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Verso e Reverso, 32(81):237-246, setembro-dezembro 2018

2018 Unisinos – doi: 10.4013/ver.2018.32.81.06

A figura do diabo como produção de presença


no Neopentecostalismo Contemporâneo:
incursões no heavy metal cristão

The image of the devil as production of presence in Contemporary


Neopentecostalism: Raids in Christian heavy metal

Angela Mastella Coradini


Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367, sala 38/FCA,
Boa Esperança, 78060-900, Cuiabá, MT, Brasil. angelacoradini@gmail.com

Dolores Galindo
Universidade Federal de Mato Grosso. Av. Fernando Corrêa da Costa, 2367, sala 38/FCA,
Boa Esperança, 78060-900, Cuiabá, MT, Brasil. dolorescristinagomesgalindo@gmail.com

Resumo. Neste texto, argumentamos que, nos Abstract. In this text, we argue that there is a dou-
shows de heavy metal Cristão, ocorre uma dupla ble production of presence in Christian heavy met-
produção de presença, na qual a figura do diabo al shows. The Devil, who is constituted as a pres-
se constitui como presença, por meio de materiali- ence, through materialities, at first secular, which,
dades, em princípio seculares, as quais, desinterdi- disinterested, act in the Christian metal. First, the
tadas, atuam no metal cristão. Primeiro, a presença presence of God, in the Word, taken as an actu-
de Deus, na Palavra, tomada como atualização do alization of the Divine in its material dimension,
Divino, em sua dimensão material, invocada para invoked to purge and banish the image of the devil
expurgar e banir a figura do diabo situado na forma situated in the individual form or in the form of the
individual ou na forma de legiões que lhe é atribu- legions assigned to it. Second, through organized
ída. Segundo, por meio de práticas organizadas na practices in the form of ministries in charge of the
forma de ministérios encarregados das chamadas so-called spiritual battles. Making diabolic gifts
batalhas espirituais. Fazer presentes elementos dia- present and then denying them is a crusade daily
bólicos para depois negá-los é uma cruzada reafir- reaffirmed in the Christian metal. The text has as
mada cotidianamente, no metal cristão. O texto tem theoretical contribution the studies on production
como aporte teórico os estudos sobre produção de of presence of Hans Gumbrecht (2010–2015) and
presença de Hans Ulrich Gumbrecht (2010–2015) e field research content on Christian heavy metal,
o material de pesquisa de campo sobre heavy metal and aims at contributing to delineate one of con-
cristão, e visa contribuir para delinear uma das prá- temporary neopentecostal practices and to discuss
ticas neopentecostais contemporâneas discorrendo the articulations between ministries created to
sobre as articulações entre ministérios undergrounds combat the devil and the heavy metal music linked
criados para combater o demônio e a sonoridade to the biblical discourse.
heavy metal vinculada ao discurso bíblico.

Palavras-chave: diabo, heavy metal cristão, neopen- Keywords: devil, Christian heavy metal, neopente-
tecostalismo, produção de presença. costalism, production of presence.

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC-BY 4.0), sendo per-
mitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Angela Mastella Coradini, Dolores Galindo

Introdução no neopentecostalismo, e como esta se dá por


meio de práticas de produção de presença.
Num presente ampliado, repleto de passa- Se o metal tradicional, desde sua criação, já
dos que não podemos deixar para trás e futu- trazia alguns traços relacionados ao obscuro
ros que nos reservam catástrofes e discursos em oposição ao cristianismo, o metal cristão
apocalípticos, a batalha travada por meio do intensifica fortemente uma presença diabólica,
metal cristão localiza-se duplamente na exacer- pois adiciona ao metal o cristianismo neopen-
bação de fenômenos de presença e na relação tecostal, uma corrente teológica que aposta em
insistente com o passado, o qual aparece na re- estratégias de exacerbação do dualismo, entre
memoração e fascinação pela imagem do dia- mal e bem, ainda que seja lembrá-lo, para de-
bo, características que atravessam tanto os me- pois bani-lo nos ritos de exorcismos. Mas esse
andros do neopentecostalismo como do gênero diabo neopentecostal em nada se aproxima
musical metal. A figura do diabo – que pertur- daquele de Milton – que o assimilava a um re-
ba, em seu iminente e repetitivo retorno, e por belde que preferiria reinar no inferno a servir a
essa razão precisa ser combatido – o descarte uma autoridade – aqui, ele é a construção que
eterno é uma promessa ainda a ser cumprida. reúne o “reino das trevas”, é o inimigo intole-
Argumentamos que nos shows de heavy rável, aquele de onde toda a adversidade ad-
metal cristão, vinculados ao neopentecostalis- vém, uma força capaz de irromper até mesmo
mo, ocorre uma dupla produção de presença: o corpo do crente, dominar espaço, fragilizar
de um lado, a figura do diabo que se constitui por gerações e interferir nas mais corriqueiras
como presença produzida por meio de mate- faces da vida cotidiana (Mariano, 2010).
rialidades, em princípio seculares, que desin- A presença da figura do diabo, no heavy
terditadas atuam no metal cristão; de outro, a metal cristão e nos ministérios undergrounds,
presença de Deus, na Palavra invocada para move-se numa sequência infinita. Como a
expurgar e banir o diabo, na sua forma in- respeito dos fantasmas, dos espectros, Erick
dividual ou na forma de legiões. Não é à toa Felinto lembra serem deslocados do fluxo do
que, nos ministérios undergrounds, usa-se a tempo e de uma linearidade de “produção,
expressão “ser tocado pela Palavra”. As pala- consumo e descarte” (Felinto, 2008, p. 49) e,
vras – para sermos mais precisos, “a Palavra” por isso, sempre podem retornar. Seja em sua
– ingressa nos shows como materialidade, pa- forma individual, seja na forma de legiões, a
lavra que toca, através dos corpos que se mo- figura do diabo e sua influência está, também,
vimentam e a ela respondem. A palavra não nessa lógica, inequivocamente, sempre prestes
necessitaria ser entendida, mas sentida: este é a reaparecer e interromper o fluxo normal do
um ponto importante para quem adentra nos tempo. Daí a necessidade dos neopentecostais
entremeios do estudo do neopentecostalismo. de que seja invocado para sua expulsão, antes
Essa dupla produção de presença se faz por que, em potencialidade, apareça intempestiva-
uma intricada conjunção de práticas, por meio mente e tome os corpos dos devotos descuida-
das ações de combate dos ministérios under- dos do ofício sacro com a palavra que os toca.
grounds, através das músicas que marcam os E esse movimento – de invocar e expulsar – é
shows; e, ainda, através dos atos de libertação tomado como uma necessidade cotidiana, na
das chamadas entidades demoníacas, expul- qual operações complementares entram em
sas pelo poder da Palavra. cena: o combate organizado através dos mi-
Para isso, este texto toma como ponto de nistérios cristãos undergrounds, e o tocar dos
partida as observações realizadas de duas corpos pelo metal cristão. Ainda, apesar desse
bandas de metal cristão (Antidemon, SP, e Me- metal cristão poder ser acessado por registros
norah, MT) e de dois ministérios undergrounds físicos (CD, DVD, vinil), ou mídias rádio, te-
(Crash Church São Paulo, SP, e Crash Church levisão e computadores (por meio de platafor-
Cuiabá, MT) (Coradini, 2013). Tal apontamen- mas online como Youtube, Deezer, Spotify, etc.),
to é importante, pois nossa intenção não é es- é nos shows que está sua maior potencialidade,
tabelecer discursos totalizantes sobre o metal na mediação proporcionada pela ambiência.
cristão, nem apresentar resultados descritivos Na primeira parte do texto discorremos
para caracterizar os ministérios e as bandas. sobre a modalidade de produção de presença
Pretende-se contribuir para delinear uma das da figura do diabo no contemporâneo. Em se-
práticas neopentecostais contemporâneas em guida, focamos na prática dos ministérios cris-
sua expansão para a música heavy metal: a de tãos que, paradoxalmente, ao que estabelecem
exacerbação da presença da figura do diabo, como missão, reforçam a presença da figura

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A figura do diabo como produção de presença no Neopentecostalismo Contemporâneo

do diabo como um outro a ser combatido. Por De todo o espectro de pesquisa em torno
fim, passamos a modalidade de produção de do conceito de materialidade da comunicação,
presença nos shows por meio da prática de to- “utilizado em todos os vários tipos de teoria
car os corpos via heavy metal cristão. de comunicação, que trabalham com alguma
noção de suporte material” (Hanke, 2005, p. 6),
A figura do diabo no talvez seja a noção de produção de presença
presente contemporâneo aquela que “aperfeiçoa” e dá dinâmica aos
processos desencadeados pela presença sem se
Vigora no neopentecostalismo – e no metal opor ao sentido, propondo uma oscilação en-
cristão – uma intensificação da presença da fi- tre eles (Gumbrecht, 2010). Na literatura, por
gura do diabo, que, à espreita, vigia os corpos exemplo, Diniz aproxima a ideia de presença
e é continuamente feito presente por práticas ao processo de imaginação, desenvolvendo
que visam a sua expulsão. Essa intensificação um modo de ler que se centra na “mobiliza-
encontra aporte em estudos que apontam no ção dos afetos e no envolvimento somático do
contemporâneo uma alteração na construção leitor no mundo das coisas” (2016, p. 10). No
sociomaterial do tempo que apresenta altera- espetacular, como prática “de se dar a ver ao
ções “nas concepções usuais de tempo e espa- outro”, segundo Icle (2010, p. 25) a presença
ço” (Gattas, 2007, p. 27), por meio de processos é essencial ao jogo que mobiliza elementos de
de destemporalização, destotalização e desre- presença e de sentido. Como no caso do tea-
ferencialização que desfazem, neutralizam e tro e dos shows musicais onde a dimensão da
transformam os efeitos das cascatas de moder- presença forma camadas que coadunam letras,
nização (Gumbrecht, 1998). O contemporâneo atuação/performance, iluminação, cenário, etc.
descrito como “amplo presente” apresenta-se Mas retornando ao contexto de nosso con-
poroso, sem contornos precisos e com mundos temporâneo, se há no amplo presente um cam-
simultâneos, também acionando um retorno po de tensão com dinâmicas que impulsionam
da atenção à dimensão da presença como par- em direções opostas: uma, que continua a di-
te constituinte da experiência e dos processos recionar, a partir do projeto de abstração do
de interação e não só como um meio para con- espaço, do corpo e do contato sensorial com o
teúdos ou significados (Gumbrecht, 2015). mundo; e a outra, a qual insiste na concretude,
Nesse contexto de mudanças na apreensão na corporalidade e na presença na vida huma-
das coisas do mundo, com uma atenção pro- na (Gumbrecht, 2015), é esse segundo direcio-
gressiva aos fenômenos de presença, à mate- namento que parece nos dar substrato para o
rialidade e ao corpo nas interações, as pesqui- interesse ferrenho dos neopentecostais pelas
sas apontam para perspectivas epistêmicas coisas do mundo e, principalmente, pela inser-
que trazem descrições do mundo que não se ção da figura do diabo como presença. E “pre-
baseiam unicamente em processos interpreta- sença” assinala uma referência espacial, como
tivos, mas que deixam ainda mais complexa a o que “está à nossa frente, ao alcance e tangível
tarefa crítica “ao incluir na própria existência para nossos corpos” (Gumbrecht, 2010, p. 39).
a sensualidade de estar-no-mundo” (Cardoso Dessa forma, quando, no cristianismo pro-
Filho e Martins, 2010, p. 152). Essa abordagem testante neopentecostal, o corpo (templo do
materialista dos problemas das ciências hu- Espírito Santo) perde a condição de inviolável,
manas surge como alternativa às teorias domi- e a possessão do corpo é temida – possibilida-
nantes de perspectivas construtivistas (Felinto de não compartilhada pelos adeptos do pen-
e Andrade, 2005) sendo debitaria de inúmeros tecostalismo clássico – os crentes recuperam
autores1 influenciados por impulsos para a re- uma dimensão material, física e espacial na
formulação das Humanidades que se consoli- religião. O temor ao diabo, que pode irromper
daram na década de 80. a qualquer momento (Felinto, 2008), torna-o

1
Alguns filósofos trazem questionamentos próximos ou apenas tangenciais, como a obra de Walter Benjamin que ten-
tava celebrar o “toque físico imediato dos objetos culturais”; o estudo de Friedrich Kittler, que oferecia uma tese “psico-
-histórica para o domínio do paradigma da interpretação nas Humanidades”; e o abandono da abordagem semiótica da
literatura, pelo medievalista Paul Zumthor (Gumbrecht, 2010, p. 29). Trabalho de outros filósofos também deixavam sua
centelha, como Jean-François Lyotard, que na época apresentava a exposição Les Imatériaux, com a tese de que “a revolu-
ção dos meios eletrônicos dera início a uma desmaterialização cada vez mais veloz da vida humana”; e Jacques Derrida,
que no início de seu trajeto filosófico havia defendido que “a indiferença sistemática da exterioridade do significante era
uma das principais razões para o predomínio devastador do logo-fonocentrismo” (Gumbrecht, 2004, p. 30).

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protagonista, juntamente e fazendo oposição a cas de expulsão de demônios que o refirmam


Cristo, na batalha espiritual pregada com afin- como presença, dando continuidade a um tipo
co pelo neopentecostalismo. E essa imagem de prática comum nas matrizes religiosas afro-
do diabo neopentecostal é fruto de uma lon- -brasileiras, conforme observa Mariz (1999).
ga modelagem, com diferenças significativas A presença do diabo é indispensável às
entre as características que predominavam na ações do cristianismo neopentecostal: pois,
era antiga, média, moderna e contemporânea, sendo o acusador do homem (Oliva, 2007) e o
e até mesmo nas religiões cristãs (Eco, 2007). princípio contrário a Cristo, seu papel é neces-
Na antiguidade – antes do século V –, o sário, sendo difícil definir o reino de luz sem fa-
mundo era permeado por uma visão monista zer referência ao reino das trevas. E, na história
que, influenciada pela concepção dualista dos da cultura, o “papel discriminatório, opressor,
gregos e dos povos do Antigo Oriente, faz o violento e sacrificial que a teologia da guerra
cristianismo adotar uma visão intermediária ao demônio desempenhou na civilização oci-
entre monista e dualista: a semidualista (Rus- dental, perseguindo minorias” (Mariz, 1999,
sel, 1991), na qual o “mal” entra no mundo p. 35), opera desde a perseguição aos judeus,
em consequência do livre arbítrio. Essa visão passando pela repressão da mulher, no com-
também acaba por dar uma nova dimensão de bate às bruxas, até os extermínios indígenas.
mundo ao cristianismo dividido entre sagrado Nas igrejas neopentecostais brasileiras, essa
e profano, que vem persistindo até os tempos guerra contra o diabólico expressa-se ainda na
atuais. A estética da figura do diabo começa opressão às igrejas de matriz afro-brasileira.
a surgir na idade medieval, desde o século Como bem destaca Silva (2012), nos rituais de
V, por meio dos artistas que precisavam dar expulsão, entram exus nos corpos e saem de-
“uma cara” para a “máscara sem rosto”, sendo mônios ou, ainda, terreiros são invadidos para
“construída sobre os escombros das antigas re- que neles possam ser quebrados: são ícones
ligiões que precederam ao cristianismo na his- afro-brasileiros transmutados em demônios.
tória” (Oliva, 2007, p. 53): assim, na construção A guerra espiritual assentada na figura do
do reino das trevas, os cristãos inseriram tudo diabo e dos demônios se acirra, no neopentecos-
o que devia ser negado no universo de valores talismo, que, a partir de 1970, no Brasil, intensi-
do reino de luz. É o inimigo com traços drama- fica o dualismo e os rituais de exorcismo voltam
tizados, os quais, num modelo clássico e an- à cena como práticas cotidianas. O dualismo
tagônico, são opostos à expressão em formas ganha um bônus com a Teologia do Domínio2
harmônicas e proporcionais, própria do belo; (nome que advém da crença de que os demô-
de fato, na contramão, a figura do diabo car- nios podem dominar), em que há uma batalha
rega tudo que não é belo e, também, por essa contra demônios específicos e espíritos geográ-
razão, intolerável (Eco, 2007). ficos e hereditários, os quais oprimem e domi-
Nas viagens de colonização às Américas, a nam pessoas e lugares, pois, segundo Mariano,
imagem do diabo sobe nas caravelas, navega tudo o que ocorre “‘no mundo material’ decorre
ao mar e adentra novos territórios junto aos da guerra travada entre as forças divina e demo-
cristãos no Novo Mundo e espalha-se fulmi- níaca no ‘mundo espiritual’” (2010, p. 113).
nantemente, passando a habitar religiões e É no temor do domínio do corpo – corpo
culturas não europeias. Propaga-se, dentre este que tem uma barreira de proteção contra
outros modos, pela demonização de práticas os demônios, a qual pode ser quebrada (Oliva,
locais, a exemplo do Brasil, onde a acusação 2007) – que reside a dinâmica do combate
de diabólico recobre as ações que iam contra o permanente à qual os neopentecostais parecem
empreendimento colonial ou a elas se mestiça- estar presos. De fato, a figura do diabo não res-
vam, produzindo novas facetas. Enquanto, no ponde à lógica do nascimento, vida e morte, e,
pensamento científico, a figura do diabo len- por estar fora, não pode ser descartado plena-
tamente perde espaço e, no século XIX, a Filo- mente. É ele uma entidade próxima à fantas-
sofia Iluminista deixa que sua inquestionável mática, “que retorna após seu aparente térmi-
existência seja posta em cheque, juntamente no”, e cuja duração não mede uma sequência
com o declínio da crença nos exorcismos (Oli- linear – “produção, consumo, descarte”, argu-
va, 2007), no cotidiano, recrudescem as práti- menta Felinto (2008, p. 49) e, por extensão,

2
Chamada de Power Encounter ou Dominion Theology, nos Estados Unidos, essa teologia exerce forte influência no pente-
costalismo e neopentecostalismo brasileiro (Mariano, 2010).

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A figura do diabo como produção de presença no Neopentecostalismo Contemporâneo

pode-se argumentar o mesmo sobre o diabo de que os envolve. Fascinação que se expressa por
entendido como produção de presença. certa avidez em se apropriar de tudo aquilo que,
Assim, numa visão dualista de mundo produzido para finalidades mundanas ou não-re-
onde vigora um conflito entre trevas e luz, a ligiosas, mostra-se simbolicamente e esteticamente
sedutor, mobilizador de atenção, consumível em
figura do diabo, em seu protagonismo, tem o
grande escala, racionalizador de esforços. Mídia,
retorno sempre iminente e repetitivo, de modo marketing, computação, internet, artes visuais,
que, mesmo após aparentes términos (exorcis- moda, estética moderna, músicas profanas, estilos
mos), insiste em voltar. Resta aos neopente- e comportamentos de vanguarda, rapidamente são
costais o combate cotidiano, pois faz parte das incorporados, ressemantizados ou instrumentali-
“coisas que nos perturbam precisamente pelo zados individualmente e institucionalmente por
fato de não obedecerem a essa regra geral” dos crentes e grupos de todas as vertentes evangéli-
descartes (Felinto, 2008, p. 49). cas para incrementar a pregação e divulgação do
Tanto os ministérios quanto as bandas de Evangelho (Jungblut, 2007, p. 145).
heavy metal cristão flertam, duplamente, com
a exacerbação da presença da figura do diabo O tradicional rigor e sectarismo dão espaço
e com o contraponto do toque salvador, pois a novas formas de se relacionar com a cultu-
ambos estabelecem continuidades e descon- ra envolvente e com a sociedade (Gumbrecht,
tinuidades com o metal secular e o neopente- 2010, 2015): o apreço pela materialidade, o cui-
costalismo. Tais continuidades e descontinui- dado do corpo, a deglutição das expressões
dades aparecem na adoção de usos estéticos e artísticas mundanas etc. Quase tudo está de-
sonoros do heavy metal, mas também na nome- sinterditado, quase tudo já pode ser sacraliza-
ação de diabólico aquilo do metal que não está do! As fronteiras entre cristão e mundano se
em acordo com o evangelho; ao mesmo tempo, tornam tênues. Se a conexão com Deus deveria
por serem dissidentes de instituições neopen- ser alcançada pelo asceticismo ao mundo – em
tecostais mantêm a intensa essa batalha, contu- sua materialidade e cultura –, na prática neo-
do, focam grupos minoritários não acessados pentecostal, essas coisas do mundo passam a
por essas igrejas. E é a Teologia do Domínio ter função na relação com o sagrado: ou seja,
(Mariano, 2010) e da Batalha (Mariz, 1999) que a cultura do mundo, ao ser inserida no cristia-
vai oferecer suporte, igualmente imersas em nismo, traz também sua materialidade.
muito metal cristão, travadas contra os deno- No seio dessas desinterdições e capturas de
minados e móveis domínios das trevas. práticas, ganha corpo um movimento cultural
evangélico direcionado à juventude e que apos-
Para combater o diabo, ministérios ta em espaços e práticas sintonizadas com a
undergrounds e desinterdição cultura secular contemporânea, dando origem
a organizações interdenominacionais e parae-
O lugar incomum ocupado pelos ministé- clesiásticas, como os Surfistas de Cristo, a Or-
rios underground constitui uma das faces que ganização Palavra da Vida e Tribal Generation
emergem a partir do que Jungblut (2007) chama – Novas Igrejas para a Nova Geração, além de
de desinterdição de áreas de mundanidades, grupos de evangelismo alternativo, como os mi-
um forte processo instrumentalização de ações nistérios underground. Alguns exemplos de mi-
não cristãs, articulado principalmente pelo ne- nistérios underground são a extinta Comunida-
opentecostalismo, o qual insere manifestações de Zadoque, hoje Crash Church Underground
musicais, estéticas e midiáticas no cotidiano das Ministry (São Paulo), Caverna de Adulão (Belo
igrejas, alterando a estereotipada aparência dos Horizonte), Manifesto Underground (Uberlân-
crentes. Pintam os cabelos, usam brincos, vão a dia), Ministério Metanoia (Niterói), Ministério
festas, dançam, praticam esportes, etc. – e as ex- Underground Ossos Secos (Florianópolis), Mis-
tensões podem continuar com o uso de piercin- são Urbana Ossos Secos (João Pessoa), Caverna
gs, alargadores e tatuagens. O que ainda não é do Rock Missões Urbanas (Juiz De Fora), Jocum
permitido são os excessos de bebidas alcoólicas, Underground (Goiânia) (Cardoso, 2012); nos
drogas, sexo fora do casamento, diversidade se- Estados Unidos, o primeiro ministério under-
xual e afetiva, pornografia, frequência a bares e ground, Sanctuary - The Rock and Roll Refuge,
casas noturnas e participação no carnaval. Com foi formado pelo Pastor Bob Beeman, em 1984.
efeito, constata-se Embora tenham em comum a mobilização em
direção à juventude, esses espaços nem sempre
[...] uma inusitada, e aparentemente paradoxal, estão sob a teologia neopentecostal. Suas confi-
fascinação de muitos evangélicos pela mundanida- gurações de crença e práticas vão seguir o ema-

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ranhado de influências que se deram a partir de interior da Renascer em Cristo, particularmen-


seus fundadores, seja na dissidência de igrejas, te com a formação do Ministério Christian Me-
seja na aglutinação em todos de pastores ex- tal Force”, seguido posteriormente pela Igreja
-membros (Mariano, 2010). Evangélica Quadrangular, com o Refúgio do
Na mesma esteira, o aumento de volume do Rock, o qual adota o trio bateria, baixo e gui-
movimento gospel também impulsiona espa- tarra, na década de 80, e aceita o rock/metal
ços possíveis para os ministérios underground e como um ritmo lícito para falar de Deus, de
bandas de metal cristãs, visto que, desde os anos sua obra e glorificá-lo (Pinto, 2009, p. 160).
1980, quando lançado por congregações batis- Ao não encontrar espaço suficiente para ex-
tas, metodistas, presbiterianas e, posteriormen- pressão dentro das instituições, a extremida-
te, encabeçado, fomentado e difundido pelos de do heavy metal vazou e se constituiu como
neopentecostais, o gospel passou a incorporar ministérios independentes – como a Zadoque,
todos os ritmos musicais, até mesmo sem ex- fundada em 1998, ativa até 2006, formada por
cluir aqueles “vinculados à dança e a maneiras jovens dissidentes da Renascer em Cristo e
sensuais como lambada, e a valores e estilos de pelo pastor e vocalista Batista.
vida opostos ao dos crentes, como funk, rap, rock,
e metal” (Mariano, 2010, p. 213). Embora enfren- Quase que 90% do meio evangélico tem precon-
tando resistências e acusações de mundanismo ceito contra nós, e do meio do metal também, por
e desvio doutrinário, a captura de práticas foi achar que nós não podemos usar essa música.
preenchendo os espaços cristãos e fornecendo Nós estamos na contra mão do sistema total, do
musicalidade para fins conversionistas. sistema religioso e do sistema heavy metal que
No ministério underground Crash Chur- também nos agride, vai contra nós por aquilo
que nós fazemos, por dizer: “não essa música é de
ch São Paulo, é possível visualizar todos os
Satanás você não pode falar de Deus”, e o evan-
apontamentos feitos nos parágrafos anterio-
gélico fala: “não rock é do Diabo”. Desde criança
res, alcançando a empreitada proselitista da ouvimos isso, que o rock é do Diabo, e eu acredito
musicalidade, tendo na banda de death grind que a música é para expressar o que se acredita,
Antidemon o principal meio de evangelização. o que está dentro do coração (Batista, 2014, s/p.).
O ministério foi fundado em 2006, pelo vocalis-
ta e pastor Batista, antecedido por reuniões no A Crash Church São Paulo se estende e fun-
Parque do Ibirapuera-SP e pela Comunidade da a Crash Church Cuiabá, liderada pelo Pas-
Zadoque, igualmente fundada e liderada pelo tor Regi, o qual segue os mesmos moldes es-
Pastor Batista, após seu desmembramento da téticos e doutrinários de sua precursora – essa
igreja neopentecostal Renascer em Cristo. Foi filial, conduzida por outro pastor, tem no pas-
durante o período na Renascer em Cristo que tor de sua matriz o que é chamado de “cobertu-
Batista criou a banda, em 1994: ra espiritual”. A Crash Church Cuiabá também
apresenta como ferramenta de evangelização
O rockeiro veio primeiro. Veio o instinto para fazer
uma banda de heavy metal cristão, a Menorah,
essa música com essa mensagem, e a igreja (Crash
Church) foi nascendo naturalmente, foi uma con-
que contempla o subgênero thrash metal, criada
sequência desse trabalho de fazer o rock com uma em 2004, quando os membros faziam parte de
mensagem específica (Batista, 2014, s/p.). uma igreja histórica avivada. Antidemon e Me-
norah, enquanto exemplares do metal cristão,
E sobre o ministério, a Crash Church destaca: vão desenvolver subgêneros específicos, pro-
curando potencializar, por intermédio das es-
A Crash Church é uma igreja evangélica que téticas diabólicas, da sonoridade e da Palavra,
abriu as portas para as pessoas que foram rejei- acesso ao corpo de grupos específicos.
tadas pela sociedade por seu visual diferente e da Assim, podemos afirmar que, se os mis-
música que ouvem, integrantes das tribos urba- sionários são guerreiros espirituais, que, caso
nas – como os roqueiros, góticos e outros movi- houver necessidade, até mesmo aos exorcis-
mentos underground. Mas também tem espaço
mos podem recorrer como instrumento de
para quem nunca se envolveu com isso, mas sente
a necessidade de buscar a Deus com liberdade e evangelização (Mariz, 1999), pois o medo de
sinceridade (Texto da Crash Church distribuído ser possuído, sem permissão e/ou permanente-
em seus eventos). mente, torna necessárias técnicas que impeçam
e/ou desfaçam a possessão (Gumbrecht, 2010),
A banda Antidemon, essencial para as ati- os músicos das bandas podem exercer esse pa-
vidades do ministério underground, surge “em pel de guerreiros, através dos ministérios un-
meio a um cenário gospel que despontava no derground e nas bandas cristãs de heavy metal.

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A figura do diabo como produção de presença no Neopentecostalismo Contemporâneo

Tradicionalmente, missionários são aque- Black Sabbath: a banda primordial, a origem do


les cristãos enviados para todos os cantos da heavy metal (Christe, 2010, p. 13).
terra, no intuito de propagar a mensagem do
evangelho, seja no catolicismo, seja no protes- Toda essa complexidade ganhou corpo ao
tantismo. Todavia, a partir do momento em longo dos anos, e apesar do uso extremo do
que o convívio com outras culturas se tornou trio bateria, baixo e guitarra, e do potencial de
permanente – no caso dos músicos cristãos ensandecimento dos corpos por ondas de co-
que estão frequentemente nos ambientes se- ordenação e choque, o heavy metal também é
culares –, ser missionário adquiriu igualmen- parte de uma indústria cultural que “não deixa
te um viés diário, solicitando que o cristão de endereçar-se a um público que espera justa-
não se deixe invadir pelas coisas do mundo, mente esse tipo de posicionamento em relação
estando nos lugares sem se deixar influenciar a determinadas regras semióticas, técnicas, eco-
por aquilo que os envolve, sendo luz e diferen- nômicas e sociais que servem como referência a
ça (Coradini, 2013) na cultura externa à igreja esse subgênero musical” (Janotti Junior, 2007, p.
assimilada ao secular. As “despossessões”, si- 4). Nesse sentido, possui uma estrutura e um re-
tuações rotineiras nas igrejas neopentecostais pertório hipercodificado que pode ou não fazer
(Mariano, 2010) e que configuram a expulsão parte de estratégias massificadas de distribuição
de uma entidade diabólica que ocupa deter- mediática, mas também possui uma distribui-
minado corpo, no metal cristão, ocorrem por ção alternativa focada em segmentos de públi-
meio da música que toca os corpos e introduz cos (Cardoso Filho, 2006). Os elementos como a
o evangelho. “agressividade” no comportamento, o preto e
o metálico na vestimenta, a velocidade, altura e
Para tocar os corpos: Heavy metal, peso nas composições, a “rebeldia” e “protesto”
a figura do diabo e evangelho nas letras das canções fornecem uma mistura
efervescente alimentada por mitos, palcos per-
Pensar em heavy metal cristão, a princípio, formáticos e figuras excêntricas, num visceral
parece-nos um tanto contraditório e tensor, já impulso de expressão e escape. É uma estrutura
que o gênero musical heavy metal ao projetar- potencial levada, pelos músicos cristãos, para
-se como expressão artística de “obscuridade” os meandros do cristianismo, tornando o hea-
e “agressividade”, com raízes sonoras em gê- vy metal parte do conglomerado de repertórios
neros como blues, rock and roll, música clássica, desinterditados, agora também, ativos para a
jazz e ópera, impulsionados pelas engrenagens expressão religiosa e diálogo com um público
juvenis, tribais e marginalizadas, parece, tam- específico. Passando pelos intentos incorpora-
bém, distanciar-se do cristianismo. dores do cristianismo, nenhum dos subgêneros
A sonoridade e o comportamento dos me- do heavy metal escapou às bandas cristãs.
taleiros horrorizavam a comunidade cristã Esse avanço dos músicos cristãos sobre os
desde o irromper do heavy metal no início dos subgêneros do rock e do metal, iniciou mun-
anos 70, descrito por Ian Christe (2010). dialmente na década de 1970, constituindo os
primeiros exemplares com Resurrection Band
No início havia apenas o céu, em sua noturna e (1972) e Jerusalem (1975), com uma musicali-
sombria extensão, e o desconhecido. Os mais pro- dade hard rock tendendo para metal tradicional,
fundos segredos da história – que só poderiam ser e, nos anos 90, com Whitecross (1986) e Stryper
reanimados por forças tão antigas quanto a pró- (1993), no glam metal, e o Mortification (1990),
pria civilização – revolviam nesse inquieto limbo, no thrash metal, a primeira a alcançar maior
onde tudo era acinzentado, fumacento, escuro e reconhecimento, com seu álbum Scrolls of the
sagrado. Essas poderosas correntes – por tanto
Megilloth (1992) difundido também no merca-
tempo esquecidas e adormecidas até que a guerra,
a crise e a angústia pudessem despertar e trazer à do secular. Nessa época, algumas bandas cir-
tona seus mais horrendos poderes – não possuíam culavam no Brasil: Átrios (Rio de Janeiro-RJ),
definição nem emitiam sons até serem capturadas Calvário (São Paulo-SP), Stauros (Itajaí-SC) e
e subjugadas por uma epifania conhecida como Antidemon (São Paulo-SP)3 são as primeiras

3
Sua primeira formação trazia Batista (vocal e baixo), Elke (bateria) e Kleber (guitarra); entre os anos de 1995 e 1998, gra-
vou três demo-tape (K7) e participou da coletânea em LP Refúgio Rock. Em 1999, lançou o álbum Demonocídio, de forma
independente; em 2002, o álbum Anillo de Fuego, durante uma turnê pelo México; em 2009, o álbum Satanichaos, igualmen-
te de forma independente; e, em 2012, o álbum Apocalypsenow, lançado pela gravadora australiana Rowe Productions.
A banda realiza turnês internacionais frequentemente, já passou por mais de 30 países, em quatro continentes, e traz no
conteúdo de suas letras críticas sociais e a luta contra o inferno.

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Angela Mastella Coradini, Dolores Galindo

a ganhar destaque e lançar álbuns por de da música metal, estão dançando ao movi-
gravadoras evangélicas e independentes, mas mentar-se sob a mesma sonoridade. E, para
é a Antidemon (2012), com som death grind, Gumbrecht (2012), os movimentos do corpo
que se torna conhecida internacionalmente e – quando dança – estabelecem uma associação
a principal referência do heavy metal cristão no entre música, ritmo e atmosfera. Segundo o
Brasil (Sousa, 2011). autor, a música e o ritmo são molduras para os
Continuando sua empreitada, os músicos movimentos de dança do corpo, são realidade
cristãos logo alcançam o metal extremo, com percebidas por todo o corpo, não apenas pelos
bandas como a Paramaecium (1991), a qual se ouvidos, podendo fornecer concentração de
transforma em uma das maiores de doom me- energia e, enquanto capazes de afetar os cor-
tal, e a Horde (1994), a primeira de black me- pos, compõem “um relacionamento material
tal, com letras que faziam oposição aos temas com o ambiente”, atmosfera, em que estamos
mais comuns do subgênero. A letra da música inseridos (Gumbrecht, 2012, p. 116).
Invert the Inverted Cross, e o título do álbum, Nos shows de metal cristão, o som dissonan-
Hellig Usvart, deram origem à expressão un- te e tensor proporcionado pelo trítono (inter-
black metal, usada em algumas referências valo entre alturas de duas notas musicais que
para designar o black metal feito por músicos possui três tons inteiros), usado como base
cristãos. Outras bandas também se dedicam a do metal e que carrega o adjetivo de diabó-
um som que se aproxima ao black metal, como lico, desde a Idade Média (Metal Evolution,
Crimson Moonlight (1997), Divine Symphony 2011), acaba por embalar movimentos de cor-
(2001) e Antestor (1990). Nesse conglomerado, pos colocados em frente ao palco que querem
é importante lembrar que nem todas as bandas adorar. O som das técnicas vocais, gutural
de heavy metal que se autodenominam cristãs (som rouco, grave e profundo) e screamo (vo-
são neopentecostais, há exemplares por todas cal rasgado com distorção onde o que é dito é
as vertentes cristãs e, também, algumas que pouco distinguível), carrega “A Palavra” até
não estão ligadas a nenhuma denominação, os corpos. O adereço conhecido como “chi-
em específico. frinho” (meloik: proteção contra mau-olhado),
Contudo, como toca esse metal cristianiza- movimento feito com os dedos indicador e
do? Essa aproximação entre manifestações ar- mindinho das mãos (inserido pelo músico
tísticas e cristianismo começa a ser discutida Dio, no mundo do metal) remodelado por al-
por autores cristãos protestantes, como Hen- guns metaleiros cristãos que fazem o mesmo
derik Roelof Rookmaaker e Francis Schaffer, movimento invertido, convoca os corpos à
no início dos anos 1970, e é colocada como ca- propulsão da música. Essas várias materiali-
paz de “criar a atmosfera na qual vivemos”, dades do metal, ritmo, música, gestos, movi-
onde a maior influência da arte na vida das mentos corporais etc., conjugam um aparato
pessoas seria “no aspecto que mais se parece que concerne a um meio para as ações prose-
com o encanamento e que não percebemos”, litistas, justamente por sua potencialidade de
pelo qual “a mentalidade transmitida pela arte tocar os corpos enquanto presença. É o heavy
é importante” (Rookmaaker, 2010, p. 38-39). metal inserido na religião e instrumentalizado
Ao mesmo tempo, Rookmaaker apontava uma para proselitismo.
prostituição da arte, ao ser usada para prega- Se os movimentos dos dedos indicador
ção: “um meio para o fim de ganhar almas” e anelar, das mãos do vocalista, vão na dire-
(Rookmaaker, 2010, p. 37). Assim, o que parece ção para baixo, objetivam expulsar demônios:
vigorar, de maneira geral, no metal das bandas mas só o podem fazer por tomá-los como pre-
cristãs – e talvez em outros gêneros musicais senças a serem combatidas pela Palavra que,
incorporados – é não só criar atmosferas em também como presença, toca os corpos dos
cultos, ou eventos midiáticos, para configurar que frequentam os shows. É um duplo jogo de
modos de transmitir aquilo em que acreditam, captura, no qual o que se quer expulsar se faz
mas também ser um instrumento de aproxi- presente, exatamente, no ato mesmo da expul-
mação: um meio, ou uma liga, algo que traz são. E expulsar, desvelar o que está escondido,
mais para perto os corpos dos músicos cristãos libertar-se das ataduras da morte, são ações a
e não cristãos que se movimentam sob a mes- serem exercidas pelos metaleiros cristãos neo-
ma sonoridade. pentecostais, seja em shows em espaços alter-
Mediados pelos elementos de ambiência nativos, seja em encontros específicos para es-
dos shows, ao baterem cabeça, chocarem-se, sas metas, como se nota em trechos de diários
saltarem, os corpos estão imersos na ritmida- de campo, nas falas dos vocalistas:

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A figura do diabo como produção de presença no Neopentecostalismo Contemporâneo

É hoje! Quinta Feira 11 de junho de 2015, mal, numa cruzada moralista sobre os modos
retornamos com a nossa Reunião de Libertação de vida, de maneira que os ministérios under-
e uma dose de Batalha Espiritual. Esperamos grounds e seu metal instrumentalizado operam
vocês... Nenhum de nossos inimigos espirituais por meio da Teologia do Domínio, num mun-
ficará escondido! (Batista Antidemon, 2015a,
do onde a figura do diabo está introduzida em
s/p.).
todas as áreas da vida cotidiana. E, ao lado da
Nessa Quinta feira dia 16 de julho de 2015 às luz (bem), parecem presos ao eterno combate:
20 horas... Noite de Libertação na Crash Church associados a uma lógica de convocação e ex-
Underground Ministry. Será uma continuação pulsão, visto que não há como definir o reino
pratica da Ministração que ocorreu no último de luz, sem fazer referência ao reino das trevas
domingo... onde confrontaremos as ataduras da – o diabo enquanto acusador do homem é o
morte que de alguma maneira ainda estão tentan- princípio contrário a Cristo.
do nos prender (Batista Antidemon, 2015b, s/p.). Permanecem, ministérios e suas bandas de
metal, nessa dupla operação de fazer presentes
No entrecruzamento entre heavy metal e elementos diabólicos, para depois negá-los:
textos do evangelho, os corpos estão imersos numa cruzada, reafirmando cotidianamente
na presença da sonoridade e na presença da a necessidade do exercício de livrar-se da in-
Palavra: e todas essas potências são capazes fluência – expulsar a presença – de um diabo
de tocar os corpos. Parece-nos que os ministé- fantasmático, feito presente, por suas próprias
rios undergrounds e suas bandas de metal vão práticas – para que, paradoxalmente, se man-
operando uma produção de presença sempre tenha longe. Enfim, é no tocar o corpo que se
dualista: simultaneamente, convocando a pre- dá a batalha travada: o metal potencializa a
sença de Deus e da figura do diabo. Comba- presença da figura do diabo para tocar os cor-
tem, organizadamente, o mesmo mal, imersos pos, e a Palavra, enquanto potência de Deus,
na sonoridade do heavy metal. também toca os corpos. Deus e a figura do dia-
bo entram num jogo de múltipla captura e in-
Considerações finais dissociabilidade, nas práticas neopentecostais.

É na espacialidade e na presença que se Referências


marca o dualismo entre bem e mal, trazendo
o estilo metal como um meio propício para o ANTIDEMON. 2012. Antidemon Home Page. Dis-
contraponto entre o toque da figura do diabo ponível em: http://www.antidemon.net/home.
html. Acesso em: 25/06/2012.
e da Palavra. Essas referências ao físico e ao BATISTA, A.C. 2014. Antônio Carlos Batista fala
espacial tornam o metal cristão, e seu entre- sobre sua igreja de Heavy Metal: depoimento.
meio, uma expressão que parece insistir na Entrevista concedida ao Programa Jô Soares, em
concretude, na corporalidade e na presença, 16 de julho de 2014. Disponível em: http://glo-
na contemporaneidade. O heavy metal cristão botv.globo.com/rede-globo/programa-do-jo/v/
alinhava um estilo musical e seu modo de vida pastor-antonio-carlos-batista-do-nascimento-
-fala-sobre-sua-igreja-de-heavy-metal/3502681.
– o metal – com a normalização de regras reli-
Acesso em: 02/06/2015.
giosas rígidas para os modos de vida de quem BATISTA ANTIDEMON. 2015a. Publicação de di-
se converte nas cruzadas neopentecostais. vulgação de culto em perfil de Facebook. Fa-
Traduzido a partir do heavy metal tradicional, cebook, 11 de junho de 2015. Disponível em:
apresenta uma dimensão material composta http://www.facebook.com/batistaantidemon.
de confluências: roupas pretas, coturnos, cabe- Acesso em: 10/10/2015.
los longos e tatuagens que cobrem os corpos BATISTA ANTIDEMON. 2015b. Publicação de di-
vulgação de culto em perfil de Facebook. Face-
de quem serve a Deus; movimentos agressi-
book, 16 de julho de 2015. Disponível em: http://
vos, gritos, socos e sonoridades obscuras com- www.facebook.com/batistaantidemon. Acesso
põem ações de louvar; paredes pretas, pouca em: 10/10/2015.
luminosidade e som pesado estão regidos por CARDOSO, D.S. 2012. Religiosidades Juvenis In-
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tra o diabo. Internacional sobre a Juventude Brasileira, V,
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Nos shows, os movimentos de desinterdição tude, Anais... 1:1-11.
de mundanidades intentam atravessar seu pú- CARDOSO FILHO, J.; MARTINS, B. 2010. Presença
blico, infiltrando-se em espaços “sob o domí- e Materialidade na Experiência Contemporâ-
nio das trevas” para travar batalhas contra este nea. Revista Alceu, 11(21):145-161.

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