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Juliana Duarte
2013
Sumário
Capítulo 1_______________________________________________5
Capítulo 2______________________________________________23
Capítulo 3______________________________________________47
Capítulo 4______________________________________________80
Capítulo 5_____________________________________________118
Capítulo 6_____________________________________________165
A Guerra dos Esquecidos
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Capítulo 2
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A Guerra dos Esquecidos
– Muito bem, senhor – disse o príncipe, por fim – que seja feita sua
vontade.
O ministro esfregou suas dez mãos, extremamente satisfeito. Não
podia ver a expressão de seu rosto coberto de tecido, mas era visível seu
contentamento.
Rosto de Pano retirou do bolso uma chave dourada e entregou nas
mãos do príncipe.
– Amanhã ao nascer do sol você deverá dirigir-se ao celeiro do sul –
explicou o ministro – abra a porta e aguarde na torre mais alta. Seu
mestre virá até você. Esteja preparado.
Hauolimau curvou-se ligeiramente em agradecimento. Colocou a
chave no bolso do manto branco e, com a permissão do ministro,
retirou-se da sala.
Quando saiu de lá, se sentiu aliviado por ter sido liberado da tensa
entrevista. Ao mesmo tempo, sentia um aperto pesado no peito. Não
podia acreditar que trairia seu mestre Queiroga e todo seu povo por um
mero capricho de obter o poder mágico dos magos homicidas.
Ele não podia dar a desculpa de que nasceu lá e seria forçado a
proceder dessa maneira. Se fosse mais corajoso, podia fugir. Seria
perseguido e morto, mas um valente guerreiro não se importaria com
isso. A verdade era que ele continuava a ser o mesmo Yahto covarde.
Por fora ele fingia confiança, mas seus joelhos tremiam.
Hauolimau fechou os olhos e respirou um pouco de ar puro, para
tentar se acalmar. Caminhava pelo bairro rico, observando os navios de
guerra ancorados nos portos. A única coisa com que aqueles magos
malditos se importavam era em procurar novos reinos para destruir.
Roubavam os segredos mágicos e assim cresciam em força e maldade.
Ele era um cidadão daquela terra, mas possuía o sangue do reino
Capricho da Memória. Jamais poderia esquecer-se disso: ele não era um
deles.
Cansado daquele mundo monocromático de céu acinzentado,
embrenhou-se na floresta. Lá ainda havia um pouco de vida e música.
Deitou-se na grama, ouvindo o canto dos pássaros apagados. Mesmo
com aparência medonha, as criaturas possuíam uma melodia bonita.
Talvez não devesse julgar os pássaros. Eles apenas existiam e cantavam.
Era duro tentar aceitar esse destino também.
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Quando ela disse isso, ele fitou o rosto dela pela primeira vez.
Observou-a intensamente. Quem era ela, que ousava afirmar algo assim
tão forte, com tanta convicção e firmeza?
– Não tenha medo de sofrer – disse a menina – não tema algo que
sequer aconteceu. Se escolher viver afastando-se de todas as pessoas e
prazeres por medo de perdê-los, sua existência será mais morta que um
cadáver. Na verdade, não será muito diferente de estar morto. A dor faz
parte da vida. Alegria também. Por isso, não fuja. Não se esconda na
escuridão. Logo o sol nascerá pela manhã com a luz de uma nova
esperança.
O discurso não lhe agradou. O príncipe virou o rosto.
– Não consigo ser tão otimista quanto você – ele disse – uma filha de
ricos que tem uma vida próspera e confortável jamais conheceria o peso
da minha vida.
– Não se pode medir sofrimentos – explicou a menina – uma pessoa
que enfrentou o terror da guerra e de assassinatos talvez aprenda a lidar
com a dor. Outra pessoa que vive feliz e em paz nos campos pode sofrer
enormemente com um espeto no dedo. Quem sofre mais? Quem sofre
menos? O sofrimento não se encontra fora e sim em nossa maneira de
ver o mundo.
– Sua burguesa arrogante! – exclamou o príncipe, sem paciência –
Como ousa...? Não tem ideia de como me ofende! Um espeto no dedo,
você diz? Eu vi pessoas especiais para mim se despedaçando diante dos
meus olhos! E agora serei obrigado a ter como mestre um dos
assassinos! Por favor, cale-se, eu suplico! Não estaria tão sorridente se
fosse amordaçada e torturada!
Ao dizer isso, aos gritos, o príncipe sentiu lágrimas nos olhos. E, sem
envergonhar-se, chorou na frente dela. Afinal, ele se via no direito de
chorar. Possuía motivos grandiosos e importantes.
– Você tem razão, eu não entendo – concordou a menina – que tal
me torturar para me mostrar?
Ele se sentiu ainda mais ofendido diante do pedido fútil da garota.
Tinha vontade de bater nela, mas não o fez. Ela era apenas uma riquinha
ignorante. Tinha muito que viver antes de entender certas coisas.
– Não pense que só a dor nos torna fortes – avisou a menina – o
amor gera um poder tremendo. Falta isso em você. Quando aprender a
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– Como não?
– Bati a cabeça recentemente e esqueci tudo o que há para se saber
sobre essa pessoa chamada “eu” – ela explicou – e na verdade não quero
lembrar, pois não importa. Tenho a mim mesma, a terra e o céu. Isso,
por si só, não é maravilhoso?
– E seus pais?
– Não lembro. Sabe, você devia fazer que nem eu: viver sem
preocupações. Esqueça essa sua tal outra vida. Faz tanto tempo. Viva o
presente.
– Como você vive? Ei, espere!
A menina começou a andar na direção oposta.
– Tenho que ir – ela disse – já está tarde.
– Para onde vai? Tem para onde ir?
– Não posso dizer isso para um estranho, não é mesmo, Mau? Há
pessoas suspeitas por toda a parte nesse mundo cruel.
Ele não conseguiu deixar de sorrir quando ela disse isso.
– Vou te chamar de Yacamin – ele decidiu – o apelido será Min.
– Mau e Min. Seria uma boa dupla caso nos víssemos outra vez. Mas
isso não vai acontecer.
E com tais palavras, ela foi embora.
Aquele encontro foi tão inusitado que serviu pelo menos para uma
coisa: tirar as preocupações sobre o Mago de Osso da sua cabeça.
Hauolimau voltou para casa e conseguiu dormir tranquilo. Acordou
antes do nascer do sol. Tomou um banho e aprontou-se com seu melhor
manto branco. Tinha que se mostrar apresentável.
Foi a pé até o celeiro do sul. Chegou lá em uma hora. Subiu o longo
lance de escadas até a torre mais alta. Levou pelo menos quinze minutos
até atingir o topo. Enquanto isso, via o sol subindo no horizonte, como
um orbe vermelho.
Não havia ninguém. Hauolimau fitou a paisagem pela janela. Aquela
era uma vista belíssima. Não sabia que havia algo tão bonito assim até na
terra dos matadores. E entendeu o que a garota misteriosa quis dizer.
Mas nem o sol fez seu medo sumir. Ele sentou-se, abraçando os
joelhos. Tremeu, pois sabia que o imponente Mago de Osso logo
cruzaria aquela porta. Não parava de fitá-la enquanto o sol subia. Ainda
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Era meio vazio ter aquele servidor somente para ataque, como um
escravo. Com a ajuda do mestre, seu servidor já era capaz de investidas
de fogo e gelo. Teve que estudar esses dois elementos e passar por
treinamentos rigorosos, suportando temperaturas muito elevadas e
baixíssimas.
– Voar será uma habilidade secundária que deverá desenvolver nele
nos próximos dias – instruiu Mago de Osso – ou pelo menos flutuar.
Depois disso, realize a conversação formal e estaremos terminados.
– Só isso?
– Sim. Amanhã será seu último dia.
Ao todo, foram três semanas de treinamento intenso. Com exceção
dos primeiros dias tortuosos, o resto passou tão rápido quanto um
sonho. Hauolimau nunca pensou que diria isso, mas provavelmente
sentiria falta da companhia do mestre e de seus sermões.
– Você não me ensinou a filosofia da magia – lembrou o príncipe, no
dia seguinte – não me mostrou muitas coisas importantes.
– Eu te contei que ia induzir em você o poder sem os fundamentos.
Isso porque amanhã partiremos para a guerra.
– Guerra? – perguntou Hauolimau, arregalando os olhos – Que
guerra?
– Antes do nascer do sol você irá conosco no navio invadir o reino
Vento do Sonho Inteiro. Usará seu servidor para matar a população mais
fraca que não conhece a mágicka. Deixe os magos mais fortes para os
veteranos.
– Não! – Hauolimau recuou – Não irei matar.
– Se essa é sua escolha, irei tomar seu servidor de você – disse Mago
de Osso, com firmeza – como não te passei as bases da mágicka, não
será capaz de produzir outro semelhante a este em poder. Também não
será iniciado formalmente como magista.
“Maldito!” pensou o príncipe, sentindo-se derrotado. Por esse motivo
ele não lhe explicou as leis, regras e bases da magia. Somente lhe passou
pedaços recortados de quebra-cabeças. Sem as instruções dele, não seria
capaz de montar o servidor sozinho.
O príncipe optou por mentir. Disse que aceitaria matar, só para
receber a iniciação, o selo e os segredos. Naquela mesma madrugada
escaparia com seu servidor.
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– Eu queria ficar mais forte logo. Por isso, preferi pular as lições de
astrologia e simbologia e me focar em exercícios de meditação e contato
com entidades.
– Eu prefiro a divinação – confessou Yacamin – acredito que você
precise de um pouco de lua e eu de um pouco de sol para garantir um
equilíbrio. Que acha?
Hauolimau topou. Decidiu falar sobre isso com seu mestre no
treinamento do dia seguinte.
– Hauolimau, não seja ingênuo – disse-lhe Tuberaze – como pode
pensar que é inferior à sua parceira somente por não conseguir carregar
um bebê? Isso não interfere em nada. Não pense mais nisso. Você
tampouco precisa de mais lua. Pode seguir somente o caminho da lua, do
sol, das estrelas, um pouco de cada, ou seguir a via para a qual seu
coração leva. Todo ser possui a potência de tornar-se extraordinário:
uma mulher que tem um filho e outra que decide não ter; um homem
que estuda a divinação ou outro que medita. Não pense que o poder está
no gênero ou na via escolhida. Todos são igualmente poderosos. O que
muda é sua paixão pelo caminho, sua alegria de viver e dedicação pelo
que acredita. A noção de equilíbrio é algo mutável e adaptável.
Hauolimau ficou emburrado.
– Todos acham que sou estúpido! Você diz que sou ingênuo e Min
vive me chamando de bobo e me tratando como criança. Vocês, seres
maduros, devem enxergar com simpatia e pena minhas atitudes e
pensamentos infantis. Eu acredito em tudo que me dizem. Aí chega
alguém, me diz algo diferente sobre magia e acredito também! Então fico
todo confuso.
– Qualquer pessoa bem versada em retórica e dialética pode fornecer
boa argumentação – explicou o mestre – e, construindo uma lógica
delirante, te convencer a assumir posições absurdas. Tome cuidado com
isso. Nosso raciocínio lógico é cheio de truques e possui limitações. Daí
nascem os falsos silogismos e paradoxos. Não é pela lógica que tudo se
desvenda, ou os filósofos seriam Deuses extremamente sábios.
– Se não posso confiar no meu raciocínio, em que vou acreditar? –
perguntou Hauolimau – Na minha intuição? Meu raciocínio já é lento.
Quando tento recorrer à minha suposta intuição, dou de cara numa
porta trancada.
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“Mestre... você já deve saber que vai morrer em breve. Então como
consegue sorrir assim?” pensou Hauolimau, com tristeza.
– Hoje você aparenta estar mais distraído que de costume – observou
Tuberaze – há algo que o perturba?
Hauolimau despertou do delírio daquela epifania.
– Não... nada, mestre. Perdão pela rudeza. Prestarei atenção daqui em
diante.
– Certamente existe algo que o incomoda. Por favor, fique à vontade
para contar-me, mas somente se assim o desejar. Caso não queira
proceder dessa forma, ainda assim não poderei ignorar seu desconforto e
partiremos para outro tipo de exercício que você sinta mais afinidade em
desenvolver no dia de hoje.
Hauolimau decidiu revelar e contou-lhe a respeito de sua conversa
com Liparue.
– Por que quer morrer? – perguntou Hauolimau, tristemente – Por
que agirá contra aquilo que ensina e acredita?
– Não estou sendo contraditório ou absurdo – explicou Tuberaze –
racionalmente compreendo que mais pessoas irão sobreviver se eu não
fugir. Essas pessoas possuem vidas mais curtas que nós, gigantes, e eu
particularmente desejo que elas desfrutem a vida que lhes resta e deixem
seus descendentes, pois já tive meu tempo. Essa é uma visão particular
minha. Possuo um afeto muito grande pelos seres humanos; portanto,
emocionalmente, também sinto-me inclinado a protegê-los. E
consultando meu espírito, vejo que eu mesmo reencarnarei como
humano da próxima vez, numa terra chamada Almas Rasgadas de Prata.
– Já ouvi falar desse lugar – constatou Hauolimau – os magos do
exército do reino Fantasmas da Água-Marinha roubaram o Cubo
Astrológico de Mostarda dessa terra. Pensei que não houvesse
sobreviventes.
– Eles estão reconstruindo o país destruído. Quando os habitantes de
Assombração de Fadas arrasarem o reino dos fantasmas vermelhos no
próximo mês, eles não serão mais ameaça e o cubo mágico retornará
para seus donos originais.
– Isso tudo é extraordinário! Mas aterrorizante. Também quero
morrer para defender essa terra linda. Infelizmente não sou forte como
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você e serei de pouco valor. Felizmente sou burro e minha morte não
será uma grande perda.
– Jamais fale assim de novo. Estou te treinando há três anos e se
ainda assim afirma ser burro, isso significa que ou eu mesmo não possuo
grande inteligência ou que meus métodos pedagógicos são
completamente falhos. E mesmo que isso se verifique, ninguém merece
morrer por não ser inteligente ou por nenhuma outra condição.
– Perdão! Não foi isso que quis dizer. Mas se o senhor realmente
acredita que ninguém merece morrer, por que pretende matar?
– Essa é a grande questão, hã? – disse Tuberaze – Todas elas são
vidas. Se eu apenas ficar parado por respeito à vida dos invasores, eles
não somente me matarão como dizimarão um número muito maior dos
nossos. Se eu fugir, ao menos salvarei minha própria vida, mas não
ficarei satisfeito com esse ato. Se eu matá-los, salvarei um maior número
dos habitantes daqui, mas é altamente provável que eu morra. Será quase
uma defesa suicida.
– Então você optou por vidas específicas – observou Hauolimau –
temos esse direito de agir como Deuses?
– Nós criamos nossos Deuses e também os destruímos. Quando
optei por viver, aceitei assassinar um número imenso de plantas e
animais para consumo. Portanto, desde o começo estou escolhendo
vidas. Essa será apenas mais uma escolha. E quando eu morrer nessa
guerra, também salvarei as plantas e animais que eu teria consumido para
continuar vivo. Alimentarei outras existências com meu corpo e assim o
ciclo estará completo.
– A existência é bela e terrível – disse Hauolimau – mas nesse
momento só consigo temer por minha própria vida. É esse tipo de ser
que sou, mestre. Você não se envergonha de mim?
– De forma alguma – o mestre respondeu – estou orgulhoso de saber
que você teme o suficiente para valorizar sua própria vida. Não queira
lançar-se para a morte. Eu aceito que você participe da guerra, mas não
para morrer e sim para viver. Se todos aqueles que desejo defender
buscarem a morte, que tipo de valor terá meu ato?
– Entendi, mestre. Obrigado por tudo que me ensinou. Jamais me
esquecerei do senhor.
– Ei, espere, eu não morri ainda!
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Havia uma ilha ao sul com magos fabulosos que causaram grandes
problemas para as fadas, que tiveram que realizar um recuo estratégico
para sua terra natal e recuperar as forças.
– Isso pode ocasionar uma guerra mundial – comentou Hauolimau –
muitas terras estão envolvidas nisso. Maldição! Não há onde se esconder.
– Que me diz de Mandíbula da Noite? – lembrou Yacamin – Você
não ia tentar recuperá-lo?
– Eu já o chamei muitas vezes. Ele não deseja voltar para mim. Está
envergonhado por ter matado tanta gente a mando do Monarca de
Diamante. Eu disse a ele que é passado e que ele não teve escolha, mas
foi impossível convencê-lo. Se eu morrer, pelo menos tentarei pular para
as dimensões de servidores e reencontrá-lo.
Ela levantou-se.
– Deixei as toalhas secando lá fora – disse Yacamin – vou buscar.
– Quer que eu ajude?
– Não.
Hauolimau se sentia mal por ela querer fazer tudo sozinha, mesmo
estando grávida de sete meses. Precisava aprender a ser mais persuasivo.
Mas ela estava demorando a voltar. Hauolimau ficou preocupado e
foi lá fora ver o que aconteceu.
Havia uma sombra e Yacamin estava de pé diante dela, encarando-a
firmemente, enquanto pronunciava dizeres mágicos.
– É um espírito? – perguntou Hauolimau – Um servidor?
Mas não houve resposta. Yacamin parecia hipnotizada.
Hauolimau viu: em meio à sombra, dois olhos negros piscaram.
Tinham um formato amendoado, cílios graciosos e enrolados. Pareciam
até... olhos de fada.
– Não!! – gritou Hauolimau – Min, cuidado!
Ele imediatamente colocou-se entre ela e a sombra. Evocou um dos
seus servidores: Ah, uma pequena criatura de capuz vermelho que gerava
magias imprevisíveis. Ele era especialmente convocado em situações de
emergência, quando Hauolimau não teria tempo para falar ou pensar no
que fazer. Assim, um simples grito como “Ah!” podia ativar esse
servidor, que produziria um efeito aleatório. Portanto, o resultado do
embate contaria com a sorte.
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Ah produziu uma explosão tão impressionante que fez até a casa voar
pelos ares! Hauolimau e Yacamin quase se machucaram e certamente
teriam se ferido feio se o servidor fosse um pouco mais estúpido para
envolvê-los no estrago.
“Sim, só podia ser meu servidor”, pensou Hauolimau, indignado.
Mas seu coração estava batendo forte demais para se preocupar com
irritação. Ele apenas se sentia aliviado ao saber que Yacamin estava salva,
envolvida por seus braços.
Quando a fitou novamente, aumentou a força do abraço e sentiu
lágrimas correndo por seus olhos.
– Bobo – riu Yacamin – eu tô bem.
– Sim, eu sou bobo – confirmou Hauolimau – porque agora eu
percebi que se tivesse perdido você, eu iria desejar que a explosão tivesse
me consumido junto.
Que era aquilo que estava acontecendo? Hauolimau não entendia. Ele
sempre se achou muito egoísta. Não achava que era o tipo de pessoa que
se sacrificaria por um amigo. Mas ao longo daqueles sete meses tão
especiais com Yacamin, aquilo estava começando a mudar.
Principalmente porque ele seria pai. Yacamin tinha uma parte dele
dentro dela. Aquilo provocou uma mudança de perspectiva. Se
Hauolimau era tão protetor em relação a si mesmo, também morreria
para proteger aquele ser que tinha um pedaço de si em seu interior.
A fada sumiu. Certamente não havia morrido, mas assustou-se
bastante com a explosão. Provavelmente espalharia para os
companheiros que se simples aldeões tinham tanto poder mágico,
deveriam reforçar o exército para atacar aquele país.
Esse deve ter constituído um dos fatores da demora. Mais dois meses
se passaram e as fadas não foram vistas por lá novamente.
O bebê nasceu e Yacamin ficou aliviada. Ela tinha muito medo de
morrer sem antes ganhar seu filho. Pelo menos assim ela teria maiores
esperanças de salvá-lo, mesmo que as chances fossem muito pequenas.
Era uma menina linda e Yacamin apegou-se muito a ela.
Hauolimau também ficou emocionado. Como pode pensar um dia
que a vida não tinha sentido? Ele via o sentido bem na sua frente: carne
da sua carne; sangue do seu sangue. Tinha cumprido seu propósito de
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– Valeu, Ah, o golem iria adorar seu ovo se não tivesse uma garganta
de pedra – observou Hauolimau – Pare de me atrapalhar! Vá lá para o
céu bater um papo com o Deus do trovão e depois volta para me contar
o que ele disse.
Ah imediatamente voou até o céu e atravessou as nuvens. Quando
Hauolimau pensava que tinha se livrado dele, um raio cortou o ar
atingindo o golem em cheio, que tombou no chão, partindo-se em mil
pedaços. Veio o som do trovão e a chuva caiu.
– Hã... mestre? – perguntou Hauolimau cuidadosamente, quando o
servidor voltou todo faceiro, esperando elogio – É impressão minha ou
Ah é o servidor mais poderoso que já existiu?
– Ele é extraordinariamente forte – observou Tuberaze, também
impressionado – vejo que você terá que contar com a sorte para lutar.
Que tipo de treinamento lhe deu?
– Eu o criei para ser meu “servidor vale-tudo”. Ele sempre gostou de
elaborar truques engraçados para me fazer rir. Quanto mais eu ria, mais
ele inventava feitiços criativos. Ele se divertia fazendo magia e acho que
foi exatamente isso que o impulsionou a ir tão longe.
– Mas ele tem que tirar essa energia de algum lugar. Ou você é um
magista mais poderoso do que pensa ou ele tira sua fonte de mana de um
local desconhecido. Tome cuidado com essa segunda alternativa.
– Eu não tenho medo de Ah! – Hauolimau riu só de pensar nisso –
Você acha que ele é um espião das fadas e depois irá se voltar contra
mim? Por favor!
– É impressionante como você encontrou a solução para o enigma
tão rápido.
Hauolimau sentiu um frio na espinha, mas preferiu não acreditar. Ah
era tão bonzinho e gracioso... mesmo que ele o tratasse mal, não via
como ele seria capaz de tamanha traição.
– Hm... mestre...
– Que foi agora?
– Estou sem roupas. Elas se rasgaram quando aumentei de tamanho.
– E o que eu tenho a ver com isso?
– Foi por causa de sua poção maluca! – falou Hauolimau.
– Você já voltou ao tamanho original. Não carrego roupas extras do
seu tamanho comigo, mas tenho uma poção de invisibilidade aqui. Você
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Uma fada azul havia atingido seu mestre Tuberaze. Os dois travavam
uma luta estranha. Eles não se tocavam fisicamente ou lançavam poderes
mágicos. Apenas fitavam o rosto do outro, numa espécie de disputa
psíquica invisível.
Os olhos de cor violeta de Tuberaze fitavam os olhos escuros da fada.
Ele estava tenso e concentrado, o suor escorria de seu rosto. Enquanto
isso, a fada azul estava totalmente tranquila, como se possuísse certeza
absoluta da vitória e aquela fosse apenas uma brincadeira.
Parecia que ela ia destruí-lo, mas a majestosa Liparue fez surgir uma
mão invisível que atravessou o peito da fada azul e espremeu seu coração,
esmigalhando-o.
Quando a fada azul morreu, as belas fadas ficaram iradas. O rosto
delas tornou-se monstruoso, com línguas bifurcadas, dentes afiados,
veias saltando e focinhos de lobo.
Uma fada branca mergulhou no centro e gerou um globo de luz
negro. Lançou-o no céu e fez o dia virar noite.
A fada alva aumentou de tamanho e agarrou Tuberaze pelas costas.
Abriu uma bocarra monstruosa e devorou a cabeça dele, arrancando-a
do pescoço e mastigando com gosto.
Hauolimau gritou com horror. O corpo de Tuberaze ainda estava
vivo e caminhou em agonia, tateando às cegas, tentando capturar a fada.
Mas ela destruiu-o facilmente, despedaçando seu corpo e lançando os
pedaços para que as outras fadas os devorassem. Elas o fizeram com
urros de comemoração, numa grande festa. Afinal, elas sabiam que
tinham derrotado um magista poderoso.
“Era isso que você queria? Um fim horrível como esse, quando
poderia ter escapado” pensou Hauolimau com terror, imaginando
quando chegaria seu momento de ser devorado vivo.
A próxima a morrer foi a própria fada branca: Liparue ficou dez
vezes maior e esmagou a fadinha com o pé. Na sua fúria, chutou o ar,
destruindo mais algumas dezenas de fadas.
Das sombras da noite, surgiu um ancião. Ele era uma das poucas
fadas do sexo masculino que havia lá e parecia ser um dos espécimes
mais poderosos.
Hauolimau entendeu: ele era o rei. Podia lutar de igual para igual com
Liparue. Evidentemente, aquele senhor era muito elegante e profundo
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Kipga suspirou.
– Não me importa mais quem matou quem! Já disse que nunca fui a
favor dessa guerra.
– Muito menos eu – disse Lou-lou – nós somente nos defendemos.
Agora entendi porque você, mesmo sendo criança, veio aqui. Afinal, era
a filha do rei. Não é do feitio de nosso povo matar crianças. Só por isso
você está a salvo.
– Não tenho para onde ir agora – Kipga baixou os olhos – acha que
se eu pedir vão me deixar ficar aqui? Eu, que possuo o sangue dos
assassinos de seu povo.
– Nosso povo não se importa com o sangue e sim com o coração –
informou Lou-lou.
– Então por que tentou me esganar sem saber como sou? – ela
desafiou-o.
– Eu vou te contar uma história – disse Lou-lou – há alguns anos
houve uma guerra aqui. Duas crianças do povo inimigo permaneceram
em nossa terra. Eles se tornaram discípulos de meus pais.
Kipga ficou cheia de esperança com a história. No entanto, aquele
mundo estava tão destruído que não poderia ajudar nem seus próprios
habitantes.
O bebê começou a chorar, pois o servidor não conseguiu mantê-lo
calado por mais tempo. De qualquer forma, não havia mais perigo que o
choro fosse ouvido.
Ou ao menos era isso que pensavam. Por trás da mata, surgiu uma
fada de asas azuis banhada em sangue, carregando uma espada.
– Carne! – ela pronunciou, com espada em mãos, agonizando –
Recuperar forças!
As duas crianças, que não tinham poderes mágicos, não possuiriam
meios de se defender contra a fada moribunda. Ela falou alguma coisa na
língua das fadas.
– Ela disse que também vai me comer – disse a criança – e me
chamou de traidora.
– Como sabe falar tão bem nossa língua? – perguntou Lou-lou.
– Sou um membro da realeza! Você quer mesmo discutir isso agora?
Corra!
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Capítulo 4
– Ganhei, ganhei!
A chaminé da graciosa casa com telhado de cogumelo soltava fumaça,
indicando que havia habitantes lá dentro. E mais um membro da família
chegou, correndo a passos apressados. Abriu a porta de madeira tão
rápido que ela bateu e voltou.
– O que você ganhou?
Quem perguntou isso foi um ser muito alto. Ele precisava se curvar
para não bater a cabeça no teto da casa.
– A fantástica competição do Centro de Meados! – anunciou a garota,
orgulhosa – Uma batalha de ilusionismo. Fiquei em segundo lugar e meu
prêmio foi esse belo par de brincos de insetos vivos! Ai, faz cócegas!
Ela mostrou as próprias orelhas e riu.
– Que mau gosto – comentou a moça mexendo uma caldeira de ferro
com colher de pau – só você mesma para gostar desse mundo de insetos,
Bibi. Afinal, você veio para cá com poucas semanas de vida, então não
tem do que se queixar.
A moça bonita tinha nas costas asas multicores de fada, além de
longos cabelos negros. Acrescentava pós e líquidos de frascos coloridos
na caldeira enquanto mexia a mistura, sempre consultando um grosso
grimório.
– Ah, esses insetos são meus, sai de cima! – Bibi não parava de rir –
Seu chato!
Ah, o servidor mudo, mexia os minúsculos bracinhos freneticamente,
tentando tocar nos insetos que se contorciam. Rodeava Bibi e saltitava,
até que pulou nas costas dela.
– Bobo – falou Bibi, pegando o servidor no colo e colocando-o no
chão – que temos para o almoço?
– Restos! – exclamou a fada Kipga, de mau humor – Azar o seu que
chegou atrasada. Seu prato está em cima da mesa, gelado!
Bibi sentou-se e fez uma careta.
– Eca! Você sabe que odeio essas folhas roxas e amarelas.
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deve ter visto o rosto dele... ora, que bobagem, claro que viu; e muitas
outras coisas. Perdão, estou sendo indelicada! Hã...
Bibi nem sabia mais o que dizer. Por um momento arrependeu-se de
ter pisado lá e principalmente por abrir a boca. Tchuna cobriu o rosto,
para indicar que Bibi era uma tapada.
– A raça dele, por exemplo – Bibi tentou consertar – eu me pergunto
se ele é um habitante desse mundo. Eu mesma não sou daqui. Sou
humana e venho de muito longe. De tão longe que nem sei ao certo de
onde...
Nesse instante, a mulher de cabelos cor de mármore pareceu
interessada. Fitou-a intensamente.
– Meu pai e minha mãe morreram na guerra – prosseguiu Bibi,
baixando os olhos – graças a Ah, servidor de meu pai, fui transportada a
esse mundo. Ele me salvou.
Ao ouvir seu nome ser pronunciado, Ah materializou-se na sala.
– Ei, Ah, volte agora para sua dimensão! – mandou Bibi – Isso, bom
menino. Sabe, este servidor já contou algumas coisas sobre mim. Ele não
sabe falar, mas já se comunicou comigo nos sonhos. Só sei que ele é o
servidor do meu pai. Moro com um gigante e uma fada, que são minha
família atual, mas eles tampouco sabem sobre minha família de sangue.
A esposa de Klebako tocou um sino. O mordomo chegou
imediatamente.
– A senhora fez voto de silêncio – explicou o mordomo – e irá
informar a mim telepaticamente o que deseja lhes falar, assim darei o
recado.
“Essa família é meio esquisita” pensou Bibi, contrariada.
– A madame pergunta a respeito de suas experiências prévias de
magia – disse o mordomo.
– Sou boa em ilusionismo. Fiquei em segundo lugar na competição,
perdendo apenas para Klebako – Bibi informou, orgulhosa – quando eu
me concentro, consigo formar imagens no mundo real, que são
hologramas bem realistas. Meu amigo gigante que mora comigo tem
experiência em radiestesia e consegue sentir as radiações e campos de
energia com pêndulos de madeira e metal, possuindo amor pela terra,
geologia e cristais. Minha amiga fada é exímia no preparo de poções
mágickas. Kipga é boa em química e culinária. Na verdade ela é perita em
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temperos. Teve uma vez em que ela me preparou uma sopa mágicka
quando eu estava doente, que...
Tchuna limpou a garganta. Bibi deu-se conta de que estava falando
demais.
– Em suma, sou boa em montar quebra-cabeças com a realidade –
resumiu Bibi.
– Tenho habilidade em magias com mel – informou Tchuna – para
celebrar a doçura da vida! Você precisa experimentar meu hidromel.
Garanto que jamais provará algo melhor.
A mulher parecia estar comunicando mentalmente uma nova
mensagem ao mordomo, pois quando ela fazia isso cerrava os olhos.
– A ama pergunta quais de nossos Deuses vocês louvam – informou
o mordomo – afinal, uma maestria no reino do espírito deve
acompanhar a correspondente na esfera divina.
Bibi foi pega de surpresa pela pergunta.
– Não sou daqui, mas aprendi sobre os Deuses desta terra –
respondeu Bibi – Desde pequena vejo meus amigos com oferendas às
divindades. Ouvi falar da Deusa das Flores, o Deus dos Besouros, a
Deusa das Borboletas, o Deus dos Palácios, as ninfas dos elementos
açúcar, sal, trovão, nuvem e pedra...
– Sempre forneço oferendas às ninfas do açúcar – informou Tchuna,
contente.
– ...mas nunca ofereci nada a nenhum deles – confessou Bibi – a não
ser meus sorrisos e alegria a todos os seres, simples ou grandiosos.
O mordomo recebeu uma nova mensagem.
– A senhora dará uma cesta à senhorita – explicou o mordomo – que
deverá ser levada como oferenda à Deusa da Chuva.
A mulher levantou-se e entregou-lhe a cesta.
– Que há nessa cesta? – perguntou Bibi – E onde poderei encontrar
esta Deusa?
– Você não poderá conhecer o conteúdo da cesta – disse o mordomo
– e deverá investigar onde esta Deusa mora, pedindo auxílio aos outros
Deuses, da mesma forma que encontrou esta residência batendo nas
portas de nossos vizinhos.
Bibi aceitou o desafio. Afinal, se fosse capaz de completá-lo
provavelmente receberia autorização para falar com Klebako em pessoa.
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moedas não significa que ele seja gentil. Até os malvados são educados
quando lhes convém.
– Ora, Tchuna, nem parece você. Achei que também admirasse o
herói mais poderoso do planeta.
– Eu admiro a habilidade dele com magia. Ele é um gênio em muitas
áreas: empatia com animais, controle mental, cartomancia, evocações...
mas não o conheço como pessoa.
– Tenho certeza de que ele é admirável – falou Bibi, com os olhos
brilhando – estou com fome. Vamos à taverna?
– Você está sempre com fome...
Lá dentro, insetos e híbridos das mais diferentes raças bebiam chá
alcoólico e jogavam “Onze, Passa e Sova”; o OPS era um jogo muito
popular por aqueles lados. Funcionava da seguinte forma: você lançava
onze pedrinhas na mesa e tentava adivinhar a posição de uma delas, de
olhos fechados. Caso acertasse, você ganhava um ponto e diminuía uma
pedra no seu montante. Em caso de erro, era acrescentada mais uma
pedra e o jogador levava um soco na cara. Alguns saíam de lá tão
surrados como se tivessem se metido numa briga feia. Pelo menos o chá
era tão forte que funcionava como morfina.
– Moça, quero um chá alcoólico! – Bibi pediu à elegante atendente
com cara de libélula.
– Se Kipga descobrir que você está bebendo, não vai gostar –
observou Tchuna.
– Ela não vai descobrir se você não contar, sua enxerida. Quero chá
sabor água, que é mais fraco.
– O meu será sabor mel – solicitou Tchuna – Eu posso, pois sou
mais velha que você – ela acrescentou para Bibi, ao perceber seus olhos
apertados e bochechas infladas.
Enquanto bebiam, Bibi perguntou:
– O que significa o “Passa” na sigla do OPS? Eu sei que “Onze” é o
número de pedras e “Sova” é o soco que você leva na cara. Será que o P
é de “passar a vez” em caso de erro? Ou é porque eles comem uvas
passas?
– Antigamente esse jogo era usado para definir quem entrava na
Academia de Magia Negra, Branca e Multicor, a AMNBM – disse
Tchuna – mas houve muitas fraudes com a telepatia e a telecinesia, então
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em mais um ano você já pode ser aluna da academia. Isso se você tiver
capacidade de passar naquele teste imbecil. Dizem que tem gente que
não consegue. Talvez uma roceira como você não saiba nem evocar um
elemental.
Os outros riram.
– Ainda não entendi o que você está fazendo nesse mundo, já que se
acha tão esperto – observou Bibi.
– Estou aqui por causa das batalhas mágickas, é claro – informou o
mago de cinza, cheio de si – meu mundo original tecnológico é tão
civilizado que proíbe esse tipo de luta bárbara. Por aqui eles dão prêmios
altíssimos por derrotar adversários ruins. Já consegui muitas moedas e
irei trocá-las no meu mundo por computadores de última geração.
Inclusive máquinas e androides que realizam mágicka!
– Hm – comentou Bibi, sem muito interesse – aposto que não
consegue derrotar Klebako.
O sorriso sumiu do rosto do mago cinzento.
– Você sabe sobre ele?
– Claro! Todos sabem sobre ele! – comentou Bibi – Ele é uma estrela
por aqui.
– Quem diria que até garotinhas do campo soubessem sobre esse
magista extraordinário – falou o mago de cinza.
– Você não sabe com quem está falando – Bibi estufou o peito –
fiquei em segundo lugar na competição de ilusionismo!
– Grande coisa. Só não participei dela porque o prêmio era uma
pilhéria. Eu teria te vencido de olhos vendados.
– Aceito o desafio – falou Bibi, entregando-lhe uma venda negra.
O mago de cinza levantou-se. Ele apontou para uma parede.
– Eu abrirei buracos ilusórios naquela parede e você deverá lacrá-los
– explicou o magista – se conseguir manter o lacre em todos eles, será a
vencedora.
Sem aviso, o mago de cinza abriu o primeiro buraco, como se tivesse
arrancado a madeira. E o buraco ia ficando cada vez maior, conforme a
madeira dos lados era lançada longe.
Bibi fez o holograma da madeira no chão voar e recolocou-a no lugar,
inserindo pregos holográficos.
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– Eu gosto dos grimórios desse cara – disse Solimol – ele meio que
sabe algo. Se sabia mesmo ou não, é um mistério. As crianças queimaram
a biografia dele.
– Que crianças? – perguntou Bibi.
– Uns alunos de primeiro grau, isso há mais de duas décadas.
Incendiaram a biblioteca. Era um trote dos veteranos, mas a culpa foi
dos novatos que eram idiotas.
– Iutrebvua e Solimol se acham o máximo; o suprassumo da
academia, só porque estão no 5º e 4º grau – observou Djurep.
– Estou no 4º grau também, mas sou humilde – disse Chankzem – e
Libaz, que você respeita, também está.
– Eu desconfio de alguém que diga “sou humilde” – disse Iutrebvua
– se fosse humilde mesmo, não diria isso.
– Estou sendo irônico, trouxa – falou Chankzem.
– Então fica quieto, novato do 4º ano – retrucou Iutrebvua – sou
mais velho que você e estou um grau acima, então respeite-me e cale-se.
Depois eles começaram a falar das entidades que queriam evocar e
dos selos que estavam treinando fazer.
– Há uns selos muito pirados – Iutrebvua mostrou um livro de 5º
grau – você tem que fazer uns cálculos viajantes demais para chegar à
imagem. No livro texto não há as figuras dos selos. Você precisa
desenhar resolvendo as equações. Tem que usar esquadro e compasso
para traçar as linhas e montar as figuras geométricas. Ferra demais
quando é tridimensional.
– Eu odeio selos tridimensionais – falou Solimol – não sei quem foi o
miserável que inventou isso.
– O fundador filho da mãe – disse Djurep.
– Mas eles funcionam melhor – explicou Chankzem – porque selos
não foram feitos pra se desenhar em 2D no papel, e sim para traçar no ar
e alimentá-los com energias.
Bibi estava completamente perdida com as explicações. Ela não sabia
patavina sobre geometria mágicka ou alfabetos ocultos.
– Vocês rapazes não têm namoradas? – perguntou Bibi,
interrompendo a linha de pensamento deles.
“Ou namorados” pensou Bibi, pois também era uma alternativa.
Eles demoraram um pouco para responder.
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Quando ouviu passos próximos, ela suou frio. Não ousou erguer a
face.
Percebeu o instante em que alguém se sentou no sofá. Bibi estava
quase tremendo. Não sabia que ia ficar nervosa daquele jeito.
Escutou o barulho de uma folha caindo no chão. Havia algo escrito
nela.
“Boa tarde”
A letra era tremida, como se fosse escrita por alguém que estivesse
recém aprendendo a escrever. O último “e” estava virado. E não era
tarde ainda. Era manhã.
Bibi suspeitou que devesse escrever a resposta logo abaixo. Ela
escreveu “Boa tarde” também, mas achou que seria rude apontar o erro
dele. Por isso, embora sua letra não tenha sido tremida, ela escreveu o “e”
virado também.
Ela estava com o olhar baixo, mas sentiu um calafrio quando viu uma
mão com dedos humanoides e pele verde segurar o papel.
“Meu filho gostou de você”
Foi a próxima mensagem. Os “es” estavam virados de novo. Bibi
escreveu na folha: “Também gostei dele”. Ele alcançou a folha de volta.
Ela percebeu que a mão dele era meio trêmula e realizava movimentos
involuntários.
“Minha esposa não fala para fazer par comigo, pois sou mudo” ele
escreveu, com a mesma letra tremida.
“Também tenho um servidor mudo. Quer conhecê-lo?” escreveu
Bibi. “Sim” foi a resposta dele.
– Ah – pronunciou Bibi, baixinho.
E mentalizou a seguinte frase: “Por favor, Ah, seja gentil com ele...
esse daí é o mago mais poderoso do reino”.
Ah correu de um lado a outro da sala, fazendo barulhinhos.
“Droga, esse maldito!” pensou Bibi, com raiva.
– Pare, Ah, seu teimoso! – exclamou Bibi.
Mas ele continuava a correr. Bibi ouviu alguns sons de onde Klebako
estava. Ela assustou-se, pois parecia que ele estava sentindo dor. Mas
talvez fosse uma risada.
Ele começou a estalar os dedos. Kleeb apareceu na sala. Ele ficou
encantado com o servidor e abraçou-o.
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– Por um ano só. Por isso sei umas coisas de lá. E até onde sei, o
fundador era um mago negro cruel que assassinou muita gente
gratuitamente.
– Klebako fez isso...? – perguntou Bibi, sem acreditar.
– Cheiq tentou matá-lo por isso.
– Então os dois são malvados.
– Sei lá, Bibi – disse Tchuna – a existência é muito complexa. As
pessoas fazem coisas pelas mais diferentes razões. Não conhecemos nem
Klebako e nem Cheiq a fundo para julgá-los. Cheiq, por exemplo, vem
de um mundo de zumbis. Então ele deve ter uma compreensão da vida e
da morte bem diferente da nossa. Talvez saiba bem mais sobre isso do
que a gente.
Mesmo assim, Bibi não gostou do que ouviu. Quando retornasse ao
palácio de Klebako no dia seguinte, decidiu que iria perguntar a ele mais
detalhes sobre isso. Queria saber se ele era mau de verdade e porque
Cheiq tentou matá-lo. Por que eles ainda se enfrentavam em duelos? Será
que Cheiq sabia a identidade dele?
Porém, essa visita nunca chegou a acontecer.
Naquela madrugada houve muitas explosões. Todos acordaram e
saíram às ruas. O movimento vinha da academia. Aparentemente os
alunos, liderados por Cheiq, estavam invadindo as ruas para tomar o
poder. Eles se dirigiam até o bairro rico dos palácios para tomar o trono
do rei.
– A utopia de Cheiq é que todos os países devem ser governados por
reis magos – explicou Tchuna – e ele deve ter convencido todos os
alunos de que os magistas são superiores.
– Cale a boca, Tchuna! – gritou Bibi – Não me interessa mais os
comos ou os porquês! Por enquanto eles só estão agitados. Mas e se
alguém resistir e for morto? O rei pode ser o primeiro.
A maioria estava assustada e não reagiu. Pelo jeito, Cheiq tomaria o
poder facilmente, sem muita resistência ou violência. Bibi até preferia
que fosse assim. Mas decidiu que, mesmo sob risco de ser machucada,
queria ir até lá para acompanhar o rumo dos acontecimentos.
– Não, Bibi! – gritou Kipga.
– Bibi, não vá! – pediu Lou-lou, assustado.
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Ainda demorou alguns meses até que tudo se acalmasse. A vida foi
voltando à sua normalidade. Havia um novo diretor na academia de
magia e Iutrebvua se formou. Bibi foi na festa de formatura e tinha quase
certeza de que desejava entrar para a universidade no próximo ano, pois
já estava na idade certa para isso.
– Também quero entrar! – disse Kleeb.
– Só daqui dez anos, irmãozinho – falou Bibi – tecnicamente você é
meu tio, mas acho que posso te chamar de primo ou irmão, não acha?
– Claro, irmãzinha – confirmou Kleeb.
Agora Kleeb morava com eles na casa de cogumelo. Felizmente o
mordomo conseguiu se salvar também, mas foi trabalhar em outra
residência, já que a família de Bibi não teria recursos para mantê-lo.
Era época de férias na AMNBM. Além de se encontrar com seus
amiguinhos insetos, que eram seus eternos companheiros de aventura – e
gostaram muito de Kleeb – Bibi se reunia de vez em quando na taverna
para conversar com os cinco magos que viviam falando mal dos
professores e dos colegas.
– Entre na academia no próximo ano, Biefa! – era só o que eles
diziam.
– Se eu entrar, acho que irei usar o nome mágicko Lehnia – ela
comentou, pensativa.
– Vou fazer pós-graduação na minha área de magia em minha terra
natal – contou Iutrebvua – você ia se dar bem nessas universidades,
então sugiro que reflita, pois também poderia cursar o ano lá após estas
férias.
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Capítulo 5
– Não acredito que a professora Dili passou esse dever tão tolo.
– Eu estava no toalete. Posso conferir seu caderno digital, Yucha?
Yucha passou para Bibi um dispositivo com tela de cristal líquido.
Bibi virava as páginas do caderno com movimentos no ar.
– “Realize uma entrevista com um aluno de grau mais avançado para
obter sua visão sobre a magia” – leu Bibi – Não vejo nada tolo aqui.
Seria valioso aprendermos com um veterano.
– Somos novatas, recém entramos na Academia da Vontade Máxima
– comentou Yucha – não tenho coragem de conversar com o pessoal
mais velho. Ao nos apresentarmos formalmente, capaz de aplicarem
trote nos calouros.
– Eu ouvi falar que o trote dos veteranos da AVM no ano anterior foi
trancar os alunos do primeiro grau numa sala e somente liberá-los
quando terminassem de ler certos grimórios de magia avançada –
comentou Fafripa – preenchê-los com esse tipo de carga mental foi uma
tortura. Tenho medo do pessoal daqui. Essa é a melhor universidade do
país. E sabemos que os gênios são loucos.
Bibi riu.
– Também fomos aprovadas – argumentou Bibi – não somos
inferiores a eles. Eu estou completamente tranquila em relação a essa
tarefa. Conheço um pós-graduando que poderá, de bom grado, fornecer-
me a entrevista.
– Tenho um irmão mais velho no 4º grau, mas ele é insuportável –
informou Yucha – por isso irei procurar outra pessoa. Quem é seu
conhecido na pós, Bibi?
– Iutrebvua, mestrando de magia pura.
Yucha e Fafripa ficaram surpresas.
– Ele não é qualquer um – comentou Yucha – ganhou menção
honrosa pelas altas notas no teste de admissão.
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– Você ficou muito arrogante desde que foi aprovado na AVM. Fica
desfilando por aí com seu uniforme marrom, fitando os outros de cima...
– Eu fito de cima quem está embaixo – explicou Iutrebvua – e fito de
baixo quem está em cima. Vejo que ainda não compreendeu as diretrizes
básicas.
– Não devemos tratar os outros de forma diferente por causa de
meros títulos –argumentou Bibi.
– Eu também pensava assim quando era calouro. Aguente mais
alguns anos e desfrute da honra e poder de ser uma veterana. Quando
chegar lá descobrirá que não se trata apenas de pedaços de papel com
diplomas e sim de anos de esforço e luta. Quem realiza essa conquista
merece respeito. Pelo menos um “senhor” na frente do nome. Não estou
exigindo que se ajoelhe ou nada do tipo.
– Meus colegas temem vocês – disse Bibi – mas eu não.
– Pois deveria.
– Por quê? Por serem mais velhos? Por terem a cor do uniforme
diferente?
– Pelo que essas condições representam – respondeu ele – somos
mais sábios e mais poderosos. Lemos muito, estudamos mais que vocês
e despertamos habilidades especiais em muitos campos do conhecimento.
– E o que isso tudo significa? Que têm poder para nos matar com
uma fagulha elétrica lançada pelos dedos?
– Algo bem pior que isso. Estudamos lógica e álgebra. Mais
especificamente, operações algébricas como princípio dialético.
Traduzindo para seu entendimento, isso significa que conhecemos os
fundamentos da compreensão do raciocínio humano. Sabemos também
a história do pensamento: como se investigava o mundo no passado,
como pessoas o fazem no presente e, de acordo com essas condições,
mensurar o entendimento do futuro. Conhecimento é poder. É como
aprender a manipular uma ferramenta suntuosamente primorosa para
abrir seu cérebro e introduzir em sua massa encefálica o que for de meu
apreço. Ao estudarmos a linguagem ficamos a par da origem de
expressões idiomáticas e compreendemos mais um pouco da lógica que
rege essas escolhas, tão profundamente intrincadas ao aspecto histórico e
geográfico. Quais as suas disciplinas preferidas, Biefa?
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– Não gosto de calcular, mas acho belo – respondeu Bibi – por isso
me encantam mais as belas artes, como a música, que é uma matemática
artística.
– Somente pessoas simplórias apreciam mais a música do que a
matemática – respondeu Iutrebvua – é como desfrutar somente do
aspecto lúdico que um computador oferece sem desejar penetrar na real
diversão jamais sonhada: o universo dos códigos binários. Seres fúteis
enxergam somente a pele lisa e possuem desejo pela carne, sem ansiar
apalpar os órgãos internos, a perfeição dos ossos, da suprema medula
óssea!
– Credo, que papo mais esquisito! – comentou Bibi, com uma careta
– Eu não passarei a gostar mais de uma coisa devido a uma aparente
complexidade. Nossas emoções são muito mais complexas do que tudo
isso que você disse. A música e as “meras diversões” mexem diretamente
com as emoções. Portanto, são importantes.
– É possível despertar emoções muito mais fortes através do
entendimento lógico dos processos que regem o mundo e a mente
humana.
– Nem tudo é tão lógico quanto você imagina. Não é possível
traduzir o universo inteiro em códigos. Quando você se excita com seus
números e sua “magia pura” dos princípios, isso não passa de uma
masturbação mental. Só muda o lugar que você põe a mão.
Iutrebvua fitou-a incrédulo, sentindo-se extremamente ofendido.
– Como ousa fazer essa comparação obscena com meu estudo
respeitável? Essa é uma tentativa sua de constranger seu sênior?
– Não sabia que você era tão sensível – comentou Bibi – seus amigos
me contaram lá no meu mundo que vocês já foram num bordel.
– Eles sempre tiveram a boca grande demais. Não se atreva a
espalhar qualquer boato que escutar dentro dessa academia. O que eu
faço da minha vida pessoal não lhe diz respeito. Os calouros adoram
espalhar fofocas sobre sexo, exatamente por serem crianças e não o
conhecerem, considerando algo impressionante demais para suas mentes
imaturas. Nós, veteranos, que conhecemos o sexo, não fazemos alarde
sobre o assunto, pois se tornou algo tão normal quanto comer e dormir.
Você comparou o meu estudo com uma prática sexual, na tentativa de
mostrar uma suposta maturidade que não existe em você. Eu me ofendi
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