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20/08/2018 Precisamos falar sobre eugenia – Flavio Gordon – Medium

Flavio Gordon
análises e comentários sobre cultura e política (nessa ordem!)
Jul 25, 2017 · 45 min read

Precisamos falar sobre eugenia


. . .

O caso Charlie Gard e o sacrifício dos mais fracos

. . .

“Eles estão sós, e uma só lei os governa — a lei do


poder” (Albert Camus, O Homem Revoltado)

. . .

O drama de Charlie Gard

N as últimas semanas, o mundo acompanhou com horror e


incredulidade o drama do bebê britânico Charlie Gard. Charlie
sofre de miopatia mitocondrial, síndrome genética rara, que provoca
degeneração muscular e cerebral. Contrariando a vontade expressa dos
pais da criança, o hospital Great Ormond Street decidiu pela eutanásia,
anunciando a intenção de desligar os aparelhos que a mantinham viva.
O caso foi parar na justiça.

Derrotados nos tribunais britânicos, Chris Gard e Connie Yates, os pais,


resolveram apelar à Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), que
manteve a decisão favorável ao hospital, na prática transformando
Charlie em preso político, já que aos pais não foi concedido sequer o
direito de levar o bebê para morrer em casa.

Apesar da grande mobilização internacional, com destaque para a


posição do presidente americano Donald Trump, que ofereceu a Charlie
um visto de residência permanente nos EUA para o tratamento, até o
momento em que escrevo o caso caminha para um desfecho trágico,
infame e ao mesmo tempo emblemático dos tempos em que vivemos,
representando não apenas o sacrifício de uma vida humana que uma
decisão monocrática considerou inviável, mas também o triunfo do
Estado contra o pátrio poder, fato que abre um precedente perturbador.

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The Charlie Gard case sets a grave precedent.


Could this pave the way for child…

The tragic case of Charlie Gard, an 11-month old


baby su ering from a rare genetic condition, has…
health.spectator.co.uk

A decisão da CEDH é o corolário macabro da longa trajetória européia


rumo ao suicídio civilizacional. Depois de séculos de descristianização,
materialismo e niilismo, e de mil e uma uma religiões seculares
substitutas nascidas do vácuo espiritual, o Velho Continente
barbarizou-se, fechando-se a toda transcendência e renegando o
princípio da sacralidade da vida humana que o Cristianismo tanto
lutara para instituir.

Engana-se quem pensa que, com o Holocausto, a Europa aprendera a


lição. Pois a lógica subjacente àquele terrível empreendimento persiste,
posto que diluída e transubstanciada em pérolas de boas intenções e
(ironia macabra!) defesa dos direitos humanos. Trata-se de uma lógica
implacável, sempre renascida onde quer que re ua a força
civilizacional responsável por contê-la. Não surgiu com os nazistas, e
não morreu com eles. É ela o tema deste artigo.

. . .

A lógica sacri cial

R ichard Dawkins, o famoso biólogo evolucionista, começou a militar


pelo ateísmo motivado por um profundo senso de horror que lhe
infundiu o terrorismo islâmico, notadamente o atentado às Torres
Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Embora, mais tarde, o autor tenha
deixado o Islam em segundo plano, preferindo centrar sua crítica na
tradição religiosa que lhe era mais familiar, a judaico-cristã, foi o
fundamentalismo dos seguidores de Maomé que o levou a optar por um
apaixonado ativismo anti-religioso e pela exibição pública do que o
próprio chamou de “orgulho ateu”, a versão dawkinsniana do orgulho
gay. Ao lado de autores como Sam Harris, Christopher Hitchens, Daniel
Dennet e Victor Stenger, Dawkins lançou o movimento político e
editorial conhecido como neo-ateísmo, um grito de guerra contra a
religião, que, contrariando as previsões das chamadas teorias da
secularização, parecia ter feito ali a sua reentrada no palco da história.

Dawkins, que gosta de se ver como racional, progressista e


cosmopolita, tem como anátema existencial arquetípico o

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fundamentalista islâmico, símbolo de uma mentalidade atrasada,


fanática e provinciana, capaz de comover o sujeito ao ponto da ação
mais extremista concebível, o terrorismo. O acadêmico de Oxford e o
terrorista do Estado Islâmico: não poderia haver dois tipos humanos
mais opostos, certo?

Nem tanto. Sob certa perspectiva, é o que tentarei mostrar, ambos


partilham de uma mesma cosmovisão, onipresente nos mais variados
contextos socioculturais e nas mais variadas épocas, e que teve sempre
no Cristianismo o seu maior (senão único) obstáculo. Trata-se de uma
lógica sacri cial, pela qual a lei do mais forte é consagrada, e pela qual
se admite, tácita ou abertamente, a eliminação de indivíduos humanos
tidos por mais fracos, incapazes ou desajustados, tudo em nome de
algum pretenso bem maior, usualmente manifesto em termos tão
abstratos quanto grandiloqüentes, senão mesmo piedosos.

A eugenia é a manifestação mais visível daquela lógica, e, não por


acaso, foi recentemente propagandeada pelos terroristas do Estado
Islâmico e por Richard Dawkins. Os primeiros lançaram uma fatwa
(decreto religioso) sancionando o assassinato de bebês com síndrome
de Down; o segundo, um tweet defendendo o aborto desses mesmos
bebês.

Em termos de sua capacidade de provocar repugnância, o tweet não


deixa nada a desejar à fatwa homicida. Em resposta a uma leitora que
falava num “dilema moral” caso se descobrisse grávida de um bebê
naquela condição, escreveu o darwinista com espantosa naturalidade:
“Aborte-o e tente de novo. Seria imoral trazê-lo ao mundo se você tem
uma escolha”.

Richard Dawkins
@RichardDawkins

Replying to @InYourFaceNYer
@InYourFaceNYer Abort it and try again. It would be
immoral to bring it into the world if you have the choice

Aqui, alguns leitores podem objetar haver uma grande diferença entre a
posição do Estado Islâmico e a de Dawkins, uma vez que aquela diz
respeito a bebês já nascidos, enquanto esta tem por objeto fetos no
útero materno. Mas, do ponto de vista da lógica sacri cial subjacente,
para a qual a condição humana torna-se mera questão de arbítrio dos
mais fortes (os já nascidos, os saudáveis, os bem adaptados etc.), a
distinção é insigni cante.

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Prova disso é a facilidade com que alguns acadêmicos passaram da


defesa do aborto à defesa do infanticídio (renomeado
eufemisticamente de “aborto pós-nascimento”), com base num
argumento de inegável coerência, a saber: o estatuto moral de um bebê
seria equivalente ao de um feto, carecendo ambos de propriedades que
lhes garantam o estatuto de pessoa, e que portanto justi quem o seu
direito à vida. Bebês e fetos não seriam pessoas atuais, senão apenas
potenciais, dizem os juízes da humanidade alheia, tipos como os
lósofos Alberto Giublini e Francesca Minerva, especialistas em
bioética e autores de um artigo intitulado “Aborto pós-nascimento: por
que o bebê deveria viver?”, publicado em março de 2012 no Journal of
Medical Ethics.

Década e meia antes, um “companheiro de viagem” de Dawkins na luta


por uma secularização completa da existência, e também ele um
adepto do mais radical naturalismo cientí co, já havia racionalizado o
infanticídio em termos semelhantes. Re ro-me ao psicólogo
cognitivista Steven Pinker, professor do MIT e membro honorário, por
assim dizer, do movimento neo-ateísta.

Em artigo publicado no New York Times em 02 de novembro de 1997,


Pinker tentava compreender a prática do infanticídio (ou neonaticídio,
como prefere) à luz do paradigma evolucionista, e sugeria uma certa
tolerância para com mães que decidem tirar a vida de seus lhos recém-
nascidos, fenômeno observado em várias culturas humanas de hoje e
de ontem. Segundo o autor, não deveríamos julgá-las com o mesmo
rigor que devotamos aos que matam seres humanos em estágios mais
avançados de desenvolvimento, porque, de novo, os recém-nascidos
não podem ser considerados pessoas no pleno sentido da palavra.

Segundo Pinker, alguns dos traços de nidores da pessoa humana


seriam a capacidade de re etir sobre si mesmo e perceber-se como
locus contínuo de consciência, fazer planos para o futuro, temer a
morte e manifestar a opção por não morrer. E, dada essa premissa, a
sua conclusão é a de que “os nossos imaturos neo-nascidos não têm
esses traços mais do que os ratos”.

Num trabalho posterior, o mesmo autor deixou muito clara a ética


implícita nessa visão estritamente materialista da realidade, para a qual
um feto ou um bebê humano não passam de “um punhado de células”,
isto é, pura matéria, nem mais nem menos signi cativa do que uma
pedra ou um pé de alface. Tratando a moral como uma espécie de
subproduto nocivo de uma cosmovisão judaico-cristã, Pinker postula

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que “o problema com o Homo Sapiens talvez não seja o de possuir


pouca moralidade, mas o de possuir muita”.

Em raciocínios como os de Pinker e Dawkins, podemos discernir a


precondição de todo projeto genocida: a desumanização e
dessubjetivação do outro, que passa a ser tido por mero objeto, com o
qual podemos manter uma relação de pura exterioridade e, portanto,
indiferença.

No fundo, a lógica sacri cial subjacente a esses posicionamentos


intelectuais, posto que elegantemente trajada, é a mesma que se pode
entrever nos seus mais andrajosos efeitos, a exemplo do que se viu
durante o genocídio de Ruanda. Nada poderia ser mais representativo
das eventuais consequências do uso gradual de um discurso de
desumanização do que esta descrição dada por um assassino hútu de
sua primeira vítima tútsi:

“Na verdade, só depois reparei que havia tirado a vida de um vizinho. Quer
dizer, no momento fatal, não o distingui pelo que ele fora antes, ataquei
alguém que não me era íntimo nem estranho. Ele já não era
propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente
encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as das pessoa que
eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado
desde muito tempo. Não sei se o senhor consegue me entender. Era um
reconhecimento, sem o conhecimento…”

UMA TEMPORADA DE FACOES

Durante a primavera de 1994, 800 mil tútsis foram


mortos a golpes de facão, em Ruanda. Numa roti…
www.livrariacultura.com.br

As vítimas dos discursos de Dawkins, Pinker et caterva, e das ações dos


terroristas do Estado Islâmico, também já não são vistas por eles como
“um vizinho”, “uma pessoa comum”, “como essas que a gente encontra
todo dia”. Uma vez suprimida a irredutibilidade de toda vida humana, e
ignorada a perspectiva cristã do amor ao próximo, o que sobra é o
poder em forma pura. Perde-se a “nitidez” sobre a humanidade alheia.
Já nada transcende a autoridade do mais forte. A misericórdia é
exilada.

. . .

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O Cristianismo e sua impertinente defesa dos


mais fracos

O elogio do sacrifício como sinônimo de vigor espiritual e meio de


fortalecimento da espécie, em contraste com uma alegada tibieza
do Cristianismo, para o qual cada vida humana singular é sagrada, vem
sendo uma constante na imaginação ocidental moderna. Alguns
intelectuais representativos da modernidade levaram sua ojeriza ao
Cristianismo ao ponto de se derreterem em elogios a religiões
teoricamente mais “fortes”, incluindo aí as variantes pagãs da
Antiguidade clássica e o próprio Islam.

Já no início do século XVI, por exemplo, Maquiavel escrevia em


Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Maquiavel, 1994:
199 — grifos meus):

“Quando se considera que os povos da antiguidade amavam a liberdade


mais do que os da nossa época, parece-me que a razão é a mesma que
explica por que hoje os homens são menos robustos — o que se relaciona, a
meu juízo, com a diferença entre a nossa educação e a dos antigos, e a
diferença, igualmente grande, entre a nossa religião e a dos antigos”.

E prosseguia, tecendo loas aos espalhafatosos sacrifícios das religiões


pagãs, cuja força estética o comovia:

“Com efeito, nossa religião, mostrando a verdade e o caminho único para a


salvação, diminuiu o valor das honras deste mundo. Os pagãos, pelo
contrário, que perseguiam a glória (considerada o bem supremo),
empenhavam-se com dedicação em tudo que lhes permitisse alcançá-la.
Vê-se indícios disto em muitas das antigas instituições, a começar pelos
sacrifícios, esplendorosos em comparação com os nossos, bastante
modestos, e cujo rito, mais piedoso do que brilhante, nada oferece de cruel
capaz de excitar a coragem”.

E ainda:

“A pompa das cerimônias antigas era igual à sua magni cência. Havia
sacrifícios bárbaros e sangrentos, nos quais muitos animais eram
degolados; e a visão reiterada de um espetáculo tão cruel endurecia os
homens. As religiões antigas, por outro lado, só atribuíam honras
divinas aos mortais tocados pela glória mundana, como os capitães
famosos, ou chefes de Estado. Nossa religião, ao contrário, só santi ca
os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida
ativa. Para ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do
mundo. Já os pagãos davam a máxima importância à grandeza d’alma,

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ao vigor do corpo, a tudo, en m, que contribuísse para tornar os homens


robustos e corajosos. Se a nossa religião nos recomenda hoje que sejamos
fortes, é para resistir aos males, e não para incitar-nos a grandes
empreendimentos. Parece que esta moral nova tornou os homens mais
fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados”.

Temos aí, antecipado, o tema da “moralidade de escravos”, pelo qual


Nietzsche descreveu celebremente o Cristianismo. Um tema que, antes
dele, e depois de Maquiavel, fora formulado também por Rousseau,
que escreveu em O Contrato Social (Rousseau, 1762[1834]: 156–157 —
grifos meus):

“O cristianismo é uma religião de todo espiritual, preocupada unicamente


com as coisas do céu. A pátria do cristão não é deste mundo. É certo que ele
cumpre o seu dever, mas fá-lo com uma profunda indiferença no que
concerne ao bom ou mau êxito de seus cuidados. Uma vez que nada se lhe
tenha a reprovar, a ele pouco importa irem as coisas bem ou mal aqui
embaixo. Se o Estado oresce, o cristão mal ousa desfrutar da felicidade
pública; ele receia orgulhar-se da glória de que goza o seu país; se o Estado
perece, ele abençoa a mão de Deus que se abate sobre o povo (…) O
cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é
bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com freqüência
dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos; e eles o
sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito
pouco preço aos seus olhos”.

Todos esses pensadores desprezaram o Cristianismo justo naquilo que


tem de sui generis, a saber, a sua capacidade de relativizar o poder
político mundano (erguido em última instância sobre a lei do mais
forte) e encará-lo sub specie aeternitatis, ou "do ponto-de-vista da
eternidade".

Sob certo aspecto, pode-se dizer que o processo de secularização no


Ocidente, de Maquiavel a Hobbes e Rousseau, de Hegel a Nietzsche,
passando por Marx e demais darwinistas sociais, tem consistido numa
permanente tentativa de eliminar a tensão cristã entre poder espiritual
e poder temporal (paradigmaticamente simbolizada por Agostinho no
binômio cidade de Deus vs. cidade dos homens), fazendo com que este
passe a englobar e absorver aquele. Dar o todo a César, inclusive a parte
que cabe a Deus: eis aí o resumo da história ocidental dos últimos 400
anos.

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Frontispício original de O Leviatã (1651): o monarca reunindo os poderes temporal (a espada) e


espiritual (o cetro)

Em O Leviatã, Thomas Hobbes foi muito explícito em sua rejeição da


tese agostiniana, por séculos consolidada:

“Governo espiritual e temporal são apenas palavras trazidas ao mundo


para confundir os homens, enganando-os quanto a seu soberano legítimo
(…) [N]esta vida, o único governo existente, seja ele do Estado ou da
Religião, é o governo temporal” (Hobbes, 2000: 328).

Rousseau reconhece sua dívida para com Hobbes, reprovando-o apenas


por não ter levado o raciocínio até o m, graças talvez a uma fé cristã
que o genebrino considerava residual e extemporânea:

“De todos os autores cristãos, o lósofo Hobbes é o único a ter enxergado a


doença e o remédio, o único a ter ousado propor a união das duas cabeças
da águia, e de tudo remeter à unidade política, sem a qual nenhum Estado
ou governo será jamais bem constituído. Mas ele deveria ter percebido que
o espírito dominante do Cristianismo era incompatível com o seu
sistema, e que o interesse do padre seria sempre mais forte que o do
Estado” (Rousseau 1762[1834]: 153 — grifos meus).

Mas o que Rousseau pareceu não notar à época é que a religião do


lósofo inglês já era uma versão, por assim dizer, secularizada (ou
imanentizada) do Cristianismo. Bem antes daquele, Hobbes percebera
o incômodo que o Cristianismo representava para a autoridade política
terrena. Em Do Cidadão, publicado nove anos antes de O Leviatã, já
questionava:

“O que pode ser mais pernicioso a qualquer Estado [commonwealth, no


original] do que ter seus cidadãos impedidos de obedecerem a seus
príncipes por medo de castigos eternos?” (Hobbes, 1998: 135).

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Com Nietzsche (que, ao lado de Dostoievski, foi um dos que melhor


percebeu as consequências de um mundo descristianizado), o desa o
cristão ao poder temporal é rejeitado de maneira dramática. Em A
Vontade de Poder, o lósofo faz uma defesa apaixonada da lógica
sacri cal pagã. A citação é longa, mas indispensável ao nosso tema:

“Pelo fato de que o cristianismo empurra para o primeiro plano a doutrina


do desinteresse e do amor, ele ainda não postulou, de modo algum, o
interesse da espécie como um valor mais alto do que o interesse individual.
Seu efeito propriamente histórico, a fatalidade do efeito, permanece, ao
contrário, justamente o incremento do egoísmo, do egoísmo individual até
um ponto extremo (até o ponto extremo da imortalidade individual). O
indivíduo isolado foi tomado, com o cristianismo, de modo tão
importante, posto de modo tão absoluto, que não se podia mais sacri cá-
lo: mas a espécie só existe por meio do sacrifício humano… Todas as
‘almas’ seriam iguais perante Deus: mas esta é justamente a mais perigosa
de todas as possíveis valorações! Equiparam-se os indivíduos, e assim põe-
se em dúvida a espécie, favorece-se uma práxis que chega a ser a ruína da
espécie: o cristianismo é o contraprincípio oposto à seleção. Se o
degenerado e doente (‘o cristão’) deve ter tanto valor quanto o saudável (‘o
pagão’), ou mesmo ainda mais, segundo o parecer de Pascal sobre saúde e
doença, então o curso natural de desenvolvimento acha-se invertido e a
não-natureza tornou-se lei… Esse amor universal aos homens é, na
prática, a prerrogativa de todos os sofredores, malsucedidos e
degenerados: ela, de fato, arruinou e amorteceu a força, a
responsabilidade, o alto dever de sacri car homens. Segundo o
esquema do critério de valor cristão, ainda restaria apenas sacri car-se a
si mesmo: mas esse resto de sacrifício humano, que o cristianismo
concedeu e ele mesmo aconselhou, não tem mais nenhum sentido, do ponto
de vista da cultura total. Para o crescimento da espécie é indiferente se um
indivíduo isolado qualquer se sacri ca a si mesmo (seja ao modo
monástico ascético ou com o auxílio de cruci cações, fogueiras e
cadafalsos, como ‘mártir’ do erro). A espécie tem necessidade do ocaso dos
falhados, fracos e degenerados: mas o cristianismo recorre justamente a
eles como potência conservadora, e esta faz aumentar ainda mais aquele
instinto dos fracos, em si mesmo já tão potente, de se pouparem, se
conservarem e de se manterem reciprocamente. O que é a ‘virtude’ e o
‘amor humano’ no cristianismo senão precisamente essa reciprocidade da
conservação, essa solidariedade dos fracos, esse impedimento à seleção? O
que é o altruísmo cristão senão o egoísmo das massas de fracos, o qual
adivinha que, se todos cuidarem uns dos outros, cada um se conservará o
máximo possível?… Se não se sente uma tal mentalidade como uma
extrema imoralidade, como um crime contra a vida, é porque se pertence à
parte doente e se possuem os seus instintos… O autêntico amor humano

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exige o sacrifício para o máximo bem da espécie — ele é duro, ele é uma
plena autossuperação, pois precisa do sacrifício humano. E esta pseudo-
humanidade, que se chama cristianismo, quer justamente conseguir
que ninguém seja sacri cado…” (Nietzsche, 2008: 145–146 — grifos
meus).

Sabemos bem as terríveis consequências que, dali a algumas décadas,


esse elogio do sacrifício e da “vitalidade” pagã teriam na terra natal de
Nietzsche. E, se talvez seja injusto atribuir ao lósofo a
responsabilidade direta pelo genocídio, é inegável que esse tipo de
texto nos ajuda a compreender todo o horror nazista. Como argumenta
René Girard: “Se existe uma essência espiritual do movimento, ela é
expressa por Nietzsche” (Girard, 2012: 248).

Com efeito, Adolf Hitler manifestou em relação ao Cristianismo o


mesmíssimo desprezo de Nietzsche, Rousseau e Maquiavel. E só mesmo
uma ignorância histórica monstruosa pode levar alguns ateus
contemporâneos a atribuir à suposta fé cristã do líder nazista a culpa
pelo Holocausto. Para notá-lo, basta ler estas suas declarações, que
Albert Speer, ex-ministro do armamento do Reich, transcreveu no seu
livro de memórias:

“Veja você que o nosso azar foi ter a religião errada. Por que não tivemos a
religião dos japoneses, que consideram o sacrifício pela pátria como o bem
supremo? Também a religião maometana nos seria muito mais compatível
do que o Cristianismo. Por que tinha de ser o Cristianismo, com sua
humildade e frouxidão?” (Hitler citado por Albert Speer, 1970: 96).

Traudl Junge, a última secretária pessoal do füher, também registrou


esse seu pendor sacri cial, nietzscheano e anti-cristão:

“Às vezes tínhamos interessantes discussões sobre a igreja e o


desenvolvimento da raça humana. Na verdade, chamá-las de discussões é
um exagero, porque ele começava a explicar sua ideias quando um de nós
fazia alguma pergunta ou comentário, e apenas ouvíamos. Ele não era
membro de nenhuma igreja, e achava que as religiões cristãs eram
instituições ultrapassadas e hipócritas, que atraíam as pessoas como uma
isca. Sua religião eram as leis da natureza. O seu dogma de violência
combinava mais com a natureza do que com a doutrina cristã do amor ao
próximo e ao inimigo. ‘A ciência ainda não é clara sobre as origens da
humanidade’, disse certa vez. ‘Estamos provavelmente no estágio mais
avançado de algum mamífero que, evoluindo a partir dos répteis,
prosseguiu até os seres humanos, talvez via os macacos. Somos parte da
criação e lhos da natureza, e as mesmas leis se aplicam a nós bem como a

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todas as criaturas vivas. Na natureza, a lei da luta pela sobrevivência se


impôs desde o início. Tudo o que é mal-adaptado à vida, tudo o que é fraco,
é eliminado. Apenas a humanidade, e sobretudo as igrejas, dedicaram-se a
manter vivos os fracos, os mal-adaptados, as pessoas de uma espécie
inferior” (Junge 2004: 108).

A bem da verdade, não se trata aí de nenhuma idiossincrasia nazista.


Entre meados do século XIX e meados do século XX, a idéia de que o
princípio darwinista da seleção natural deveria ser diretamente
transposto para a esfera da política e da sociedade era moeda corrente
entre o público letrado europeu, repercutindo também nos EUA e em
outras partes do mundo.

. . .

O Julgamento do Macaco

P ara que o leitor tenha uma noção do senso comum cientí co e


intelectual da época, basta pegar o exemplo de um livro
amplamente utilizado nas escolas americanas na década de 1920 para
o ensino da biologia: A Civic Biology, de George William Hunter. Nele,
os alunos podiam ler explicações como esta:

“Se a linhagem de animais domésticos pode ser aprimorada, não é injusto


perguntar se a saúde e o vigor das futuras gerações de homens e mulheres
na terra não poderia ser aprimorada aplicando-se a elas as leis da seleção
natural (…) Quando as pessoas se casam, há certas coisas que o
indivíduo, bem como a espécie, deveriam exigir. A mais importante delas é
a proteção contra doenças microbianas potencialmente transmissíveis aos
descendentes (…) A ciência do bem nascer chama-se eugenia”.

Em determinado trecho do livro, o autor discute o famigerado caso das


famílias Jukes e Kallikaks, exemplos canônicos citados pelos adeptos do
darwinismo social. Os Jukes, família nova-iorquina estudada por
Richard L. Dugdale em 1877, haviam sido convertidos em símbolo da
criminalidade hereditária, enquanto os Kallikaks, pesquisados por
Henry H. Goddard em 1912, exempli cavam o caráter herdado do
retardamento mental. Em uma seção intitulada “parasitismo e seu
custo para a sociedade”, Hunter escreve:

“Centenas de famílias tais como as descritas acima [i. e., os Jukes e os


Kallikaks] existem hoje, espalhando doenças, imoralidade, e crime por
todo o país. O custo dessas famílias para a sociedade é muito alto. Assim
como certos animais e plantas tornam-se parasitas de outros, essas

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famílias tornaram-se parasitas da sociedade. Não apenas fazem mal aos


outros corrompendo, roubando ou espalhando doenças, mas também são
protegidas e cuidadas pelo Estado com dinheiro público. Os abrigos e asilos
existem sobretudo para elas. Tiram da sociedade, mas nada dão em troca.
São verdadeiros parasitas. Se essas pessoas fossem animais inferiores,
provavelmente as mataríamos e impediríamos de procriar. A humanidade
não permite tal coisa, mas temos a solução de separar os sexos em asilos e
outro locais, prevenido de várias formas o casamento e as possibilidades de
perpetuação dessa raça tão inferior e degenerada. Soluções do tipo têm
sido testadas com sucesso na Europa, e agora também em nosso país”.

A civic biology, presented in problems : Hunter,


George William, 1873-1948 : Free Download …

List of reference books follow most of the


chapters
archive.org

O livro de Hunter foi um dos ingredientes do famoso “Julgamento do


Macaco”, ou “caso Scopes”, em que, no ano de 1925, o professor de
ciências John T. Scopes foi levado a julgamento por ensinar a teoria da
evolução em uma escola secundária na cidade de Dayton (Tennessee).
Suas aulas eram integralmente baseadas no livro A Civic Biology.

O Julgamento do Macaco foi consagrado em versão romantizada na


peça O vento será tua herança (Inherit the Wind), escrita por Jerome
Lawrence e Robert Edwin Lee, e estrelada na Broadway em 1955. Em
1960, a peça virou um lme de mesmo nome nas mãos do diretor
Stanley Kramer. As versões da Broadway e de Hollywood serviram para
difundir um retrato tipicamente iluminista da história, como se tudo
não fora mais que uma batalha entre o obscurantismo religioso e as
luzes da ciência. O script da peça passou a ser adotado como descrição
real dos eventos, e o lme chegou a ser exibido em aulas de história em
diversas escolas norte-americanas, difundindo entre os alunos o mito
de uma vitória moral da razão sobre a fé, numa espécie de reedição do
julgamento de Galileu Galilei.

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Cena de O Vento Será Tua Herança (S. Kramer, 1960)

O caso tornou-se emblemático muito por conta da participação de duas


grandes personalidades nacionais da época. Na verdade, três. As duas
primeiras foram o advogado criminalista Clarence Darrow, um
agnóstico, pelo lado da defesa; e o advogado aposentado, ex-candidato
à presidência da República e ex-secretário de Estado William Jennings
Bryan, um cristão combativo, pelo lado da acusação.

A notícia da participação de Darrow e Bryan fez da pequena cidade de


Dayton, até então isolada e perdida no meio das montanhas
Cumberland, um verdadeiro circo midiático. O Julgamento do Macaco
foi o primeiro da história norte-americana a ser transmitido ao vivo
pelo rádio, transmissão que cou a cargo de uma rádio de Chicago, a
WGN. No sufocante verão de 1925, um dos mais quentes das últimas
décadas, centenas de turistas, incluindo repórteres, cronistas,
advogados e curiosos, lotaram as ruas da cidade e apinharam-se no
Hotel Acqua, então o único grande hotel de Dayton. Por toda a parte,
foram montadas barracas de cachorro-quente e limonada. Souvenires
também eram vendidos, como bíblias e macacos de pelúcia. Enquanto
durou o julgamento, Joe Mendi, um elegante chimpanzé proveniente
de Nova York, trajando colete, terno e chapéu, era visto na cidade de
mãos dadas com sua tratadora.

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Joe Mendi (Dayton, 14 de dezembro de 1925)

A terceira personalidade a in uenciar na repercussão do caso foi o


jornalista, escritor e crítico literário Henry Louis Mencken, do
Baltimore Sun, pioneiro na construção da mitologia em torno do caso
Scopes.

O ateu H. L. Mencken, admirador de Voltaire e Diderot, grande


divulgador de Nietzsche para o público americano, foi quem cunhou e
ajudou a difundir o epíteto “Julgamento do Macaco”. Foi quem,
sobretudo, primeiro retratou o caso como uma batalha épica entre a
religião e a ciência, encarnadas, respectivamente, nas guras titânicas
de Bryan e Darrow. Graças à sua ágil máquina de escrever, a opinião
pública viu a alma da América, como nos tempos de Abraham Lincoln,
cindir-se novamente em duas metades, cada qual representada por
Bryan e Darrow, numa verdadeira guerra de secessão ideológica. A
metade de Bryan era o “deep south”, rural, conservador, religioso e
patriota; a de Darrow, o norte industrializado, urbano, progressista,
secular e europeizado.

Mencken, é claro, pertencia à metade de Darrow, tendo sido


extremamente mordaz em suas críticas ao universo sulista, que

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costumava chamar de “um deserto cultural”. Era um iluminista, que


acreditava piamente na existência de um abismo intransponível entre
uma minoria de homens educados e cultos como ele, membros de uma
restrita elite intelectual, e a grande massa de pessoas comuns,
ignorantes e brutalizadas, que compunham o grosso da humanidade.
Uma de suas primeiras crônicas sobre o caso, denunciando o “atraso”
da mentalidade sulista, tinha o signi cativo título de Homo
Neanderthalensis.

H. L. Mencken (1880–1956)

Seus textos sobre W. J. Bryan eram particularmente cruéis, e nem


mesmo a morte deste, ocorrida cinco dias após o m do julgamento, fez
com que abrandasse o tom. Em 27 de junho de 1925, por exemplo, dia
seguinte ao falecimento, Mencken publicava no Baltimore Sun um dos
necrológios mais amargos de que se tem notícia:

“Bryan foi um homem comum e vulgar, um grosseirão em estado puro. Era


ignorante, fanático, egocêntrico histriônico e desonesto. Sua carreira
permitiu-lhe conhecer os grandes homens de seu tempo, mas ele preferiu a
companhia dos rústicos e dos ignaros. Era difícil de acreditar, observando-
o em Dayton, que tivesse viajado, sido recebido em sociedades civilizadas,
ocupado altos cargos públicos. Parecia apenas mais um obtuso, como os
que o cercavam, iludido por uma teologia infantil, prenhe de um ódio
quase patológico pelo conhecimento, pela dignidade humana, por todas as
coisas belas e nobres. Era um camponês lidando com seus montes de
estrume. Imaginem um cavalheiro e terão imaginado tudo o que ele não
foi” (Mencken 1925).

Graças à cobertura nada imparcial de Mencken e demais jornalistas (a


maioria dos quais provenientes de grandes centros urbanos como
Chicago e Nova York), o julgamento foi retratado como uma vitória

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acachapante de Darrow sobre Bryan. Na realidade, contudo, nem


aquele era o gênio iluminista que teria reduzido a visão religiosa a pó,
nem este, um fanático opositor da ciência e da razão. Como se
depreende do conteúdo do livro usado por Scopes, e das opiniões
intelectuais que vimos até aqui, Bryan tinha bons motivos para se
preocupar com o tipo de evolucionismo que estava sendo transmitido
aos alunos norte-americanos na época.

. . .

Eugenia: a Ersatzreligion dos intelectuais e cientistas

As primeiras décadas do século XX assistiram à emergência do


darwinismo social e da eugenia, duas ideologias amplamente
aceitas pelo beautiful people da época, como hoje, por exemplo, é o mito
do aquecimento global antropogênico ou a ideologia de gênero. Quem
quer que, a exemplo de Bryan, ousasse alertar sobre os seus efeitos
nocivos, era imediatamente tachado de obscurantista, ignorante e
reacionário. As opiniões então tidas por progressistas e sexy pelas
classes falantes euroamericanas eram as de homens como Mencken,
um racista e entusiasta da eugenia, aplaudido nos círculos elegantes
por escrever coisas como esta:

“Admito prontamente que, mediante a reprodução cuidadosa, a


supervisão do ambiente e a educação, talvez seja possível, ao longo de
muitas gerações, aprimorar consideravelmente a linhagem do negro
americano, por exemplo. Mas devo insistir que isso seria um risível
dispêndio de energia, pois há uma linhagem branca superior à disposição,
e é inconcebível que a linhagem negra, não obstante o quão
cuidadosamente cultivada, possa algum dia lhe fazer frente. O negro
educado de hoje é um fracasso, não por enfrentar di culdades insuperáveis
na vida, mas por ser negro. Ele é, em suma, um homem inferior por
nascimento, e permanecerá inerte e ine ciente até que cinquenta gerações
suas tenham vivido na civilização. E, ainda assim, a raça branca superior
estará cinquenta gerações à frente” (Mencken, 1910: 29–30).

Outro importante intelectual progressista da época a também militar


pela eugenia foi George Bernard Shaw, um dos pais do socialismo
fabiano (sim, a coisa existe, e não se confunde com ofensas
proclamadas por ignorantes de rede social). Shaw chegou a ir além do
autor de A Civic Biology, não esboçando sequer um resquício de pudor
ao sugerir a eliminação de “parasitas” sociais. Se aquele ainda zera a
ressalva de que “a humanidade não permitiria certas práticas”, Shaw
não hesitou em manifestar a mais crua lógica sacri cial.

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Graças aos seus posicionamentos durante a Primeira Guerra, Shaw


adquiriu fama de paci sta, arauto das liberdades individuais contra os
abusos do poder estatal. Nada poderia ser mais falso. Para notá-lo,
basta ir às fontes, e consultar os escritos do socialista britânico. Como o
prefácio à sua peça On the Rocks, de 1933, onde alegava que o princípio
da sacralidade da vida humana (supostamente desacreditado pela
teoria de Darwin) era um absurdo do ponto de vista do socialismo
legítimo. Acha-se no texto um apelo aberto à idéia do extermínio
“cientí co” de vidas humanas, um programa de engenharia social já
amplamente utilizado pelo regime soviético, que contava então com a
simpatia de Shaw (à época, é bom lembrar, o nacional-socialismo
recém iniciara sua ascensão política na Alemanha):

“Nesta peça, um chefe de polícia faz referência à necessidade política de


matar pessoas: uma necessidade tão perturbadora para o político, e tão
aterrorizante para o cidadão comum, que ninguém, além de mim (até
onde sei), ousou examiná-la diretamente em seus próprios termos, embora
todo governo se veja obrigado a pô-la em prática numa escala que varia da
execução de um único homicida ao extermínio de milhões de inocentes.
Embora concordando com esses procedimentos, e mesmo aclamando-os e
celebrando-os, não ousamos dizer a nós mesmos o que estamos fazendo, ou
por que; e então chamamo-nos de justiça, ou pena capital, ou dever para
com o rei e a nação, ou algum outro disfarce verbal conveniente para o
que, instintivamente, reputamos como um trabalho sujo. Essas evasões
infantis são revoltantes. Devemos remover o disfarce e descobrir o que
realmente está por trás disso tudo. O extermínio deve ser feito em bases
cientí cas, se se pretende conduzi-lo humana, apologética e plenamente”
(Shaw 1934[1986]: 142–143).

Em outra ocasião, num discurso público, Shaw tornou a fazer


comentários sobre o que chamava de parasitas sociais, membros da
burguesia europeia. Um registro lmado do discurso encontra-se no
documentário The Soviet Story (2008), do diretor letão Edvīns Šnore,
onde ouvimos:

“Todos devem conhecer no mínimo um punhado de pessoas sem utilidade


neste mundo, que trazem mais problemas do que benefícios. Convém
agrupá-las e dizer: ‘Meu senhor (ou minha senhora), você é capaz de
justi car sua existência? Se não for capaz, se não estiver se esforçando, se
não produz tanto quanto consome (…) logo, certamente, não podemos
usar a vasta organização de nossa sociedade para mantê-lo vivo, porque a
sua vida não nos bene cia, e não deve mesmo ser de grande valia nem
para você”.

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Em entrevista ao jornal The Listener, em fevereiro de 1934, o socialista


britânico fazia um apelo “humanitário” nada menos que macabro: “Eu
rogo aos químicos que descubram um gás humano — mortal, decerto,
mas humano, não cruel”. Acreditava que essa tecnologia mortífera viria
a ser útil em caso de guerra. E, mesmo na ausência desta, “daremos-lhe
algum uso em nossa sociedade” — dizia (cf. Watson 1998: 88). Como se
sabe, o apelo seria atendido: dali a alguns anos, os nazistas
começariam a utilizar o Zyklon B nos campos de concentração.

Para Shaw, a eugenia era parte integral do projeto socialista: “O único


socialismo possível e fundamental é a socialização da procriação
seletiva do Homem” (Shaw 2001: 245). Nesse sentido, defendia a
abolição do casamento tradicional e sua substituição por uma
poligamia eugenicamente favorável, dirigida por um “Departamento
Estatal de Evolução” (ibid.), sob os auspícios de uma nova “religião
eugênica”. Shaw chegava a propor o desenvolvimento de uma “fazenda
de criação humana” (ibid. p. 246), de modo a “eliminar os caipiras cujo
voto enfraquecia a commonwealth” (ibid. p. 245). O Estado deveria ser
rme na política referente aos elementos criminosos e geneticamente
indesejáveis da sociedade. “Com muitos pedidos de desculpas e
expressões de simpatia, assim como alguma generosidade na satisfação
de seus últimos desejos”, dizia Shaw com sarcástica morbidez,
“deveríamos colocá-los nas câmaras letais e livrarmo-nos deles” (Shaw
2001b: 47).

Convém sublinhar que, ao falar em “religião eugênica”, Bernard Shaw


não está propondo uma alegoria. Desde a sua origem, a eugenia foi
concebida como Ersatzreligion, ou seja, uma religião alternativa que

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deveria substituir a religião tradicional européia, o Cristianismo.


Francis Galton, seu idealizador, a rmou explicitamente ser preciso
introduzi-la “como uma nova religião” (Galton 1909: 42).

Galton cunhou o termo em 1883, no livro Inquiries into Human Faculty,


volume que reproduzia um ensaio de 1872 intitulado “Estatistical
Inquiries into the E cacy of Prayer” (Galton 1883: 277–294). Nele,
Galton concluía (de modo análogo a alguns ateus contemporâneos)
que as preces religiosas não eram atendidas, e que, objetivamente, em
nada in uenciavam a saúde das pessoas. Para ele, a fé cristã na prece
não passava de superstição, uma espécie de feitiçaria.

Todavia, em sendo cético quanto ao conteúdo da mensagem religiosa,


Galton acreditava, por assim dizer, na função social e utilidade política
da religião. Nesse sentido um herdeiro intelectual de Maquiavel,
Hobbes e Rousseau, julgava que a ciência da eugenia poderia servir de
nova fé secular, ou religião civil, a redimir e puri car o homem do
século XX. Em suas palavras, ela viria a ser “a doutrina religiosa
ortodoxa do futuro”, um “dogma religioso para a humanidade” (Galton
1904: 2–5).

Galton destacava a importância do proselitismo nessa matéria,


chegando a falar em “jihad ou guerra santa” contra “os costumes e
preconceitos” que pudessem “debilitar as qualidades físicas e morais da
nossa raça” (Galton 1909: 99). E também exaltava a força da nova
religião: “Em suma, a eugenia é um credo viril, prenhe de esperança e
apelo aos mais nobres sentimentos de nossa natureza” (ibid. p. 70 —
grifos meus).

Em 1904, ele proferiu uma célebre palestra na Sociological Society, na


qual estiveram presentes proeminentes intelectuais da Europa, dos
mais variados campos do conhecimento. A in uência de sua pregação
foi ampla e profunda. F. C. S. Schiller, por exemplo, passou a advogar o
que chamou de “eugenia positiva”, declarando ser uma vontade de
Deus que nos esforçássemos para dar prosseguimento à evolução. O
prestigiado médico Robert Reid Rentoul a rmou ser um dever cristão
agir como representantes de Deus na boa criação humana (cf. Childs
2001: 3–4). O casal de cientistas William e Catherine Whetham
adaptou a linguagem do Novo Testamento à defesa da eugenia: “Não
somos apenas os protetores dos nossos irmãos, mas também os
guardiões das características físicas, mentais e morais de seus mais
remotos descendentes” (apud. Childs 2001: 3). Julien Huxley também
anunciava o estatuto sagrado da eugenia: “Quando forem apreendidas

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as implicações da biologia evolutiva, a eugenia fatalmente será parte da


religião do futuro” (ibid. p. 4).

Do outro lado do Atlântico as coisas iam no mesmo sentido. Segundo


Albert E. Wiggan, presidente da Sociedade Americana de Eugenia, o
mandamento supremo da ciência deveria ser: “Faça pelos nascidos e
não-nascidos o que você gostaria que os nascidos e não-nascidos
zessem por você”. Em seu Novo Decálogo da Ciência, uma obra
perfeitamente gnóstica, Wiggan sustentava a idéia de que um código
moral exigia não apenas fé, mas conhecimento evolucionista. Dizia que
a ciência evolutiva não apenas propunha novos mandamentos, mas
também uma técnica para pôr em prática os antigos (Wiggan 1922:
643). De modo análogo, Irving Fisher, antecessor de Wiggan na
presidência daquela instituição, pretendia fazer da eugenia “o grande
pilar da igreja” (Fisher 1913: 582). Em seu livro Eugenics as a Religion,
um dos principais líderes do movimento eugenista norte-americano,
Charles Davenport, formulou uma espécie de “credo dos apóstolos” da
eugenia, em que se lê: “Creio ser o mandatário do germoplasma que
carrego” (cf. Rosen 2004: 93–94).

. . .

O sentido metafísico e psicológico do darwinismo

C omentando sobre o anti-evolucionismo de William Jennings Bryan,


e após recapitular a sua atuação durante o Julgamento do Macaco,
o paleontólogo evolucionista Stephen Jay Gould observa, um tanto
quanto consternado:

“Eu gostaria de poder parar por aqui, com um comentário sarcástico sobre
a rusticidade de Bryan e uma defesa da interpretação cientí ca adequada
do darwinismo. Mas esse juízo desdenhoso seria injusto, porque Bryan não
pode ser condenado quanto a um aspecto crucial. Só Deus sabe o quão
pouco ele entendia de ciência, e a sua lógica argumentativa não era lá
grande coisa. Mas, quando dizia que o darwinismo vinha sendo usado
para a defesa da guerra, da dominação e da exploração, ele estava certo”
(Gould 1999: 163).

Gould também está certo quanto a isso. Ao longo de seu texto, todavia,
ele procura incessantemente dissociar a legítima teoria darwinista dos
maus usos que dela zeram os ideólogos do darwinismo social e da
eugenia. Se Bryan tinha razão quanto às conseqüências nefastas do
fenômeno, sugere Gould, errava ao responsabilizar a teoria em si. “O

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criador de uma ideia não pode ser responsabilizado pelos usos odiosos
de sua teoria” (ibid. p. 162).

De fato. Mas, no caso em questão, a separação asséptica entre uma


teoria biológica “pura” e a ideologia que ela suscitou não é tão simples
de sustentar. Antes de tudo, o darwinismo social é anterior à teoria de
Darwin, mesmo que, evidentemente, ainda não tivesse esse nome. A
expressão “sobrevivência do mais apto”, por exemplo, foi cunhada por
Herbert Spencer em 1884. Mas já em 1850, portanto quase dez anos
antes da publicação de A Origem das Espécies, o mesmo autor sintetizara
no livro Estática Social os fundamentos da ideologia evolucionista, que
formava o pano de fundo pré-cientí co (ou “pré-analítico”, como
preferiria J. A. Schumpeter) da teoria da evolução das espécies.

Em segundo lugar, a rapidez com que a hipótese da seleção natural foi


convertida em uma série de planos de engenharia social deveria ser
su ciente para, ao menos, levantar a suspeita de haver algo de político-
ideológico já na própria estrutura interna da teoria. E, de fato, as
primeiras elaborações culturais do modelo da seleção natural (como o
racismo cientí co) não surgiram de discípulos in éis ou intérpretes
leigos, mas de alguns dos colaboradores mais próximos a Darwin,
como, por exemplo, o próprio Galton, Ernest Haeckel e Thomas Huxley,
para quem “nenhum homem racional, conhecendo os fatos, pode crer
que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem
branco” (Huxley 1870[2007]: 29).

O próprio Darwin tinha plena consciência das relações entre a sua


hipótese cientí ca e os seus possíveis usos políticos. Em A Descendência
do Homem, publicado depois de A Origem das Espécies, ele comenta
sobre o assunto:

“Algumas observações devem ser feitas sobre a ação da seleção natural


sobre as nações civilizadas. Esse tema foi adequadamente discutido pelos
Sr. W. R. Greg, e antes pelos Srs. Wallace e Galton. A maior parte dos meus
comentários derivam desses três autores. Com os selvagens, os fracos de
corpo e de alma são logo eliminados; os que sobrevivem costumam exibir
um estado vigoroso de saúde. Nós, civilizados, por outro lado, fazemos o
máximo para conter o processo de eliminação; construímos asilos para os
loucos, os mutilados e os doentes; instituímos políticas para os mais
pobres; e nossos médicos exercem toda a sua habilidade para salvar a vida
de todos até o último momento. Há razão para crer que a vacinação
preservou milhares de pessoas, que de outro modo teriam sucumbido à
varíola graças à sua débil constituição. Assim, os elementos mais fracos
das sociedades civilizadas podem ainda propagar a sua espécie. Ninguém

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que conheça o processo de criação de animais terá dúvidas do quão


pernicioso isso será para a raça humana. É surpreendente a rapidez com
que a falta de atenção, ou a atenção mal dirigida, pode levar à
degeneração de uma raça doméstica; mas, excetuando o caso do próprio
homem, ninguém seria tão ignorante a ponto de permitir que os piores
animais procriassem” (Darwin 1871[2009]: 114).

Em linhas gerais, o famoso naturalista concordava com a tese de seu


primo, como ca claro em outra passagem do mesmo livro:

“Sabemos hoje, graças aos admiráveis esforços do Sr. Galton, que o gênio,
que implica uma combinação espantosamente complexa de altas
faculdades, tende a ser herdado; e que, por outro lado, também é certo que
a insanidade e a deterioração mental também se transmite nas mesmas
famílias” (ibid. p. 24).

E também:

“Em algum momento futuro, não tão distante para ser medido em séculos,
as raças humanas civilizadas irão certamente exterminar e substituir as
raças selvagens por todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos
antropomorfos (…) serão sem dúvida exterminados. O hiato se tornará
maior, pois se dará entre o homem em um estado mais civilizado (espera-
se) que o caucasiano e algum símio inferior como o babuíno, em vez do que
se dá agora, entre o negro ou o australiano e o gorila” (ibid. p. 133–134).

É digno de nota a naturalidade com que, nos meios cultos europeus da


virada do século XIX para o XX, sobretudo entre progressistas,
evolucionistas e anti-cristãos, o problema das "raças inferiores" era
levantado. Dez anos antes da publicação de A Origem das Espécies, Marx
e Engels (Engels 1849[1961]: 172) sugeriam o “extermínio total” de
povos tidos por reacionários, a exemplo dos eslavos, a quem os pais do
comunismo atribuíam o rótulo de “lixo racial” (Völkerabfälle). A
expressão original em alemão que aqui traduzo por “extermínio total” é
gänzlichen Vertilgung, sendo que este último termo, um substantivo
feminino, costuma ser usado para designar o extermínio de pragas,
insetos, parasitas (lembrando que os nazistas se referiam aos judeus
como "ratos" e "piolhos", e que os hútus chamavam os tútsis de
"baratas").

Percebe-se que a teoria da evolução das espécies é, desde a origem, um


híbrido de ciência e política. A pureza que lhe atribuiu Stephen Jay
Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior, uma criação
ideológica ex post facto. Apesar de seus méritos cientí cos inegáveis, a

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teoria cou consagrada menos por isso do que por sua metafísica
subjacente, que, negando o sentido transcendente da vida humana,
opunha-se essencialmente à cosmovisão judaico-cristã. Essa metafísica,
por sua vez, revelou-se bem atrativa em termos psicológicos.

Em 1838, vinte e um anos antes de publicar sua teoria, Darwin já


expressara suas motivações ideológicas, que consistiam em combater a
arrogância da concepção mosaica do homem: "Em sua arrogância, o
homem vê-se como uma grande obra, digna da intervenção de uma
divindade. Mais humilde, eu creio mais verdadeiro considerá-lo como
surgido dos animais (apud. Rachels 1999: 1).

É comum vermos na televisão, ou lermos em jornais e revistas, a


repetitiva arenga de 'especialistas' acerca das supostas razões
psicológicas da crença religiosa. Desde a explicação marxista da
religião como "o ópio do povo", ou seja, uma espécie de escapismo ou
compensação emocional diante da dura realidade da existência (algo
como a cola de sapateiro cheirada pelos meninos de rua nos grandes
centros urbanos), passando pela concepção freudiana da religião como
"ilusão reconfortante" (a tentativa humana de reconstituir
simbolicamente os laços com a natureza, necessariamente rompidos
para a instituição traumática da cultura), uma série de interpretações
análogas foram propostas. A tônica geral desse tipo de análise pode ser
resumida na a rmação do ateísta francês Michel Onfray, segundo a
qual os religiosos "preferem os confortáveis contos de fada da infância
do que a dura e cruel realidade dos adultos". Os adeptos da fé religiosa
seriam reféns, ainda segundo o autor, de um "perpétuo infantilismo
mental" (Onfray 2007: 1).

Mais difícil é toparmos com análises sobre as motivações psicológicas da


descrença. Para justi car esta lacuna, não se pode alegar a ausência de
dados. Quem quer que se dedique a escarafunchar os escritos de
intelectuais céticos, ateus ou agnósticos não tardará em encontrar
pistas nesse sentido. O já citado H. L. Mencken, por exemplo, escreveu
certa vez sobre a possibilidade da vida após a morte: "A minha
inclinação privada é torcer para que não haja" (apud. Joshi 2002: 38 —
grifos meus). O lósofo Thomas Nagel reconheceu padecer do que
chamou de "medo da religião". Em suas palavras: "Eu anseio para que o
ateísmo seja verdadeiro (…) Não é simplesmente que eu não acredite
em Deus (…) Eu não quero que haja um Deus; eu não quero que o
universo seja desse jeito" (Nagel 1997: 130 — grifos meus).

Com efeito, muitos se interessaram pelo darwinismo por verem nele o


pretenso carrasco da idéia cristã de uma natureza humana superior.

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Como se sabe, Freud costumava dizer que a publicação de A Origem das


Espécies tinha sido, após a revolução copernicana, o segundo grande
abalo na auto-imagem narcísica da espécie humana. Nesse sentido, o
evolucionismo vinha ao encontro de um sentimento generalizado na
intelectualidade européia, um desejo de dessacralização e emancipação
da vida humana em face da autoridade divina. Julien Huxley, neto de
Thomas Huxley, confessou: “É enorme a sensação de alívio espiritual
advindo da rejeição da idéia de Deus” (Huxley 1992: 219). E seu irmão,
o grande romancista Aldous Huxley, formulou a coisa em termos mais
hedonistas:

“Eu tinha motivos para não querer que o mundo tivesse sentido;
consequentemente, eu presumi que não tinha, e pude sem di culdade
achar motivos satisfatórios para essa presunção (…) Para mim, e sem
dúvida para a maioria de meus contemporâneos, a loso a do não-
sentido era essencialmente um instrumento de libertação. Queríamos nos
livrar de um certo sistema de moralidade. Contrapunhamo-nos à
moralidade porque ela interferia em nossa liberdade sexual” (Huxley
1969: 270–273).

Compreende-se, assim, o signi cado do darwinismo para pessoas com


esse tipo de expectativas, desejos e temores. Como nota o matemático
David Berlinski, crítico mordaz do neo-ateísmo de inspiração
darwinista, o prognóstico dostoievskiano "se Deus não existe, tudo é
permitido" adquiriu força por ter se tornado parte de um silogismo
muito presente na visão de mundo cienti cista-materialista: se Deus
não existe, tudo é permitido; se a ciência (darwinista) é verdadeira,
logo, Deus não existe; se a ciência é verdadeira, logo, tudo é permitido
(cf. Berlinski 2008: 20).

. . .

Cálicles Cruci cado

T odos os intelectuais e políticos examinados até aqui desejavam uma


mesma e única coisa: uma religião política, que, solapando as bases
judaico-cristãs da civilização ocidental, postulasse o poder terreno
como absoluto, insubmisso a qualquer autoridade transcendente.

Nesse clima de opinião, muitos chegaram a demonstrar simpatia pelo


Islam, religião política por excelência, como bem observaram David
Horowitz e Robert Spencer. Ignorando a clássica separação ocidental
(inexoravelmente cristã) entre religião e política, os líderes religiosos
islâmicos, desde Maomé, são também líderes políticos e militares. São,

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em suma, guras de autoridade que, para lembrarmos Rousseau,


"reúnem as duas cabeças da águia". Como explica V. S. Naipaul: “O
Islam não é apenas uma questão de consciência ou de fé privada. Ele
faz demandas imperiais”.

Foi sem dúvida esse aspecto do Islam que seduziu sir Bernard Shaw,
que, entrevistado por um xeique su em 1935, observou:

“Eu sempre tive a religião de Maomé em alta estima, graças à sua


extraordinária vitalidade (…) Eu o tenho estudado — aquele homem
maravilhoso — e, na minha opinião, longe de ser um anti-Cristo, ele deve
ser chamado de o salvador da humanidade. Acredito que se um homem
como ele tivesse de assumir a ditadura do mundo moderno, seria bem
sucedido em resolver os problemas de um modo capaz de trazer paz e
felicidade (…) A Europa deste século está bem mais avançada. Começa a
se enamorar pelo credo de Maomé" (George Bernard Shaw, The Genuine
Islam, vol. 1, nº8, 1936).

O apreço pela ditadura não é fortuito. Entediado pela inação das


democracias parlamentares européias, o socialista fabiano costumava
louvar o poder realizador das ditaduras, como quando, em visita aos
EUA no ano de 1933, interpelou a audiência:

"Vocês, americanos, têm tanto medo de ditadores. A ditadura é o único


modo de o governo realizar qualquer coisa. Vejam o caos a que a
democracia nos levou. Por que vocês têm medo da ditadura?" (Shaw
1933: 17).

E chegamos então ao núcleo duro da concepção de mundo que orienta


todos esses pensadores representativos do Ocidente secularizado.
Rejeitando a moralidade judaico-cristã tradicional, Shaw, Nietzsche
Rousseau, Maquiavel et caterva buscaram, cada qual a seu modo,
a rmar o império da vontade humana irrefreada por qualquer
autoridade transcendente, senão por outra vontade humana mais forte.
Nesse sentido, todos têm um antepassado intelectual comum: Cálicles,
interlocutor de Sócrates em Górgias, um dos mais profundos diálogos
de Platão.

Assumindo-se como sujeito pragmático, Cálicles desprezava a devoção


socrática à loso a, que reputava como atividade de juventude,
indigna de um homem maduro. Era-lhe especialmente incômoda a
investigação socrática acerca da natureza da justiça. Em oposição ao
lósofo, julgava que o sucesso de uma empreitada já lhe conferia, por si
só, um valor moral, sendo a força, em última instância, o fundamento

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do justo. Enquanto Sócrates queria elevar a alma humana acima de sua


natureza meramente animal, distinguindo entre o bem e o agradável, o
justo e o prazenteiro, Cálicles agia como uma espécie de precursor do
darwinismo social, enxergando um contínuo entre homens e animais,
ambos igualmente sujeitos às suas naturezas respectivas, entregues,
portanto, à mera satisfação de seu apetites.

Cálicles certamente concordaria com a a rmação de Steven Pinker


segundo a qual o problema do homem é de excesso, e não falta, de
moralidade. A sua lei era a do mais forte, como deixa claro em certo
trecho do diálogo:

"A própria natureza, segundo creio, se incumbe de provar que é justo ter
mais o indivíduo de maior nobreza do que o vilão, e o mais forte do que o
mais fraco. Com abundância de exemplos, ela mostra que as coisas se
passam desse modo e que tanto entre os animais como entre os homens,
nas cidades e em todas as raças, manda a justiça que os mais fortes
dominem os inferiores e tenham mais do que eles".

Em outro momento, quando Sócrates comenta sobre a necessidade de


cada homem comandar a si mesmo, Cálicles responde-lhe com
sarcasmo, fazendo um elogio rasgado à intemperança e ao livre
exercício das paixões:

"Como és engraçadinho! Aos simplórios é que dás o nome de temperantes?


(…) O belo e justo por natureza, digo-o sem o menor constrangimento, é
que quem quiser viver de verdade, longe de reprimir os apetites, terá de
permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no
auge, ser capaz de alimentá-los com denodo e inteligência e de satisfazer a
todos eles à medida que se forem manifestando".

E continua, antecipando o simbolismo da "moralidade de escravos" e da


"fraqueza" que, séculos mais tarde, os modernos atribuiriam ao
Cristianismo:

"Mas isso, justamente, segundo penso, é que não é para toda a gente; eis
porque a maioria dos homens censura as pessoas capazes de assim viver,
por se envergonharem da própria debilidade, que procuram esconder, e
quali cam de feia a intemperança, para escravizarem, conforme disse há
pouco, as pessoas bem-dotadas por natureza. Sendo incapazes de
satisfazer su cientemente suas paixões, elogiam a temperança e a justiça
com base em sua própria pusilanimidade. Pois para os que nasceram lhos
de reis, ou que por natureza sejam capazes de conquistar algum império
ou o poder e qualquer domínio: haverá nada mais vergonhoso e prejudicial

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do que a temperança para semelhantes indivíduos? Tendo a possibilidade


de gozar de todos os bens, sem que ninguém se lhes atravesse no caminho,
iriam impor a si mesmos um déspota, a saber, a lei da maioria, e o
falatório dos outros, e as censuras? Quão infelizes não se tornariam, pelo
fato mesmo da beleza da justiça e da temperança, se não pudessem dar
mais aos amigos do que aos inimigos, e isso apesar de serem donos de suas
próprias cidades? O certo, Sócrates, é que a verdade que tu presumes
procurar é simplesmente isto: o luxo, a intemperança e a liberdade,
quando devidamente amparados, é que constituem ao certo a virtude e a
felicidade. Tudo o mais, todos esses enfeites e convenções contrárias à
natureza, não passam de palavrório sem valor".

Todo o diálogo gira em torno da questão crucial: é pior sofrer ou


cometer injustiça? Sendo um imanentista, e portanto alguém que não
teme qualquer julgamento post mortem, Cálicles a rma ser pior sofrer
injustiça, e troça das especulações contrárias de Sócrates, quali cando-
as de inúteis, sobretudo naquelas situações em que só o poder arbitra,
pouco importando se quem o exerce o faz com justiça ou não.

"Agora mesmo, se alguém te detivesse ou a algum dos teus iguais, e te


metesse na prisão sob o pretexto de algum crime que não houvesses
cometido, terás de confessar que não saberias como haver-te, mas carias
com vertigens e de boca aberta, sem achares o que dizer no instante de te
apresentares ao tribunal, e, por mais insigni cante e desprezível que fosse
o teu acusador, virias a perder a vida, se lhe aprouvesse pedir para ti a
pena capital. Ora, que sabedoria pode haver numa arte, Sócrates, que se
apodera de um indivíduo bem-dotado e o deixa inferior, incapaz não só de
defender-se e de livrar-se a si mesmo dos perigos, como a qualquer outra
pessoa, ou que o expõe a ser despojado de seus haveres pelos adversários,
ou forçado a viver desonrado na pátria? Um indivíduo nessas condições —
se me permites uma expressão um tanto grosseira — fora lícito esbofeteá-lo
impunemente. Por isso, atende-me, caro amigo; pára com essas
demonstrações e cultiva a bela ciência da vida prática, para adquirires
reputação de sábio, deixando aos outros essas sutilezas, quer mereçam ser
chamadas tolices, quer palavrório sem valor, e que acabarão por fazer-te
morar numa casa despovoada".

Imune à malícia do interlocutor, Sócrates encerra o diálogo com o mito


do julgamento dos mortos, segundo o qual havia, desde os tempos de
Cronos, a seguinte lei relativa aos homens: quem tivesse levado uma
vida justa ia, depois de morto, para a Ilha dos Bem-Aventurados, onde
permaneceria livre do mal, em completa felicidade. Quem, ao
contrário, tivesse vivido impiamente, e sem justiça, ia para o Tártaro, o
cárcere da punição.

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Ocorre que os julgamentos eram conduzidos por juízes vivos, que


julgavam réus vivos no dia mesmo de sua morte. Isso vinha gerando
uma série de falhas, sobretudo porque as pessoas eram julgadas ainda
vestidas, o que prejudicava a real contemplação de sua alma nua, em
estado essencial. Muitos homens de alma ruim, por exemplo, mas
adornados de belos corpos, posição e riqueza, contavam com
testemunhas favoráveis, caso em que os juízes mostravam-se
desnorteados, tanto mais porque eles mesmos também julgavam
vestidos, "servindo-lhes de véu para a alma os olhos, os ouvidos e todo
o corpo".

Alertado sobre o problema por seu irmão Plutão, com quem repartira o
poder legado por seu pai Cronos, Zeus decide remediar o problema,
decretando que, a partir dali, os homens só seriam julgados depois de
mortos, e julgados por juízes também mortos e nus, para que somente
com a alma examinassem as almas alheias.

Ao recordar o mito, Sócrates diz a um Cálicles já bem menos


autocon ante que a morte consiste na separação do corpo e da alma, e
que cada um desses elementos conserva os traços, as marcas e os
acidentes que sofreram em vida. Depois de se dedicar ao corpo, o
lósofo diz da alma: "tudo nela se torna visível, depois de despida do
corpo". E nalmente responde à provocação do so sta, deixando claro
que os poderes terrenos nada podem em face da eternidade:

"Quando chegares à frente do teu juiz, lho de Egina, e ele puser a mão em
ti e levar-te para o julgamento, carás de boca aberta e com vertigens, tal
como eu aqui, sendo possível mesmo que alguém te esbofeteie
ignominiosamente e te in ija toda a sorte de ultrajes (…) Aceita,
portanto, meu conselho, e acompanha-me para onde, uma vez chegado,
serás feliz, assim na vida como na morte, conforme nosso argumento o
certi ca. Deixa que te desprezem como insensato, que te insulte quem
quiser insultar, sim, por Zeus, recebe sem perturbar-te até mesmo aquele
tapa ignominioso; não virás a sofrer mal nenhum, se fores um homem
verdadeiramente bom e se praticares a virtude. E depois de a termos
praticado em comum, se julgarmos conveniente, dedicar-nos-emos à
política ou ao que melhor nos parecer, o que decidiremos oportunamente,
quando para isso carmos mais aptos do que estamos agora. Pois é
vergonhoso, sendo nós o que mostramos ser neste momento, blasonar
como se valêssemos alguma coisa, quando nem sequer pensamos do
mesmo modo sobre qualquer assunto, principalmente os de mais
importância, tão grande é nossa ignorância! Tomemos como guia a
verdade que acaba de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor
maneira de viver a que consiste na prática da justiça e das demais virtudes,

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na vida como na morte. Aceitemos essa norma de vida e exortemos os


outros a fazer o mesmo, não aquela em que con as e que me aconselhaste
a seguir. Porque essa, Cálicles, é carecente de valor".

Temos aí, antecipada loso camente, a verdade que, séculos mais


tarde, aparecerá encarnada na gura de Jesus Cristo. Sócrates remete-
nos a uma lógica não-sacri cal, na qual a lei do mais forte já não
triunfa, e pela qual os potentados e os príncipes deste mundo são
nivelados aos servos; os ricos, aos pobres; os fortes, aos fracos; os
saudáveis, aos doentes, e assim por diante. A provocação que lhe
lançara Cálicles, e diante da qual o lósofo se manteve sereno, lembra a
que os algozes dirigem a Cristo na cruz: "Salva-te a ti mesmo, e desce
da cruz. Salvou os outros, e não pode salvar-se a si mesmo" (Mc 15,30–
31). E, assim como Sócrates, Jesus recusa a tentação de responder
segundo a perspectiva do poder mundano.

Quanto ao signi cado dessa recusa, a análise de René Girard


permanece inigualável. Baseado numa documentação tão vasta quanto
heterogênea, Girard procura demonstrar que o processo por ele
chamado de "ciclo mimético" (a eleição de um bode expiatório cujo
sacrifício termina por apaziguar momentaneamente os con itos
sociais) está presente em toda a mitologia universal, inclusive na Bíblia,
onde, entre muitos exemplos, é representado paradigmaticamente pela
Paixão de Cristo.

Mas, semelhantes no que diz respeito ao conteúdo de seus relatos, a


Bíblia e os mitos diferem num ponto crucial: enquanto estes legitimam
a violência cometida pela coletividade, aquela a têm por injusti cável.
Enquanto os mitos adotam o ponto de vista da coletividade
perseguidora, dando-lhe razão no que se refere à culpabilidade da
vítima, os Evangelhos adotam o ponto de vista da vítima, revelando a
sua inocência e denunciando a malignidade satânica do mecanismo
acusatório. Jesus Cristo torna-se o modelo de todas as vítimas
(passadas, presentes e futuras) da lógica sacri cial.

Os Evangelhos seriam, pois, uma espécie de meta-mito: participando do


universo mitológico por sua estrutura básica e conteúdo, propõem uma
leitura crítica da mitologia universal, explicitando uma verdade que os
mitos esforçam-se por obliterar, a saber: a coletividade está enganada,
pois a vítima é inocente. Pode-se dizer que a mitologia é a objeti cação,
em forma narrativa, da auto-ilusão coletiva perante o bode expiatório,
ao passo que, segundo Girard, a Bíblia desfaz essa auto-ilusão de forma
implacável.

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Num dos capítulos mais marcantes de Eu vi Satanás cair como um


relâmpago, Girard comenta sobre o tema paulino do "triunfo da cruz",
esclarecendo, à luz de sua interpretação geral do Cristianismo, o
seguinte trecho da Epístola aos Colossenses:

"[O Cristo] apagou, em detrimento das ordens legais, o título de dívida que
existia contra nós; e o suprimiu, pregando-o na cruz, na qual despojou os
principados e as autoridades, expondo-os em espetáculo em face do
mundo, levando-os em cortejo triunfal" (Cl 2,14).

Nessa passagem, o "título de dívida" simboliza a acusação voltada


contra a vítima inocente nos mitos. Suprimindo-o, pregando-o na cruz,
Cristo promove uma inversão radical no signi cado da cruci cação.
Escreve Girard:

"Antes do Cristo, a acusação satânica era sempre vitoriosa devido ao


contágio violento que aprisionava os homens nos sistemas mítico-rituais.
A cruci cação reduz a mitologia à impotência ao revelar o contágio cuja
e cácia, excessiva nos mitos, impede para sempre que as comunidades
identi quem a verdade, ou seja, a inocência de suas vítimas. Essa acusação
aliviava temporariamente os homens de sua violência, mas ela se 'voltava'
contra eles, pois os submetia a Satanás, ou, em outros termos, aos
principados e às potências, com seus deuses mentirosos e seus sacrifícios
sangrentos. Tomando sua inocência manifesta nos relatos da Paixão, Jesus
'apagou' essa dívida, 'suprimiu-a'. Agora, é ele quem prega essa acusação
na Cruz, ou seja, revela sua falsidade. Enquanto que, habitualmente, a
acusação prega a vítima na Cruz, aqui, ao contrário, a própria acusação é
pregada, e de alguma forma exibida e denunciada como mentirosa"
(Girard, 2012: 198).

E, como lemos na epístola, não apenas a acusação está pregada, como


os próprios principados e potestades são oferecidos em espetáculo

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diante do mundo. Também eles estão de certa forma pregados na cruz,


exibidos publicamente em toda a sua obscena nudez, tal como as almas
no mito socrático, tal como Cálicles e todo o seu legado cultural, e tal
como Satanás no fundo do Inferno de Dante.

A metáfora central no trecho citado da epístola é a do triunfo no sentido


romano, o des le do líder militar vitorioso, que entra na cidade sob
aclamação pública, ostentando os seus troféus de guerra, dentre os
quais os próprios chefes inimigos acorrentados, que, antes da execução,
são exibidos como feras domadas. Um dos episódios mais famosos do
tipo é o triunfo de César após a vitória sobre o chefe gaulês
Vercingetórix.

Cristo é como o general vitorioso, e a cruz, antes símbolo de sua


derrota, converte-se em símbolo de sua vitória sobre o mundo e sua
organização pagã, sacri cial. A força da metáfora reside no seu caráter
irônico, pois, compreendida em sentido literal, não poderia haver nada
mais diferente de uma vitória militar do que a vitória de Cristo, já que,
em lugar de in igir violência aos outros, é Ele quem a sofre. E,
sofrendo-a tão resignadamente, termina por desmascará-la.

Como explica Girard, a ironia da metáfora é tanto mais saborosa se


consideramos que Satanás e seus discípulos só respeitam o poder
terreno, e só pensam em termos de triunfo militar ou político. A arma
que os derrota lhes é, portanto, inconcebível. Justo quando pensavam
ter vencido mais uma vez, os potentados vêem-se impotentes perante
uma verdade que transcende a lógica sacri cial e a lei do mais forte.

A Cruz faz triunfar a verdade porque, nos relatos evangélicos, a falsidade


da acusação é revelada, a impostura de Satanás ou, o que dá no mesmo, a
dos principados e das potestades, é desacreditada no rastro da

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cruci cação. São todas as vítimas do mesmo tipo que serão reabilitadas”
(ibid).

Que a mais recente delas, Charlie Gard, seja reabilitada.

. . .

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