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Especulações sobre Machado

Política

“ Que é a política senão obra de


homens? ”
—Machado de Assis.[180]

Machado de Assis pôde assistir, ao longo do século XIX e no começo do século XX, a
alterações vastas e decisivas no cenário internacional e nacional, nos costumes, nas
ciências da natureza e da sociedade, nas técnicas e em tudo o que entende com o
progresso material. Alguns estudiosos supõem, no entanto, que as crenças atribuídas a
Machado de Assis como um escritor engajado são falsas e que ele não esperava nada ou
quase nada da história e da política.[181] Por exemplo: quanto às guerras e os conflitos
políticos de sua época, dá de ombros, ao escrever:
"Guerras africanas, rebeliões asiáticas, queda do gabinete francês, agitação
política, a proposta de supressão do senado, a caixa do Egito, o socialismo,
a anarquia, a crise europeia, que faz estremecer o solo, e só não explode porque a
natureza, minha amiga, aborrece este verbo, mas há de estourar, com certeza,
antes do fim do século, que me importa tudo isso? Que me importa que, na ilha de
Creta, cristãos e muçulmanos se matem uns aos outros, segundo dizem
telegramas de 25? E o acordo, que anteontem estava feito
entre chilenos e argentinos, e já ontem deixou de estar feito, que tenho eu com
esse sangue e com o que há de correr?"[182]
Por outro lado, vivendo na corte, na capital do Rio de Janeiro, Machado foi um grande
comentador direto dos casos que ocorriam com os políticos do país e todas suas
grandes obras de ficção têm forte cunho social. Suas crônicas estão repletas destes
comentários. Em 1868, por exemplo, D. Pedro II demitiu o gabinete liberal de Zacarias
de Góis e substitui-o pelo gabinete conservador de Itaboraí. Grêmios e jornais liberais
acusaram a atitude do imperador de bonapartista. [181] Machado testemunhou o ato com
simpatia aos liberais;[183] de fato, era essa a sua "cor ideológica" ao longo dos anos 60.
Em 1895, ao noticiar a morte de Joaquim Saldanha Marinho, liberal, maçom e
republicano,[183] Machado escreveu: "Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a sair e
a voltar, até que se foram devez, como os conservadores, e com uns e outros o
Império."[184] Sabe-se, também, que Machado era fervorosamente contra a escravidão,
seus horrores sempre denunciados em sua ficção. Em 1888, com a abolição da
escravatura, sai às ruas em carruagem aberta, como escreveu numa crônica da sua
coluna "A Semana", na Gazeta de Notícias:
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei,
que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o
mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta
(...) Verdadeiramente, foi o único dia de delírio que me lembra ter visto." [185]
Em crônica de 22 de julho de 1894, intitulada "Canção de Piratas", também refere-
se à Guerra de Canudos (1896-1897), apoiando Antonio
Conselheiro de Canudos por seus legionários se indignarem com a
realidade clichê e entediante da época, e escreve: "Jornais e telegramas dizem
dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra
palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros
eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que,
através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a
poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século." [186]
Machado de Assis, sempre antenado com a cultura, sociedade e política de sua época.
Retrato do importante fotógrafo Joaquim José Insley Pacheco, 1864.

Fundou em 1860 com seu cunhado Josefino Vieira o periódico O Jequitinhonha,


por meio do qual teria difundido o ideal republicano. [187] No entanto, a República
trouxe muitos desagrados a ele. Com o fim do Império, o jornalismo começou a
dar mais atenção à companhias, aos bancos e à Bolsa do que à arena
parlamentar.[188] Neste breve período, o capitalismo brasileiro, mediado pelo
Estado, "ensaiava temerariamente os primeiros passos no regime nascente",
como escreveu Raimundo Faoro.[189] Sabe-se que Machado detestava o "vale-tudo
do dinheiro pelo dinheiro".[188] Em crônica de 18, escreveu: "Prisões, que tenho eu
com elas? Processos, que tenho eu com eles? Não dirijo companhia alguma, nem
anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me disponho a fundá-los; e,
de todas as coisas deste mundo e do outro, a que menos entendo, é o câmbio.
(...) Finanças, finanças, são tudo finanças."[190]
Os estudiosos sociológicos, históricos e mesmo alguns críticos literários de
Machado, como Alfredo Bosi, Antonio Candido, Helen Caldwell, John
Gledson, Roberto Schwarz, Raimundo Faoro e muitos outros, têm analisado e
mapeado sobretudo crônicas, contos e romances do autor onde a crítica social da
burguesia carioca e brasileira está mais presente em todo seu aspecto
elitista. Quincas Borba, assim, representaria o calculismo, o aproveitamento, a
cobiça e a "coisificação" do homem pelo homem no capitalismo,[130] parodiando
também o positivismo de Comte, o darwinismo social e a seleção natural do mais
forte;[191] Dom Casmurro traria excesso de machismo e as tragédias e farsas de um
sujeito da classe média diante de uma moça e mulher de classe mais baixa;[192][193]
[194]
 e Memórias Póstumas de Brás Cubas, toda a sorte de irresponsabilidade,
infecundidade e atrocidade de um sujeito e sua classe indolente e escravista que
não quer trabalhar, que teve, segundo suas próprias palavras, a "boa fortuna de
não comprar o pão com o suor do meu rosto",[195] retrato do liberalismo de fachada
que convivia com o regime escravocrata. [196]
Em 15 de maio de 1892, escreve na sua coluna "A Semana", da Gazeta de
Notícias, último jornal a colaborar, onde publicou suas últimas crônicas: "Tudo é
ovo. Quando o Sr. deputado Vinhais, no intuito de canalizar a torrente socialista,
criou e disciplinou o partido operário, estava longe de esperar que os patrões e
negociantes iriam ter com ele um dia, nas suas dificuldades, como aconteceu
agora na questão dos carrinhos de mão. Assim, o partido operário pode ser o ovo
de um bom partido conservador. Amanhã irão procurá-lo os diretores de bancos e
companhias, quando menos para protestar contra a proposta de um acionista de
certa sociedade anônima, cujo título me escapa." [197] Mas, em 5 de junho do
mesmo ano, se vê simpático ao surgimento do socialismo: "(...) reunião de
proprietários e operários, que se realizou quinta-feira no salão do Centro do
Partido Operário, a fim de protestar contra uma postura; fato importante pela
definição que dá ao socialismo brasileiro. Com efeito, muita gente, que julga das
coisas pelos nomes, andava aterrada com a entrada do socialismo na nossa
sociedade, ao que eu respondia: 1°, que as idéias diferem dos chapéus, ou que os
chapéus entram na cabeça mais facilmente que as idéias, — e, a rigor, é o
contrário, é a cabeça que entra nos chapéus; 2°, que a necessidade das coisas é
que traz as coisas, e não basta ser batizado para ser cristão. Às vezes nem basta
ser provedor de Ordem Terceira. (...)"[197]

Machado de Assis em sua provável última foto de estúdio. Estúdio Luiz Musso & Cia,
um ano antes de partir, 1907.

Este tipo de relativação política é bastante frequente em Machado de Assis. No


seu penúltimo livro, por exemplo, Esaú e Jacó, romance que traz explicitamente
temas como a abolição da escravatura, o encilhamento e o Estado de sítio,
sobretudo a Proclamação da República, irmãos gêmeos discutem a vida toda, um
republicano e outro monarquista, depois ambos republicanos, mas um liberal e
outro conservador; o final insinua que ambos são iguais, que provavelmente as
alterações e mudanças ocorrem apenas "de fachada" por interesses partidários
que se mantêm.[198] Em crônica de 19 de maio de 1888, na coluna "Bons dias!",
seis dias depois, portanto, da abolição, Machado se utiliza do discurso em primeira
pessoa para se passar ironicamente por um senhor que "alforria" seu escravo;
este, sem ter para onde ir, acaba por continuar com o senhor, recebendo os
mesmos mal tratos de sempre e agora um mísero ordenado, ou seja, Machado
enxerga críticas nestas transições todas: escravismo para o capitalismo,
monarquia para república etc.[199]
Machado de Assis prefere ser como o sábio Conselheiro Aires, seu autorretrato e
personagem dos seus dois últimos livros, pacífico, conciliador, anfitrião,
observador, crítico ou neutro na maior parte dos assuntos. [103] Isto se evidencia,
inclusive, quando a Academia Brasileira de Letras torna-se cada vez mais um
instrumento de política externa a partir da eleição do diplomata e historiador Barão
do Rio Branco em 1898. Nos anos finais, entre querer ser estadista ativo
como Joaquim Nabuco ou cronista neutro, Machado de Assis prefere a segunda
opção, que é a de Aires.[103] Em crônica de 6 de janeiro de 1895, porém, sentencia:
"Chamfort, no século XVIII, deu-nos a célebre definição da sociedade, que se
compõe de duas classes, dizia ele, uma que tem mais apetite que jantares, outra
que tem mais jantares que apetite. Pois o século XX trará a equivalência dos
jantares e dos apetites, em tal perfeição que a sociedade, para fugir à monotonia e
dar mais sabor à comida, adotará um sistema de jejuns voluntários. Depois da
fome, o amor. O amor deixará de ser esta coisa corrupta e supersticiosa; reduzido
a função pública e obrigatória, ficará com todas as vantagens, sem nenhum dos
ônus. O Estado alimentará as mulheres e educará os filhos [...]" [200]
No final de sua vida, Machado acreditava que o sonho poético de outrora estava
se desfazendo com a modernização política. E, de certa forma, ele mesmo se
desfazia: em 1900, envia uma carta a um colega discutindo se o que aparecia
naquele determinado momento eram os "pés" do século XIX ou se já era a
"cabeça" do século XX e ele afirma: "eu sou pela cabeça", [201] ou seja, "meu século
já acabou".[202] Alfredo Bosi escreveu que o autor não via maus ou bons resultados
na mudança do "despotismo milenar" ao "liberalismo dos reformadores turcos",
mas que a "beleza da tradição" monárquica sucumbia à "força das mudanças
ideológicas".[203] Para Machado de Assis, enfim, tudo tinha sua mudança. Em
crônica do dia 16 de junho de 1878, escreveu: "Os dias passam, e os meses, e os
anos, e as situações políticas, e as gerações, e os sentimentos, e as ideias." [204]

Religião
Tem-se intensificado a tentativa de descobrir a religião de Machado de Assis.
Sabe-se que na infância ajudava uma igreja local e que fora parcialmente educado
em idiomas por um padre, o já citado Silveira Sarmento. [27][28] Analisando sua obra,
muitos críticos o colocaram ao lado de Otávio Brandão, crendo que ele era adepto
absoluto do niilismo.[205] Outros o enxergavam como um perfeito ateu,[205] no entanto
recebeu profunda influência de textos católicos (ver seção Leituras). De fato, a
religião de Machado de Assis tornou-se tão obscura que talvez não haja outro
método senão procurá-la em sua obra.

Visão

"Vi de um lado o Calvário, e do outro lado


O Capitólio, o templo-cidadela.
E torvo mar entre ambos agitado,
Como se agita o mar numa procela. [...]"

—Machado de Assis (clique aqui para ler o poema)

Como poeta, escreveu três poemas correlacionados no que se refere à orações e


ao antagonismo entre a Roma antiga, o Paganismo e a Cristandade: "Fé", "O
Dilúvio" e "Visão",[205] sendo que os dois primeiros foram publicados
em Crisálidas (1864) e o último em Falenas (1870). Alguns especialistas notam
nestes três poemas que Machado vangloriava a fé e a grandeza de Deus, mas
num sentido mais poético e renascentista que doutrinário ou moralista.[205] Autores
como Hugo Bressane de Araújo analisaram sua obra sob aspecto exclusivamente
religioso, citando muito embora os dizeres de Machado ser "anti-clerical";
[206]
 contudo, a mentalidade de Araújo limita-se a um pensamento religioso e não
crítico literário, por ter sido bispo diocesano. Em Memórias Póstumas de Brás
Cubas, há uma passagem em que o personagem-filósofo Quincas Borba diz: "O
Humanitismo há de ser também uma religião, a do futuro, a única verdadeira.
O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religiões não
valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O
paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano; e quanto
ao nirvana de Buda não passa de uma concepção de paralíticos. Verás o que é a
religião humanística. A absorção final, a fase contrativa, é a reconstituição da
substância, não o seu aniquilamento, etc."[207] Entretanto, tal trecho não passa da
fala de uma personagem fictícia, em que Quincas Borba tenta elevar sua própria
religião, e mesmo o Humanitismo é apenas uma das invenções irônicas de
Machado de Assis; Candido escreveu que a essência da crítica machadiana é "a
transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas
à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual." [131]
Para entenderem mais a fundo suas convicções pessoais e seu real pensamento,
os críticos analisam as crônicas publicadas nos jornais. Em "Canção de Piratas",
publicada na Gazeta de Notícias em 22 de julho de 1894, apoia Antonio
Conselheiro de Canudos por seus legionários se indignarem com a realidade
clichê e entediante da época, e critica os métodos da Igreja: "O próprio amor é
regulado por lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa do
pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas,
palavras simbólicas, gestos de convenção." [186] Além disso, no Rio de Janeiro de
sua época, sabe-se que o Espiritismo crescia expressivamente.[208] Numa suposta
visita à Federação Espírita Brasileira, relatada numa crônica na Gazeta de
Notícias do dia 5 de outubro de 1885, conta, com ironia, sobre suposta viagem
astral que tivera.[209] Embora tenham surgido análises afirmando que Memórias
Póstumas de Brás Cubas fosse um livro cujo estilo era influenciado pelo conceito
de "psicografia",[210] críticos modernos acreditam que Machado encarava a religião
espírita como todo movimento novo que possui a pretensão de se apresentar
como solução dos males "não resolvidos" pelos seres humanos. [211]
Machado de Assis era contra toda forma de fundamentalismo. Em crônica de 24
de julho de 1892, sobre candidatos políticos atrelados às religiões, confessa: "Eu
que sou não só pela liberdade espiritual, mas também pela igualdade espiritual,
entendo que todas as religiões devem ter lugar no Congresso
Nacional (...)"[212] Confessa, nesta mesma crônica, ser anabatista,[212] não sabemos
se com ironia ou a sério.

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