e direito inalienável. Logo,
na busca pela homogeneização, os progres-
não podemos supor o que seria mais
sos científicos,
ou menos “vantajoso” para as gera-
ções futuras […], não é possível ob-
sobretudo os que dizem respeito à
ter-se um consenso presumido para
revolução genética, trazem à tona
operar no corpo de outrem em ob-
a preocupação com um possível
jeto de uma intervenção anterior ao
mau uso da genética e de sua in-
nascimento. (PONTIN, 2007, p. 54).
discriminada exploração comercial,
circunstância em que a liberdade in- A respeito do diagnóstico de pré-im-
dividual, anunciada como uma liber- plantação de embriões, surge a questão da
dade de escolha sem precedentes, pré-seleção das características do indivíduo a
poderia estar ferindo a dignidade ser formado, para o qual se presume que se-
e os direitos humanos, compon- jam boas ou adequadas. Entretanto, é vista a
do um novo cenário tão sombrio necessidade de esclarecer a possibilidade de
quanto os anteriores, visto que a utilizar o indivíduo para realizar experiências
seleção e o descarte dos incapazes, e a busca pela eliminação da possibilidade de
deficientes e ineficientes não se da- morte que a manipulação poderia proporcio-
riam mais pela via do extermínio, nar. Neste sentido, Pontin (2007) deixa-nos
mas pela salvação dos eleitos, estes uma dúvida sobre se a manipulação genética
manipulados, programados e legiti- contribuiria para o desenvolvimento de uma
mados por argumentos científicos. biopolítica que seguisse na direção de uma
(MOURA, 2007, p. 53). tanatopolítica,2 sendo possível, a partir do
diagnóstico pré-implantação, selecionar em-
Nesta direção, destacamos a importân- briões de acordo com suas potencialidades,
cia da existência de uma ética que oriente e segundo critérios biotécnicos.
controle tais ações. Neste sentido, Heck afir-
ma que: No entanto, com o passar do tempo,
este saber biotécnico que primeiro
O recurso à chamada ética material
A palavra tanato advém do grego thánatos, que
2
implica, segundo W. Kersting, que significa morte. Quando utilizada como prefixo
seja decretado “um direito ao cresci- exprime a noção de morte (PRIBERAM, s.d.).

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trata do prolongamento da vida, A técnica, que anteriormente se preo-
e do combate à doença, começa a cupava com objetos, passa a ocupar-se com a
dizer coisas sobre o como da vida, espécie humana, que se torna objeto dela, po-
e, com o surgimento das técnicas dendo ter sua constituição biológica alterada
de seleção embrionária, abre-se o de acordo com os interesses do indivíduo que
horizonte para que possa ser feita a a estiver manipulando. Desta maneira, a cons-
seleção de embriões que não terão tituição biológica humana torna-se um produ-
determinadas doenças no futuro. to que, segundo Hans Jonas (apud PONTIN,
Neste sentido, um futuro indivíduo 2007), pode ser, inclusive, descartado ou pa-
é determinado com base na sua po- tenteado (PONTIN, 2007).
tencialidade de viver uma vida mais Outra situação a destacar é em relação
digna no futuro, e, por outro lado, ao conceito de “responsabilidade”, tratado
aqueles embriões descartados no por Hans Jonas (apud PONTIN, 2007), que
momento do diagnóstico, viveriam questiona a respeito das consequências e
uma vida indigna de ser vivida. Esta problemas de implicação geracional que a in-
dignidade e indignidade de vida tervenção genética pode causar, podendo ser
futura é determinada sempre, de visíveis apenas nas próximas gerações. Ao ob-
fora, e sustenta uma nova forma de servar a possibilidade de os pais escolherem
vir-a-ser: a seleção de embriões com as características de seus filhos, Habermas
base em futura cor de pele, cor de questiona se este fato não feriria a liberdade
olhos ou com base em possibilidade ética deste indivíduo “programado” (HABER-
de desenvolver câncer ou paralisia MAS apud FEIO, 2010).
cerebral demonstra bem uma linha
tênue – na realidade, imperceptível Um atleta poderia argumentar que
– entre o melhoramento e a terapia um dos competidores de uma de-
genética. (PONTIN, 2007, p. 82-83). terminada modalidade esportiva
teve seu genoma alterado e, por
Nos escritos de Habermas encontramos isso, está em franca vantagem. Um
a preocupação em relação aos investimentos filho poderia culpar os pais por não
em pesquisas para tecnologia, visando utilizá- terem alterado o seu genoma de
-la como um instrumento, “ou seja, de uma forma que ele pudesse aprender
técnica que se coloca, não como meio para matemática com mais facilidade.
o avanço, mas como fim” (PONTIN, 2007, p. Uma conquista pessoal já não seria
43). Ele lança uma reflexão: tão “pessoal” assim; seria uma con-
quista da pessoa e de seu “progra-
até onde a tecnologia não está cau- mador”. A pessoa geneticamente
sando uma mudança de perspectiva modificada poderá sofrer com a
na forma de vida do ser humano, de consciência de ter de partilhar com
forma que a própria concepção de outrem a autoria do destino de sua
liberdade, ou de ação política, é co- própria vida. (FEIO, 2010, p. 762).
locada em jogo por uma espécie de
razão instrumental? (Idem). Outras questões podem surgir em rela-
ção a essas modificações genéticas. Supondo
Habermas condena a utilização do em- que uma mulher seja mãe de aluguel de seu
brião para qualquer fim que não seja a repro- neto, a criança é filha de quem? Da portadora
dução; a instrumentalização deste ser, segun- dos genes que ela recebeu ou da que a carre-
do ele, deve ser terminantemente proibida. gou no ventre? Ou ainda, digamos que um ca-
sal realize uma fertilização in vitro, congele os

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embriões não utilizados e depois decida não dade almeja, pois a estrutura social requisita
mais ter filhos. O que será feito desses seres pessoas fortes, saudáveis e eficientes. A au-
humanos em formação? Serão descartados? sência dessas características causaria redução
São questões éticas que circulam nas discus- da produção, e a pessoa com deficiência pas-
sões acerca da engenharia genética. saria a ser considerada uma pedra de tropeço
Neste sentido, no desenvolvimento da sociedade, pois,

o racismo, que aparece enquan- o corpo fora de ordem, a sensibili-


to dispositivo desta tecnologia de dade dos fracos, é um obstáculo
poder, tem seu aspecto ampliado para a produção. Os considerados
na forma de uma eugenia, de uma fortes sentem-se ameaçados pela
intervenção direta no material ge- lembrança da fragilidade, factível,
nético que dá forma ao humano. A conquanto se é humano. As pes-
assunção desta idéia de um forta- soas com deficiência causam estra-
lecimento biológico, seja no evitar nheza num primeiro contato, que
o surgimento do indesejável ou na pode manter-se ao longo do tempo
reprodução do desejado, atinge, no a depender do tipo de interação e
estágio atual, com a clonagem e o dos componentes dessa relação
diagnóstico de pré-implementação, […] O preconceituoso afasta esse
um ápice. Não é preciso sequer cor- “outro”, porque ele põe em perigo
rer o risco que surja alguém com sua estabilidade psíquica. Assim, o
uma condição indesejável, pode- preconceito cumpre também uma
mos escolher características deter- função social: construir o diferente
minadas para indivíduos futuros, de como culpado pelos males e inse-
acordo com critérios científicos – a guranças daqueles que são iguais.
utilização estratégica do biológico, (SILVA, 2006, p. 426).
assim, fica clara, já que a seleção do
sexo pode ser determinada, bem Diante disso, surgem questionamentos
como as doenças mentais podem a respeito das implicações que essas novas
ser evitadas na constituição biológi- possibilidades genéticas trariam para a po-
ca, na seleção de um embrião que sição social dos deficientes, sobre a possível
tem mais potencial para uma vida estigmatização e isolamento dos indivíduos
mais adequada em sociedade. […] deficientes como consequência da aplicação
Aquilo que não se encaixa para a em massa de seleção genética. Fica o medo
vida em sociedade, ou em uma ho- do retorno do horror visto na eugenia estadu-
mogenia de uma população, pode nidense e, em especial, na nazista (cf. NUSS-
ser facilmente descartado, pois não BAUM, 2004).
encontra a proteção de um deter-
minado conceito de vida – que é re- III
gulado normativamente. (PONTIN, A respeito destes indivíduos que, por ve-
2007, p. 70). zes, são estigmatizados por não pertencerem
ao grupo considerado superior, Lobo (2008)
O medo que temos daquele que nos é di- apresenta uma perspectiva interessante a
ferente ou desconhecido leva-nos a conceituá- respeito da recuperação, do conserto, destes
-lo como inferior, descartando e consideran- que não são fazem parte da elite genética.
do-o indigno de viver em sociedade, pois não
se encaixa na homogeneidade almejada. Esse Hoje, configura uma evidência natu-
fato reflete os tipos de indivíduos que a socie- ral a necessidade de recuperação,

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de reparação da vida dos prisionei- única norma de capacidades huma-
ros, dos doentes, das crianças aban- nas básicas for aplicada completa-
donadas, dos jovens delinqüentes, mente. (2004, p. 32).
dos sem-teto, dos deficientes. De-
volver à sociedade o corpo recu- Nesta direção, Nussbaum (2004) afirma
perado do operário acidentado, da que alguns intelectuais defendem que não há
criança desassistida pela família, do motivo para permitir a continuidade das de-
ex-presidiário ou do deficiente apto ficiências, na medida em que as tecnologias
e independente é uma tarefa tão poderiam superá-las. Nesta perspectiva, a au-
óbvia quanto um critério de julga- tora questiona:
mento negativo ou de revolta con-
tra o descaso com que em geral são certamente não ambiciono um
tratadas essas categorias de pes- mundo em que pais consertem seus
soas. Recuperação e preservação filhos para que ninguém se sinta
da vida são positividades inextrin- deslocado, ainda que todos saiba-
cáveis dos sentidos nas noções de mos que as vidas dos deslocados
norma e normalidade que o poder não são fáceis […] “Eles desejam
médico difundiu no social, mas que que eu nunca tivesse nascido”, dis-
paradoxalmente incluem na falta e se minha filha, ao ouvir que os auto-
no negativo o desvio daqueles que res […] eram a favor de tratamen-
dificilmente poderão atingir o grau tos genéticos de defeitos que se
positivo dessa recuperação. (LOBO, desviam do funcionamento humano
2008, p. 270). normal. Sim, realmente eles o de-
sejam. Mas quem, dada a opção de
Em seu artigo Genética e justiça: tratan- poder poupar o sofrimento de um
do a doença, respeitando a diferença, Nuss- filho, poderia seguramente discor-
baum vai ao encontro de tais discussões: dar deles? É que só o fato de ter tal
escolha já parece ameaçador e, de
inevitavelmente, discussões sobre algum modo, trágico. (2004, p. 33).
a escolha dos pais em relação a fi-
lhos geneticamente deficientes Deste modo, podemos pensar ainda em
são muito ameaçadoras às pessoas um embrião que é percebido com uma deter-
com deficiências. Mesmo que elas minada deficiência… O que será feito com
não envolvam o aborto de crianças ele? Implantado ou eliminado? Ou, em rela-
deficientes já existentes – e, como ção aos exames que detectam a síndrome de
no cenário principal desses auto- Down no ventre, por exemplo, o que será fei-
res, sejam consertadas basicamen- to com esse feto se possuir a síndrome? Será
te deficiências no útero ou após o conservado ou eliminado?
nascimento –, há ainda algo alar- Esses novos testes visando reconhecer a
mante na idéia de que a Síndrome síndrome de Down e outras deficiências físicas
de Down, a surdez e a cegueira dei- ou intelectuais no feto ou no embrião em situ-
xem gradualmente de existir. Pes- ação de pré-implantação, embora se negue tal
soas nessas condições não temem assertiva, foram criados no intuito de calcular
apenas a estigmatização crescente os riscos de existência da deficiência e evitar a
e a falta de apoio social. Também gestação destes, utilizando, como argumento,
sustentam vigorosamente (sobre- a defesa de direitos individuais que corrobo-
tudo os surdos) possuir uma cultura ram com as ideias propagadas pelos eugenis-
valiosa, que será obliterada se uma tas liberais, no intuito de terem informações

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anteriores ao nascimento para, posteriormen- como um dispositivo de poder, de domínio
te, decidirem que atitudes serão tomadas. político da vida (cf. AYMORÉ, 2006).
Estamos diante da emergência de uma
Enquanto com os métodos usuais forma de poder que visa adequar a constitui-
de inseminação só é possível torcer ção biológica dos indivíduos à funcionalização
para que as condições saudáveis e do tipo idealizado de pessoas a partir da inter-
os traços tidos como vantajosos do venção, tanto no indivíduo formado como na
esperma do doador escolhido sejam constituição biológica do embrião (cf. PON-
transmitidos ao embrião, o diagnós- TIN, 2007). Desta forma, o “mistério do sur-
tico genético pré-implantacional gimento de um novo indivíduo é substituído
[DGPI] oferece a possibilidade de pela certeza do surgimento de um organismo
avaliar distintos cromossomos com cujas características são escolhidas externa-
vistas a anomalias, como a trissomia mente” (PONTIN, 2007, p. 64).
que leva à síndrome de Down e a he-
mofilia na determinação do sexo, e A suposição central por trás da
permite registrar, com um crescente realização de um diagnóstico pré-
grau de segurança, a presença de -natal é que a vida com algum tipo
alelos gênicos relacionados à atrofia de deficiência não vale a pena e
espinhal progressiva, às distrofias representa sobretudo uma fonte
musculares e à fibrose cística. Em- de sofrimento […]. Visto da pers-
bora as intervenções de caráter eu- pectiva dos direitos das pessoas
gênico negativo, terapêutico, clínico com necessidades especiais, o teste
ou curativo, subseqüentes ao diag- pré-natal para averiguar anomalias
nóstico genético pré-implantação, fetais pressupõe uma forte mensa-
alterem a presumida ordem prees- gem no sentido de que buscamos
tabelecida do patrimônio genético eliminar futuras pessoas com defici-
natural do feto, há um consenso ências, sem reconhecer-lhes o valor
generalizado de que estão a limine social, além de transmitir a idéia de
justificadas pelo assentimento pos- uma desvalorização daqueles que
terior da prole, uma vez que é sensa- vivem atualmente com alguma de-
to admitir que seres humanos dese- ficiência ou necessidade especial
jam não ter disposições patológicas […] Ao concentrar tantos recursos
monogenéticas. Em relação à euge- na eliminação de possíveis pessoas
nia negativa não há, assim, contro- deficientes, nos deixamos levar na
vérsias maiores quanto ao uso das direção do ressurgimento de uma
técnicas disponíveis que impedem o eugenia diversa apenas superficial-
nascimento de seres humanos one- mente de modelos anteriores. Nes-
rados com deficiências graves, ou se processo, estamos distorcendo
seja, aqui como alhures não há muita seriamente o propósito histórico da
celeuma quando se trata de evitar o medicina como cura. Estamos crian-
pior, o defeituoso, o que causa sofri- do uma sociedade na qual a defici-
mento e/ou traz infelicidade. (HECK, ência é cada vez mais estigmatizada
2006, p. 47-48). e, como resultado, a imperfeição
humana, de qualquer tipo, torna-se
Na contemporaneidade, o controle da cada vez menos tolerada e suscetí-
reprodução (eugenia, clonagem, diagnósti- vel de ser aceita como uma variação
co de pré-implantação, fertilização in vitro, normal da humanidade. (BEESON
reprodução assistida etc.) tem sido utilizado apud SINGER, 2004, p. 14-15).

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Singer (2004) lança-nos um questiona- nos coloca Habermas (2004), teria o homem
mento interessante: se nossa sociedade afirma o direito de escolher quais indivíduos podem
que todos os seres humanos são iguais e valori- sobreviver, ou poderia instrumentalizar a
za a diversidade, essa ênfase na igualdade não vida humana, reduzindo-a à condição de um
poderia trazer uma busca por uma homogenei- objeto manipulável? Poderia o homem eleger
dade social, que defende que seria melhor não critérios para a seleção genética? Teriam os
existirem pessoas deficientes, pois estas pode- pais o direito de determinar as características
riam quebrar esta padronização? que seus filhos terão? Seria correto permitir
a eliminação ou o aborto de crianças que fo-
Naturalmente múltiplas e distintas ram detectadas deficientes em diagnósticos
posições podem ser captadas fren- pré-implantação ou durante a gestação? Será
te à utopia do homem perfeito, que que, ao não permitir que indivíduos que te-
vão desde visões apologéticas do nham algum tipo de deficiência, doença ou,
engenheiramento genético até opo- ainda, alguma característica que possa ser
sições duras à viabilização de tecno- considerada indesejada, ou que não se enqua-
logias depuradoras da espécie. Aná- dre no ideal de homem socialmente imposto,
lises se desdobram seja para mostrar venham a nascer, estaremos combatendo o
as vantagens de uma sociedade que preconceito, ou levando-o a crescer, propor-
tenha gradualmente seus exempla- cionando a possibilidade de eliminação prévia
res melhorados de acordo com um de todos que seriam considerados desagradá-
padrão, seja para advertir que o apa- veis por serem diferentes?
gamento da diversidade, se possível Moura alerta:
for, não trará qualquer benefício à
humanidade. (MOURA, 2007, p. 56). não é difícil enunciar a tarefa ur-
gente que se apresenta, pois ao
Considerações finais contrário do que muitos pensam
O ideal de um corpo perfeito, físico e sobre os acontecimentos e avanços
intelectualmente, assentado na ideia e busca tecnológicos como algo que se está
por uma homogeneização dos indivíduos a acontecendo, acontece fora de nos-
partir da determinação de um perfil sempre sos quintais, deveríamos ao menos
existiu, embora com adaptações à época e repensar se não estaríamos nós sig-
sociedade na qual se encontravam. Mas a ma- nificando “isto” e “eles” como pre-
neira como os deficientes são tratados e con- núncio de uma nova forma de bar-
siderados altera-se ao longo do tempo. bárie: a indiferença. (2007, p. 55).
Com as atrocidades nazistas, a eugenia
científica foi desacreditada, continuando, en- Ficam, portanto, os questionamentos:
tretanto, sob nova terminologia, uma vez que Não estaríamos nós, pautados em discus-
modificaram o nome, substituindo-o em suas sões científicas, objetivando a eliminação
organizações, pelo termo genética. Tal fato das deficiências? Será que o objetivo, então,
demonstra que a busca por um aprimoramen- seria livrarmos-nos dos deficientes? Conser-
to da raça humana mantém-se. tá-los? Curá-los? Livrarmo-nos daqueles que
Nesta perspectiva, este estudo possibili- desagradam, e aos quais não desejamos su-
ta-nos afirmar que o homem sempre praticou portar? Até que ponto podemos intervir nos
a seleção genética, seja escolhendo os melho- indivíduos para eliminar determinadas defici-
res animais para procriar, ou as sementes dos ências com o pretexto de alcançar uma me-
frutos mais bonitos. Entretanto, ao dispor da lhor qualidade de vida?
seleção de seres humanos, muitas dúvidas e Finalizando, não temos respostas, mas
questões éticas começam a surgir. perguntas que não querem, e não devem, ca-
Será o homem, como questiona Feio lar. Problemas complexos de uma realidade
(2010), um bem disponível? Ou ainda, como dinâmica.

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Simone Moreira de Moura


Docente do Departamento de Educação da Universidade
Estadual de Londrina, líder do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Educação, Deficiências e Tecnologias,
Pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Morena Dolores Patriota da Silva


Pedagoga, mestranda na Universidade Estadual de Campinas,
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação,
Deficiências e Tecnologias.

Recebido: 18/04/2012
Aprovado: 25/04/2013

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