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Sobre Ética e Poesia

em Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen

Sofia Sousa e Silva

Para Tuila Martins Melo Barbosa

Por que fiz eu dos sonhos


a minha única vida?

Fernando Pessoa

Ética e poesia

Dentre os ramos da filosofia, a ética é aquele que reflete sobre o modo de conduzir a
vida. Desde a Grécia antiga os filósofos nunca deixaram de se ocupar
da ética. De acordo com os princípios de cada filosofia e o entendimento do mundo que
trazia, criava-se uma ética diferente. Entre os poetas, também não
são poucos os que dela se ocuparam.

Em muitos autores, por trás dos diversos sujeitos poéticos que a obra pode conter,
percebe-se uma espécie de pensamento estruturante daquele universo, uma
certa visão de mundo de que decorre uma certa atitude com relação à vida. Nesses
autores, os domínios da vida e da literatura não são inteiramente separados.
A sua arte transmite uma atitude particular com relação à vida prática, uma ética
própria.

Desse modo, seria possível operar uma distinção entre autores baseada no modo como
na sua obra se entende a vida, que visão do mundo a obra contém. Já se
tem dito que certos poetas têm como objetivo dar a ver o real, enquanto outros são
poetas sobretudo voltados para a imaginação. Essas atitudes poéticas
são freqüentemente indicativas de éticas diferentes.

A relação entre Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen de certo modo
situa-se dentro do âmbito desta questão. Sophia é poetisa que se ocupa
da vida comum e das coisas concretas, Pessoa é poeta da imaginação e do não-ser. A
poesia de Sophia emerge de uma atenção cuidadosa ao mundo exterior,
de um inquestionável amor à vida e de um pensamento da unidade. A poesia de Pessoa
vem de um profundo pesar pela consciência da finitude, do sentimento
de falta de sentido da vida.

Diante da inexorabilidade do tempo e da inevitabilidade da morte, Sophia e Pessoa


deram respostas muito diferenciadas. A primeira estabeleceu seu ideal
na Grécia clássica, onde o real era divino. O segundo, incapaz de encontrar o divino
onde quer que fosse, nunca deixou de buscá-lo em toda parte e sobretudo
na linguagem. Disso decorre o sentimento de afirmação que perpassa a obra de Sophia
de Mello Breyner e o sentimento de dúvida da poesia de Fernando Pessoa.

“Teu corajoso ousar não ser ninguém”1


Para Sophia de Mello Breyner, assim como para muitos críticos da obra de Fernando
Pessoa, ele foi o que levou mais adiante a tentativa de Ulisses de ser
ninguém. Para dar conta da sua angústia existencial de homem que vive o tempo da
fragmentação, Pessoa multiplicou-se em heterônimos, buscando imputar a
cada um deles uma visão de mundo própria.

Segundo Foucault, a modernidade se inaugurou no século XIX quando o homem se deu


conta do artifício da linguagem. Se até então o pensamento hegemônico era
de que linguagem e realidade caminhavam lado a lado e a linguagem dizia a verdade do
mundo, com a emergência das ciências humanas e a invenção do homem
como um objeto de estudo, a linguagem deixava de ser um espelho do mundo. Quando
não é só a natureza que se estuda, mas também o homem, os tradicionais
papéis de sujeito e objeto se vêem alterados. Antes o homem era sempre sujeito agindo
sobre o mundo, que conhecia através da linguagem. Com a crise da
representação, a linguagem perde sua capacidade de organizar a realidade.

A famosa frase de Nietzsche sobre a morte de Deus aponta para esta mesma questão.
Deus existia antes como um princípio organizador, como aquele que dava
o sentido final e transcendente à vida.

Quando a relação entre linguagem e realidade já não se estabelece num nível em que a
linguagem é quem dá sentido à realidade, mas sim numa via de mão-dupla,
o estatuto de cada um dos termos dessa relação modifica-se profundamente. A realidade
deixa de fazer sentido, torna-se puro caos e acaso. A única certeza
que permanece é a morte.

Atualmente essas considerações podem parecer senso comum. Na verdade, é muito


difícil para alguém de hoje conceber um tempo em que a vida fazia todo o sentido.
Mas essa consciência da falta de sentido da vida, que Pessoa tão bem expressou, são
marcas do pensamento da modernidade.2

Pessoa é o poeta desse tempo. Ele buscou a salvação numa vida inventada. Inventou
vários poetas e até uma pátria. Cada um de seus heterônimos exprime uma
forma de se relacionar com a finitude, um novo modo de ser. Não satisfeito com a
invenção de várias vidas para si, inventou uma vida mais poderosa para
a pátria portuguesa. Não é por acaso que se encontram em Mensagem dois versos que
são chave para o entendimento do pensamento e da poesia de Fernando Pessoa:
Inicio de bloco de citação

Em baixo, a vida, metade


De nada, morre.
Fim do bloco de citação

Em muitos de seus ensaios sobre a poesia de Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço


procura esclarecer que Pessoa não é simplesmente o poeta da melancolia e da
angústia diante da morte, como pode parecer. Ele também o é. Mas, se de muitos textos
seus emana uma tristeza profunda, é preciso tentar entender o empreendimento
poético de Pessoa como uma tentativa de resgate de um sentido para a existência:
O olhar que estrutura o mundo de Fernando Pessoa emerge de uma opacidade e de uma
treva, ao mesmo tempo imemoriais e históricas e busca, por labirínticos
e trágicos caminhos, uma saída, uma plenitude de luz que, em princípio, é a nossa
vocação misteriosamente suspensa.3

Pessoa viveu até o fundo a tragédia do seu tempo, de que Deus estava morto. Para
livrar-se dela desejou a inconsciência, idealizou um poeta cujos pensamentos
são todos sensações, fez-se plural. Procurou de diversas formas fragmentar-se para
sobreviver à fragmentação de seu tempo. Deparou-se com o nada em todas
as direções para onde foi. A sua poesia é oriunda desse encontro com o vazio.

Pessoa não viveu num mundo nomeado, com tudo em seu lugar. A criação dos
heterônimos pode ser entendida como tentativa de, através da palavra, construir
um mundo que ele pudesse habitar. Se a relação entre linguagem e realidade não é mais
estável, Pessoa tentou criar, pelo menos no domínio da linguagem,
uma outra realidade. Segundo Eduardo Lourenço, na modernidade “o verbo busca com
sua proferição criar o ‘sentido’ que não lhe vem de parte alguma.” A heteronímia
é o maior exemplo disso.

A heteronímia é a busca de um sentido outro para a vida. Se no real da vida a única


determinação é a morte, pelo menos no mundo inventado de Pessoa poderia
haver uma outra grande razão, como ele anuncia num poema do ortônimo:
Inicio de bloco de citação

Tenho dó das estrelas


Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço


Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,


Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
Fim do bloco de citação

Neste poema, são transferidos para as estrelas o sentimento de impotência, o cansaço de


ser, a angústia pela falta de sentido da vida. Se o poeta busca
uma outra espécie de fim para as estrelas, algo que lhes confira algum sentido, não o
busca menos para si mesmo.

Toda a poesia pessoana é, segundo Eduardo Lourenço, a busca da Eurídice perdida, a


alternativa ao desespero de quem punha a fé na realidade.

Pessoa e Sophia

Em seu livro Pessoa e a moderna poesia portuguesa — do Orpheu a 1960, Fernando J.


B. Martinho refere uma entrevista de Sophia de Mello Breyner a Maria Armanda
Passos na qual

Sophia falava amplamente do seu diálogo com Pessoa e chamava a atenção para um
poema de Coral, de 1950, “Sibilas”, que visava, partindo de uma crença na
“positividade” e na “unidade”, os poetas da “renúncia” e da divisão como Fernando
Pessoa.4

Ou seja, num primeiro momento, pode-se entender que a atitude de Sophia com relação
a Pessoa era de uma certa condenação. Não uma condenação da sua poesia
propriamente, mas das idéias que ela veicula. Na mesma entrevista, Sophia critica o
ascetismo de Pessoa, dizendo que a “a vida tem uma prioridade, uma
evidência que não pode ser negada”, “é necessário superar a renúncia”5.

Nos poemas da série “Homenagem a Ricardo Reis”, de Dual (1972), podemos ver um
exemplo claro da diferença de atitude entre os dois poetas. São conhecidos
versos de Reis “Não vale a pena / Fazer um gesto.” e “Desenlacemos as mãos, porque
não vale a pena cansarmo-nos. / Quer gozemos, quer não gozemos, passamos
como o rio. / Mais vale saber passar silenciosamente / E sem desassossegos grandes.” A
passividade é grande característica sua. É justamente contra ela
que Sophia, usando os temas e formas de Reis, se posiciona.6 Vejamos o primeiro
poema da série:
Inicio de bloco de citação

Não creias, Lídia, que nenhum estio


Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez


E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.


O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.


Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo
Fim do bloco de citação

Tanto o sujeito poético do poema de Sophia quanto o do poema de Ricardo Reis partem
da consciência de que só se vive uma vez. Porém Reis aconselhará a sua
Lídia a não se cansar porque nada vale a pena, numa atitude de renúncia. No poema de
Sophia, ao contrário, extrai-se da fatalidade um desejo maior de aproveitar
enquanto é possível. Nessa dialética resume-se um ponto importante da questão Pessoa-
Sophia: a ética para com a vida. Sophia canta a luz, Pessoa foi, nas
palavras de Eduardo Lourenço, aquele que começou a “Odisseia da Noite”. Por isso há
tanto mar e tanta paisagem na poesia de Sophia e o há tão pouco na
de Pessoa. Por isso há em Sophia uma preocupação com a vida vivida e em Pessoa, uma
preocupação com a vida pensada.

O sentimento trágico é comum aos dois poetas, o que difere são as respostas de cada
um. Na entrevista a Maria Armanda Passos, Sophia reconhece que a sua
poesia é um esforço de transformar o caos em cosmos, uma tentativa de não se afogar
na multiplicidade. Sophia encontra a alternativa à renúncia num pensamento
da unidade que tem sua origem na Grécia clássica, sobretudo pré-socrática. Num ensaio
sobre arte grega, ela diz:
Inicio de bloco de citação

A claridade grega é uma claridade que reconhece a treva e a enfrenta. [...] Os Gregos
inventam a tragédia porque sabem que a treva existe e a interrogam
e a enfrentam.7 [e1] [e1]
Fim do bloco de citação

Posteriormente a atitude crítica de Sophia com relação a Pessoa sofrerá algumas


modificações. Nos dois principais poemas que escreveu sobre Fernando Pessoa
— “Cíclades” e “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa” —, ambos posteriores a Coral,
Sophia reconcilia-se com o poeta. Nos dois textos, sobressaem a visão
clara, o olhar meticuloso e preciso, “imparcial como a neve” do poeta.

Ao escolher a Grécia para fazer as duas evocações de Fernando Pessoa, Sophia de


Mello Breyner Andresen integra-o no seu pensamento da unidade. Diante da
clareza da manhã grega, Sophia evocará a visão clara de Pessoa mas, como já havia
feito na “Homenagem a Ricardo Reis”, a evocação (que depois se torna
invocação) acrescenta-lhe uma nova perspectiva, própria da autora.
Inicio de bloco de citação

Instalada na diferença que de Pessoa a separa e une, Sophia restitui a túnica dilacerada
do imaginário português, a sua fragmentação sem remédio, na sua
poesia unificante [...] Sophia resumiu num só poema [“Cíclades”] o seu destino de
Penélope, a si mesma fiel, tecedora do mais alto dia e da mais viva esperança
no meio da noite, nossa e da vida.8
Fim do bloco de citação

O empreeendimento poético de Pessoa deixa de ser visto apenas como renúncia,


tornando-se busca da salvação que Sophia encontra na Grécia e no pensamento
pré-socrático. Pois é ela também
Inicio de bloco de citação

[...] aquela que soube na paisagem


Adivinhar a unidade prometida9
Fim do bloco de citação

Notas:

[1][1] ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. “Fernando Pessoa”, Livro sexto. In:
Obra poética II. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1998.
2 Esta questão foi amplamente explorada por Michel Foucault em seu livro As palavras
e as coisas (tradução de António Ramos Rosa. Lisboa: 70, s.d.) e retomado
por diversos autores, entre eles Marcio Tavares d’Amaral em O homem sem
fundamentos (Rio de Janeiro: UFRJ-Tempo Brasileiro, 1995).
3 LOURENÇO, Eduardo. “Pessoa ou a realidade como ficção”. In: Poesia e metafísica:
Camões Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da Costa, 1983. p. 163.
4 MARTINHO, Fernando J. B. Pessoa e a moderna poesia portuguesa — do Orpheu a
1960. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983. p. 102
5 PASSOS, Maria Armanda. JL, n. 26, 16 de fevereiro de 1982.
6 Ver também o livro de Márcia Barbosa, publicado pela Universidade de Passo Fundo,
intitulado Sophia Andresen: leitora de Camões, Cesário Verde e Fernando
Pessoa. Há uma certa afinidade entre a análise feita por Márcia Barbosa e esta.
7 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O nu na Antiguidade clássica. 3. ed. Lisboa:
Caminho, 1992. p. 23.
8 LOURENÇO, Eduardo. Para um retrato de Sophia. In: ANDRESEN, Sophia de Mello
Breyner. Antologia. 4 ed. Lisboa: Moraes, 1975.
9 “Santa Clara de Assis”, No tempo dividido. Obra poética II, op. cit. apud BARBOSA,
Márcia, op. cit.

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