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À
medida
que
Cheryl
Chase
caminha
para
a
frente
da
sala
de
reunião
lotada
do
Hotel
Sheraton
Boston,
tosses
nervosas
tornam
a
tensão
audível.
Chase,
uma
ativista
de
direitos
intersexuais,
fora
convidada
para
dirigir
o
encontro
de
maio
2000
da
Sociedade
Lawson
Wilkins
de
Pediatria
Endócrina
(LWPES),
a
maior
organização
estadunidense
de
especialistas
em
hormônios
infantis.
Sua
palestra
seria
o
grand
finale
de
um
simpósio
de
quatro
horas
sobre
o
tratamento
da
ambigüidade
genital
em
recém-‐nascidxs,
crianças
que
nasceram
com
uma
mistura
da
anatomia
masculina
e
feminina
ou
com
genitais
que
parecem
diferir
do
seu
sexo
cromossômico.
Difícil
afirmar
que
se
tratava
de
um
novo
tema
para
@s
médic@s
reunid@s3.
Porém,
a
presença
de
Chase
perante
o
grupo
foi
notável.
Três
anos
e
meio
antes,
a
Academia
Americana
de
Pediatria
recusara
o
seu
pedido
por
uma
oportunidade
de
apresentar
o
ponto
de
vista
dxs
pacientes
sobre
o
tratamento
da
ambigüidade
genital,
alegando
que
Chase
e
aquelas
pessoas
que
a
apoiavam
eram
fanáticas.
A
isso
responderam
com
piquete
cerca
de
duas
dúzias
de
pessoas
intersexuais.
A
Sociedade
Norte-‐Americana
de
Intersexualidade
(ISNA)
chegou
a
emitir
um
comunicado
à
imprensa
dizendo:
"Doutores
Infantis
estão
na
mira
de
Hermafroditas”.
Isso
fez
um
bem
a
meu
coração
de
ativista
de
rua
de
1960.
Eu
disse
a
Chase
na
época
que,
se
avaliado
a
curto
prazo,
o
piquete
enfureceria
algumas
pessoas.
Mas,
lhe
assegurei
que
as
portas
que
agora
estão
fechadas,
eventualmente
seriam
abertas.
E,
tal
previsão
parece
estar
se
tornando
verdade
agora
que
Chase
é
convidada
a
falar
em
uma
convenção
de
médic@s.
Sua
palestra,
intitulada
"Ambigüidade
Sexual:
A
Abordagem
Centrada
nx
Paciente",
foi
uma
crítica
moderada
à
prática
imediata
e,
quase
universal,
da
cirurgia
de
"correção"
nos
milhares
de
bebês
que
nascem
anualmente
com
genitália
ambígua.
A
própria
Chase
vive
com
as
consequências
dessa
cirurgia.
Mas
a
sua
audiência,
@s
mesm@s
endocrinologistas
e
cirurgiãxs
que
Chase
acusava
de
reagir
com
"cirurgia
e
vergonha",
recebeu-‐a
com
respeito.
Além
disso,
muit@s
d@s
orador@s
que
precederam
a
sua
sessão
já
tinha
falado
da
necessidade
de
quebrar
com
as
atuais
práticas
em
favor
de
tratamentos
mais
centrados
no
aconselhamento
psicológico.
1
Traduzido
por
Alice
Gabriel.
Originalmente
o
texto
aparece
em
The
Sciences
July/August
2000,
p.19-‐23
e
ele
é
uma
adaptação
de
seu
livro
lançado
nesse
mesmo
ano
pela
Basic
books,
Sexing
the
Body.
2
Anne
Fausto-‐Sterling
é
professora
de
Biologia
e
Estudos
das
Mulheres
no
Departamento
de
Biologia
Molecular
e
Bioquímica
da
Universidade
Brown
em
Rhode
Island,
EUA.
3
Nota
da
Tradução:
costuma-‐se
usar
diferentes
notações
para
linguagem
inclusiva
(ou
linguagem
abrangente);
às
vezes
usa-‐se
a
“@”
no
lugar
do
“o”
do
masculino
genérico,
ou
o
“x”,
há
quem
use
“i”
ou
“e”,
que
fica
mais
falável,
ou
o/a.
Eu
tenho
minhas
preferências
pessoais,
mas
ao
longo
do
texto
usarei
o
“x”
para
designar
a
não
pertença
aos
sexos
reconhecidos
socialmente.
Quando
for
o
caso
de
desestabilizar
o
caráter
geral
do
masculino,
usarei
a
“@”,
mas
só
porque
ela
parece
muito
com
uma
letra
nessa
fonte
O
que
levou
a
essa
reversão
dramática
de
sorte?
Certamente,
a
fala
de
Chase
no
simpósio
da
LWPES
foi
uma
resposta
a
sua
persistência
na
busca
atenção
para
essa
causa.
Mas
o
seu
convite
para
falar
também
foi
um
marco
na
evolução
da
discussão
sobre
como
tratar
as
crianças
com
genitália
ambígua.
E
essa
discussão,
por
sua
vez,
é
a
ponta
de
um
iceberg
biocultural
-‐
o
iceberg
do
gênero
-‐
que
continua
a
chacoalhar
a
medicina
e
nossa
cultura
em
geral.
Chase
fez
a
sua
primeira
aparição
nacional
em
1993,
nestas
mesmas
páginas,
anunciando
a
formação
da
ISNA
em
uma
carta
de
resposta
a
um
ensaio
que
eu
havia
escrito
para
o
The
Sciences,
intitulado
"The
Five
Sexes"
[Março
/
Abril
de
1993].
Neste
artigo,
argumentei
que
o
sistema
de
dois
sexos
que
está
embutido
em
nossa
sociedade
não
é
suficiente
para
abranger
todo
o
espectro
da
sexualidade
humana.
Em
seu
lugar,
eu
sugeria
um
sistema
de
cinco
sexos.
Além
de
machos
e
fêmeas,
eu
incluía
"hermes"
(nome
proveniente
de
hermafroditas
verdadeiros,
as
pessoas
nascem
com
um
testículo
e
um
ovário);
"mermes"
(pseudohrmafroditas
masculinxs,
que
nascem
com
testículos
e
alguns
aspectos
da
genitália
feminina);
e
"fermes"
(pseudohermafroditas
femininxs,
que
têm
ovários
combinados
com
algum
aspecto
da
genitália
masculina).
A
minha
intenção
era
que
o
texto
fosse
provocativo,
mas
também
imprimi
certa
carga
de
ironia
nele.
Por
isso,
fui
surpreendida
pela
extensão
da
controvérsia
gerada
a
partir
do
texto.
Cristã@s
de
direita
ficaram
escandalizad@s,
e
conectaram
minha
idéia
de
cinco
sexos
com
a
Quarta
Conferência
Mundial
sobre
as
Mulheres,
realizada
em
Pequim
em
Setembro
de
1995
e
patrocinada
pelas
Nações
Unidas.
Ao
mesmo
tempo,
o
artigo
encantou
outr@s
que
se
sentiam
constrangid@s
pelo
atual
sistema
de
sexo
e
gênero.
Evidentemente,
eu
tinha
atingido
um
ponto
delicado.
O
fato
de
tantas
pessoas
se
agitarem
com
minha
proposta
de
reformular
o
nosso
sistema
de
sexo
e
gênero
sugere
que
a
mudança
–
bem
como
a
resistência
à
ela
–
pode
estar
à
vista.
Na
verdade,
muita
coisa
mudou
desde
1993,
e
eu
gosto
de
pensar
que
o
meu
artigo
foi
um
estímulo
importante.
Intersexuais
se
materializam
diante
dos
nossos
olhos,
como
se
viessem
do
nada.
Assim
como
Chase,
muitxs
se
tornaram
ativistas
políticxs,
que
fazem
lobby
junto
a
médic@s
e
polític@s
na
tentativa
de
mudar
as
práticas
atuais
de
tratamento
de
pacientes
intersexuais.
Mas
de
um
modo
mais
geral,
embora
não
menos
provocativo,
as
fronteiras
que
separam
masculino
e
feminino
parecem
cada
vez
mais
difíceis
de
definir.
Algumas
pessoas
acham
que
as
mudanças
em
curso
são
profundamente
perturbadoras.
Outras
pensam
nelas
como
libertadoras.
O
que
faz
de
alguém
uma
pessoa
intersexual
-‐
e
quantxs
intersexuais
existem?
O
conceito
de
intersexualidade
está
enraizado
na
própria
idéia
de
masculino
e
feminino.
No
mundo
idealizado,
platônico
e
biológico
os
seres
humanos
são
divididos
em
dois
tipos:
trata-‐se
de
uma
espécie
perfeitamente
dimorfa.
Os
machos
têm
um
cromossomo
X
e
um
Y,
testículos,
pênis
e
um
conjunto
de
encanamento
interno
adequado
para
entregar
urina
e
sêmen
ao
mundo
exterior.
Têm
igualmente
características
sexuais
secundárias
bem
conhecidas,
incluindo
uma
tendência
a
desenvolver
musculatura
e
pelos
faciais.
As
mulheres
têm
dois
cromossomos
X,
ovários,
encanamento
interno
adequado
para
o
transporte
de
urina
e
óvulos
ao
mundo
exterior,
um
sistema
adaptado
para
dar
suporte
à
gravidez
e
ao
desenvolvimento
fetal,
bem
como
uma
variedade
de
características
sexuais
secundárias
reconhecíveis.
Essa
história
idealizada
encobre
muitas
ressalvas
óbvias:
algumas
mulheres
têm
pelos
faciais,
alguns
homens
não
têm
nenhum;
algumas
mulheres
falam
com
vozes
profundas,
alguns
homens
emitem
verdadeiros
ganidos.
Menos
conhecido
é
o
fato
de
que,
em
estreita
inspeção,
o
dimorfismo
absoluto
se
desintegra,
até
mesmo
ao
nível
da
biologia
básica.
Os
cromossomos,
hormônios,
as
estruturas
internas
do
sexo,
as
gônadas
e
a
genitália
externa
variam
mais
do
que
a
maioria
das
pessoas
imagina.
Aquelxs
que
nasceram
fora
do
molde
dimórfico
platônico
são
chamadxs
intersexuais.
Em
"The
Five
Sexes"
eu
propus
uma
estimativa
de
um
psicólogo
especializado
no
tratamento
de
intersexuais,
que
sugeria
que
cerca
de
4
por
cento
de
todos
os
nascimentos
consistem
em
pessoas
intersexuais.
Em
seguida,
juntamente
com
um
grupo
de
estudantes
da
Universidade
Brown,
eu
fui
atrás
de
realizar
a
primeira
avaliação
sistemática
dos
dados
disponíveis
sobre
a
taxa
de
nascimentos
intersexuais.
Nós
vasculhamos
a
literatura
médica
sobre
estimativas
da
freqüência
de
diferentes
categorias
de
intersexualidade,
desde
cromossomos
adicionais
até
gônadas,
hormônios
e
genitais
misturados.
Para
algumas
condições
pudemos
apenas
encontrar
alguns
indícios
anedóticos;
para
a
maioria,
entretanto,
existem
números.
Com
base
nessa
evidência,
calculamos
que
para
cada
1.000
crianças
nascidas,
dezessete
são
de
alguma
forma
intersexuais.
Esse
número
-‐
1,7
por
cento
-‐
é
uma
estimativa
aproximada,
não
uma
contagem
precisa.
Porém,
cremos
que
é
mais
preciso
do
que
os
4
por
cento
que
eu
havia
proposto
anteriormente.
Nosso
número
representa
todas
as
exceções
cromossômicas,
anatômicas
e
hormonais
ao
ideal
dimórfico;
porém
o
número
de
intersexuais
que
poderiam,
potencialmente,
ser
sujeitxs
a
cirurgia
ainda
na
primeira
infância
é
menor
-‐
provavelmente
entre
um
em
1000
e
um
em
2000
bebês
nascidxs
vivxs.
Além
disso,
uma
vez
que
algumas
populações
possuem
uma
alta
frequência
dos
genes
relevantes,
a
natalidade
intersexual
não
é
uniforme
em
todo
o
mundo.
Considere,
por
exemplo,
o
gene
da
hiperplasia
adrenal
congênita
(HAC).
Quando
o
gene
HAC
é
herdado
de
amb@s
progenitor@s,
pode
resultar
em
um
bebê
com
genitália
externa
masculinizada,
mas
que
possua
dois
cromossomos
X
e
os
órgãos
reprodutores
internos
potencialmente
férteis
de
uma
mulher.
A
freqüência
do
gene
varia
muito
ao
redor
do
mundo:
na
Nova
Zelândia
ocorre
em
apenas
quarenta
e
três
crianças
por
milhão;
entre
@s
esquimós
Yupik
do
sudoeste
do
Alasca,
a
sua
frequência
é
por
3.500
crianças
por
milhão.
De
certo
modo,
a
intersexualidade
sempre
foi
uma
questão
de
definição.
E
no
século
passado,
foram
@s
médic@s
que
definiram
certas
crianças
como
intersexuais
–
e
foram
el@s
também
que
providenciaram
os
tratamentos.
Quando
apenas
os
cromossomos
são
incomuns,
mas
a
genitália
externa
e
as
gônadas
indicam
fortemente
um
homem
ou
uma
mulher,
@s
médic@s
não
defendem
a
intervenção.
Na
verdade,
não
está
decidido
que
tipo
de
intervenção
poderia
ser
defendida
em
tais
casos.
Mas
a
história
é
bastante
diferente
quando
o
caso
é
de
bebês
nascidos
com
genitália
mista,
ou
de
bebês
com
genitais
externos
em
aparente
contradição
com
suas
gônadas.
A
maioria
das
clínicas
que
agora
se
especializam
no
tratamento
de
bebês
intersexuadxs
confiam
nos
princípios
de
tratamentos
desenvolvidos
na
década
de
1950
pelo
psicólogo
John
Money
e
os
psiquiatras
Joan
G.
Hampson
e
John
L.
Hampson,
todos
da
Universidade
Johns
Hopkins,
em
Baltimore,
Maryland.
Money
acreditava
que
a
identidade
de
gênero
é
completamente
maleável
durante
os
dezoito
meses
que
sucedem
o
nascimento.
Assim,
argumentava,
quando
uma
criança
com
genitália
ambígua
é
apresentada
a
uma
equipe
de
tratamento,
tal
equipe
pode
fazer
uma
atribuição
de
gênero
baseada
apenas
naquilo
que
fizer
mais
sentido
cirurgicamente.
@s
médic@s
poderão
então
simplesmente
incentivar
@s
progenitor@s
a
criar
a
criança
de
acordo
com
o
sexo
re-‐atribuído
cirurgicamente.
A
maioria
d@s
médic@s
acreditava
que
seguir
esse
projeto
eliminaria
o
sofrimento
psíquico
tanto
dx
paciente
quanto
d@s
progenitor@s.
Na
verdade,
a
equipe
de
tratamento
nunca
deveria
utilizar
tais
palavras
como
"intersexo"
ou
"hermafrodita",
em
vez
disso,
el@s
deviam
dizer
as
progenitor@s
que
a
natureza
tinha
a
intenção
de
que
esse
bebê
fosse
o
menino
ou
a
menina
que
@s
médic@s
determinaram
que
elx
era.
Através
da
cirurgia,
@s
médic@s
estavam
apenas
completando
o
intento
da
natureza.
Embora
tanto
Money
quanto
os
Hampsons
tenham
publicado
estudos
de
caso
detalhados
sobre
crianças
intersexuadas
que,
segundo
eles,
tinham
se
ajustado
bem
às
suas
atribuições
gênero,
Money
achava
que
um
caso
em
particular
provava
sua
teoria.
Era
um
exemplo
dramático,
na
medida
em
que
não
envolvia
intersexualidade
de
forma
alguma:
um
menino
de
um
par
de
gêmeos
idênticos
perdera
seu
pênis
como
um
resultado
de
um
acidente
de
circuncisão.
Money
recomendou
que
"John"
(como
ele
veio
a
ser
posteriormente
nomeado
num
estudo
de
caso)
fosse
cirurgicamente
transformado
em
"Joan"
e
criado
como
uma
menina.
Com
o
tempo,
Joan
cresceu
amando
usar
vestidos
e
arrumar
o
cabelo.
Money
proclamou
orgulhosamente
que
a
re-‐atribuição
de
sexo
fora
um
sucesso.
Mas,
como
foi
recentemente
defendido
por
John
Colapinto,
em
seu
livro
Como
a
Natureza
o
Fez4,
Joan
-‐
agora
conhecida
por
ser
um
adulto
do
sexo
masculino
chamado
David
Reimer
-‐
acabou
rejeitando
sua
atribuição
feminina.
Mesmo
sem
um
pênis
ou
testículos
funcionais
(que
tinham
sido
removidos
como
parte
da
re-‐atribuição
de
sexo)
John
/
Joan
procurou
medicamentos
para
virilização,
e
casou-‐se
com
uma
mulher
que
já
tinha
filh@s
(que
David
adotou
como
su@s).
Desde
que
a
conclusão
integral
da
história
de
John
/
Joan
veio
à
tona,
apareceram
outras
pessoas
que
tiveram
seu
sexo
re-‐atribuído
logo
após
o
nascimento
e
que
mais
tarde
rejeitaram
essa
re-‐atribuição.
Porém,
também
existem
casos
em
que
a
re-‐atribuição
funcionou
-‐
pelo
menos
durante
os
vinte
primeiros
anos
desses
sujeitos.
Mas
mesmo
assim,
o
resultado
da
cirurgia
pode
ser
problemático.
Uma
cirurgia
genital
geralmente
deixa
cicatrizes
que
reduzem
a
sensibilidade
sexual.
A
própria
Chase
foi
submetida
a
uma
cliterectodomia
completa,
um
procedimento
que
hoje
em
dia
é
realizado
com
menos
freqüência
em
intersexuais.
Porém,
as
cirurgias
mais
recentes
que
diminuem
o
tamanho
da
protuberância
clitoridiana
ainda
reduzem
enormemente
a
sensibilidade.
4
As
Nature
Made
Him
A
revelação
de
casos
de
fracasso
em
re-‐atribuição
sexual
e
de
gênero
e
a
emergência
de
um
ativismo
intersexual
têm
levado
um
número
crescente
de
endocrinologistas,
urologistas
e
psicólog@s
infantis
a
reexaminar
os
saberes
a
respeito
da
cirurgia
genital
precoce.
Por
exemplo,
em
uma
fala
que
precedeu
a
de
Chase
no
encontro
do
LWPES,
o
médico
Laurence
B.
McCullough
do
Centro
de
Ética
Médica
e
Políticas
de
Saúde
do
Baylor
College
of
Medicine,
em
Houston,
Texas,
apresentou
um
quadro
ético
para
o
tratamento
de
crianças
com
genitália
ambígua.
McCullough
argumentou
que
as
diversas
formas
de
intersexualidade
devem
ser
definidas
como
normais,
uma
vez
que
o
sexo
fenotípico
(a
manifestação
de
características
sexuais
geneticamente
e
embriologicamente
determinadas)
e
a
representação
de
gênero
(o
papel
sexual
projetado
pelo
indivíduo
na
sociedade)
são
muito
variáveis.
Todas
elas
estão
dentro
da
variabilidade
estatisticamente
esperada
de
sexo
e
gênero.
Além
disso,
embora
certos
estados
patológicos
possam
acompanhar
algumas
formas
de
intersexualidade,
exigindo
intervenção
médica,
as
condições
intersexuais
não
são
em
si
mesmas
doenças.
McCullough
também
alega
que,
no
processo
de
atribuição
de
sexo,
@s
médic@s
devem
minimizar
o
que
ele
chama
de
atribuições
irreversíveis:
tomar
medidas
como
a
remoção
cirúrgica
ou
modificação
das
gônadas
ou
genitália
que
x
paciente
pode
um
dia
querer
reverter.
Por
último,
McCullough
incita
médic@s
a
abandonarem
sua
prática
de
tratar
o
nascimento
de
uma
criança
com
ambigüidade
genital
como
uma
emergência
médica
ou
social.
Em
vez
disso,
devem
tomar
um
tempo
para
realizar
um
minucioso
exame
médico
e
devem
também
divulgar
tudo
para
@s
progenitor@s,
incluindo
as
incertezas
quanto
ao
resultado
final
do
processo.
Em
outras
palavras,
o
mantra
do
tratamento
deveria
ser
“terapia,
não
cirurgia”.
Creio
que
um
novo
protocolo,
semelhante
ao
descrito
por
McCullough,
para
o
tratamento
de
crianças
intersexuadas
está
pra
emergir.
O
tratamento
deve
combinar
alguns
princípios
médicos
e
éticos
básicos
com
uma
abordagem
mais
prática
e
menos
drástica
ao
nascimento
de
uma
criança
de
sexo
misturado.
Como
um
primeiro
passo,
as
cirurgias
em
crianças
devem
ser
efetuadas
apenas
se
a
vida
dx
paciente
estiver
em
risco,
ou
para
melhorar
substancialmente
o
bem-‐estar
físico
delx.
@
médic@
pode
atribuir
um
sexo
-‐
masculino
ou
feminino
-‐
para
uma
criança
intersexuada
com
base
na
probabilidade
de
que
a
condição
particular
da
criança
irá
conduzir
à
formação
de
uma
determinada
identidade
de
gênero.
Ao
mesmo
tempo,
porém,
deve
ser
suficientemente
humilde
para
reconhecer
que,
a
medida
em
que
a
criança
cresce,
ele
ou
ela
pode
rejeitar
a
re-‐atribuição
–
e
deveriam
ser
sábi@s
o
suficiente
para
ouvir
o
que
a
criança
tem
a
dizer.
Mais
importante,
@s
progenitor@s
devem
ter
acesso
a
toda
a
gama
de
informações
e
opções
disponível
para
el@s.
As
re-‐atribuições
de
sexo
feitas
logo
após
o
nascimento
são
apenas
o
começo
de
uma
longa
viagem.
Consideremos,
por
exemplo,
a
vida
de
Max
Beck:
nascido
intersexual,
Max
foi
re-‐
atribuído
cirurgicamente
como
mulher
e
criada
como
tal.
Foi
assistida
até
seus
vinte
anos
por
uma
equipe
médica
que
teria
considerado
a
sua
missão
um
sucesso
devido
ao
fato
dela
ter
se
casado
com
um
homem.
(Note-‐se
que
o
êxito
na
re-‐atribuição
sexual
e
de
gênero
tem
sido
tradicionalmente
definido
como
viver
naquele
gênero
atribuído
como
uma
pessoa
heterossexual).
Porém,
alguns
anos
depois,
Beck
assumiu-‐se
como
uma
lésbica
butch
e,
por
volta
de
seus
trinta
anos,
Beck
tornou-‐se
um
homem
e
casou-‐se
com
sua
parceira
lésbica,
que
(graças
a
milagres
da
moderna
tecnologia
reprodutiva)
recentemente
deu
à
luz
uma
menina.
As
pessoas
transexuais,
que
têm
um
gênero
emocional
em
desacordo
com
suas
características
físicas
do
sexo,
costumavam
descrever-‐se
em
termos
de
dimorfismo
absoluto
-‐
machos
capturados
em
corpos
femininos,
ou
vice-‐versa.
Como
tal,
elxs
procuravam
alívio
psicológico
através
de
cirurgia.
Embora
muitxs
ainda
o
façam,
algumxs
dxs
chamadxs
transexuais
são
pessoas
que
hoje
estão
contentes
em
habitar
para
uma
zona
mais
ambígua.
Uma
transexual
male-‐to-‐female5,
por
exemplo,
pode
assumir-‐se
como
lésbica.
Jane,
nascida
um
macho
fisiológico,
está
agora
em
seus
trinta
anos
vivendo
com
sua
esposa,
com
quem
ela
casou
quando
seu
nome
ainda
era
John.
Jane
toma
hormônios
para
se
feminizar,
mas
eles
ainda
não
interferiram
em
sua
capacidade
de
ter
relações
sexuais
como
um
homem.
Em
sua
mente
Jane
tem
uma
relação
lésbica
com
sua
mulher,
embora
ela
veja
seus
momentos
íntimos
como
um
cruzamento
entre
o
sexo
lesbiano
e
o
heterossexual.
Pode
parecer
natural
encarar
pessoas
intersexuadas
e
transexuais
como
pessoas
que
vivem
no
meio
do
caminho
entre
os
pólos
masculino
e
feminino
do
sexo.
Mas,
macho
e
fêmea,
masculino
e
feminino,
não
podem
ser
analisados
em
termos
de
continuidade.
Pelo
contrário,
sexo
e
gênero
são
conceituados
de
forma
mais
acurada
se
entendidos
como
pontos
em
um
espaço
multidimensional.
Durante
algum
tempo,
especialistas
em
desenvolvimento
de
gênero
têm
feito
a
distinção
entre
sexo
no
nível
genético
e
no
nível
celular
(expressão
de
genes
sexualmente
específicos,
cromossomos
X
e
Y),
no
nível
hormonal
(no
feto,
durante
a
infância
e
após
a
puberdade)
e,
no
nível
anatômico
(órgãos
genitais
e
características
sexuais
secundárias).
Presume-‐se
que
a
identidade
sexual
surja
de
todos
esses
aspectos
corpóreos
através
de
alguma
experiência
ou
interação
com
o
meio
ambiente
que
não
entendemos
muito
bem.
O
que
tem
se
tornado
cada
vez
mais
claro
é
que
podemos
encontrar
um
nível
de
masculinidade
e
feminilidade
em
quase
todas
as
permutações
possíveis.
Um
macho
(ou
fêmea)
cromossômico,
hormonal
e
genital,
pode
desenvolver
uma
identidade
sexual
de
fêmea
(ou
macho).
Ou
uma
fêmea
cromossômica
com
hormônios
fetais
masculinos
e
genitália
masculinizada
-‐
mas
com
hormônios
púberes
femininos
-‐
pode
desenvolver
uma
identidade
sexual
feminina.
As
comunidades
científicas
e
médicas
têm
ainda
que
adotar
uma
linguagem
capaz
de
descrever
essa
diversidade.
Em
seu
livro
Hermafroditas
e
Invenção
Médica
do
Sexo,
a
historiadora
e
especialista
em
ética
médica
Alice
Dreger
Domurat
da
Michigan
State
University,
em
East
Lansing
documenta
a
emergência
dos
atuais
sistemas
médicos
para
classificar
a
ambigüidade
de
gênero.
O
uso
atual
permanece
enraizado
na
abordagem
vitoriana
do
sexo.
A
estrutura
lógica
dos
termos
comumente
utilizados,
como
"verdadeirx
hermafrodita",
"pseudohermafrodita
masculino
"
e
"
pseudohermafrodita
feminino
"
indica
que
somente
xs
chamadxs
verdadeirxs
hermafroditas
constituem
uma
mistura
genuína
de
masculino
e
feminino.
Os
outros
são,
na
verdade,
machos
ou
fêmeas
disfarçad@s,
não
importando
o
quão
confusas
sejam
suas
partes
do
corpo.
E
assim,
como
verdadeirxs
hermafroditas
são
raros
-‐
possivelmente
apenas
umx
em
cada
100.000
–
tal
sistema
de
classificação
apóia
a
idéia
de
que
os
seres
humanos
são
uma
espécie
absolutamente
dimórfica.
5
Transexuais
male-‐to-‐female
são
pessoas
nascidas
como
macho
da
espécie,
mas
que
se
vêem
e,
a
partir
disso,
buscam
transformar-‐se
em
mulheres.
N.T
Na
aurora
do
século
XXI,
em
que
a
variabilidade
de
gênero
parece
tão
visível,
tal
posição
é
difícil
de
manter.
Também
o
velho
consenso
médico
a
respeito
desse
assunto
começou
a
desmoronar.
No
outono
passado
o
urologista
pediátrico
Ian
A.
Aaronson
da
Universidade
de
Medicina
da
Carolina
do
Sul,
em
Charleston
organizou
a
Força
Tarefa
Norteamericana
sobre
Intersexualidade
(NATFI)
para
analisar
a
resposta
clínica
a
ambigüidade
genital
na
primeira
infância.
As
principais
associações
médicas,
como
a
Academia
Americana
de
Pediatria,
aprovaram
o
NATFI.
Especialistas
em
cirurgia,
endocrinologia,
psicologia,
ética,
psiquiatria,
genética
e
saúde
pública,
bem
como
grupos
de
defesa
dxs
pacientes
intersexuadxs,
uniram-‐se
às
suas
fileiras.
Um
dos
objetivos
da
NATFI
é
estabelecer
uma
nova
nomenclatura
de
sexo.
Uma
proposta
em
análise
substitui
o
sistema
atual
por
uma
terminologia
emocionalmente
neutra
que
enfatize
processos
de
desenvolvimento,
e
não
categorias
de
gênero
pré-‐concebidas.
Por
exemplo,
intersexos
Tipo
I
desenvolvem-‐se
de
influências
virilizantes
anômalas;
os
de
Tipo
II
resultam
de
alguma
interrupção
no
processo
de
virilização,
e
em
intersexos
do
Tipo
III,
as
gônadas
podem
não
ter
desenvolvido
da
forma
esperada.
O
que
está
claro
é
que
desde
1993,
a
sociedade
moderna
movimentou-‐se
para
além
dos
cinco
sexos,
para
um
reconhecimento
de
que
a
variação
de
gênero
é
normal
e,
chega
a
ser
para
algumas
pessoas
uma
arena
de
exploração
lúdica.
Ao
discutir
minha
proposta
de
cinco
sexos
em
seu
livro
Lições
de
Intersexos,
a
psicóloga
Suzanne
J.
Kessler
da
Universidade
Estadual
de
Nova
York
aponta
essa
questão:
A
limitação
da
proposta
de
Fausto-‐Sterling
é
que
...
[ela]
ainda
dá
aos
genitais...
um
status
primário
de
significação
e
ignora
que
no
mundo
em
que
vivemos
as
atribuições
de
gênero
são
feitas
sem
acesso
a
inspeção
genital...
o
que
tem
primazia
na
vida
cotidiana
é
o
gênero
que
é
performado,
independente
da
configuração
da
carne
debaixo
das
roupas.
Hoje,
concordo
com
a
avaliação
de
Kessler.
Seria
melhor
para
intersexuais
e
aquelas
pessoas
que
xs
apóiam
que
direcionássemos
a
atenção
de
todo
mundo
para
além
dos
genitais.
Ela
sugere
que
devemos
reconhecer
que
existem
pessoas
com
uma
variedade
ainda
maior
de
identidades
e
características
sexuais
do
que
possa
ser
distinguido
com
referência
apenas
à
genitália.
Algumas
mulheres
podem
ter
"grandes
clitóris
ou
lábios
fundidos
",
da
mesma
forma
que
alguns
homens
podem
ter
"pênis
pequeno
ou
escroto
disforme",
nas
palavras
de
Kessler:
são
"fenótipos
sem
um
significado
clínico
ou
de
identidade
particular".
Mesmo
que
o
programa
de
Kessler
seja
cabeça
aberta
como
de
fato
é
-‐
e
apesar
dos
progressos
realizados
na
década
de
1990
-‐
a
nossa
sociedade
ainda
está
longe
deste
ideal.
A
pessoa
intersexual
ou
transexual
que
projeta
um
gênero
social
-‐
o
que
Kessler
chama
de
"genitais
culturais
"
-‐
que
está
em
conflito
com
os
seus
órgãos
genitais
físicos
ainda
pode
morrer
por
causa
de
sua
transgressão.
Por
isso,
a
proteção
jurídica
às
pessoas
cujos
genitais
físicos
e
culturais
não
correspondem
é
necessária
durante
essa
transição
para
um
mundo
com
mais
diversidade
sexual
e
de
gênero.
Um
passo
simples
seria
eliminar
a
categoria
de
"sexo"
a
partir
de
documentos
oficiais,
tais
como
licenças
de
motorista
e
passaportes.
Certamente,
poderia
ser
mais
interessante
e
eficiente
insistirmos
em
atributos
mais
visíveis
(tais
como
altura,
compleição
física
e
cor
dos
olhos)
e/ou
menos
visíveis
(impressões
digitais
e
perfis
genéticos).
Uma
agenda
mais
abrangente
é
apresentada
na
Carta
Internacional
dos
Direitos
de
Gênero,
aprovada
em
1995,
na
quarta
Conferência
Internacional
sobre
Leis
e
Políticas
de
Emprego
para
Transexuais,
em
Houston,
Texas.
Ela
enumera
dez
"direitos
de
gênero",
incluindo
o
direito
a
definir
seu
próprio
sexo
(ou
gênero),
o
direito
a
mudar
fisicamente
seu
sexo
(ou
gênero),
se
assim
o
desejar
e
o
direito
de
casar-‐se
com
quem
desejar.
As
bases
legais
para
esses
direitos
estão
sendo
decididas
nos
tribunais
enquanto
escrevo.
Além
disso,
recentemente,
o
estado
de
Vermont
estabeleceu
a
legalidade
das
parcerias
domésticas
entre
pessoas
do
mesmo
sexo.
Em
1993,
ninguém
poderia
ter
previsto
essas
mudanças.
E,
me
dá
certo
prazer
acalentar
a
idéia
de
que
eu
desempenhei
algum
papel,
mesmo
que
pequeno,
na
redução
da
pressão
–
exercida
tanto
pela
comunidade
médica
quanto
pela
sociedade
em
geral
–
que
atua
achatando
a
diversidade
dos
sexos
humanos
em
dois
campos
diametralmente
opostos.
Às
vezes
as
pessoas
sugerem
para
mim,
com
uma
pitada
de
horror,
que
defendo
um
mundo
de
cores
pastéis
onde
a
androginia
reina
e
os
homens
e
as
mulheres
são
o
mesmo
tedioso.
No
entanto,
do
jeito
que
vejo,
cores
fortes
coexistem
com
cores
pastéis.
Existem
e
continuarão
a
existir
pessoas
bem
masculinas
lá
fora,
só
que
alguns
deles
são
mulheres.
Da
mesma
forma
que
algumas
das
pessoas
mais
femininas
que
eu
conheço
são
homens.