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28/06/2020 Afã de integrar Amazônia levou a desmatamento e morte de índios - 27/06/2020 - Poder - Folha

EDIÇÃO IMPRESSA

Fabiano Maisonnave

MANAUS Sob o lema nacionalista de “integrar para não entregar”, a ditadura


transformou a Amazônia para sempre.

Rasgou a floresta com milhares de quilômetros de estrada, construiu hidrelétricas e


fomentou projetos agropecuários colonizadores.

No processo, causou a morte de alguns milhares de indígenas e abriu caminho para o


desmatamento ilegal e desordenado que perdura até hoje.

Era a época do “Brasil Potência”, e o regime tinha pressa em avançar sobre o que
chamava de deserto verde. Em 1970, foi lançado o PIN (Programa de Integração
Nacional), que previa a construção de rodovias e projetos de colonização.

A rodovia Transamazônica (BR-230) estava no centro do projeto. Em meio a uma forte


seca no Nordeste, a geopolítica militar havia encontrado na obra a solução mágica:
“Terras sem homens para homens sem terra”.

Quatro anos mais tarde, o presidente Emilio Médici inaugurava a estrada, com mais de
4.000 km entre Lábrea (AM) e Cabedelo, no litoral da Paraíba. “Conquistar a imensa
área verde e construir um grande e vigoroso país”, anunciava a placa comemorativa.

A Amazônia não era desabitada, mas, para o regime, os “silvícolas”, termo empregado
à época, eram mero obstáculo ao progresso. Esse desprezo se traduziu em
deslocamentos forçados, doenças, confrontos e genocídio.

No caminho da Transamazônica, os assurinis, habitantes do Médio Xingu, perderam


quase metade da população, tragédia comum a diversas etnias da Amazônia que até
então viviam em isolamento.

Essa mistura de colonização desordenada com atropelo aos povos indígenas se repetiu
na construção de outras rodovias. É o caso da BR-163 (Cuiabá-Santarém), hoje
importante via de escoamento da soja de Mato Grosso, mas também foco de
desmatamento e garimpo ilegais e que quase levou o povo panará à extinção.

“As compensações feitas para as comunidades indígenas são ações muito pontuais”,
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afirma a liderança Zezinho Kaxarari, cujo povo, que vive na divisa entre Rondônia,
Acre e Amazonas, sofreu com os impactos da BR-364, no trecho entre Porto Velho
(RO) e Rio Branco (AC). “Para os povos indígenas, os danos causados serão para o
resto da vida.”

Diversos povos tentaram resistir. Um dos episódios mais violentos ocorreu na


construção da BR-174, entre Manaus e Boa Vista, atravessando o território waimiri-
atroari.

Depoimentos de sobreviventes ao Ministério Público Federal relatam helicópteros


sobrevoando aldeias para lançar veneno e bombas, entre outras atrocidades. A
Comissão Nacional da Verdade estima em 2.600 mortes no confronto. O Exército,
porém, nega qualquer ação ilegal.

Árvores queimadas e derrubadas para a construção da rodovia Transamazônica em Manaus, no Amazonas,


em 1984 - U.Dettmar/Folhapress

“Ao contatar povos indígenas isolados, na época chamados pejorativamente de


‘arredios’ ou ‘hostis’, a fim de liberar o terreno para obras de construção civil, os
agentes do governo provocaram enorme mortalidade entre os índios. Essa sequência
de mortes deu origem a uma segunda característica da ditadura: a ocultação dos dados
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e dos fatos. Os militares odiavam a palavra ‘genocídio’ e procuravam negá-la a


qualquer preço”, diz o jornalista Rubens Valente, autor do livro “Os Fuzis e as Flechas”
(Companhia das Letras).

“É preciso reconhecer que essa estratégia de negação teve sucesso, pois entre muitos
brasileiros a noção de que crimes foram praticados contra indígenas nunca foi
devidamente introjetada e explicada. A política do silêncio se estendeu pelas décadas
seguintes, pois até hoje as Forças Armadas nunca pediram nenhum tipo de desculpa
pelas mortes, doenças, perda dos territórios e outros crimes cometidos contra os
indígenas”, diz o colunista do UOL (empresa que tem participação acionária
minoritária e indireta da Folha).

As estradas abertas pela ditadura na Amazônia abriram caminho para um processo


desordenado de ocupação do território por pessoas de outras regiões do país, marcado
pela precária regularização fundiária, pela grilagem e pelo desmatamento ilegal.

Esse impulso continua forte. Um levantamento recente do Ministério Público Federal


mostra que 9 das 10 áreas da Amazônia com maior incidência de desmatamento em
2019 estão na zona de influência de rodovias construídas durante o regime militar.

A lista inclui municípios à beira da Transamazônica, como Anapu (PA) e Apuí (AM);
São Félix do Xingu (PA), sob influência da PA-279; áreas de Rondônia, Acre e
Amazonas próximas à BR-364; e Novo Progresso (PA), cidade surgida com a
construção da BR-163.

Do ponto de vista econômico, o processo de colonização impulsado pela ditadura tem


sido desigual entre as regiões da Amazônia Legal. Por um lado, a soja gerou riqueza
em algumas regiões, principalmente em cidades ao norte de Mato Grosso, como Sinop,
às margens da BR-163.

Mas a maior parte da floresta derrubada deu mesmo lugar a uma pecuária de baixa
produtividade. Segundo levantamento do projeto TerraClass, uma parceria entre o
Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais) e a Embrapa, a Amazônia Legal
possuía 12 milhões de hectares de pasto degradado, comparável ao tamanho de três
Estados do Rio de Janeiro. O cálculo foi feito em 2014.

De acordo com o ecólogo Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da

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Amazônia), a construção das estradas amazônicas tinha mais cálculo político do que
econômico.

“No caso da Transamazônica, foram dez dias entre a visita do Médici aos flagelados
[pela seca] e o anúncio da estrada. Não houve tempo para nenhum tipo de análise nem
nada”, afirma.

“A BR-319 [Manaus-Porto Velho] não tinha nenhum raciocínio econômico. Era tudo
paranoia de que a Amazônia seria tomada pela cobiça internacional.”

Ao longo da Transamazônica, onde milhares de colonos se desfizeram dos lotes logo


nos primeiros anos, os pastos subutilizados ou abandonados se perdem de vista.

Centros urbanos sobrevivem de repasses federais e de atividades ilegais,


principalmente garimpo, extração de madeira e grilagem de terras públicas.

Um deles, Itaituba (PA), se tornou o centro do garimpo ilegal de ouro no Brasil. Essa
posição já pertenceu a Serra Pelada, que, no final dos anos 1970 e ao longo dos anos
1980, se tornou a maior mina a céu aberto do mundo.

Em ambos os lugares, a riqueza gerou passivos ambientais, como a contaminação por


mercúrio, sem benefícios socioeconômicos relevantes.

Curionópolis (PA), município onde se localiza Serra Pelada, aparece em 3.378º lugar
no ranking do Atlas do Desenvolvimento Humano, enquanto Itaituba está em 3.291º,
em lista com 5.565 municípios.

Todos os 15 piores municípios do ranking, parceria entre o Pnud (Programa das


Nações Unidas para o Desenvolvimento) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada), estão na Amazônia Legal.

Com desenvolvimento humano tão baixo, não é surpresa que a importância econômica
da Amazônia seja pífia.

Meio século após o lançamento do PIN, a região representa 8,7% do PIB de 2017, o
ano mais recente disponível. Em comparação, a cidade-região de São Paulo responde
por 24,6% do PIB brasileiro.

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