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A Guerra dos Esquecidos

Juliana Duarte

2013
Sumário
Capítulo 1_______________________________________________5

Capítulo 2______________________________________________23

Capítulo 3______________________________________________47

Capítulo 4______________________________________________80

Capítulo 5_____________________________________________118

Capítulo 6_____________________________________________165
A Guerra dos Esquecidos

Capítulo 1

No reino Capricho da Memória você nunca seria lembrado.


Provavelmente morreria antes que qualquer um pudesse guardar sua
existência na memória. Os poucos que colocaram os olhos em você
enquanto vivia teriam o mesmo destino.
Portanto, a esperança dos cidadãos dessa terra não era ter vida longa
ou ficar na história e sim desfrutar ao máximo suas curtas existências. A
maioria não vivia o suficiente para atingir a idade de reprodução.
Quando as meninas tinham a menarca, por volta dos 13 anos,
imediatamente perpetuavam os genes com a certeza poderosa em seus
corações de que o propósito do sentido animal de suas breves vidas
havia se completado.
Numa terra assim, os maiores guerreiros eram as crianças.
O país era frequentemente assolado por guerras violentas que
geravam tremendas carnificinas. Ser humano, animal, planta, mineral:
nada era poupado.
Um dos poucos que ainda cantava a memória daquele povo era um
exuberante espelho de entalhes antigos, que se erguia imponente entre as
lápides de metal puro dos cemitérios. De fato, havia mais cemitérios do
que casas nesse cenário do fim.
O espelho, com sua voz em tom barítono, cantava as lendas mortas:

Era uma vez a árvore chorosa


Em vão tentou abraçar o sol negro
Dengosa, quis agarrar todo o céu
E como mel lambê-lo e consumi-lo
O sol farsante quebrou-a em pedaços
Terno amante, jaz libido de fel
Meu medo é a vinda da filha do sol
Numa linda vingança de brinquedo
A esperança morre, mas ela brilha

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– Bravo, ó, espelho antigo! – clamou uma das crianças da terra.


Sentadas sobre os velhos escombros do cemitério estavam duas
crianças da vila próxima. Aqueles lados eram tão afastados, ermos e
destruídos que somente os mais pobres viviam por aquela escuridão.
Os dois tinham em torno de onze anos e usavam trajes esfarrapados.
– Que é a árvore e o sol? – perguntou o menino.
– O sol negro é o inimigo – explicou a menina – a árvore é nosso
povo. Minha irmã mais velha contou-me que os magos da nossa terra
tentaram desvendar os segredos mágicos das terras distantes. Foram
punidos por essa petulância.
– Você quer dizer que esse poema fala da guerra dos reis? – o menino
esbugalhou os olhos, impressionado – O Monarca de Diamante, do
reino Fantasmas da Água-Marinha... ele assassinou nossos antepassados.
Agora estamos sem rei, sem governo, sem exército. Seremos dizimados
no próximo ataque.
– Não completamente – lembrou a menina – eles sempre deixam
alguns de nós. A cada ano saqueiam e matam, pois somos alvos fáceis. Se
não sobrar ninguém vivo não terão mais de quem roubar.
– Tem razão – concordou o garoto – talvez possamos permanecer
vivos na guerra desse ano outra vez...
Ele fitou o céu escuro.
– Não entendo política. Não compreendo as reais razões dessa guerra
horrível e infinita. Mas eu gostaria de ter um instrumento para combater
esse ódio.
– Não quero fugir – disse a garota, decidida – essa é minha terra: suja,
escura, um amontoado de cadáveres. Ainda assim, é meu lar. Só por isso
é especial, orgulho-me desse lugar e quero defender meu povo.
Naquele momento, um pequeno grupo de crianças adentrou o
cemitério. No segundo seguinte, a menina estava no chão, atingida por
alguma força que passou muito rápido.
– Pobre tola – pronunciou uma garota muito bem vestida, que devia
ser dois anos mais velha que a pequena menina – como espera poder
defender-se da força esmagadora de uma guerra se sequer é capaz de
escapar do meu cajado?
Os três que a acompanhavam riram. Pelas roupas ornamentadas dos
quatro, via-se que eram da nobreza.

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A Guerra dos Esquecidos

– Saudações, Yahto e Yacamin – disse um dos garotos – ou eu


deveria dizer, Pó de Areia e Espiga de Pedra?
O menino ficou quieto. A menina esfregou a cabeça e levantou-se,
encarando-os diretamente.
Ao lado da garota mais velha, que usava botas de couro e um vestido
roxo de seda com abotoaduras douradas, pairava uma existência
transparente: um espírito na forma de monstro, com listras rubras e
negras semelhante a um dodô.
Acompanhando outro dos recém-chegados havia uma criatura ocre,
com chifres e garras.
As duas crianças pobres ficaram impressionadas com os respeitáveis
seres.
– Permitam-me apresentá-los – disse a garota mais velha – eu, Zarina,
acabo de tornar-me uma feiticeira de classe C e estou dentre as mais
poderosas da minha sala. Consegui criar meu servidor totem: Uaná. Pena
que os pobres não podem pagar pelo ensino de alto nível do reino dos
Fantasmas...
– Esse reino é nosso inimigo – observou Yacamin, a garota
esfarrapada – por que está estudando com as pessoas que nos matam?
Zarina gargalhou. Os outros três também riram para acompanhá-la.
– Você acha que eu me importo com esse país insignificante? – ela
fez uma careta – Eu quero viver. Para isso preciso de um poderoso
aliado. Eu sei a magia nobre. Poderei defender-me. Raoni também
obteve seu servidor e certamente não morrerá.
O garoto ao lado do monstro amarelo queimado deu um sorriso no
canto dos lábios. Depois disso, chutou Yahto.
– Odeio fedor da plebe – pronunciou Raoni, com expressão de nojo
– vocês, cidadãos ordinários, que nada conhecem das artes ocultas, em
vez de habitar os cemitérios deveriam cavar a própria cova e jogar-se
nela de uma vez. Morrerão de qualquer forma no próximo mês.
Yahto, assustado, levantou os olhos.
– Os fantasmas destruidores virão aqui no próximo mês? – ele
perguntou, com voz trêmula – Tão cedo?
– Sim – Zarina deu um largo sorriso – escutamos o boato na nossa
escola. Os pais de nossos colegas magistas virão aqui para explodir esse
lugar.

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– Traidores! – exclamou Yacamin, arrasada – Vocês são nativos do


reino Capricho da Memória! Não importa que sejam filhos de nobres e
tenham muito dinheiro! Deviam honrar a pátria, defender seu povo!
– Exatamente por isso não irei fazê-lo – pronunciou Zarina – não
quero que a lembrança da minha existência seja perdida. Iremos lutar ao
lado deles e abandonar vocês. A partir de agora, vocês são apenas o lixo
que iremos varrer.
– Adorarei matá-lo pessoalmente, Pó de Areia – sorriu Raoni – virei
até aqui somente para ter o prazer de despedaçá-lo com meu servidor.
Olhe bem nos olhos dele. Será a sua última imagem.
Yahto fitou os olhos negros do servidor ocre de Raoni. Era pequeno,
mas tinha garras afiadas. O menino não duvidou que elas fossem capazes
de penetrar seu coração.
– Vamos embora – falou a moça Zarina, que obviamente era a líder
do grupo – não temos tempo a perder com aqueles que terão apenas um
mês de vida. Tudo o que falarmos a eles será logo esquecido.
E se retiraram.
Yahto e Yacamin apenas se encolheram e se entreolharam.
– Vamos morrer pelas mãos de gente de nosso povo – disse Yahto,
tremendo – nosso destino será ainda mais terrível do que imaginei.
A menina permaneceu séria.
– Não permitirei tamanha traição. Vou aprender magia e matar aquela
garota.
O menino fitou-a assustado.
– Você vai matar alguém, Min...?
– Está com medo? – ela desafiou-o.
Ele baixou os olhos.
– Temos apenas um mês até que os magos do Monarca de Diamante
invadam. E não temos dinheiro para aprender magia. As escolas daquele
reino são caríssimas.
– Quem disse que quero aprender magia estrangeira? – perguntou
Yacamin – Procurarei um dos sábios de nosso reino para me treinar.
– Desista! Isso é impossível! Os melhores magos daqui foram
derrotados nas batalhas dos dois últimos anos.

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– Há uma pessoa – recordou Yacamin – um adolescente da planície


do sul. É conhecido pela alcunha de Mago Real. Isso porque ele
descende da linhagem de nosso antigo rei.
– Toda aquela linhagem desapareceu. Ele é um farsante.
– Não importa, contanto que tenha algo a nos ensinar.
– Cuidado, pequenos incautos... não queiram caminhar para a morte
– alertou o espelho.
Ambos voltaram-se para contemplar seus próprios reflexos.
– Por que diz isso, espelho antigo? – perguntou Yacamin.
– Qualquer esforço será em vão – explicou o espelho – Acaso já
ouviram as lendas dos magos do reino Fantasmas da Água-marinha?
Os dois balançaram a cabeça em negação. O espelho voltou a cantar:

Era uma vez um asceta de ferro


Manto laranja, costelas ossudas
O berro de suas vítimas mudas
Ecoava lá no mundo de marmelo
Martelo de gelo, somente amava
O acalento da mente e matava
Toda a gente que seus olhos fitavam
Crânio de ovo, coração lento e vil
Riu da armação do vento vingador

– Que é o mundo de marmelo, espelho? – perguntou o garoto,


curioso.
– A dimensão para a qual o Mago de Osso envia os espíritos que se
desprendem das carnes que ele perfura – explicou o espelho, sabiamente.
– Ele faz tudo isso com a mente? – perguntou a garota,
impressionada.
– Sim – respondeu o espelho – ele é um mestre mental. Cruza
dimensões, estrangula humanos e entidades com a força do pensamento.
A única vítima que sobreviveu para contar relatou que no seu momento
de quase morte sentiu uma pressão gelada e esmagadora. Portanto, ele
também recebeu a alcunha de Martelo de Gelo.
O menino sentiu um frio na espinha.

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– Em seu poema anterior você mencionou a filha do sol – lembrou


Yacamin – quem é ela?
– Uma poderosa maga, filha do Monarca de Diamante – explicou o
espelho – a Princesa Loxodonta.

Desde tenra idade, a bela princesa


Sonhava com elefantes de marfim
A chama dessa paixão bem acesa
A beleza do fim, amor pulsante
Eterno amante cartilaginoso
O cavalo que treme sob a musa
Assim difusa e desapaixonada

– Não entendo! – falou Yacamin – Ela tem ou não amor no coração?


– Amou tanto os elefantes que gerou um bebê com o espírito de um
deles – explicou o espelho – da união macabra nasceu uma criança que
ela carrega enquanto cavalga sobre um cavalo de ossos; o cavalo do
servo mais fiel do rei: Martelo de Gelo.
– Ela é uma xamã! – concluiu Yacamin, maravilhada – Comanda os
espíritos dos animais!
– O elefante é seu animal totem – explicou o espelho – o rei, por sua
vez, comanda uma horda de servidores poderosíssimos: monstros
marinhos com facetas humanas e brânquias.
– Se eles controlam espíritos, servidores e demônios, não sei o que
nosso povo pode oferecer contra isso – disse Yahto, perdendo as
esperanças.
– Ouvi dizer que o Mago Real tem um anjo – disse Yacamin – não sei
exatamente o que seria isso, mas deve ser uma entidade incrível.
– Vocês, reles mortais, ainda estão se arrastando por aí?
Dessa vez Zarina retornou sozinha. Com um único golpe de seu
cajado de orbe púrpura destruiu o espelho, que se despedaçou.
– Se não me engano, esse era o famoso Espelho Trincado, que
guardava memórias da última década desse povo – observou a maga de
púrpura – acabo de trincá-lo mais, para honrar seu nome.
As duas crianças gritaram de horror.
– Você o matou...

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– Ele nunca esteve vivo – disse Zarina – restos enferrujados


grasnando besteiras. Poemas? Arte? A verdadeira arte é somente a magia
nobre e pura. Aquela que domino e na qual vocês, miseráveis, jamais
encostarão um dedo. Assim ela não será maculada.
Yacamin desferiu um soco tão forte em Zarina que ela caiu no chão.
Zarina fitou-a perigosamente:
– Você tingiu meu manto de seda com barro e sangue. Jamais irei
perdoá-la.
Convocou seu servidor guardião e, com apenas um comando, o ser
listrado furou o pescoço de Yacamin, que caiu morta no chão.
– Menos um estorvo – pronunciou Zarina, tranquilamente – e você,
seu pária sujo, tem algo a me dizer?
Yahto, tremendo, segurou o corpo inerte da amiga, percebendo que
ela já não respirava.
– Não... não tenho nada a dizer – pronunciou Yahto com voz fraca,
temendo que ela o matasse.
– Peça desculpas pela má educação de sua amiga estúpida – disse
Zarina – ela teve o que mereceu.
Yahto ficou quieto.
– Não ouvi. Fale mais alto.
– Perdão, senhorita Zarina – disse Yahto – Yacamin foi descuidada.
Por favor, não me mate...
– Ajoelhe-se!
Yahto tocou a testa no chão e implorou pela sua vida. Zarina
gargalhou e retirou-se, deliciada com a humilhação do menino.
Ao levantar a testa, Yahto sentiu lágrimas nos olhos e enterrou a
amiga. O Espelho Trincado agora estava silencioso. Guardou um pedaço
do espelho no bolso, como lembrança.
Sem família e sem amigos, preocupou-se no que faria com a chegada
da noite e onde buscaria comida. Yacamin sempre resolvia essas coisas
por ele.
Felizmente, encontrou o caminho de volta ao seu barraco. Lá dentro
havia apenas um pedaço velho de cobertor e cascas de frutos. Ele
enrolou-se no cobertor e aguardou a chegada da manhã.

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Quando o sol nasceu, Yahto relembrou do sol negro, o monarca dos


espíritos, e estremeceu. Revirou todos os pedaços de madeira e tecidos
que sustentavam o barraco, em busca de uma bússola. Não encontrou.
Teve que caminhar até o vilarejo próximo, onde trocou seus sapatos
por uma bússola. Tinha apenas uma garrafa de água e nenhuma comida.
Dirigiu-se confiante para o sul.
Seguiu sua caminhada por horas a fio, sem descanso. Quando chegou
ao extremo sul, parou para descansar ao avistar as primeiras casas.
– Mago Real? – perguntou um adolescente de nariz engraçado –
Nunca ouvi falar!
– Minha amiga disse que ele habita essa terra – disse Yahto – é um
poderoso magista descendente da linhagem real.
– E o que um sujeito sujo e esfarrapado como você quer com um rei?
– Aprender magia...
O sujeito de nariz grande e torto contorceu-se de tanto rir. Não
parecia ser tão pobre quanto Yahto. Tinha roupas largas e simples, mas
limpas.
– Você é uma criança curiosa! Meu nome é Queiroga. Tenho 15 anos.
Prazer em conhecê-lo. Está com fome?
– Sou Yahto. Tenho 11 ou 12 anos, não sei ao certo. E estou
morrendo de fome!
– Tenho um pão para dividir – ofereceu Queiroga – mas se quiser
tocar no meu pão, terá que lavar as mãos!
Queiroga conduziu-o ao interior de sua casa de madeira, que possuía
apenas um cômodo. Ofereceu ao menino um copo d’água e metade de
um grande baguete de pão. Yahto agradeceu mil vezes.
– Não precisa agradecer tanto. Nossa, você estava com fome mesmo
– observou Queiroga – gasto todas as minhas economias em comida,
por isso estou até meio gordinho, como pode notar.
Naquele país, gordura era sinônimo de riqueza e símbolo de status,
pois significava que você tinha dinheiro para comprar comida. Portanto,
Yahto logo notou que ele estava se gabando ao mostrar a pança.
– Você veio das planícies do oeste, hã? – perguntou Queiroga,
curioso – pois teve sorte em me encontrar. Ninguém aqui gosta do
pessoal do oeste e os tratam mal. Eles sabem que as terras de lá estão

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inférteis e ninguém vai trazer dinheiro consigo para gastar no nosso


comércio.
– Deixando isso de lado, estou com pressa. Sem querer ser mal
agradecido – acrescentou Yahto – preciso aprender magia para destruir a
maga que matou minha amiga.
– Você não vai conseguir – disse Queiroga – nosso vilarejo tem
poucas dezenas de habitantes. Eu conheço todos aqui. Onde espera
encontrar o tal mago?
– Em cima de uma montanha? – arriscou Yahto.
– Não há montanhas aqui...
O menino ficou em silêncio. Pouco depois, derramou lágrimas.
– Em um mês os magos fantasmas chegarão e seremos dizimados.
Quero poder para defender meu povo.
– Mentira – sorriu Queiroga – você não quer aprender magia para
defender seu povo ou vingar a sua amiga. Você viu como é legal ser
poderoso e também quer ser. O primeiro passo é ser sincero consigo
mesmo.
– Tem razão, sou egoísta e covarde – confessou Yahto – e quero
aprender a convocar alguma entidade gigantesca com um daqueles
cajados luminosos.
– Opa, calma! – Queiroga só se divertia – esses cajados de madeira
entalhada com orbes de cristal são caríssimos. Somente os nobres podem
comprá-los. Se eu trabalhasse por uma vida inteira não conseguiria obter
nem metade do valor de um.
Yahto sentia-se um desgraçado por cobiçar os belíssimos utensílios e
poderes dos estrangeiros inimigos. Afinal, eles tinham matado seu povo
por gerações. Ele, assim como muitos outros, perdeu a família por causa
deles.
– Queria me orgulhar da minha terra – disse o menino – por isso
desejo encontrar o Mago Real. Ele sabe magia de nossa gente.
– Esqueça isso e descanse. Já que está sozinho agora, permito que
more comigo nesse último mês. Mas terei que trabalhar em dobro para
conseguir pão para dois.
– Não precisa... – disse Yahto, sentindo-se um estorvo – agradeço sua
generosidade. Devo partir.

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– Fique essa noite – disse Queiroga – não conseguirá encontrar o


caminho de madrugada.
O menino agradeceu a generosa oferta. Encontrou um canto
confortável no chão da casa e colocou um cobertor por ali. Dormiu
sobre ele.
No outro dia, acordou com as costas doloridas e com ainda mais
fome. Queiroga já tinha saído para trabalhar. Yahto resolveu passear pelo
vilarejo.
As pessoas não o fitavam com bons olhos, talvez por suas roupas
esfarrapadas. Yahto saiu de lá e seguiu até a floresta do sul. Teria que
contar com a sorte para encontrar alguma cabana em que habitaria o
suposto mago.
Teve medo de perder-se na floresta enquanto adentrava. Sua bússola
estava louca. Desconfiou da presença de algum espírito que atrapalhou o
ímã com sua força magnética.
E ele viu: sentiu um arrepio quando um ser flutuante passou sobre ele.
Parecia um fantasma, mas não conseguiu vê-lo direito.
– Ei, Yahto! – era Queiroga – Está procurando frutas e ervas na
floresta? Precisa tomar cuidado, pois há alimentos venenosos.
O menino ficou boquiaberto.
– Aquele lençol flutuante é seu?
– Que ofensa! – Queiroga brincou – Ele é meu anjo.
– Então você é o Mago Real!
– Sinto muito por não contar antes – disse Queiroga – queria
conhecer primeiro suas intenções antes de qualquer coisa.
– Você só aceitaria me ensinar se eu tivesse intenções puras? –
perguntou Yahto – Pois agora sabe que não tenho. Quero matar uma
pessoa.
– Não foi isso que eu disse. Anjos também matam seres em rebeliões
e revelações. Sente-se e vamos conversar.
Ambos sentaram-se sobre tocos de árvores partidos.
– Uso meu anjo para vigiar. Sou como o policial ou segurança da
aldeia.
– Você usou sua entidade na grande guerra do ano anterior? –
perguntou Yahto.
Queiroga confirmou com a cabeça, fitando Yahto com interesse.

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– Batalhou com o Monarca de Diamante, o Mago de Osso e a


Princesa Loxodonta? – perguntou o menino, impressionado.
– Não... sou como um inseto diante deles. Eu os vi, mas eles nem me
deram atenção. Não me consideraram digno de ser morto. Eles
assassinaram os mais ricos, para tomar suas posses. Mas restaram tão
poucos ricos hoje em dia que dessa vez será difícil ser ignorado.
O menino ficou meio desapontado. Pelo jeito não adiantaria muito
aprender magia com ele. Talvez seu povo só tivesse magistas ruins
mesmo.
– Ensine-me algo – ele pediu mesmo assim – pode ser até esse anjo
feio aí.
– Outro insulto! A evocação do anjo é uma das maiores operações de
magia! Você não vai conseguir agora.
– Então por que os magos inimigos não usam anjos também?
– Eles excederam meu poder por outras vias – explicou Queiroga – o
fato é que nenhum caminho é superior a outro. É questão de estilo. O
segredo é focar-se num deles e dominá-lo. Não tive esse tempo, pois
tenho que trabalhar. Sou jovem e também conheci a magia muito tarde.
Meu mestre morreu na guerra.
– Não importa como se analise a situação, estamos sempre em
desvantagem. Isso não é nem mesmo uma guerra, é um massacre.
Aposto que seu mestre estudou em outro país também.
– Sim, mas existe uma magia nativa daqui: servidores.
– Conheço uma maga que estudou servidores lá fora!
– Os nossos servidores são diferentes. Venha, vou lhe mostrar.
Eles voltaram para a cidade. Na casa de Queiroga, ele procurou em
suas coisas e encontrou uma folha de papel amarelada e um lápis mal
entalhado, mas que ainda escrevia.
– Desenhe – disse Queiroga.
Yahto desenhou uma bola com olhinhos pequenos e dentes
gigantescos, pois estava com muita fome.
– Dê-lhe um nome.
– Hm... Dente de Gengiva.
– Ótimo. Os antigos daqui faziam assim: davam uma porção de cada
uma de suas refeições para fortalecer o servidor.
– Mas eu não tenho nem comida para mim! – defendeu-se Yahto.

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– É por isso que os servidores de nosso país são especialmente


poderosos – explicou Queiroga – porque para nós, que temos pouco
dinheiro, retirar até uma migalha do pão é um grande sacrifício. Quando
existe o abandono de algo precioso, a força gerada é grandiosa.
O menino sentiu o coração inflamado de ansiedade por aquela tarefa.
Por isso, arrumou um emprego na cidade, como faxineiro. Queria
comprar bons alimentos, com o suor do seu rosto, para dividir com sua
criatura.
A cada noite, após um dia árduo de trabalho, o mago ensinava Yahto.
Na terceira noite tiveram uma sopa quente: somente um líquido aguado
sem vegetais ou carne. Ainda assim, foi como uma farta refeição.
O menino sentia-se cheio de energia para mais ensinamentos.
– Selecione algum objeto especial para que seja o receptáculo de seu
servidor: aquilo que irá receber esse novo espírito.
– Como posso criar uma alma?
– Bem, eu tenho um filho – contou Queiroga, com um sorriso – ele
ainda está na barriga da mãe e eu não sei direito qual foi a mágica por
trás do processo de produzir uma nova alma. Eu só conhecia o
procedimento físico para que resultasse num novo ser humano.
Acontece algo semelhante com a criação do servidor: consiga um objeto
poderoso para recebê-lo, fortaleça-o com sua vontade e energia, dê-lhe
alimento físico e espiritual. Um dia ele desperta!
– Que dia? – perguntou Yahto, preocupado – Tenho pouco mais de
três semanas! Ele precisa nascer logo!
– Então amanhã sua tarefa será procurar um objeto de alto
simbolismo para contê-lo: uma pedra, galho, estátua...
Yahto não via meios de economizar seu dinheiro para conseguir
argila ou algum bonequinho de metal ou madeira. Talvez devesse utilizar
um pedregulho.
No dia seguinte, a dona da loja na qual Yahto trabalhava ofereceu-lhe
uma maçã. Ele deu uma grande mordida nela. Acostumado a só comer
pãezinhos macios, frutas moles e sopas, perdeu um dente no processo.
Não era o primeiro dente que perdia, por isso não ficou muito
chateado. Só lamentava um dia não ter dentes para comer carne de novo,
caso um dia tivesse dinheiro para comprar uma. Até nas florestas era

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A Guerra dos Esquecidos

difícil encontrar animais para caçar. Portanto, comprar ainda era a


alternativa mais viável e segura.
Quando segurou o próprio dente nas mãos teve apenas uma certeza:
embora não soubesse se ia comer carne no próximo mês, sabia que tinha
encontrado o receptáculo do servidor.
Naquela noite, concentrou-se em fortalecer o dente com sua energia.
A partir dali, sempre separaria um naco de seus alimentos para oferecer
ao dente. Sentia-se orgulhoso.
– Antes de dormir, você precisa imaginá-lo – instruiu Queiroga –
pense em você mesmo acompanhado de seu servidor, derrotando os
magos do reino vizinho. Isso vai inspirá-lo.
O menino procedeu como foi ordenado. Era uma sorte ter
encontrado um mestre tão generoso. Ele até mesmo ofereceu um
emprego na loja de sua esposa. Dizia-se que naquele país a esperança
morria, mas brilhava. Pela primeira vez, Yahto conseguia contemplar
uma esperança brilhante e viva; e não somente um cadáver.
Ele dedicou-se muito, desejando que seu servidor despertasse. E a
resposta veio nos sonhos.
Sonhou que seu servidor eclodia de um grande ovo de ouro. No
sonho ele chorava de emoção. Acordou em lágrimas também e correu
para o local em que guardava seu dente. Quando abriu a gaveta sentiu
uma energia muito forte.
– Ele nasceu! – revelou Yahto, emocionado – Revelou-se a mim nos
sonhos e dei-lhe boas-vindas.
– Parabéns – sorriu Queiroga – a partir de agora você precisará
fortalecê-lo ao máximo até o dia da guerra.
– Muito obrigado, mestre! Não sei como agradecer...
– Tomar conta dessa criatura será a melhor maneira. Não a abandone.
A partir de então, Yahto sempre carregava o próprio dente num colar.
Tentou evocar a criatura algumas vezes, mas sua presença ainda era fraca
e apagada.
Três semanas se passaram. Yahto estava nervoso. Ainda não obtivera
uma aparição física consistente, embora a energia emanada fosse
pulsante.
Poucos dias depois, ouviram o som de explosões.

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Juliana Duarte

– Ainda não se passou um mês! – exclamou Yahto, desesperado –


Droga...! Criei meu servidor indefeso somente para entregá-lo diante da
morte!
– Não diga isso. Você foi ótimo. Sinto muito que não tenha dado
tempo de ensiná-lo com mais calma a magia. Tínhamos que trabalhar e...
agora esteja pronto para morrer.
Queiroga já tinha se conformado. Talvez tivesse treinado tanto para
aprender a morrer sem medo. Yahto suplicou para que seu servidor
aparecesse e também lhe ensinasse.
– Dente... onde está? Preciso de você.
– Tenho medo.
– Não tema, Dente. Vamos morrer, mas você terá que ser forte. Se
desejar, escape para outra dimensão. Não quero matá-lo.
– Ficarei – decidiu Dente – tenho medo, mas você é meu mestre.
Também sinto o medo em você e por isso não quero abandoná-lo.
Outra explosão. Yahto e Queiroga correram para fora da casa.
Quem apareceu foi Zarina. Ela, Raoni e seus outros dois
companheiros estavam muito machucados.
– Puleleuha! Arinos! – chamou Raoni, desesperado – Não fiquem
para trás!
Os dois fugiram para o interior da floresta com seus servidores.
Alguns magos aterrorizantes os perseguiam.
Zarina e Raoni entraram na casa de Queiroga. Zarina revirou a casa
procurando algum objeto de poder para encantar.
– Você...! – disse Yahto, surpreso – A vira-casaca está sendo
perseguida?
– Eles não aceitam gente do nosso sangue – disse Zarina –
estudávamos lá escondendo nossa identidade. Fomos descobertos.
Yahto nada disse e nada fez. Não precisaria mover um dedo. Ela seria
punida por poderosos magos. Não se importava.
– Essa é a casa do meu mestre – disse Yahto – você entrou sem
permissão. Saia.
Zarina fitou-o friamente.
– Não fique feliz porque serei morta – ela disse – farei com que se vá
antes de mim para que somente eu ria no final.

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A Guerra dos Esquecidos

Zarina evocou seu servidor, traçando um símbolo no ar e


pronunciando o mantra:
– ANOUK!
Ela desenhou as letras enroscadas no ar e o sigilo brilhou. Uma
quimera metade urso e metade morsa, nas cores azul e branca, saltou em
cima de Yahto.
Mordeu seu braço e quando se preparava para mastigá-lo, o servidor
Dente de Gengiva manifestou-se para defendê-lo.
Surpresa e temerosa pelo risco de perder o servidor secundário,
Zarina fez com que desaparecesse.
– Morra sozinho – ela disse – não tenho tempo para você.
Ela correu. Dessa vez evocou seu servidor principal listrado, para se
defender dos magos mais avançados.
Finalmente, Yahto viu. Com o braço sangrando caminhou até a rua e
enxergou as faces dos magos do famoso reino.
Eles eram pomposos e elegantes, pois vinham de um reino rico.
Cheios de mantos, livros, cajados. As entidades deles eram gigantescas e
respeitáveis. Não havia como não temer.
Yahto abraçou seu servidor e correu para o interior da floresta. Lá
encontrou os cadáveres de Puleleuha e Arinos. Não encontrou os
servidores deles quando chegou. Imaginou que tivessem sido destruídos.
Somente quando observou com atenção, Yahto enxergou o servidor
de Puleleuha, minúsculo e enfraquecido, tentando ceder suas últimas
energias para salvar o mestre.
– Não adianta – disse Dente de Gengiva para o servidor – ele se foi.
O servidor assumiu uma aparência estranha, como se chorasse.
Possuía galhos e sua face ficou meio derretida. Yahto e Dente ajudaram
o servidor abrindo um portal para que ele pulasse para outra dimensão e
se salvasse.
No momento em que Yahto fez isso, sentiu uma energia poderosa
por trás dele, fitando-o: uma imponente dama sobre um cavalo,
carregando sua cria nos braços.
Uma parte de Yahto morreu dentro dele com o terror que sentiu.
Bastaria um movimento da princesa para que caísse morto no chão.
Não soube direito o que ocorreu. Lembrou-se de ter visto elefantes
avançando sobre ele. E depois um fantasma branco.

19
Juliana Duarte

Quando abriu os olhos, enxergou apenas os ossos dos elefantes, que


espiritualmente viraram pó e desvaneceram. Finalmente pode
contemplar a magnífica entidade de seu mestre, elevando-se sobre o céu.
A dama fugiu em seu cavalo. Queiroga jazia no chão. O anjo dele
ascendeu aos céus carregando uma alma nos braços.
Queiroga atirou-se para a morte diante da mulher dos elefantes. Ela
perdeu seus espíritos familiares, mas no fundo Yahto sabia que ela teria
mais. Fugiu temporariamente. Afinal, ela era a princesa.
Ele avistou dois servidores do rei, bem de longe, devastando toda a
cidade. Provavelmente mataram todos.
Aquilo não era normal. Era sobrenatural. Aqueles magos tinham
entidades gigantescas, com posse de poderes surreais. Com certeza eles
saberiam fazer coisas muito mais cruéis do que matar. Matá-los numa
fração de segundo era até piedoso.
Yahto não chorou, porque aquilo não faria diferença: não era questão
de morrer para salvar uma pessoa e sim morrer antes ou depois. E ele
sabia que sua hora estava chegando.
Não valeria a pena nem odiar. Antes, tentou amar e perdoar, porque
sentiu medo.
Seu servidor sabia o que se passava em seu coração.
Yahto caminhava pela cidade e só via gente morta. Aquilo não era
mais surpresa para ele. As cenas apenas se repetiam, ano após ano. Tinha
vivido entre cemitérios. Ele sabia o que esperar.
Zarina e Raoni também estavam sem vida; os corpos tombados. Ele
seria de fato o último?
O próprio rei apareceu diante dele, em pessoa. Imponente, trajando
uma capa azulada e coroa de ouro; respirando ar diamantino. Seus
servidores iriam destroçá-lo.
Yahto encolheu-se. Ajoelhou-se e cobriu a cabeça com as mãos, com
o coração rebentando em seu peito. Tremia como animal acuado e
pronunciou baixinho:
– Que Deus me aceite no céu.
O monarca, alto e respeitável, permaneceu parado diante dele.
– Quem é Deus? – ele perguntou, com sua voz poderosa.
Yahto temeu pronunciar qualquer palavra. Sua língua tremia em sua
boca e o suor escorria de sua face.

20
A Guerra dos Esquecidos

– Deus é tudo...! – Yahto pronunciou com dificuldade – O início e o


fim. Tem poder absoluto. Reina sobre os universos.
– Esse sou eu – afirmou o rei.
– Não...
– Tenho perfeita sabedoria para julgar os que merecem ser punidos –
explicou o rei, com sua voz abissal – Vi o que há do outro lado; em
todos os lados. Percorri todas as dimensões. Não há nada que eu não
conheça.
Yahto tremeu cada vez mais. Para ter aquele poder supremo, como
duvidar daquelas palavras?
– Menino tolo – pronunciou o rei, amargurado – se não me
reconhece como senhor, conhecerá a morte.
Quando o rei ergueu a mão, Dente de Gengiva, também tremendo da
cabeça aos pés, colocou-se diante de Yahto para protegê-lo.
– Um servidor – observou o rei – fraco e inútil.
– Ele é meu amigo – disse Yahto, com lágrimas nos olhos.
Temeu por ele. Não queria que a pobre criatura morresse. Tinha
nascido há tão pouco tempo... simplesmente não merecia. Nada tinha
feito. Cometeu apenas o erro de ter nascido.
– Não foi um erro – Dente disse para Yahto – obrigado por tudo e
adeus.
– Não vou matá-lo – decidiu o rei – você se parece comigo quando
tive meu primeiro servidor. Ele ia entregar a vida para me salvar. Meu
captor teve pena por contemplar um servidor tão fraco fazendo algo tão
tolo por amor.
Yahto não estava ouvindo.
Ele apenas tremia. Só ouvia frases desconexas. Não compreendia o
que acontecia. Aguardava o golpe de misericórdia a qualquer momento.
– Finalmente esse país foi completamente destruído – disse o rei –
você é o último sobrevivente. Uma criança covarde e fraca como você
não é uma ameaça. Devo escravizá-lo? Sua vida está em minhas mãos.
– Errado – disse Yahto – minha vida se tornará uma memória na sua
mente. E você não irá possuí-la.
Yahto segurou o pedaço do Espelho Trincado que sempre guardou
consigo no bolso e cortou o pescoço. Encontrou a morte cobiçada.
Seu servidor desesperou-se. E assim anunciou o rei:

21
Juliana Duarte

– Você será meu prisioneiro. Irei torná-lo um servidor gigantesco e


perfeito.
Dente de Gengiva hesitou. Não teve coragem de saltar para as outras
dimensões, por medo. Assim, foi facilmente aprisionado pelo rei e
levado com ele até seu país.

Os anos se passaram. O rei fortaleceu o servidor de forma


extremamente mais rápida e eficaz do que Yahto jamais teria conseguido.
Alguns anos depois, Dente tornou-se gigante e monstruoso, com uma
bocarra de fera, mais assustador que qualquer um dos espíritos do rei.
Recebeu um novo nome: Mandíbula da Noite. Quando reuniu seu
poder máximo, Mandíbula teve coragem para finalmente soltar-se das
amarras do rei e mergulhar nos outros planos. No entanto, por mais que
procurasse não encontrou seu criador.
Um dia viu uma criança andando pela cidade. Devia ter em torno de
sete anos. Mandíbula notou que ele era incrivelmente parecido com o
mestre de seu mestre. Posteriormente soube que pouparam a mulher
grávida da aldeia até que ganhasse a criança, pois ela geraria o
descendente da antiga linhagem dos reis daquela terra. Sentiu a
reencarnação de Yahto nele.
Mandíbula tentou comunicar-se com o menino. Agora era o
contrário: seu mestre era tão pequeno e Mandíbula era tão grande!
Contou-lhe, por sonhos, quem ele era. Quando acordou, a criança se
lembrou de tudo, emocionou-se e chorou. Reencontrou seu querido
servidor depois de tantos anos.
– Por que tirou sua vida? – perguntou Mandíbula, com tristeza –
Senti saudades.
– Eu não sei... – respondeu a criança, confusa, ainda chorando.
– Está tudo bem agora. O reino Capricho da Memória nunca será
esquecido. Mas não busque vingança e tenha paciência com essas
pessoas. O Deus daqui também sabe sonhar.

22
A Guerra dos Esquecidos

Capítulo 2

O majestoso reino Fantasmas da Água-Marinha emanava nobreza e


elegância. A zona rica da cidade, em que se localizava o palácio real, era
esplêndida com suas cores. Suas edificações eram de ouro e rubi. As
colunas de pedra lapidada se elevavam e os fantasmas vermelhos subiam
nelas para enxergar o céu.
Cada vez mais navios atracavam no porto, vindos de terras distantes.
De dentro deles saltavam os mais poderosos magistas: o exército real,
que trajava capas rubras e carregava espadas de bronze cravejadas de
diamantes.
O propósito da existência de tais guerreiros das dimensões astrais era
somente pilhar e destruir. Voltavam carregados de tesouros nos braços
esqueléticos, banhados em sangue e vísceras. Cada gota de sangue
possuía uma cor diferente, de acordo com o reino massacrado. Os ossos
também possuíam os mais variados formatos e eram bons para construir
ferramentas de assassinato e brinquedos para as crianças.
Contudo, poucos infantes habitavam aquela terra. Era aquele um
reino de adultos: os veteranos bem versados nas artes mágicas, que
roubavam segredos e mistérios de cada lugar de areia, mar, céu ou chama
que pisavam.
No fundo, eles queriam os grimórios, os sopros de inteligências e as
almas. Pouco importava os tesouros de ouro e os corpos de carne. Isso
era muito barato. O preço de uma alma e de uma nova arte mágica era
inestimável. Mas sempre havia contadores por perto para estimar.
O mais novo tesouro furtado foi o Cubo Astrológico de Mostarda.
Obtido depois do massacre do reino Almas Rasgadas de Prata. Ele foi
colocado no topo de uma árvore, para alimentar-se de sua energia vital e
prever as surpresas meteorológicas, augúrios, colheitas, vidas e paraísos.
Nos bairros mais pobres havia mães e crianças ossudas. As cores de
lá eram mais foscas, cinzentas, amarronzadas. Os feiticeiros tocavam
cornetas com seus dedos sem carne, tentando chamar um Deus

23
Juliana Duarte

esquecido, feito de fumaça e cinzas. Caminhavam com suas bengalas e


animais peludos, cheios de dentes e garras.

Yahto, que reencarnou como o descendente real do extinto reino


Capricho da Memória, completou seus 15 anos; mesma idade de seu
antigo mestre, Queiroga, que também era seu pai nesse novo corpo.
Nessa nova vida ele estava sozinho: sem pais ou amigos. Mas não
estava perdido. Desde que seu antigo servidor, agora denominado
Mandíbula da Noite, contou-lhe sobre seu passado e gerou nele a
recuperação de memória, Yahto não conseguiu tomá-lo para si
novamente, já que ele era a entidade mais poderosa do Monarca de
Diamante.
Yahto também recebeu um novo nome: Hauolimau. Vivia próximo
ao palácio real, sob cuidados e proteção, já que ele tinha sangue azul. Era
atentamente vigiado. Ainda assim, ele não tinha permissão para ver o rei
ou a princesa Loxodonta.
Na ocasião de seu 15º aniversário ele foi chamado pelo Ministro da
Defesa Nacional: o senhor Rosto de Pano, que também cuidava da
entrega de entidades para os infantes e adolescentes.
– Príncipe Hauolimau, sabe por que foi chamado?
– Não sei o motivo, mas sei que o senhor intitulou-me
incorretamente – corrigiu Hauolimau, cheio de si – meu pai está morto.
Sou o rei.
– Um rei sem reino? – riu Rosto de Pano – Até o título de príncipe
soa desnecessário, mas são ordens de Sua Majestade Monarca de
Diamante, que certamente deseja mimá-lo mais do que merece.
Hauolimau permaneceu a fitar o ministro. Sua expressão era
ligeiramente séria. Não gostava quando riam do fato de seu antigo reino
estar destruído. Não se importava de ser rei, príncipe ou um cidadão
ordinário. Mas gostava de fazer-se de arrogante para obter algum
respeito naquela terra vigilante e desconfiada.
– Não me encare dessa maneira, aldeão atrevido – alertou o ministro,
com sua voz abafada por trás do tecido que recobria sua face – é
desagradável que tenha reavido as lembranças da sua vida miserável
naquele país pestilento. Orgulhe-se de ser habitante do reino Fantasmas
da Água-Marinha; uma valiosa terra de fortes.

24
A Guerra dos Esquecidos

– Não enxergo beleza alguma num reino de assassinos – retrucou


Hauolimau, friamente.
Dessa vez foi o ministro que o encarou silenciosamente por algum
tempo. O príncipe não desviou o olhar.
– Segure a língua, rapazinho insolente. Hoje será o dia prometido que
te levará em breve a livrar-se de seu manto branco de penitência e trajar
a capa vermelha dos guerreiros. Receberá sua primeira entidade, por
ordens do rei.
Hauolimau arregalou os olhos, assustado.
– Eu me nego – ele afirmou, resoluto – já possuo um servidor: Dente
de Gengiva.
– Ele não é seu! – urrou o ministro, elevando a voz num tom
tenebroso – o velho e fraco servidor foi modificado pelo rei e tornou-se
o espírito mais respeitável do reino. É impossível que o reivindique. Ele
tornou-se outro ser.
– Meu servidor lembra-se de mim – insistiu Hauolimau – e deseja
voltar para seu antigo dono.
– Não ouse afirmar aquilo que não compreende. O novo laço entre
Sua Majestade e Mandíbula da Noite é potente como correntes de aço.
Conforme-se com a realidade inevitável: ele não te quer ou teria
arrumado um meio de fugir nesses oito anos.
O rapaz teve que desistir. Não encontrou argumentos.
– Está certo – decidiu Hauolimau, de cabeça baixa – aceito meu novo
destino. Quem será meu companheiro de jornada?
– O rei reconhece sua imensurável capacidade de gerar vidas
espirituais – explicou Rosto de Pano – e acha que seria um desperdício
entregar-lhe uma entidade já pronta dos planos astrais. Ele ordena que
crie um novo ser.
Hauolimau duvidava muito que fosse capaz de gerar uma entidade
poderosa dessa vez. A fome e o desespero foram os fatores essenciais
para que a antiga empreitada desse certo. Atualmente ele estava apático e
sem esperança. Não teria força suficiente para uma criação desse porte.
– Assim será – pronunciou o príncipe, embora sua voz soasse sem
confiança – quando e em que circunstâncias isso se dará?

25
Juliana Duarte

– Sua memória deve estar fortemente danificada depois de quinze


anos sem mexer com magia – disse Rosto de Pano – portanto é
imprescindível que seja direcionado a um novo mestre.
Hauolimau achava desagradável ter que ser treinado por um dos
destruidores do seu reino de origem: os assassinos de seu antigo mestre e
de todo o seu povo. Era no mínimo vergonhoso aceitar submeter-se a
tamanha humilhação.
– Seu instrutor será o nobre conselheiro real Martelo de Gelo –
informou o ministro – sinta-se lisonjeado. Ele é o maior em poder
depois do rei.
O príncipe empalideceu com a informação. Não via como manter sua
honra diante daquilo. Era forte demais.
– Ministro, não posso concordar com essa afronta – pronunciou
Hauolimau, numa expressão que pairava entre o desespero e a raiva –
isso é uma ofensa enorme! O Mago de Osso dizimou o vilarejo em que
nasci. Talvez magos sob suas ordens tenham matado meus pais. A
princesa Loxodonta estava montada no cavalo dele quando matou meu
mestre Queiroga!
– Silêncio! – Rosto de Pano levantou a voz de novo – Não conteste.
Qualquer um de nossos habitantes daria a própria alma em troca de
possuir um mestre tão poderoso. Você está ciente da raridade de
encontrar um mago tão formidável em coragem e sabedoria disposto a
ensinar uma criança sem talentos como você?
– Ele é um covarde com coração de pedra! – gritou Hauolimau – Tira
a vida de inocentes, provoca dor lancinante em famílias felizes que
obtém o pão de cada dia com o suor do rosto. Tínhamos pouco no
nosso reino, mas éramos felizes. Ele apagou a única coisa que tínhamos:
nossas vidas.
– Agora você passou dos limites, principezinho petulante – grunhiu
Rosto de Pano, com sua voz arranhada – não lhe dou uma escolha e sim
uma ordem inviolável. Aceite ou arrancaremos mais uma vida de você.
Não terá um servidor para protegê-lo agora.
Hauolimau sentia-se completamente impotente diante daquele
homem respeitável, que inspirava o terror. Seu trabalho era intimidar e
ameaçar. O rapaz não possuía palavras, força bruta ou poder mágico que
equivalia àquela força.

26
A Guerra dos Esquecidos

– Muito bem, senhor – disse o príncipe, por fim – que seja feita sua
vontade.
O ministro esfregou suas dez mãos, extremamente satisfeito. Não
podia ver a expressão de seu rosto coberto de tecido, mas era visível seu
contentamento.
Rosto de Pano retirou do bolso uma chave dourada e entregou nas
mãos do príncipe.
– Amanhã ao nascer do sol você deverá dirigir-se ao celeiro do sul –
explicou o ministro – abra a porta e aguarde na torre mais alta. Seu
mestre virá até você. Esteja preparado.
Hauolimau curvou-se ligeiramente em agradecimento. Colocou a
chave no bolso do manto branco e, com a permissão do ministro,
retirou-se da sala.
Quando saiu de lá, se sentiu aliviado por ter sido liberado da tensa
entrevista. Ao mesmo tempo, sentia um aperto pesado no peito. Não
podia acreditar que trairia seu mestre Queiroga e todo seu povo por um
mero capricho de obter o poder mágico dos magos homicidas.
Ele não podia dar a desculpa de que nasceu lá e seria forçado a
proceder dessa maneira. Se fosse mais corajoso, podia fugir. Seria
perseguido e morto, mas um valente guerreiro não se importaria com
isso. A verdade era que ele continuava a ser o mesmo Yahto covarde.
Por fora ele fingia confiança, mas seus joelhos tremiam.
Hauolimau fechou os olhos e respirou um pouco de ar puro, para
tentar se acalmar. Caminhava pelo bairro rico, observando os navios de
guerra ancorados nos portos. A única coisa com que aqueles magos
malditos se importavam era em procurar novos reinos para destruir.
Roubavam os segredos mágicos e assim cresciam em força e maldade.
Ele era um cidadão daquela terra, mas possuía o sangue do reino
Capricho da Memória. Jamais poderia esquecer-se disso: ele não era um
deles.
Cansado daquele mundo monocromático de céu acinzentado,
embrenhou-se na floresta. Lá ainda havia um pouco de vida e música.
Deitou-se na grama, ouvindo o canto dos pássaros apagados. Mesmo
com aparência medonha, as criaturas possuíam uma melodia bonita.
Talvez não devesse julgar os pássaros. Eles apenas existiam e cantavam.
Era duro tentar aceitar esse destino também.

27
Juliana Duarte

Permaneceu lá até o cair da noite. Mesmo assim, seu coração não se


acalmou. E conforme a noite caía, o medo crescia dentro de si como um
monstro.
Seus pensamentos só se direcionavam para a lenda do Mago de Osso:
o famoso mestre que esmagava os adversários com a força de sua mente
gelada. Tão impressionante que às vezes sequer usava as mãos. Não
precisava se mover. Era uma fera tão terrível que o príncipe tremia
somente com a perspectiva de fitar seu rosto.
Caso pronunciasse as palavras erradas no dia seguinte, ele era capaz
de esmagá-lo em um só segundo. Não daria tempo nem para uma
segunda respiração. O alívio seria que a morte imediata iria livrá-lo da
dor.
Diziam que quem governava de fato não era o rei e sim Martelo de
Gelo, que era o conselheiro e primeiro-ministro. Aquela informação era
terrificante. Ele tinha sangue frio, conhecia o mundo astral como poucos
e possuía uma esperteza sem tamanho. Não havia a menor chance de
esconder dele coisa alguma. Hauolimau seria como um livro aberto
diante de Martelo de Gelo.
– Você não é aquele príncipe deserdado? Que está fazendo aqui?
O príncipe virou-se, ofendido. Surpreendeu-se ao ver quem lhe
dirigia a palavra: uma criança de uns doze anos. Ao olhar para a menina,
ele lembrou-se imediatamente de Yacamin e sentiu uma dor forte no
peito. Ela até se parecia um pouco com a velha amiga.
– Não te interessa – retrucou Hauolimau, com um pouco de medo –
quero ficar só.
Ele não entendia porque tinha medo dela. Não se sentia confortável
com ela perto. Trazia-lhe uma sensação estranha.
– Ninguém quer ficar só – afirmou a menina, sentando-se ao seu lado.
– Algumas vezes sim – disse Hauolimau – para colocar os
pensamentos em ordem. E eu prefiro não me envolver com ninguém,
pois já perdi muitas pessoas queridas no passado. Não quero mais sofrer.
– Eu sei o segredo de não sofrer nunca mais – contou a menina.
– Qual é? – perguntou o príncipe, curioso.
– Estar morto.

28
A Guerra dos Esquecidos

Quando ela disse isso, ele fitou o rosto dela pela primeira vez.
Observou-a intensamente. Quem era ela, que ousava afirmar algo assim
tão forte, com tanta convicção e firmeza?
– Não tenha medo de sofrer – disse a menina – não tema algo que
sequer aconteceu. Se escolher viver afastando-se de todas as pessoas e
prazeres por medo de perdê-los, sua existência será mais morta que um
cadáver. Na verdade, não será muito diferente de estar morto. A dor faz
parte da vida. Alegria também. Por isso, não fuja. Não se esconda na
escuridão. Logo o sol nascerá pela manhã com a luz de uma nova
esperança.
O discurso não lhe agradou. O príncipe virou o rosto.
– Não consigo ser tão otimista quanto você – ele disse – uma filha de
ricos que tem uma vida próspera e confortável jamais conheceria o peso
da minha vida.
– Não se pode medir sofrimentos – explicou a menina – uma pessoa
que enfrentou o terror da guerra e de assassinatos talvez aprenda a lidar
com a dor. Outra pessoa que vive feliz e em paz nos campos pode sofrer
enormemente com um espeto no dedo. Quem sofre mais? Quem sofre
menos? O sofrimento não se encontra fora e sim em nossa maneira de
ver o mundo.
– Sua burguesa arrogante! – exclamou o príncipe, sem paciência –
Como ousa...? Não tem ideia de como me ofende! Um espeto no dedo,
você diz? Eu vi pessoas especiais para mim se despedaçando diante dos
meus olhos! E agora serei obrigado a ter como mestre um dos
assassinos! Por favor, cale-se, eu suplico! Não estaria tão sorridente se
fosse amordaçada e torturada!
Ao dizer isso, aos gritos, o príncipe sentiu lágrimas nos olhos. E, sem
envergonhar-se, chorou na frente dela. Afinal, ele se via no direito de
chorar. Possuía motivos grandiosos e importantes.
– Você tem razão, eu não entendo – concordou a menina – que tal
me torturar para me mostrar?
Ele se sentiu ainda mais ofendido diante do pedido fútil da garota.
Tinha vontade de bater nela, mas não o fez. Ela era apenas uma riquinha
ignorante. Tinha muito que viver antes de entender certas coisas.
– Não pense que só a dor nos torna fortes – avisou a menina – o
amor gera um poder tremendo. Falta isso em você. Quando aprender a

29
Juliana Duarte

confiar na vida e nas pessoas, perderá o medo da dor e da morte. Porque


não estará mais sozinho. Não importará mais se morrer, porque seus
amigos e a vida continuarão. Quando tudo isso é parte de nós,
entendemos que quando perdemos o corpo físico não morremos de
verdade. Sempre deixamos uma parte nossa para trás.
– Sua teoria seria belíssima se não falhasse miseravelmente na prática
– retrucou Hauolimau, de mau humor – quando morri na outra vida, não
deixei nada para trás. Minha família, meu mestre, meus amigos, meu
reino. Tudo terminou. Era o fim de tudo.
– E aqui está você de novo – observou a menina – engraçado, não é?
Ele a fitou com raiva.
– Não sinta raiva de mim – disse a garota – não é comigo que está
brabo e sim consigo mesmo.
– Estou frustrado com minha situação, mas você também está me
deixando nervoso.
– Gostei de você. É muito sincero com seus sentimentos: sua
decepção, tristeza e medo estão pintados no seu rosto. Mas você pode
pintar-se com outras cores.
– Deixe-me em paz. Ai!
Um filete de sangue escorreu do dedo dele. A garota havia espetado o
rapaz com um espinho de rosa.
– Por que fez isso? – ele perguntou, aturdido, sentindo o dedo arder.
– Bonita a rosa, não acha? Mas se quiser fitar essa beleza, terá que
machucar-se nos espinhos. Não foi tão ruim. A recompensa foi melhor
ainda.
Ela entregou a flor para ele. O príncipe teve que concordar que
aquela flor era muito bela e perfumada. Furou-a com o espinho também.
Ela se aborreceu. Ele riu.
– Viva! – ela comemorou, sorrindo também – Não acredito que
consegui arrancar um sorriso do seu rosto! Devo ser a maga mais
poderosa do reino! Qual o seu nome?
– Hauolimau. E o seu?
– A partir de agora irei chamá-lo de Mau – ela decidiu – porque você
é mal educado, mas só no nome. No fundo é um rapaz gentil e bonzinho.
– Perguntei qual o seu nome.
– Eu não tenho nome.

30
A Guerra dos Esquecidos

– Como não?
– Bati a cabeça recentemente e esqueci tudo o que há para se saber
sobre essa pessoa chamada “eu” – ela explicou – e na verdade não quero
lembrar, pois não importa. Tenho a mim mesma, a terra e o céu. Isso,
por si só, não é maravilhoso?
– E seus pais?
– Não lembro. Sabe, você devia fazer que nem eu: viver sem
preocupações. Esqueça essa sua tal outra vida. Faz tanto tempo. Viva o
presente.
– Como você vive? Ei, espere!
A menina começou a andar na direção oposta.
– Tenho que ir – ela disse – já está tarde.
– Para onde vai? Tem para onde ir?
– Não posso dizer isso para um estranho, não é mesmo, Mau? Há
pessoas suspeitas por toda a parte nesse mundo cruel.
Ele não conseguiu deixar de sorrir quando ela disse isso.
– Vou te chamar de Yacamin – ele decidiu – o apelido será Min.
– Mau e Min. Seria uma boa dupla caso nos víssemos outra vez. Mas
isso não vai acontecer.
E com tais palavras, ela foi embora.
Aquele encontro foi tão inusitado que serviu pelo menos para uma
coisa: tirar as preocupações sobre o Mago de Osso da sua cabeça.
Hauolimau voltou para casa e conseguiu dormir tranquilo. Acordou
antes do nascer do sol. Tomou um banho e aprontou-se com seu melhor
manto branco. Tinha que se mostrar apresentável.
Foi a pé até o celeiro do sul. Chegou lá em uma hora. Subiu o longo
lance de escadas até a torre mais alta. Levou pelo menos quinze minutos
até atingir o topo. Enquanto isso, via o sol subindo no horizonte, como
um orbe vermelho.
Não havia ninguém. Hauolimau fitou a paisagem pela janela. Aquela
era uma vista belíssima. Não sabia que havia algo tão bonito assim até na
terra dos matadores. E entendeu o que a garota misteriosa quis dizer.
Mas nem o sol fez seu medo sumir. Ele sentou-se, abraçando os
joelhos. Tremeu, pois sabia que o imponente Mago de Osso logo
cruzaria aquela porta. Não parava de fitá-la enquanto o sol subia. Ainda

31
Juliana Duarte

havia umas poucas estrelas no céu. Assim que o dia despertasse


completamente, sabia que seu novo mestre pisaria naquelas lajes geladas.
O príncipe ouviu sons de passos distantes. Seu coração bateu tão
depressa que quase rebentou seu peito. Suava e ao mesmo tempo tentava
disfarçar as reações de seu corpo para não parecer tão desesperado
diante do arquimago.
Finalmente, ele atravessou a porta. Não se lembrava de ter sentido
tanta energia emanando de uma pessoa antes. A própria existência dele
exalava um ar gelado que fez com que o príncipe estremecesse. Ele não
sabia se era de frio ou de medo.
Ele trajava um manto negro e a capa vermelha: marca dos magistas
de elite. Seu crânio era ovalado e repleto de marcas. Não identificou seus
olhos. Ouviu falar que eles só brilhavam quando o magista usava muito
mana; geralmente para matar alguém. Esperava não testemunhar isso.
Em seu pescoço havia rufos semelhantes aos que os ministros
usavam, só que mais desgastados e endurecidos. Era moda no reino e
um símbolo de status. Também havia um brinco em sua orelha esquerda;
provavelmente de ouro. Hauolimau já tinha ouvido falar de acessórios
para aumentar ou conter poder mágico, mas não sabia se aquele era o
caso. Jamais se atreveria a perguntar. Não estava assim tão curioso.
Assim que o Mago de Osso atravessou a porta, o príncipe levantou-se
e fez uma reverência pomposa, cheia de floreios.
– Por que você me fez uma reverência? – perguntou o Mago de Osso,
num tom perigoso.
Hauolimau tremeu ainda mais. Não podia acreditar que havia
estragado tudo já no primeiro segundo.
– Perdão se o ofendi com meus cumprimentos – disse o príncipe,
imediatamente – sei como devo me portar diante da realeza, mas
desconheço as regras de etiqueta que ensinam como proceder na
presença de um dos dez magos de elite do reinado.
– Por que mantém o rosto baixo? – indagou Martelo de Gelo – Por
que não me olha no rosto quando me dirijo a você?
– Porque o senhor é muito grandioso e poderoso – respondeu
Hauolimau, nervoso – digno do mais alto respeito. Mais sábio que a
árvore anciã da floresta; sua mente mais afiada que a lâmina da espada de
um bravo guerreiro.

32
A Guerra dos Esquecidos

– Não foi o que ouvi dizer – observou Martelo de Gelo – “Ele é um


covarde com coração de pedra” foram suas palavras para o Ministro da
Defesa Nacional.
Hauolimau corou violentamente; ou ficou branco; ou verde. O
desespero que marcou seu rosto foi impossível de apagar. Agora sim não
conseguiria encará-lo. Ele, o príncipe, era um falso duas caras sem honra
que falava mal pelas costas e fingia uma lealdade e admiração que não
existiam.
– Você me enoja, “príncipe”. Encare-me como homem ou fuja daqui
como um rato. A escolha é sua.
Dessa vez Hauolimau foi atingido pela provocação. Não ia fugir.
Martelo de Gelo quem devia temê-lo e não o príncipe a ele: temer sua
vingança iminente. Mas como atingir um mago daquele porte? Era uma
tarefa quase impossível.
O príncipe ergueu o rosto. Fez a expressão mais séria que conseguiu.
– Você consegue fazer melhor que isso – disse Martelo de Gelo.
O mago lançou a ele uma espada. O príncipe desajeitado não foi
capaz de segurá-la no ar e ela caiu no chão.
– Você me treinará como mago ou guerreiro? – perguntou o príncipe,
confuso.
– E desde quando houve uma diferença entre os dois? – perguntou o
Mago de Osso – O verdadeiro questionamento é: devo treiná-lo? O
pedido formal ainda não foi feito.
Hauolimau ajoelhou-se diante dele, sentindo-se ainda mais humilhado.
– Ó, respeitável Martelo de Gelo, senhor dos senhores das dimensões
sublimes! Peço humildemente que me aceite como seu discípulo.
– O pedido foi aceito, pois essa é uma ordem direta do rei. Essa
tarefa desagradável estará finalizada em poucas semanas, dependendo do
seu progresso. O treinamento será intensivo e compreenderá o período
das cinco da manhã até as dez da noite, com dois intervalos de quinze
minutos.
O príncipe concordou, pois não haveria razão para discordar. Pedir
menos mostraria fraqueza. Requisitar mais refletiria uma situação que ele
não desejava.
Ele segurou a espada que seu mestre lhe lançou.

33
Juliana Duarte

– Você deve estar ciente de que os grandes magos preferem a espada


ao bastão – disse o mago – o bastão é excelente para proteção mágica e a
espada é mais formidável para ataque. Aqueles que evocam entidades o
fazem sob o selo da adaga. Os que querem atingir o infinito preferem a
lâmina mais longa, que molda as nuvens e gera as tempestades.
O príncipe fez que sim, pois tinha medo de discordar.
– Sendo este um treinamento intensivo, iremos pular o ensinamento
do uso de outros utensílios, selos e amuletos. Também iremos
desconsiderar os preceitos das viagens dimensionais mais profundas,
divinação pelo vento, projeção energética pelas mãos, mudras clássicos,
mantras de poder e toda sorte de parafernálias e vocábulos sarrentos e
dispensáveis. Daria muito trabalho explicar os fundamentos arcanos para
um iniciante sem base alguma.
– Sim senhor – disse o príncipe – mas, se eu posso perguntar, qual é a
pressa?
– Creio que ambos estamos cientes de que nos desprezamos
mutuamente – explicou o Mago de Osso – você por seu infantil desejo
de vingança por sua outra existência, que era ainda mais insignificante
que a atual. Eu, que não desejo perder meu precioso tempo com um
indivíduo comum que nada sabe de magia e que sequer possui a força de
nosso sangue. Dessa forma, quanto mais depressa terminarmos isso será
benéfico para as duas partes.
– Perdão pelo atrevimento, mestre, mas ouvi dizer que o Monarca de
Diamante também possui sangue do reino Capricho da Memória e era
parte de nossa realeza. Um empregado de nosso antigo rei, meu
antepassado.
Nesse instante, Hauolimau caiu no chão, sentindo a respiração
trancada e as batidas do coração aceleradas.
– Não se permita ser pego desprevenido pelo inimigo – disse Martelo
de Gelo – proteja-se pela espada. O treinamento já começou.
O príncipe levou um grande susto. Jamais imaginou que o mestre iria
atacá-lo mentalmente sem aviso. Tomaria mais cuidado com as palavras.
Pensando bem, era melhor ficar quieto.
Era difícil resistir daquelas impressões mentais. O joguinho devia ser
brincadeira de criança para o Mago de Osso.
– Como vou defender-me se a espada é para o ataque?

34
A Guerra dos Esquecidos

– Quem disse que isso é problema meu? – perguntou o mestre – Já


fui muito generoso em ceder-lhe este artefato. Providencie o resto.
– E minha entidade? – perguntou o príncipe, entrando numa nova
onda de desespero – Como vou criar meu servidor? Você não ia me
ensinar?
– É exatamente o que estou fazendo. Concentre-se mais e fale menos,
reles camponês. Se deseja ser um mago, deve aprender a calar. Você tem
dois ouvidos e uma boca. Mas naturalmente posso costurar a boca caso
continue a causar problemas.
Hauolimau entendeu. O mestre ia criar uma atmosfera tensa para que
ele materializasse um servidor no momento de desespero. Mas não via
meios de atingir outra dimensão ou fortalecer um servidor
energeticamente enquanto era torturado mentalmente.
Aquilo continuou por um tempo indefinido. O suor de Hauolimau
banhava seu manto branco. Seus cabelos curtos colavam na face lívida.
Por fim, o príncipe desabou.
– Resistência baixa – constatou Martelo de Gelo – levante-se e me
ataque.
– Atacar o senhor? Mas...
Hauolimau levantou-se e fez movimentos vigorosos com a espada,
tentando cortá-lo.
– Zero na habilidade como espadachim – observou o mago – zero na
maestria da magia. O que fez nesses quinze anos?
– Existi. Comi, dormi e tive a educação básica requisitada nessa terra.
– Um treinamento não começa no corpo ou na mente e sim no
espírito. É desejável ter um corpo forte para abrigar uma alma
igualmente poderosa. Uma mente afiada também é boa coisa para ter.
Mas ambos são inúteis se não é capaz de tocar sua essência ou sequer vê-
la.
– Ensine-me, mestre!
– Descubra sozinho, preguiçoso infeliz.
– Você é tão mau...
– Sou incrivelmente misericordioso, ao suportar suas bobagens.
– Obrigado, mestre...!
– Cale-se, seu magista de meia roda. Descanse e recobre suas energias
antes que eu o mate sem querer.

35
Juliana Duarte

O período de intervalo teve que ocorrer mais cedo que o planejado.


E durou meia hora em vez dos quinze minutos, pois Hauolimau caiu no
chão e não conseguia erguer-se. Enquanto ele estava estirado lá, o Mago
de Osso desenrolou um pergaminho do bolso e escreveu alguma coisa
com pena e tinta.
– Posso saber o que o senhor está escrevendo? – perguntou o
príncipe, cuidadosamente.
– Estou elaborando selos para seu uso – respondeu o Mago de Osso.
– O que eles significam?
– Não interessa. Não vou perder minha paciência te explicando, não
temos tempo para isso.
– Tente.
– Primeiro você precisaria de uma iniciação na numerologia,
astrologia e simbologia antiga. Especificamente nas áreas de cálculos de
geometria clássica para a astronomia e conhecimento linguístico das três
línguas mães que originaram esta.
– Tá, esquece. Vou só usar, sem perguntar – decidiu o príncipe.
– É o dever de um príncipe receber educação nas artes nobres –
observou o mestre – devia se envergonhar.
Hauolimau decidiu ignorá-lo. Não era boa ideia iniciar uma discussão
com um magista daquele nível. Caso o deixasse zangado, podia ser a
última coisa que faria.
– Se já tem energia para falar, também terá para mergulhos
dimensionais – disse o Mago de Osso – dessa vez mudaremos o método.
Ambos iremos meditar. Irei conectar nossas mentes e você deverá
escapar.
Aquela tarefa impossível consumiu o resto da manhã. Hauolimau não
conseguia entender como aqueles ataques psíquicos tinham a ver com a
fabricação de um servidor.
No próximo intervalo, o príncipe perguntou:
– Por que vocês matam tanta gente? Só para obter poder?
– Por que não deveríamos matar? Acha pouco ter essa força que
possuo? Caso ache, saia daqui. Se não busca o poder, vá atrás de algum
brinquedo divertido lá fora, como fazem as outras crianças.

36
A Guerra dos Esquecidos

– As outras coisas da vida não são brincadeiras – argumentou


Hauolimau – uma vida não é algo que deve ser apagada assim, de repente
e intencionalmente.
– A natureza pode e eu não? Os seres humanos aceitam quando sua
hora chega. Também devem aceitar quando chego para matá-las.
– Você tornou-se um Deus?
– Não – respondeu Martelo de Gelo – somente um Deus de mim
mesmo. Não desejo veneração de pequenos ou controlar suas vidas.
Tenho outras ocupações.
Aquele mago não achava que os outros eram interessantes. No
máximo, úteis para matar. Apenas crianças. Hauolimau não gostava disso.
Sentia-se incomodado.
– E se alguém te matasse? – desafiou o príncipe.
– Seria uma honra morrer em batalha. Caso eu encontrasse um
oponente tão poderoso capaz disso, eu me sentiria extremamente
satisfeito. A primeira coisa que um assassino deve aceitar é ser morto. Se
ele não perde o medo da morte, não sentirá o êxtase de matar em sua
plenitude. O prazer dessa vida é viver perigosamente, sob a lâmina da
faca. Nenhum outro tipo de vida me agradaria. Quando encontro outro
magista excelente, o tédio é quebrado e meu sangue inflama.
Hauolimau baixou os olhos. Ele entendia esse prazer do qual o
mestre falava, mas não podia concordar. Ele se alimentava do terror
daqueles que morrem.
– É possível obter grande poder sem matar – observou Hauolimau –
de outras fontes.
– A fonte da morte é muito mais rápida e eficaz – disse Martelo de
Gelo.
– Por que usa servidores e não demônios?
– Quando devo escolher entre um e outro, opto pelo servidor. Afinal,
o servidor se alimenta daquilo que sou. E minha energia atualmente
possui uma emanação muito mais medonha que a de um ser infernal.
Minha fonte absoluta é minha mente.
Hauolimau sabia. Podia sentir.
Na terceira parte do treinamento, Hauolimau permaneceu ajoelhado
com a espada em punho. Levantou-se com os joelhos doloridos e os

37
Juliana Duarte

braços pesados. Estava no interior de um círculo repleto de arcanos


desenhados por ele mesmo. Copiou as imagens do pergaminho.
Quando voltou para sua casa, estava exausto. Apenas jogou-se na
cama e nem conseguiu refletir sobre o dia. Dormiu assim que sua cabeça
tocou o travesseiro.
Chegou atrasado para o segundo dia. Dormiu demais. Era melhor
não fazer Martelo de Gelo perder a pouca paciência que tinha.
Nesse segundo dia ele entendeu que o receptáculo do servidor seria a
espada. Gravou nela os arcanos, com fogo. Sentiu um grande poder em
si quando fez isso. Realizou movimentos vigorosos com o utensílio de
poder. Aos poucos aprendia a alterar o estado de consciência para
conectar-se às outras dimensões.
Um servidor para ataque psíquico. Aquilo deveria acontecer. Os
elementos do servidor seriam o fogo e o gelo. Talvez pelo seu medo e
pelo frio excruciante que sentia na presença do mestre, só conseguia
produzir a energia do gelo. Enxergava um pássaro de gelo num plano
astral, mas não o fogo.
– Você exagerou – disse-lhe Mago de Osso – superestimou seus
poderes. Tente materializar duas cabeças na criatura, uma de fogo e uma
de gelo, para consertar o problema.
Os dias passavam e era difícil atingir o resultado desejado. Hauolimau
sequer era capaz de trazer seu servidor para esse plano.
– Maldito fracote, vou ter que interferir ou passaremos meses inteiros
nisso.
Martelo de Gelo materializou uma segunda cabeça de fogo no
servidor. Retirou-o do plano astral com a maior facilidade e trouxe-o
para as dimensões daquele tempo e espaço.
– Incrível...! – pronunciou Hauolimau, maravilhado – É tão forte!
Mas ainda não lhe dei um nome e não decidi bem seus poderes. Não
consigo comunicar-me com ele.
– Ignore tudo isso – falou o Mago de Osso – ele é seu servo, não sua
boneca. Não o trate como criança.
O príncipe recordou-se de como foi divertido cuidar de Dente de
Gengiva com amor. O desenvolvimento dele foi lento. Ele não possuía
nenhum poder especial, mas eram grandes amigos.

38
A Guerra dos Esquecidos

Era meio vazio ter aquele servidor somente para ataque, como um
escravo. Com a ajuda do mestre, seu servidor já era capaz de investidas
de fogo e gelo. Teve que estudar esses dois elementos e passar por
treinamentos rigorosos, suportando temperaturas muito elevadas e
baixíssimas.
– Voar será uma habilidade secundária que deverá desenvolver nele
nos próximos dias – instruiu Mago de Osso – ou pelo menos flutuar.
Depois disso, realize a conversação formal e estaremos terminados.
– Só isso?
– Sim. Amanhã será seu último dia.
Ao todo, foram três semanas de treinamento intenso. Com exceção
dos primeiros dias tortuosos, o resto passou tão rápido quanto um
sonho. Hauolimau nunca pensou que diria isso, mas provavelmente
sentiria falta da companhia do mestre e de seus sermões.
– Você não me ensinou a filosofia da magia – lembrou o príncipe, no
dia seguinte – não me mostrou muitas coisas importantes.
– Eu te contei que ia induzir em você o poder sem os fundamentos.
Isso porque amanhã partiremos para a guerra.
– Guerra? – perguntou Hauolimau, arregalando os olhos – Que
guerra?
– Antes do nascer do sol você irá conosco no navio invadir o reino
Vento do Sonho Inteiro. Usará seu servidor para matar a população mais
fraca que não conhece a mágicka. Deixe os magos mais fortes para os
veteranos.
– Não! – Hauolimau recuou – Não irei matar.
– Se essa é sua escolha, irei tomar seu servidor de você – disse Mago
de Osso, com firmeza – como não te passei as bases da mágicka, não
será capaz de produzir outro semelhante a este em poder. Também não
será iniciado formalmente como magista.
“Maldito!” pensou o príncipe, sentindo-se derrotado. Por esse motivo
ele não lhe explicou as leis, regras e bases da magia. Somente lhe passou
pedaços recortados de quebra-cabeças. Sem as instruções dele, não seria
capaz de montar o servidor sozinho.
O príncipe optou por mentir. Disse que aceitaria matar, só para
receber a iniciação, o selo e os segredos. Naquela mesma madrugada
escaparia com seu servidor.

39
Juliana Duarte

Numa cerimônia formal, Martelo de Gelo entregou a Hauolimau o


símbolo de poder e o manto vermelho. Soprou-lhe energia. Dessa forma,
estavam conectados como mestre e discípulo na verdadeira acepção da
palavra.
– Não vou receber um rufo elegante como o senhor?
– Não, isso é para a elite – disse o mestre.
– E um brinco?
– Você não precisa. Eu o uso para reter poder. De outra forma,
quando eu te atacasse, mesmo levemente, iria te matar ou fazer essa torre
desabar.
Hauolimau deu um risinho nervoso. Não, aquilo não era engraçado...
Sentia cada vez mais medo do sujeito. Ele não tinha lhe mostrado nada
do seu real poder e o príncipe não desejava ver.
Naquela madrugada, fugiu pela floresta. Separou uma trouxa com
bebidas e alimentos. Em alguns dias de caminhada chegaria ao outro
reino. De lá, seguiria para cada vez mais longe até sumir da vista daqueles
loucos.
– Olá, mago matador da capa vermelha.
Quem lhe disse isso foi a mesma garota metida da vez anterior.
Hauolimau fez um movimento para que ela ficasse quieta.
– Ah, entendi, está partindo! – ela riu – Boa viagem. Eu disse que não
íamos nos ver mais, mas não resisti em despedir-me ao te ver fugindo
sorrateiramente.
– Não sou um covarde – disse o príncipe – eu só...
Ele não soube o que dizer. Ela não se importou.
– Posso ver seu servidor?
Ele evocou a energia do pássaro de gelo. Era difícil chamá-lo com
duas cabeças. Pelo menos tinha o selo.
– Que lindo! – ela exclamou, contente – Posso acariciar a cabeça
dele?
– Não tenho tempo. Devo ir antes que...
Hauolimau sentiu um frio na espinha. A menina assustou-se também.
Diante deles estava Martelo de Gelo em pessoa, naquela madrugada fria.
Com ele perto a temperatura baixou ainda mais.

40
A Guerra dos Esquecidos

– Você não tem honra, falso príncipe – pronunciou o mestre – e


ainda ousou evocar seu servidor para que eu sentisse onde estava? Você
é burro ou queria ser capturado?
O Mago de Osso capturou os dois. Levou-os direto para o navio e
trancou-os lá.
– Partiremos em três horas – informou Martelo de Gelo – sugiro que
fortaleça seu servidor até lá. Se tentar fugir outra vez, eu sacrifico essa
menina na sua frente.
O Mago de Osso retirou-se.
Os dois estavam trancados numa cabine do navio. Hauolimau
abraçou o próprio corpo, tremeu e chorou.
– Você só sabe chorar? – perguntou a menina, aborrecida.
– Algum problema com isso? – ele retrucou, irritado.
– Você é muito emotivo. Explode de fúria e derrama lágrimas de
ódio e tristeza. Não é ruim expressar as emoções, mas por que sempre
coisas tão negativas? Rir é muito mais poderoso.
– Você tem vontade de rir agora?! – gritou Hauolimau – Sabe para
onde vamos?
– Sim. Destruir um reino.
– Como pode ficar tão calma?
– Porque eu não tenho o poder de alterar o curso dos
acontecimentos.
– E você gosta disso? – perguntou o príncipe – Não queria poder
mudar as coisas erradas?
– Sim, mas isso exige uma vida de dedicação e sacrifícios. Não é mais
fácil mudar a parte de dentro do que a de fora? Em vez de desejar que o
sol seja azul e não vermelho, prefiro acostumar-me com o sol como ele é.
– Sua conformista.
– No final, nenhum de nós dois será capaz de mudar nada. Mas você
vai morrer chorando e eu sorrindo. Isso sim fará toda a diferença.
– Parabéns – ele zombou – pelo menos eu tentei mudar, enquanto
você ficou sentada.
– Não é ruim sentar e relaxar. Você devia tentar. Já olhou o céu hoje?
– Não há nada nesse mundo que me traga conforto – confessou
Hauolimau – serei obrigado a matar pessoas inocentes. Não terei escolha.
– Sempre há uma escolha.

41
Juliana Duarte

– Tentei fugir e não funcionou – disse o príncipe – a única saída é me


matar. Eu fiz isso na outra vida e temo só de pensar em fazer de novo.
As três horas passaram como um voo de pássaro. O navio começou a
se mover. Hauolimau tinha cochilado e assustou-se quando aconteceu.
Continuava a sentir a mesma dor desagradável no peito.
Não queria matar. Não sabia por que não queria. Talvez porque lhe
desagradasse a ideia de morrer com tanta violência. Conhecia o terror e
não queria provocá-lo. Martelo de Gelo, que livrou-se dele, esmagava
pessoas como formigas.
Hauolimau tentou manter a razão, mas não conseguiu. Era medroso
demais para matar. Medroso demais para morrer. Qual caminho restava?
Só existia a via da morte como alternativa e ele não sabia se queria
experimentar um mundo assim.
– Mago chinfrim, saia daí. Tenho algo a lhe mostrar antes de
chegarmos.
O rapaz saiu, como seu mestre ordenou. Mas sua expressão era
cadavérica.
– Se continuar com essa energia fraca, não será capaz nem mesmo de
evocar sua criatura – disse o mago – decidi lhe mostrar uma magia eficaz.
Você não está preparado para ela, mas vai te ajudar na batalha.
O príncipe nem estava ouvindo.
– É a técnica de múltiplos servidores. Eu mesmo tenho um servidor
principal e diversos secundários, para grandes ataques em massa.
Quando existem vários servidores complementando a energia do outro,
uma egrégora é criada. E quando o servidor principal emerge como
forma de Deus, ele é capaz de dar a vida a outras formas-pensamento,
mesmo que ela não passe primeiro pelo seu cérebro.
– Fascinante – disse Hauolimau, sem interesse.
– Eu tenho um pássaro como servidor quaternário – explicou Mago
de Osso – chame o seu, para que cruzem.
Os dois pássaros foram chamados. Martelo de Gelo era um magista
tão potente que foi capaz de alterar o curso do tempo em outra
dimensão. Colocou os dois seres numa dimensão de tempo acelerado.
Um dos pássaros colocou os ovos e eclodiram os filhotes.

42
A Guerra dos Esquecidos

– Pegue esses filhotes para trabalhar com servidores múltiplos. Tente


focar a energia no seu pássaro principal, para que ele gere outras formas
em batalha.
Hauolimau sentiu emoção com tudo aquilo. Não conseguiu evitar.
Mas não queria usar aquelas criaturas doces para matar.
Quando o navio atingiu a terra, Hauolimau ouviu os gritos de
desespero dos habitantes. Eles já sabiam que seriam dizimados.
O príncipe e a garota contemplaram o espetáculo macabro. O
Monarca de Diamante foi o primeiro a sair. A princesa Loxodonta
requisitou o cavalo do Mago de Osso, que materializou-o imediatamente
para ela. A dama chamou seus elefantes, que surgiam de todos os lugares,
pisoteando pessoas.
Os servidores do rei emergiam das águas: formas humanóides, polvos
com tentáculos borbulhantes. Não era bonito. Não quando tantas almas
se soltavam dos corpos sem derramar sangue. Era uma espécie de
choque mental imediato. Como se um simples olhar já causasse a
separação de corpo e alma.
– Elite, procure os tesouros! – mandou o rei, com sua voz rouca,
grave e espectral – Localize os magistas mais fortes!
Eles não queriam riquezas e sim poder mágico. Por isso, quanto mais
fortes fossem os adversários, mais poderosos eles mesmos ficariam.
Hauolimau encolheu-se no navio, gritando, quando viu as pessoas
morrendo. Os ministros seguravam os cadáveres com os ossos mais
valiosos e os levavam nos braços para o navio. Ele desviou o olhar, pois
não suportou. Seu corpo ficou paralisado.
– Mau, seja forte! – gritou a menina – Olhe!
– Por que devo olhar?
– Porque você precisa entender. A morte é apenas a morte. Não
precisa ficar triste.
– Então por que está chorando?
– Porque minha mente entendeu, não o meu corpo; não meus olhos e
meu coração. Eles ainda são bobos e ingênuos.
Mago de Osso se aproximou. Segurou o príncipe pelo braço
violentamente e lançou-o contra o chão.
– Chame esse pássaro e mate!
– Não consigo me mexer...! – chorou Hauolimau, em desespero.

43
Juliana Duarte

– Assim – mostrou Martelo de Gelo.


O Mago de Osso evocou um martelo de gelo gigantesco; pelo menos
três vezes maior que ele mesmo. Ele o ergueu com apenas uma das mãos
e urrou.
Esmagou dez pessoas debaixo do martelo; ao mesmo tempo.
Quando o retirou, havia apenas cinzas de ossos.
Hauolimau não parava de gritar desesperadamente e chorar, dessa vez
ainda mais forte.
– Por que fez isso bem na minha frente?! – o príncipe berrou,
encolerizado – Droga! Desgraçado! Miserável! Maldição dos céus e dos
infernos! Não...!
Ele ajoelhou-se e cobriu o rosto com as mãos.
– Tão dramático – pronunciou o Mago de Osso, divertindo-se – seu
corpo vai parar de tremer e suas lágrimas irão cessar quando matar da
primeira vez. Você sentirá o êxtase magnífico e absoluto!
Mas Hauolimau negou-se a evocar o pássaro. Isso foi facilmente
resolvido. O Mago de Osso simplesmente arrancou-o das dimensões
astrais e posicionou-o no campo de batalha. Ao verem o pássaro de duas
cabeças, de gelo e de fogo, mais pessoas gritaram. Os pássaros filhotes
também sobrevoavam o céu, sem saber o que estava acontecendo.
– Mate agora! – urrou o mestre.
– Mas... são pássaros bebês, pobrezinhos. Eles não sabem...
– Cale-se, covarde! – disse Martelo de Gelo – eles são espíritos cuja
existência foi especificamente designada para matar. Ordene que
cumpram seus destinos!
O cérebro de Hauolimau girava. Ele sentia uma grande dor, as
têmporas latejando, cada parte do seu corpo resistindo. Era demais
suportar a ira daquele magista tão forte.
O mestre pegou a garota e lançou-a no chão. Estava decidido a
controlar a mente de Hauolimau como um fantoche.
– Ela será a primeira criatura que seu servidor irá matar – decidiu
Mago de Osso – será queimada viva! Que o inferno carregue sua alma!
Hauolimau fitou-o com horror. Mas quando tentou observar os olhos
brilhantes do mestre, eles não estavam mais lá. E nem a cabeça. Havia
somente sua gola de rufos, o manto negro e a capa vermelha banhada em
sangue.

44
A Guerra dos Esquecidos

O corpo dele desabou no chão. A cabeça foi parar muitos metros


distante do corpo.
Diante de Hauolimau e da garota, estava o mago mais impressionante
que já tinham fitado. Ele era altíssimo: pelo menos uns dez metros.
Erguia uma tocha na mão. Em seu corpo havia mantos e pedras
preciosas de várias cores.
Com um movimento de mão, ele esmagou o crânio do rei e partiu a
princesa ao meio. Os demais magos do reino Fantasmas da Água-
Marinha fugiram no navio, aterrorizados.
Mandíbula da Noite vagou pelos ares com a morte de seu mestre e
mergulhou numa dimensão astral. Foi o melhor a ser feito. Se
continuasse lá, teria sido destruído. Hauolimau tentaria recuperá-lo em
outra ocasião, quando estivesse menos assustado.
– Pequena donzela, está ferida? – perguntou o mago colossal,
gentilmente – E você, cavalheiro?
Os dois confirmaram que estavam bem, ainda morrendo de medo da
criatura gigante.
– Aqueles magos jamais destruirão um reino de novo – afirmou o
grande mago – porque eu cessei a fonte do mana.
Hauolimau respirou aliviado, ainda tremendo. Sentia tanto medo que
chorou. A menina também. Mas enquanto vertia lágrimas, ela sorriu.
Levantou-se confiante, aceitando o braço que aquele moço alto lhe
estendia.
– Obrigada, senhor, por nos salvar. Meu nome é Min. Este é o Mau.
Estamos perdidos e sem lar agora.
– Serão bem-vindos a morar conosco. Mas agora precisamos tratar
dos feridos.
Os dois se apressaram em ajudar. Como Hauolimau aprendeu um
pouco de magia, conseguia tratar dos feridos ainda mais eficazmente e
foi de grande ajuda. Prometeu que compartilharia sua magia com aquele
povo.
Hauolimau estava impressionado com o mago gigante, que também
cuidou dos feridos rapidamente e enterrou os mortos. Queria que ele lhe
ensinasse tanto poder.
O mago lhe disse:

45
Juliana Duarte

– Posso te ensinar com uma condição: que você sorria, como a


simpática donzela.
– É errado chorar e sentir-se triste? – perguntou Hauolimau, que
levava a opinião daquele magista incrível em alta conta.
– Não. Está tudo bem. Hoje todos iremos chorar. Mas amanhã
iremos sorrir, pois será um novo dia.

46
A Guerra dos Esquecidos

Capítulo 3

A terra dos gigantes era chamada Domínio do Colosso. Era assim


que eles denominavam seu lar. Forasteiros inventavam outros nomes.
Aquele era um mundo em que os seres grandes e pequenos coexistiam
em harmonia.

Um dia olhei para o céu e pensei


Como eu queria que os seres da terra
Dessem as mãos com toda a criatura
Mesmo as de caudas de fogo ou aladas
Sem temer congelar por esse abraço
Ou arder nas chamas do ódio puro
Também não há calor no coração?
Os olhos do meu pássaro de gelo
Acalentam, afugentam, com medo
Do meu amor e desse meu prazer

Quando ele pronunciou essas palavras, ela cantou:

Um mundo assim existe, meu tesouro


Olha ao redor; que tua vista enxerga?
O ouro profundo da esperança nua
Silenciosa, misteriosa, formosa
Como a lua negra de um pesadelo
Que ergue sua lança vingadora
Mansa destruição do inimigo
Companheiro de jornada da vida
O adversário da dança macabra
É o teu próprio eu que, em desespero
Busca lá fora o que no peito encontra
É hora de despertar, amar, sorrir
E beijar a pior das criaturas:

47
Juliana Duarte

A ti mesmo, anjo desse julgamento


Com arrependimento e vergonha por
Ter nascido com as asas da brancura

E, assim dito, os dois trocaram um beijo nos lábios.


– És uma poetisa melhor que eu mesmo – ele disse – pois nada sei de
rimas. Sou sincero, mas não brilhante.
– De que adianta brincar com as letras das palavras quando não há
paixão? – ela indagou – Não seria diferente de uma criança montando
castelinhos com cubinhos coloridos. Haveria beleza, mas ingenuidade.
Graça, mas não força. Compreende?
– Talvez eu seja inocente em pensar que os caras maus e os bons
possam viver em paz.
– Você é tolo quando divide os seres em amigos e inimigos, pois se
entender que apesar de pensarmos diferente possuímos os mesmos
objetivos, não haverá mais ninguém nesse mundo contra quem precise
lutar, a não ser contra sua visão distorcida da realidade.
O pássaro de gelo sobrevoava os céus. Com um silvo, aterrissou no
ombro de Hauolimau, que acariciou a cabeça de seu servidor.
Desde a morte de seu mestre Martelo de Gelo, o pássaro havia
perdido a cabeça de fogo. Hauolimau estava satisfeito com ele assim,
simples. Nomeou-o Geiih. Na época seu instrutor considerava perda de
tempo achar um nome para o servidor. Agora Hauolimau podia
proceder de seu jeito.
Atualmente estava sob a tutela do impressionante gigante que os
salvou, que também foi o assassino do Mago de Osso: o majestoso
Tuberaze.
– Tem razão – Hauolimau baixou a cabeça – não sou bondoso. Na
verdade sou muito mau, pois em vários momentos já desejei a morte dos
assassinos de nosso antigo lar, Fantasmas da Água-Marinha. Eu me
pergunto se o que restou dos habitantes de lá ainda continua a formar
exércitos para matar.
– Você é o único descendente do reino Capricho da Memória. Que
teu povo te ensinou?
– A morrer sem expressar reação, pois eles preferiam morrer a matar,
mesmo que possuíssem a força para destruir. Por isso mesmo eles não

48
A Guerra dos Esquecidos

desenvolviam magias de ataque. Você acha mesmo que devemos temer o


poder?
– Ter poder não é somente atacar o outro, mas saber o momento de
dar um passo para trás.
– Isso é sabedoria e não poder – corrigiu Hauolimau.
– Por que separar um do outro e preferir um a outro? Aqueles que
matam somente pensam que são fortes. Eles aniquilaram a carne e não
tocaram o espírito. Poderoso é aquele que toca o espírito do outro com
as palavras esplêndidas.
Hauolimau tocou os joelhos no chão, numa reverência.
– Você não tem uma espada, mas decapitou meu raciocínio fraco –
pronunciou Hauolimau – você não tem força bruta, mas derrotou-me
com um golpe certeiro. Você não é uma rainha, mas colocou-me de
joelhos. Você não é minha mestra das artes mágicas, mas é a senhora do
meu coração: ensinou-me a amar, sorrir e viver. Eu estava morto e você
me fez voltar à vida. Meu espírito estava cinzento, vagando em pesadelos
mentirosos, e você coloriu minha existência. Eu era a chuva que chorava;
tu és o sol que me envolveu e gerou, para meu deleite, os sete raios do
arco-íris.
Ela segurou as mãos dele, colocando-o de pé.
– Se tu és a chuva, eu sou a flor – ela disse – e graças às tuas lágrimas
pude crescer firme e forte. Desabrochei, minhas pétalas abraçaram o
mundo e meu perfume tornou-se mais poderoso, pois tuas águas fizeram
o odor da vida multiplicar-se. Tu és a abelha que sugou meu mel e com
tua língua adocicou-me, presenteando-me com a vida eterna: a luz da
estrela que pulsa em meu ventre. Quando este ovo se quebrar, não
importará se possuir chifres putrefatos ou uma auréola dourada. Seja esta
criatura o arauto para a destruição ou salvação do mundo, ela ainda será
minha eterna estrela, para quem dirigirei meus sonhos quando a lua se
esconder na noite escura.
Hauolimau deu-lhe um abraço forte. Sentiu lágrimas nos olhos.
– Sou covarde, sou fraco... estou envergonhado – ele confessou –
tuas palavras diante das minhas se parecem com uma árvore centenária e
sábia curvando-se sobre um broto nascente. És tão grandiosa... sou
mesmo digno de ter plantado essa semente sagrada?

49
Juliana Duarte

– Príncipe Hauolimau – ela pronunciou – não seja bobo. Você só


consegue pensar em lutas, embates, épicas batalhas entre o bem e o mal,
o vencedor e o perdedor, o corajoso e o temeroso? Tal coisa não existe.
É somente uma fantasia da sua cabeça. Acorde, meu anjinho lindo. Você
não é mais uma criança. Nós ensinamos esses contos de heróis e vilões
para que as crianças entendam com mais facilidade como as coisas são. A
realidade é diferente. Você é um adulto agora.
– Isso significa que não posso mais brincar, fantasiar e sonhar? –
perguntou Hauolimau, desapontado.
– Não se preocupe, meu querido – ela sorriu – claro que ainda
podemos nos divertir, mas nossas brincadeiras são diferentes: ainda mais
emocionantes! São mais sérias, é verdade, mas é exatamente isso que dá a
elas um tempero de emoção e grandiosidade: o mundo real é de tal
riqueza e tal formosura que os adultos poderão desfrutar de toda essa
magia se pararem de agir como crianças e abraçarem o peso dessa
responsabilidade com alegria. Temos ainda tantas surpresas! Isso não é
fantástico?
– É fantástico sim, Min – disse o príncipe – eu também gosto das
coisas de adultos. No final, crescer é maravilhoso!
Hauolimau estava com 18 anos. Yacamin estava com 15. Nos últimos
três anos eles tinham sido grandes amigos, desfrutando do céu azul, dos
mares e das florestas de Domínio do Colosso.
Tuberaze, instrutor mágico de Hauolimau, e Liparue, mestra de
Yacamin, treinavam os dois nas artes psíquicas do povo da terra dos
gigantes. Enquanto isso, os dois adolescentes desfrutavam de uma
amizade cada vez mais forte, até que, seis meses atrás, descobriram o
amor.
Desvendaram os mistérios e aprenderam um com o outro. Agora
Yacamin estava grávida e esperava o bebê para breve.
– Ultimamente estou sentindo o poder mágico crescer numa escala
admirável – disse Yacamin – por causa dessa vida. Pois dentro de mim
há uma magia antiga e excelente: a arte de possuir um segundo espírito
no interior do corpo. Agora sou dois e minha capacidade mágica chegou
ao ápice.
– Ouvi dizer que as grávidas desta terra são capazes de feitos
extraordinários e únicos ao possuírem esse segundo corpo espiritual –

50
A Guerra dos Esquecidos

observou Hauolimau, impressionado – a intuição, sensibilidade e contato


com as outras dimensões crescem assustadoramente. Afinal, vocês
guardam dentro do corpo o próprio sentido animal da vida: a
perpetuação da espécie, que é, no fundo, a via da geração da imortalidade.
Isso significa que nesse momento você supera a mim tanto em sabedoria
quanto em poder mágico. Eu sou burro e ainda por cima nasci com esse
corpo que não é capaz de carregar um segundo espírito. Como posso
competir?
– Você e essa história de competição de novo! – disse Yacamin,
levemente zangada – Isso não é uma guerra para provar quem é o mais
forte ou o mais sábio. Quem você acha que gerou em mim esse segundo
espírito? No fundo, ele não é meu. Ele é ao mesmo tempo eu e você;
mas também não é nenhum de nós. É um terceiro espírito, pois a união
de nós dois já gera o dual.
Hauolimau entendeu. Ele também era capaz de sentir o momento de
junção com um segundo espírito na união sexual. Afinal, o sexo também
consistia numa magia antiga, que era, em si, uma sublime alquimia do
corpo, da mente e da alma. Uma troca de energias psíquicas, de fluídos,
de toques, cheiros, visões, sabores, sons. Era como elevar a potência dos
cinco sentidos do corpo físico, combinando-os com a fonte eterna dos
sentidos do espírito, ao modo máximo.
– Mas Min, nesse momento você atravessa uma alquimia profunda
que excede qualquer coisa que eu conheça – observou Hauolimau –
lembro quando a esposa de meu mestre Queiroga também carregava um
bebê, que no final era eu mesmo. Além de a barriga crescer, há outras
mudanças no corpo, como se fosse uma metamorfose, uma
transmutação. As emoções, forma de ver o mundo, energia mágica, tudo
isso é... outro universo! Vocês expelem sangue, derramam leite, uau!
Conseguem até produzir alimento sozinhas! E eu, o que sou? Um mero
instrumento que possui uma tarefa secundária? Agora que a cumpri,
minha função terminou e posso ser descartado?
Yacamin deu um tapinha leve na cabeça de Hauolimau.
– Se não fosse seu amor, sua presença, que seria de mim? Não
haveria vida em mim, nem transmutação, paixão, evolução espiritual,
nem nada! Eu estaria sozinha, vagando na escuridão de meus próprios
fantasmas. Na solidão eu meditaria, tentando encontrar um sentido em

51
Juliana Duarte

Deuses, anjos, demônios, entidades distantes, quando no fundo o


sentido de tudo isso já está ao meu redor! Nas árvores, nos pássaros, na
terra. Nos meus amigos, em você que é meu mais precioso tesouro, e
agora também nesse filho. Pois este bebê é tudo: as árvores, os pássaros,
a terra, o universo; a vida em si. Ele é mais importante que o sentido, do
que eu e você; e, ao mesmo tempo, ele é tudo isso!
Hauolimau sorriu como um bobo, emocionado.
– Fico feliz de saber que também sou útil – confessou Hauolimau –
obrigado... se não fosse por você, eu permaneceria apenas tentando ficar
mais forte e procurando inimigos para me vingar de todo o mal que
existe nesse mundo. Quando no fundo o “mal” é só mais um fantasma
que inventei... minha espada, meus inimigos, minha pretensa justiça. Para
que isso, quando você é meu sentido?
– Alegre-se! – Yacamin sorriu também – É verdade que existem
pessoas que nos fazem sofrer e sorrir. Mas o maior responsável pelo
nosso próprio sorriso ou sofrimento somos nós mesmos. Devemos
começar a aceitar a unidade de tudo, em sua fantástica diversidade.
Afinal, que seria do bem sem o mal? Que seria do homem e da mulher
sem um ao outro? E que seria também do homem e da mulher sem
companheiros do mesmo sexo? Que seria de nós sem o céu e a terra,
sem o sol e a lua? Precisamos disso tudo.
– Vocês mulheres são como a lua, em constante transmutação e
mistério – disse Hauolimau.
– E vocês homens são como o sol, com energia, brilho, vigor e força!
– disse Yacamin, com alegria – Por favor, Mau, não fique triste por não
poder carregar um bebê, pois vocês homens também possuem modos
extraordinários de expressar o poder mágico. Nenhum dos sexos é
superior em poder ou sabedoria. Eles apenas são diferentes. Também há
mulheres com muito sol em si e homens com muita lua. Isso não é
lindo?
– Sim, e eu acabei de notar que dessa terra aqui dá para ver dois sóis
lá no horizonte – Hauolimau apontou.
– Você mora aqui há três anos, tomando lições de astrologia, e foi
perceber só agora?

52
A Guerra dos Esquecidos

– Eu queria ficar mais forte logo. Por isso, preferi pular as lições de
astrologia e simbologia e me focar em exercícios de meditação e contato
com entidades.
– Eu prefiro a divinação – confessou Yacamin – acredito que você
precise de um pouco de lua e eu de um pouco de sol para garantir um
equilíbrio. Que acha?
Hauolimau topou. Decidiu falar sobre isso com seu mestre no
treinamento do dia seguinte.
– Hauolimau, não seja ingênuo – disse-lhe Tuberaze – como pode
pensar que é inferior à sua parceira somente por não conseguir carregar
um bebê? Isso não interfere em nada. Não pense mais nisso. Você
tampouco precisa de mais lua. Pode seguir somente o caminho da lua, do
sol, das estrelas, um pouco de cada, ou seguir a via para a qual seu
coração leva. Todo ser possui a potência de tornar-se extraordinário:
uma mulher que tem um filho e outra que decide não ter; um homem
que estuda a divinação ou outro que medita. Não pense que o poder está
no gênero ou na via escolhida. Todos são igualmente poderosos. O que
muda é sua paixão pelo caminho, sua alegria de viver e dedicação pelo
que acredita. A noção de equilíbrio é algo mutável e adaptável.
Hauolimau ficou emburrado.
– Todos acham que sou estúpido! Você diz que sou ingênuo e Min
vive me chamando de bobo e me tratando como criança. Vocês, seres
maduros, devem enxergar com simpatia e pena minhas atitudes e
pensamentos infantis. Eu acredito em tudo que me dizem. Aí chega
alguém, me diz algo diferente sobre magia e acredito também! Então fico
todo confuso.
– Qualquer pessoa bem versada em retórica e dialética pode fornecer
boa argumentação – explicou o mestre – e, construindo uma lógica
delirante, te convencer a assumir posições absurdas. Tome cuidado com
isso. Nosso raciocínio lógico é cheio de truques e possui limitações. Daí
nascem os falsos silogismos e paradoxos. Não é pela lógica que tudo se
desvenda, ou os filósofos seriam Deuses extremamente sábios.
– Se não posso confiar no meu raciocínio, em que vou acreditar? –
perguntou Hauolimau – Na minha intuição? Meu raciocínio já é lento.
Quando tento recorrer à minha suposta intuição, dou de cara numa
porta trancada.

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Juliana Duarte

– Você precisa acreditar mais em si – recomendou Tuberaze – Não


estou dizendo para que não confie em sua lógica, mas somente para que
fique alerta. Não pense que a lógica terá respostas prontas e satisfatórias
para tudo. Confie em sua visão de mundo, mas não faça dela uma
muralha de aço ou um mar de ondas revoltas. Esteja sempre aberto a
novas visões e não se torne cego ou teimoso a ponto de acreditar que
sua maneira de enxergar as coisas é a única correta ou absoluta. Por
outro lado, também não acredite em tudo que te dizem. Desenvolva o
mínimo de discernimento para filtrar pontos de vista muito
preconceituosos ou exclusivistas.
Hauolimau se sentia ainda mais burro ao escutar aqueles discursos,
pois dava a impressão de que levaria muito tempo até alcançar aquele
nível.
– Devo confiar em minhas emoções, então? – perguntou Hauolimau.
– Seu ser é um conjunto de tudo. Quando o raciocínio falhar, use a
emoção para sustentá-lo, e vice-versa. Andar num pé só seria cansativo.
E caminhar por muito tempo, mesmo com dois pés, leva à exaustão.
Nesse momento, deite-se e durma. Algumas vezes a resposta também
está nos sonhos.
– Mestre, você é tão sábio e fala de forma tão bela! – exclamou
Hauolimau, ao mesmo tempo com admiração e inveja – Queria ser
como você! Como posso alcançar esse nível?
– Não queira ser como eu – Tuberaze repreendeu-o – sou apenas um
guia. Não precisa acreditar em tudo que te digo. Encare minhas palavras
como objeto de reflexão e forme seus próprios pensamentos a partir
delas, que serão únicos. Não estou aqui para ser copiado. Também
aprendo com você.
– Só está dizendo isso para ser gentil – observou Hauolimau,
desconfiado.
– Não é esse o caso. Pode ser que eu tenha alguma habilidade em
discursos dialéticos e sua parceira possua um exímio talento em poesia.
Há coisas em que um possui proficiência e outro não. Por eu ser muito
alto, consigo olhar acima das árvores, mas não consigo entrar naquela
caverna que você e Yacamin tanto gostam.

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A Guerra dos Esquecidos

– É mesmo! – Hauolimau riu – também consigo plantar bananeira e


você dificilmente seria capaz disso. Mas algumas habilidades são mais
excelentes que outras. Eu preferia ser esperto em vez de saber assobiar.
– Algumas habilidades são melhores apenas dentro de um contexto
específico, mas até a mais evidente das vantagens possui suas
desvantagens. Alguém que tenha um raciocínio especialmente apurado
pode falhar em desenvolver crenças simples e importantes que exigiriam
algum grau de ingenuidade e humildade, como a fé num Deus.
– Os Deuses existem mesmo? Se eles existem, por que todo meu
povo do país Capricho da Memória foi cruelmente executado?
– Aqui nesse país acreditamos no panteão das montanhas. Nossos
Deuses habitam o cume das montanhas mais gigantescas. Estou ciente
de que em outros países eles possuem panteões diferentes, podem
acreditar num Deus único ou não, mesmo em outras entidades.
– Quem está certo?
– Todos e ninguém – respondeu Tuberaze – como eu disse antes,
não pense que sempre haverá respostas prontas para todas as suas
perguntas. A resposta para as perguntas mais fundamentais você
precisará inventar, em vez de usar a resposta de outro. Somente assim
ficará plenamente satisfeito. Afinal, o objetivo não é esse?
– Achei que o objetivo fosse alcançar a verdade e não construir uma
mentira conveniente – observou Hauolimau.
– O objetivo é você quem determina. E isso se chama liberdade. Sim,
a liberdade é assustadora, mas também é maravilhosa. Caso fique
satisfeito com o conceito de somente uma verdade, utilize-o. Se isso te
incomoda e aprisiona, descarte-o. Eu recomendo que utilize a magia para
que desfrute de uma vida plena e feliz. Sugiro isso porque gosto da
alegria e do prazer. Caso prefira coisas diferentes, a escolha é sua, mas
esteja ciente das consequências.
– Uma causa sempre gera uma consequência, certo? – indagou
Hauolimau.
– Não necessariamente.
– Quê?
– Nem sempre como esperamos, no mesmo grau que imaginamos ou
onde achávamos que iríamos encontrá-la – explicou o mestre – quando
fazemos algo esperamos que exista um resultado. Mas quem disse que

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Juliana Duarte

conhecemos todas as leis que regem nossa mente e a realidade?


Assumimos a máxima da causalidade somente porque nosso ato aparenta
possuir uma consequência, mas isso não é necessariamente verdadeiro.
Pode ser diferente. Talvez seja uma falácia e estejamos enganados.
– Quem sabe a própria vida seja uma falácia? – sugeriu Hauolimau,
irritado.
– A vida é minha falácia favorita – observou Tuberaze.
– Que engraçado! Não sabia que também tinha inclinações para a
comédia, mestre! – zombou Hauolimau – Então o conceito de karma
caiu por água abaixo?
– Sim.
– Ai! Essa doeu. Droga, você acaba de destruir todas as minhas bases.
O que faço agora?
– E quem disse que você precisa acreditar em mim? – desafiou
Tuberaze, com um leve sorriso.
“Maldito! Está bem, você venceu”, pensou Hauolimau, sentindo-se
completamente derrotado. Mas então se lembrou do que Yacamin lhe
disse: aquilo não era uma disputa para decidir vencedores e perdedores.
Quando tirasse aquela besteira da cabeça iria se sentir melhor. Isso
também impediria que se enxergasse como inferior ou superior aos
outros.
Quando chegou em casa no fim do dia, encontrou Yacamin
entalhando um bonequinho de madeira. Quando terminou, colocou
dentro de uma garrafinha.
– Um presente para nosso filho que em breve nascerá.
– E o que significa? – perguntou Hauolimau, curioso – Que você irá
mantê-lo trancado numa garrafa e tomar posse dele?
– Não, a garrafa é feita de um material muito resistente e há um
encantamento dentro dela – explicou Yacamin – o lacre só se romperá
quando nosso filho completar 15 anos, idade que estou agora. Somente
então ele receberá o presente completo.
– E qual seria? O bonequinho?
– A roupa dele é tecida com uma lã mágica – mostrou Yacamin – se
você utilizar essa lã para costurar uma roupa, isso irá protegê-lo.
Nenhum tipo de feitiço irá tocá-lo, mesmo os mais poderosos. Passei os
últimos seis meses somente desenvolvendo esse escudo psíquico, que foi

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A Guerra dos Esquecidos

especialmente trabalhoso. Somente daqui quinze anos, conforme se


alimenta da energia do boneco e do ar da garrafa, ele terá sua potência
completa.
– Que complicado – observou Hauolimau – vem com manual de
instruções?
– Não, iria danificar o ar lá dentro se eu introduzisse papiro e tinta.
Deixei as explicações num diário, mas provavelmente ele será destruído
na próxima guerra.
– Próxima guerra? Do que está falando? Vivemos num país pacífico.
Não houve nenhum conflito nos últimos três anos.
– Infelizmente, em alguns meses teremos visitantes indesejados.
– Os assassinos de Fantasmas da Água-Marinha? – perguntou
Hauolimau, chocado.
– Se fossem eles, os habitantes daqui teriam poder suficiente para
enfrentá-los – disse Yacamin – eles virão de uma terra muito distante
chamada Assombração de Fadas. Roubarão os segredos mágicos de
Fantasmas da Água-Marinha quando dizimarem todos os habitantes de
lá. Através disso, ficarão ainda mais poderosos.
Hauolimau tremeu.
– Eles já anunciaram a guerra?
– Não – respondeu Yacamin – minha mestra Liparue recebeu essa
revelação numa visão e alertou-me.
Hauolimau não soube o que dizer.
– Desejo falar com sua mestra – ele decidiu – pode ser?
– Claro. Ela ficará feliz em recebê-lo.
Fazia muito tempo que Hauolimau não via a mestra de Yacamin. Ela
era gigantesca, forte e assustadora. Ouviu dizer que ela até mesmo
superava Tuberaze em poder mágico. Tuberaze foi aquele que destruiu
os magos mais poderosos do reino dos matadores, em um segundo.
Portanto, ele possuía razões mais que justificadas para temê-la.
Foi visitá-la bem cedo na manhã seguinte. Aquela mulher majestosa
surgiu das águas e Hauolimau se encolheu.
– Me perdoe por perturbá-la – disse Hauolimau imediatamente,
curvando-se – tenho algumas perguntas e prometo que não irei me
demorar.
– Seja bem-vindo, companheiro de Yacamin. Saúdo-lhe com alegria.

57
Juliana Duarte

– Muito obrigado – falou Hauolimau, aliviado por ser bem recebido.


Ele nem sabia por onde começar. Sentia seu coração aflito.
– Madame Liparue, minha esposa falou-me a respeito de sua visão. É
verdade que magistas do reino Assombração de Fadas virão invadir este
lugar em alguns meses? Se assim for, irei entristecer-me enormemente,
pois amo essa terra e prometo lutar para defendê-la.
Ele aguardou pacientemente a resposta, enquanto Liparue encarava-o
com um ar ao mesmo tempo sereno e levemente triste.
– Quase todos nós morreremos, incluindo a mim e meu marido
Tuberaze.
– Como é? Vocês são casados? E vocês vão morrer?! – perguntou
Hauolimau, assustado e confuso, sem saber qual das duas informações
era mais surpreendente – Mas... eu pensei que vocês fossem invencíveis.
Quando vi meu mestre arrancar a cabeça do Mago de Osso, naquele
instante tive certeza de que estava diante do magista mais poderoso que
já existiu.
– Não é assim que as coisas são – explicou Liparue – para nós,
gigantes, que vivemos por centenas de anos, a ideia da morte já não nos
aterroriza. Nós estamos mais preocupados com os seres humanos que
aqui habitam, que estarão completamente impotentes diante de tanta
força. Aceitaremos morrer para protegê-los.
– Você viu a sua própria morte na profecia ou está apenas supondo
que morrerá?
– Eu e Tuberaze certamente morreremos. Conheço o poder dos
nossos adversários. Poderíamos nos salvar se protegêssemos apenas a
nós mesmos. Contudo, decidimos que não procederemos dessa maneira.
Se fizéssemos assim, somente os gigantes teriam chance de sobreviver.
Não iremos abandonar os humanos de nosso povo quando mais
precisam.
Hauolimau achou aquela atitude muito nobre. Se ele mesmo fosse um
gigante, provavelmente fugiria covardemente. Não importava com que
corpo estivesse, seria sempre o mesmo cara medroso.
Quando recebeu os ensinamentos de seu mestre naquela tarde, tentou
disfarçar o nervosismo que sentia. Ele apenas explicava as coisas
normalmente e até sorria em alguns momentos.

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A Guerra dos Esquecidos

“Mestre... você já deve saber que vai morrer em breve. Então como
consegue sorrir assim?” pensou Hauolimau, com tristeza.
– Hoje você aparenta estar mais distraído que de costume – observou
Tuberaze – há algo que o perturba?
Hauolimau despertou do delírio daquela epifania.
– Não... nada, mestre. Perdão pela rudeza. Prestarei atenção daqui em
diante.
– Certamente existe algo que o incomoda. Por favor, fique à vontade
para contar-me, mas somente se assim o desejar. Caso não queira
proceder dessa forma, ainda assim não poderei ignorar seu desconforto e
partiremos para outro tipo de exercício que você sinta mais afinidade em
desenvolver no dia de hoje.
Hauolimau decidiu revelar e contou-lhe a respeito de sua conversa
com Liparue.
– Por que quer morrer? – perguntou Hauolimau, tristemente – Por
que agirá contra aquilo que ensina e acredita?
– Não estou sendo contraditório ou absurdo – explicou Tuberaze –
racionalmente compreendo que mais pessoas irão sobreviver se eu não
fugir. Essas pessoas possuem vidas mais curtas que nós, gigantes, e eu
particularmente desejo que elas desfrutem a vida que lhes resta e deixem
seus descendentes, pois já tive meu tempo. Essa é uma visão particular
minha. Possuo um afeto muito grande pelos seres humanos; portanto,
emocionalmente, também sinto-me inclinado a protegê-los. E
consultando meu espírito, vejo que eu mesmo reencarnarei como
humano da próxima vez, numa terra chamada Almas Rasgadas de Prata.
– Já ouvi falar desse lugar – constatou Hauolimau – os magos do
exército do reino Fantasmas da Água-Marinha roubaram o Cubo
Astrológico de Mostarda dessa terra. Pensei que não houvesse
sobreviventes.
– Eles estão reconstruindo o país destruído. Quando os habitantes de
Assombração de Fadas arrasarem o reino dos fantasmas vermelhos no
próximo mês, eles não serão mais ameaça e o cubo mágico retornará
para seus donos originais.
– Isso tudo é extraordinário! Mas aterrorizante. Também quero
morrer para defender essa terra linda. Infelizmente não sou forte como

59
Juliana Duarte

você e serei de pouco valor. Felizmente sou burro e minha morte não
será uma grande perda.
– Jamais fale assim de novo. Estou te treinando há três anos e se
ainda assim afirma ser burro, isso significa que ou eu mesmo não possuo
grande inteligência ou que meus métodos pedagógicos são
completamente falhos. E mesmo que isso se verifique, ninguém merece
morrer por não ser inteligente ou por nenhuma outra condição.
– Perdão! Não foi isso que quis dizer. Mas se o senhor realmente
acredita que ninguém merece morrer, por que pretende matar?
– Essa é a grande questão, hã? – disse Tuberaze – Todas elas são
vidas. Se eu apenas ficar parado por respeito à vida dos invasores, eles
não somente me matarão como dizimarão um número muito maior dos
nossos. Se eu fugir, ao menos salvarei minha própria vida, mas não
ficarei satisfeito com esse ato. Se eu matá-los, salvarei um maior número
dos habitantes daqui, mas é altamente provável que eu morra. Será quase
uma defesa suicida.
– Então você optou por vidas específicas – observou Hauolimau –
temos esse direito de agir como Deuses?
– Nós criamos nossos Deuses e também os destruímos. Quando
optei por viver, aceitei assassinar um número imenso de plantas e
animais para consumo. Portanto, desde o começo estou escolhendo
vidas. Essa será apenas mais uma escolha. E quando eu morrer nessa
guerra, também salvarei as plantas e animais que eu teria consumido para
continuar vivo. Alimentarei outras existências com meu corpo e assim o
ciclo estará completo.
– A existência é bela e terrível – disse Hauolimau – mas nesse
momento só consigo temer por minha própria vida. É esse tipo de ser
que sou, mestre. Você não se envergonha de mim?
– De forma alguma – o mestre respondeu – estou orgulhoso de saber
que você teme o suficiente para valorizar sua própria vida. Não queira
lançar-se para a morte. Eu aceito que você participe da guerra, mas não
para morrer e sim para viver. Se todos aqueles que desejo defender
buscarem a morte, que tipo de valor terá meu ato?
– Entendi, mestre. Obrigado por tudo que me ensinou. Jamais me
esquecerei do senhor.
– Ei, espere, eu não morri ainda!

60
A Guerra dos Esquecidos

– Foi mal, mestre.


– É bom que continue vivo, seu pequeno maldito. Eu odiaria ter
desperdiçado esses últimos três anos que passei lhe ensinando.
– Não foi um desperdício – garantiu Hauolimau – mesmo que eu
morra, suas instruções me fizeram ver a vida de uma forma muito
especial ao longo desses anos. E se eu reencarnar uma vez mais, uma
parte do que aprendi talvez continue comigo em algum lugar, mesmo
que eu tenha que cavar bem fundo para encontrar. Se eu não renascer de
novo... bem, mesmo assim ficarei eternamente grato. Afinal, até meu
último momento respirarei a força dos ensinamentos contidos em suas
palavras. Prometo que meu último suspiro será dado com orgulho e
alegria.
Um mês depois, correram as notícias da aniquilação completa do
reino Fantasmas da Água-Marinha por um misterioso grupo de fadas
com poderes sobrenaturais impressionantes, que vieram de uma terra
distante.
Hauolimau tremeu quando soube. Ele também teria morrido se
tivesse voltado com seu antigo povo no navio.
– Min, meu bem... pensei que sua mestra tivesse dito que eles só
viriam para cá daqui uns quatro ou cinco meses – comentou Hauolimau,
assustado – Eles estão muito perto. Poderiam chegar até aqui em um dia!
– A previsão dela pode não estar totalmente correta – concluiu
Yacamin – mas ela acertou sobre as fadas, não? Portanto, prefiro
acreditar no que ela disse.
– Mas divinação é algo difícil. Basta que um dos envolvidos conheça
a previsão e poderá alterar o rumo dos acontecimentos. Alguma
anomalia pode ter mudado o detalhe do tempo.
– É possível. Mas o grupo deles pode se atrasar para chegar aqui,
devido a algum imprevisto.
– Existem animais capazes de sentir o campo magnético da terra e se
orientar a partir disso, como as aves migratórias. Se essas fadas esquisitas
possuem mesmo poderes supramundanos tão impressionantes, duvido
que errem a direção.
As notícias corriam depressa. Em pouco tempo, a Coruja
Cartilaginosa trouxe no bico a mensagem do rei de um continente
próximo.

61
Juliana Duarte

Havia uma ilha ao sul com magos fabulosos que causaram grandes
problemas para as fadas, que tiveram que realizar um recuo estratégico
para sua terra natal e recuperar as forças.
– Isso pode ocasionar uma guerra mundial – comentou Hauolimau –
muitas terras estão envolvidas nisso. Maldição! Não há onde se esconder.
– Que me diz de Mandíbula da Noite? – lembrou Yacamin – Você
não ia tentar recuperá-lo?
– Eu já o chamei muitas vezes. Ele não deseja voltar para mim. Está
envergonhado por ter matado tanta gente a mando do Monarca de
Diamante. Eu disse a ele que é passado e que ele não teve escolha, mas
foi impossível convencê-lo. Se eu morrer, pelo menos tentarei pular para
as dimensões de servidores e reencontrá-lo.
Ela levantou-se.
– Deixei as toalhas secando lá fora – disse Yacamin – vou buscar.
– Quer que eu ajude?
– Não.
Hauolimau se sentia mal por ela querer fazer tudo sozinha, mesmo
estando grávida de sete meses. Precisava aprender a ser mais persuasivo.
Mas ela estava demorando a voltar. Hauolimau ficou preocupado e
foi lá fora ver o que aconteceu.
Havia uma sombra e Yacamin estava de pé diante dela, encarando-a
firmemente, enquanto pronunciava dizeres mágicos.
– É um espírito? – perguntou Hauolimau – Um servidor?
Mas não houve resposta. Yacamin parecia hipnotizada.
Hauolimau viu: em meio à sombra, dois olhos negros piscaram.
Tinham um formato amendoado, cílios graciosos e enrolados. Pareciam
até... olhos de fada.
– Não!! – gritou Hauolimau – Min, cuidado!
Ele imediatamente colocou-se entre ela e a sombra. Evocou um dos
seus servidores: Ah, uma pequena criatura de capuz vermelho que gerava
magias imprevisíveis. Ele era especialmente convocado em situações de
emergência, quando Hauolimau não teria tempo para falar ou pensar no
que fazer. Assim, um simples grito como “Ah!” podia ativar esse
servidor, que produziria um efeito aleatório. Portanto, o resultado do
embate contaria com a sorte.

62
A Guerra dos Esquecidos

Ah produziu uma explosão tão impressionante que fez até a casa voar
pelos ares! Hauolimau e Yacamin quase se machucaram e certamente
teriam se ferido feio se o servidor fosse um pouco mais estúpido para
envolvê-los no estrago.
“Sim, só podia ser meu servidor”, pensou Hauolimau, indignado.
Mas seu coração estava batendo forte demais para se preocupar com
irritação. Ele apenas se sentia aliviado ao saber que Yacamin estava salva,
envolvida por seus braços.
Quando a fitou novamente, aumentou a força do abraço e sentiu
lágrimas correndo por seus olhos.
– Bobo – riu Yacamin – eu tô bem.
– Sim, eu sou bobo – confirmou Hauolimau – porque agora eu
percebi que se tivesse perdido você, eu iria desejar que a explosão tivesse
me consumido junto.
Que era aquilo que estava acontecendo? Hauolimau não entendia. Ele
sempre se achou muito egoísta. Não achava que era o tipo de pessoa que
se sacrificaria por um amigo. Mas ao longo daqueles sete meses tão
especiais com Yacamin, aquilo estava começando a mudar.
Principalmente porque ele seria pai. Yacamin tinha uma parte dele
dentro dela. Aquilo provocou uma mudança de perspectiva. Se
Hauolimau era tão protetor em relação a si mesmo, também morreria
para proteger aquele ser que tinha um pedaço de si em seu interior.
A fada sumiu. Certamente não havia morrido, mas assustou-se
bastante com a explosão. Provavelmente espalharia para os
companheiros que se simples aldeões tinham tanto poder mágico,
deveriam reforçar o exército para atacar aquele país.
Esse deve ter constituído um dos fatores da demora. Mais dois meses
se passaram e as fadas não foram vistas por lá novamente.
O bebê nasceu e Yacamin ficou aliviada. Ela tinha muito medo de
morrer sem antes ganhar seu filho. Pelo menos assim ela teria maiores
esperanças de salvá-lo, mesmo que as chances fossem muito pequenas.
Era uma menina linda e Yacamin apegou-se muito a ela.
Hauolimau também ficou emocionado. Como pode pensar um dia
que a vida não tinha sentido? Ele via o sentido bem na sua frente: carne
da sua carne; sangue do seu sangue. Tinha cumprido seu propósito de

63
Juliana Duarte

gerar aquela vida e agora o resto de sua existência seria destinado a


protegê-la, provê-la de todos os cuidados e ensiná-la com amor.
Que diria à sua filha? Falaria o quanto a vida era linda! E contanto
que ela fosse feliz, poderia escolher viver de qualquer maneira, que ele
iria respeitar. A felicidade dela seria a coisa mais importante do mundo.
A única coisa que ele não desejava era que ela pensasse que a vida era
ruim e que não tivesse esperanças. Queria que ela sonhasse, vivesse com
prazer, sem culpa, com muitas diversões!
Mas como se passa essa mensagem num mundo assolado pela guerra?
Ao menos havia comida, diferente da situação das crianças que
nasciam no reino Capricho da Memória. Enquanto existiu como Yahto,
ele mesmo enfrentou o terror da guerra, da fome e de grandes
sofrimentos. Mesmo assim, sabia que a vida valia a pena! Então ia achar
um jeito de fazer sua filha entender o fundamento mais importante e
precioso da existência: que por mais contraditória, por mais cheia de
tristezas que fosse uma vida, ela ainda assim teria beleza e deveria ser
desfrutada até o último suspiro.
Uma semana depois, Hauolimau foi chamado por Tuberaze.
– Mestre, minha filha acabou de nascer e o senhor sabe disso! Por
favor, me dispense de meu treinamento por mais uma semana para que
eu possa cuidar dela.
– Você precisa adquirir o poder de protegê-la dos invasores que em
breve virão – disse Tuberaze – por isso, irei evocar um golem de pedra,
para que você lute contra ele.
Hauolimau decidiu que acabaria com aquilo depressa, pois queria
voltar para casa o quanto antes.
Sacou sua espada. Pelo menos para isso o miserável Mago de Osso
havia servido: ensinara-o a combinar o poder físico da lâmina afiada de
uma espada com o poder psíquico, para causar um dano monstruoso.
Avançou diante do golem, com um grito:
– Ahhh!!
Imediatamente, seu servidor “Ah” apareceu.
– Não, Ah! – reclamou Hauolimau, aborrecido – Volte agora para sua
dimensão! Não me atrapalhe!
Mas Ah era o tipo de servidor teimoso. Hauolimau tinha dado a ele
muita liberdade, sempre rindo de suas travessuras. Por isso, ele se achava

64
A Guerra dos Esquecidos

no direito de fazer qualquer coisa, sempre desobedecendo as ordens de


seu senhor e tentando impressionar.
Ah fez nascer árvores pelo corpo do golem de pedra. Depois disso,
materializou uma galinha.
– Há, há, há... – Hauolimau riu monotonamente – Muito engraçado.
E ficou aliviado por não possuir um servidor chamado “Há!”, ou ele
seria imediatamente evocado a cada momento em que risse.
Ah ficou satisfeito com a brincadeira e desapareceu. Hauolimau
chamou seu pássaro de gelo Geiih, que imbuiu sua espada com faíscas
elétricas azuis.
Mas os ataques não surtiam o menor efeito. Geiih era quase tão inútil
quanto Ah, pois só sabia soltar gelo. Portanto, mandou que voltasse para
seu plano astral também.
Não conseguiria cortar pedra com a espada. Precisava pensar numa
alternativa antes que fosse esmagado.
– Ei, mestre, dá um tempo! – reclamou Hauolimau, ao escapar por
um triz de um soco do golem, que enterrou uma árvore no chão – Eu
vou lutar contra fadinhas e não contra gigantes de pedra! Preciso treinar
meus poderes psíquicos e não a força física.
– O princípio é o mesmo quando você usa a cabeça – explicou o
mestre – encare isso como um teste de inteligência.
– Meu cérebro será de pouco uso, quando for esmagado e virar
macarrão! – gritou Hauolimau lá de longe, ao escapar novamente de um
segundo soco, que quase depenou a galinha (que também escapou por
um triz).
– Você reclama demais, “príncipe”. Isso que dá eu tê-lo mimado
tanto.
– Eu não sou um “príncipe” – falou Hauolimau, imitando aspas com
os dedos nos lados da cabeça, como fez Tuberaze – eu realmente sou um
príncipe!
Mas no momento em que levantou as mãos para exaltar sua
condição, ele deu um grito ao perceber que uma árvore estava prestes a
desabar sobre sua cabeça. Felizmente ele pronunciou “Ah” no instante
oportuno e seu servidor apareceu, transformando a árvore num monte
de lama, que caiu pesadamente sobre Hauolimau.

65
Juliana Duarte

– O que você dizia mesmo? – perguntou Tuberaze – Não se parece


muito com um príncipe com esse monte de lama.
– Eca – disse Hauolimau, enojado – eu já te expliquei, mestre. Eu sou
descendente do rei de Capricho da Memória, meu antigo mestre
Queiroga.
– Esse papo não vai salvar sua pele em batalha – observou Tuberaze
– já que seu poder mágico ainda é fraco, sugiro novamente que utilize
sua imaginação.
Ao dizer isso, ele lançou um frasco de poção lá longe, perto do golem.
– Pegue – disse o mestre.
– Obrigado por arremessar o frasco bem em cima do monstro! –
disse Hauolimau, com uma expressão de desagrado – Isso será de muita
ajuda!
– É exatamente para isso que estou aqui: para facilitar sua vida –
completou Tuberaze.
Foi um sacrifício localizar o frasco e escapar das investidas do golem
ao mesmo tempo. Finalmente, ele recuperou o frasco, bebendo o
conteúdo imediatamente.
Como o gosto era muito ruim, ele cuspiu o resto. A parte que caiu na
sua espada transformou-a num martelo. Ele achou a ocasião muito
oportuna para tentar quebrar o corpo de pedra do golem com aquilo.
Mas foi menos efetivo que um espeto no dedo.
O corpo de Hauolimau começou a crescer. Ele não ficou tão grande
quanto o monstro, mas percebeu que já podia enfrentá-lo com algumas
vantagens.
– Isso é tão fabuloso! – Hauolimau riu – Por que nunca me mostrou
isso antes?
Ele tentou empurrar o monstro de pedra, num embate corpo a corpo.
– Use sua magia, imbecil! – avisou Tuberaze – Para que eu te treinei
por todo esse tempo? Para você fritar um ovo na cabeça do inimigo?
– Ah, sim! A magia! – disse Hauolimau, que já tinha se esquecido
completamente.
Mas antes que tentasse alguma de suas técnicas meditativas – já que
não tinha mais servidores úteis na manga para evocar – seu servidor
trapalhão Ah surgiu de novo. Ele gostou da sugestão de Tuberaze e
fritou um ovo na cabeça do golem.

66
A Guerra dos Esquecidos

– Valeu, Ah, o golem iria adorar seu ovo se não tivesse uma garganta
de pedra – observou Hauolimau – Pare de me atrapalhar! Vá lá para o
céu bater um papo com o Deus do trovão e depois volta para me contar
o que ele disse.
Ah imediatamente voou até o céu e atravessou as nuvens. Quando
Hauolimau pensava que tinha se livrado dele, um raio cortou o ar
atingindo o golem em cheio, que tombou no chão, partindo-se em mil
pedaços. Veio o som do trovão e a chuva caiu.
– Hã... mestre? – perguntou Hauolimau cuidadosamente, quando o
servidor voltou todo faceiro, esperando elogio – É impressão minha ou
Ah é o servidor mais poderoso que já existiu?
– Ele é extraordinariamente forte – observou Tuberaze, também
impressionado – vejo que você terá que contar com a sorte para lutar.
Que tipo de treinamento lhe deu?
– Eu o criei para ser meu “servidor vale-tudo”. Ele sempre gostou de
elaborar truques engraçados para me fazer rir. Quanto mais eu ria, mais
ele inventava feitiços criativos. Ele se divertia fazendo magia e acho que
foi exatamente isso que o impulsionou a ir tão longe.
– Mas ele tem que tirar essa energia de algum lugar. Ou você é um
magista mais poderoso do que pensa ou ele tira sua fonte de mana de um
local desconhecido. Tome cuidado com essa segunda alternativa.
– Eu não tenho medo de Ah! – Hauolimau riu só de pensar nisso –
Você acha que ele é um espião das fadas e depois irá se voltar contra
mim? Por favor!
– É impressionante como você encontrou a solução para o enigma
tão rápido.
Hauolimau sentiu um frio na espinha, mas preferiu não acreditar. Ah
era tão bonzinho e gracioso... mesmo que ele o tratasse mal, não via
como ele seria capaz de tamanha traição.
– Hm... mestre...
– Que foi agora?
– Estou sem roupas. Elas se rasgaram quando aumentei de tamanho.
– E o que eu tenho a ver com isso?
– Foi por causa de sua poção maluca! – falou Hauolimau.
– Você já voltou ao tamanho original. Não carrego roupas extras do
seu tamanho comigo, mas tenho uma poção de invisibilidade aqui. Você

67
Juliana Duarte

que sabe se a aceita ou se deseja pedir que Ah materialize novas roupas


para você, sob o risco de ele destruir o mundo.
A contragosto, Hauolimau resolveu aceitar a oferta para ficar invisível.
A arrogância que Tuberaze algumas vezes expressava lhe fazia recordar
do Mago de Osso. Felizmente ele não era tão cruel quanto seu mestre
anterior ou aquilo seria um problema, com a força impressionante que
tinha.
Finalmente voltou para casa e pode ver sua filha de novo, o que o
encheu de alegria. Tuberaze concordou em dar-lhe uma folga de mais
duas semanas para que desfrutasse da companhia da filha, mas depois
disso iria iniciar um rigoroso treinamento para defesa psíquica.
Hauolimau achava que Lehnia era o bebê mais bonito que havia e
esperava que puxasse a beleza e a inteligência da mãe e não a feiúra e a
burrice do pai.
No dia em que acordou logo ao nascer do sol para dirigir-se à
residência de seu mestre, onde iniciaria o treinamento psíquico, notou
uma estátua estranha na entrada da própria casa. Como aquela era uma
casa nova, já que Ah havia destruído a antiga, ele não se lembrava se a
estátua já estava lá antes ou não.
– Min, foi você que colocou essa estátua no jardim?
– Que estátua? – ela perguntou de dentro da casa, curiosa.
– Essa menina esquisita aqui, com um coração, segurando flores e
com asas de... fada...
Quando ele disse isso, sentiu seu coração ir até a garganta e voltar.
A fada abriu os olhos, que brilharam. Como um foguete, ela
atravessou a parede da casa e saiu zunindo pelo outro lado, fazendo voar
pedra, madeira e metal. Hauolimau levou um dos maiores sustos de sua
vida.
– Min, você está bem? – ele perguntou, entrando na casa com
urgência – E Lehnia?
Yacamin estava abraçada ao bebê, sentada no chão e com as costas
apoiadas na parede.
– Sim, estamos bem.
Hauolimau se perguntava por quantos sustos daqueles ainda teria que
passar a partir dali. Yacamin e Lehnia eram como pedaços dele. Se uma

68
A Guerra dos Esquecidos

delas fosse machucada, seria como perder uma perna ou um braço. Se


elas morressem, ele não veria mais sentido na vida.
Hauolimau sentia-se inseguro e temeroso, imaginando como a vida
podia tornar-se tão estranha num piscar de olhos.
– A fada já foi embora? – perguntou Yacamin.
– Sim – confirmou Hauolimau, olhando pela janela – não há o menor
sinal dela.
Mas quando disse isso, sentiu um novo frio na barriga. Em cima do
galho de uma árvore próxima estava uma segunda fada de asas vermelhas,
ainda maior que a primeira.
Era impressionante como aqueles seres tão belos e delicados podiam
lhe meter tanto medo. Hauolimau empalideceu e sussurrou para
Yacamin o que viu.
– Que faremos agora? – perguntou Yacamin – Lutaremos?
– Não! – disse Hauolimau, assustado – Jamais permitirei que arrisque
sua vida!
– Eu tenho poder mágico e irei enfrentá-la para defender minha filha
– disse Yacamin, com segurança.
– Admiro sua coragem, mas não temos a menor chance. Mesmo que
você tenha mais poder que eu, nem nossos mestres podem lidar com elas.
Seríamos aniquilados se tentássemos. Precisamos nos proteger num lugar
seguro.
– A caverna.
– Sim, perfeito! É genial.
Seria a solução ideal. Hauolimau e Yacamin tinham sido instruídos a
não procurar seus mestres durante a batalha, que já devia estar
acontecendo. Afinal, embora eles pudessem ser protegidos estando perto
deles, seriam alvos fáceis se os mestres fossem derrotados.
Yacamin enrolou o bebê numa trouxa, amarrando-a ao peito.
Envolveu a cabeça e as costas com um tecido grosso. Os dois saíram da
casa pela porta dos fundos, em passos lentos, para não serem notados.
– Bu!
Hauolimau e Yacamin deram um pulo para trás. Diante deles estava
uma fada vermelha com asas de borboleta. Ao perceber o susto deles, ela
riu como uma hiena.

69
Juliana Duarte

– Bebê bonito – ela pronunciou – carne macia. Fada querer comer


bebê.
Ela pronunciava a língua deles com um sotaque carregado e alguns
erros, mas era possível compreender perfeitamente.
Hauolimau sacou sua espada e apontou para a fada, embora suas
pernas estivessem bambas. A fada lambeu a lâmina, partiu-a com os
dentes e mastigou-a.
– Metal... gosto ruim – disse a fada – carne melhor. Dar bebê para
fada. Fada deixar humanos ir.
– Nunca! – gritou Yacamin.
Com um movimento dos dedos no ar, Yacamin traçou um sigilo que
produziu uma bola de fogo. Embora não tenha sido atingida pela chama,
a fumaça cinzenta atrapalhou a fada. Os dois aproveitaram para correr.
Atravessaram várias ruas até despistar a fada, mas continuaram em
disparada, pois suas vidas dependiam da força de suas pernas.
No centro da cidade, contemplaram o foco da guerra: centenas de
fadas agitando suas asas numa velocidade impressionante, que mais
pareciam movidas à luz. Elas matavam pessoas em segundos. Partiam os
humanos ao meio ou os devoravam vivos, arrancando membros e
cabeças com os dentes. Gritos eram ouvidos por toda a parte, enquanto
as elegantes fadas de dentes afiados e rostos distorcidos se alimentavam.
Hauolimau ficou aterrorizado com a cena forte e perdeu a força nas
pernas. Não conseguia mais sair do lugar. Tremia com tanta intensidade
que caiu no chão. Seus membros não mais obedeciam a seus comandos.
Yacamin suplicava para que ele se levantasse, mas ele apenas ouvia a
voz dela como um ruído distante, embora ela estivesse logo ao seu lado.
Seus sentidos físicos também estavam falhando.
Por fim, Yacamin ergueu Hauolimau. Carregou-o nas costas,
enquanto levava o bebê na frente.
– Pare, Min, deixe-me aqui – pediu Hauolimau, com voz fraca – eu
vou atrasá-los. Você não tem força para me carregar. Fuja e me deixe
morrer...
Todos os sons desapareceram. Hauolimau só acordou alguns minutos
depois. Despertou completamente ao ouvir um grito. Ele conhecia
aquela voz, mas era a primeira vez que o ouvia gritar.

70
A Guerra dos Esquecidos

Uma fada azul havia atingido seu mestre Tuberaze. Os dois travavam
uma luta estranha. Eles não se tocavam fisicamente ou lançavam poderes
mágicos. Apenas fitavam o rosto do outro, numa espécie de disputa
psíquica invisível.
Os olhos de cor violeta de Tuberaze fitavam os olhos escuros da fada.
Ele estava tenso e concentrado, o suor escorria de seu rosto. Enquanto
isso, a fada azul estava totalmente tranquila, como se possuísse certeza
absoluta da vitória e aquela fosse apenas uma brincadeira.
Parecia que ela ia destruí-lo, mas a majestosa Liparue fez surgir uma
mão invisível que atravessou o peito da fada azul e espremeu seu coração,
esmigalhando-o.
Quando a fada azul morreu, as belas fadas ficaram iradas. O rosto
delas tornou-se monstruoso, com línguas bifurcadas, dentes afiados,
veias saltando e focinhos de lobo.
Uma fada branca mergulhou no centro e gerou um globo de luz
negro. Lançou-o no céu e fez o dia virar noite.
A fada alva aumentou de tamanho e agarrou Tuberaze pelas costas.
Abriu uma bocarra monstruosa e devorou a cabeça dele, arrancando-a
do pescoço e mastigando com gosto.
Hauolimau gritou com horror. O corpo de Tuberaze ainda estava
vivo e caminhou em agonia, tateando às cegas, tentando capturar a fada.
Mas ela destruiu-o facilmente, despedaçando seu corpo e lançando os
pedaços para que as outras fadas os devorassem. Elas o fizeram com
urros de comemoração, numa grande festa. Afinal, elas sabiam que
tinham derrotado um magista poderoso.
“Era isso que você queria? Um fim horrível como esse, quando
poderia ter escapado” pensou Hauolimau com terror, imaginando
quando chegaria seu momento de ser devorado vivo.
A próxima a morrer foi a própria fada branca: Liparue ficou dez
vezes maior e esmagou a fadinha com o pé. Na sua fúria, chutou o ar,
destruindo mais algumas dezenas de fadas.
Das sombras da noite, surgiu um ancião. Ele era uma das poucas
fadas do sexo masculino que havia lá e parecia ser um dos espécimes
mais poderosos.
Hauolimau entendeu: ele era o rei. Podia lutar de igual para igual com
Liparue. Evidentemente, aquele senhor era muito elegante e profundo

71
Juliana Duarte

para envolver-se num embate físico. Seu corpo esquelético e mente


afiada demandavam um embate psíquico.
Liparue até tentou pisoteá-lo, mas isso não surtiu o menor efeito. Ele
desapareceu e reapareceu no ombro dela. Liparue voltou ao tamanho
original, derrubando-o no chão. Ele voou com suas asas de prata e fitou
intensamente os olhos dela.
Hauolimau tentou acompanhar o que estava acontecendo. Eles
tentavam obter o controle do corpo do outro, influenciando os
aparelhos respiratório e circulatório, alterando o ritmo da respiração e
batidas do coração.
Aquele senhor era um monstro. Provavelmente paralisou o diafragma
de Liparue ou fez um estrago ainda mais terrível dentro dela, assumindo
o controle dos sistemas. Ela simplesmente caiu para trás, morrendo
imediatamente. O baque do gigantesco corpo dela matou mais algumas
pessoas e fadas.
Uma criatura de aço, dezenas de vezes mais colossal e imponente que
qualquer um dos gigantes do reino, surgiu da terra.
– Nosso rei! – reconheceu Yacamin, cheia de esperança e com
lágrimas nos olhos – É nosso rei Chowxican!
Hauolimau nunca havia visto o rei pessoalmente, mas aquela visão
encheu-lhe de admiração e temor.
O rei esmagava tantas fadas ao mesmo tempo que Hauolimau já não
sabia dizer qual seria o resultado daquela batalha.
– O cavalo! – gritou Yacamin.
Ela correu até o cavalo e segurou-o. Ele não aceitaria ser domado,
pois estava louco, assustado com os sons ensurdecedores da guerra. Seria
perfeito para levá-los até bem longe de lá.
Yacamin segurou o bebê e Hauolimau. Ela não soube se fez isso por
artes mágicas ou se, no desespero, descobriu em si uma força
extraordinária. Mas de alguma maneira domou a criatura, que cavalgou
em disparada.
A viagem durou longos minutos. O céu ainda estava negro, mas não
havia estrelas. Dois sóis enfeitavam a paisagem, mesmo na escuridão
absoluta.
Os dois atingiram a caverna. Era estreita, mas eles sabiam que
podiam se esconder lá.

72
A Guerra dos Esquecidos

Libertaram o cavalo, que escapou. Yacamin tirou os panos do bebê,


que chorava.
– Ela está a salvo – disse Yacamin.
Hauolimau e Yacamin se abraçaram, cobertos de lágrimas.
– Ah... que está fazendo aí?
– Ele estava ao seu lado o tempo todo – explicou Yacamin – você
não parava de gritar. Acho que seu servidor vai continuar por aqui mais
tempo.
Hauolimau abraçou-o também.
– Você não é aliado das fadas, certo? – perguntou Hauolimau – Vai
nos proteger, pois é nosso amigo.
Ah tinha olhos pequenos e uma expressão de madeira meio
indefinida. Podia ser impressão sua, mas quase via amor nos olhos dele.
– Estou com fome e sede – disse Hauolimau – vou lá fora procurar
frutas.
– Não saia – pediu Yacamin – Mau, por favor... espere mais algumas
horas.
– E se a guerra durar dias?
– Ela acabará em breve, você viu a situação. Se sair agora, isso pode
nos matar.
Hauolimau não lhe deu ouvidos. Ele não iria muito longe. Logo em
frente à caverna achou um lago e matou sua sede. Recolheu algumas
frutas vermelhas.
– Humano fedorento.
Havia uma fada à espreita naquele galho. Hauolimau correu de volta
para a caverna, mas era tarde demais. A fada seguiu-o até lá.
– Tão tolo – disse a fada – fada devorar vivo.
Ela notou o bebê nos braços de Yacamin.
– Bebê! – pronunciou a fada, com alegria – Carne macia!
– Ah! – gritou Hauolimau – Faça algo! Destrua-a!
Mas Ah também tremia de medo. Hauolimau e Yacamin nem mesmo
ousaram chamar servidores. Eles podiam sentir o imenso poder psíquico
emanado daquela criatura. Ela tampouco seria enganada.
Hauolimau resolveu recorrer à sua última esperança. Fechou os olhos
e alterou seu estado de consciência. Teria poucos segundos disponíveis.

73
Juliana Duarte

Conectou-se à dimensão astral dos servidores e clamou para Mandíbula


da Noite:
– Por favor, meu velho amigo Dente de Gengiva... salve-nos! Se não
conseguir, ao menos salve nossa filha!
Hauolimau saiu de seu transe quando ouviu o que a fada disse.
– Fada não devorar vivos – ela decidiu – preferir carne tostada.
Tostada não: carne com pó das fadas.
Nos minutos seguintes, ela deu uma explicação elaborada a respeito
de como iria comê-los. Iria trancá-los na caverna e amolecer a carne
deles com um gás. Aquilo iria matá-los pouco a pouco, mas ela garantiu
que eles estariam mortos quando fossem comidos. Ela iria devorar todas
as partes, até restar somente os ossos.
Hauolimau não sabia se aquela notícia era boa ou ruim.
Provavelmente era boa, pois eles sentiriam menos dor. Por outro lado,
seria ruim, pois a agonia da espera duraria mais.
A fada lacrou a caverna, que ficou completamente escura. Hauolimau
e Yacamin sentiram o odor forte do gás, que gerava uma desconfortável
ardência na pele e pouco a pouco os intoxicava.
– Ah, por favor... tire-nos daqui!
Mas Ah não estava risonho e tranquilo como de costume. Ele não
conseguia manifestar grandes poderes, nervoso daquele jeito.
– Pule para outra dimensão! – mandou Hauolimau – Salve-se!
Acompanhe Geiih e os servidores de Yacamin! Eles já estão a salvo lá.
Mas Ah não conseguia.
Foi nesse instante que surgiu Mandíbula da Noite, que conseguiu
abrir um portal e adentrou a caverna.
Hauolimau emocionou-se e deu um abraço forte em Mandíbula.
– Senti saudades. Você não pode nos tirar daqui, não é?
– Não, sinto muito – disse Mandíbula.
– Não se preocupe. Fico feliz em poder te ver uma última vez nesse
corpo. Se eu reencarnar, irei buscá-lo outra vez.
– E eu irei te procurar.
Mandíbula ficou triste ao saber do fim terrível que seu mestre teria,
mas Hauolimau tranquilizou-o, manifestando uma coragem ainda maior
do que imaginava possuir:

74
A Guerra dos Esquecidos

– A morte é apenas morte. A dor é apenas dor. Perderei a consciência


quando o gás dominar meus pulmões. E então estarei livre. Meu espírito
irá dançar no universo e penetrar em todos os planos e dimensões, com
alegria!
E Hauolimau sorriu.
– Por favor, Mandíbula, salve Ah – pediu Hauolimau – ele é bobo e
não sabe se virar. E minha filha... ela vai morrer.
Hauolimau chorou com força ao pensar nisso. Ele aceitava encarar a
própria morte. Mas não a morte daquele ser que existia há tão pouco
tempo nesse mundo.
– Eu posso salvá-la – revelou Mandíbula – mas para isso terei que
entregar minha vida. Eu aceito fazê-lo.
– Para onde irá levá-la? – perguntou Yacamin, preocupada – Acredito
que possa fazer isso, pois você foi o servidor do Monarca de Diamante e
é admiravelmente poderoso. Mas nossa filha tem poucas semanas de
vida e morrerá se você largá-la na floresta. Não há como levá-la para
outro mundo?
– Sinto muito – disse Mandíbula – com meu sacrifício poderei apenas
transportá-la a alguns metros daqui, para fora da caverna.
– Lá fora há fadas que irão devorá-la – disse Yacamin, com tristeza.
– Não se preocupe – disse Mandíbula – irei transportar Ah com ela.
Ele irá protegê-la. Não posso fazer mais que isso. Não tenho o poder
para mover vocês dois. Estou enfraquecido depois de tanto tempo sem
um mestre.
Não havia alternativa. Hauolimau e Yacamin aceitaram. Os dois
abraçaram com afeto a própria filha. Yacamin amarrou a garrafinha com
o boneco num colar, colocando no pescoço dela.
– O amuleto ainda está fraco e precisa de mais 15 anos para adquirir
potência máxima – disse Yacamin – mas irá protegê-la.
Hauolimau abraçou Ah.
– Confio minha filha em suas mãos – ele disse ao servidor mudo.
Hauolimau não soube interpretar a expressão de Ah, mas o servidor,
embora medroso como o próprio Hauolimau, devia ter um bom coração.
– Mandíbula... seu sacrifício vai valer a pena – disse Hauolimau, com
voz fraca.
No segundo seguinte, o bebê, Ah e Mandíbula desapareceram.

75
Juliana Duarte

Hauolimau abraçou Yacamin com muita força.


– Lehnia será salva – disse Hauolimau, chorando forte.
– Ela ficará bem! – pronunciou Yacamin, entre lágrimas.
Embora não acreditassem realmente nisso, eles queriam acreditar.
Em meio à selva, rodeada de fadas assassinas, com somente um servidor
débil a protegê-la.
Naquele último instante, Hauolimau e Yacamin só tinham um ao
outro.
Os minutos se passavam. A potência do gás aumentava. O
desconforto sobre a pele era uma agonia extrema.
Os dois sentiam dificuldade de respirar. Sentiam a pele derreter e
borbulhar, mas somente aumentavam a potência do abraço.
Antes que sofressem mais, eles pararam de respirar.
Lá fora, há muitos metros, repousava um bebê enrolado numa trouxa
e Ah, o servidor atrapalhado.
O servidor não sabia o que fazer. Seu pensamento era lento, pois foi
programado para exercer funções aleatórias. Tudo o que conseguiu fazer
foi calar o bebê, para que ele não chorasse alto e fosse encontrado pelas
fadas.
Pouco depois, um ser de dois metros atravessou a floresta. Apesar de
ser tão alto quanto um dos mais altos dos adultos humanos, ele tinha a
aparência de uma criança muito nova, talvez de uns cinco ou seis anos:
era uma das crianças dos gigantes.
– Um bebê humano! – ele exclamou ao ver a trouxa, com sua voz
aguda – Que está fazendo aqui? É perigoso!
Ele envolveu o bebê nos braços e escondeu-se com ele atrás de uma
árvore, onde parecia seguro.
– Servidor, conte-me o que aconteceu!
Mas o servidor apenas pulava de um lado para outro.
– Um servidor mudo? – perguntou a criança gigante, confusa – Por
que seu dono te fez assim?
Mas era inútil conversar com ele.
– Pode nos tirar daqui?
O servidor aparentava não saber falar e não parecia ter alguma função
relevante. Seria de pouco auxílio.

76
A Guerra dos Esquecidos

Algumas horas se passaram; até que o céu tornou-se claro. A noite


artificial subitamente chegou ao fim.
– Será que a guerra acabou? – perguntou-se a criança gigante, sem
esperar obter uma resposta.
Talvez tivesse falado muito alto. Diante dele estava uma fada de
cabelos negros e vestido rosa.
A criança gigante deu um grito. A fada gritou também e ambos
esconderam-se um do outro.
– Por que está se escondendo? – perguntou a criança gigante, sem
entender.
– Eu que pergunto! – falou a fada, que também parecia ser uma
criança – Vocês ganharam a guerra. Por favor, não me mate!
– Ganhamos...! – pronunciou a criança gigante, admirado.
– As poucas fadas que restaram fugiram – explicou a fadinha – mas
eu não quis acompanhá-las, pois nunca fui a favor dessa guerra. Elas me
deixaram para trás para morrer, como uma traidora.
A fada contou que aquele reino estava destruído e que quase não
restaram sobreviventes.
– Sobrou somente o rei e uns poucos – disse a fada – e estão todos
tristes.
– Meus pais morreram – disse a criança gigante – não faz sentido
continuar aqui.
– Os meus também – informou a fada, sentando-se ao seu lado –
qual o seu nome?
– Lou-lou, e o seu?
– Kipga. Minha mãe era uma linda fada branca e meu pai era o rei de
Assombração de Fadas.
Lou-lou fitou Kipga com raiva. Segurou-a pelo pescoço para esganá-
la.
– Seus pais mataram meu pai Tuberaze e minha mãe Liparue.
– Não duvido – disse Kipga, com arrogância – esse reino de vocês é
minúsculo como um grão de milho. Naturalmente meus pais eram fortes
e mataram muita gente, então é provável que seus pais estivessem entre
as vítimas.
– Não se gabe – avisou Lou-lou – pois acho que minha mãe matou
sua mãe. E certamente nosso rei matou seu pai.

77
Juliana Duarte

Kipga suspirou.
– Não me importa mais quem matou quem! Já disse que nunca fui a
favor dessa guerra.
– Muito menos eu – disse Lou-lou – nós somente nos defendemos.
Agora entendi porque você, mesmo sendo criança, veio aqui. Afinal, era
a filha do rei. Não é do feitio de nosso povo matar crianças. Só por isso
você está a salvo.
– Não tenho para onde ir agora – Kipga baixou os olhos – acha que
se eu pedir vão me deixar ficar aqui? Eu, que possuo o sangue dos
assassinos de seu povo.
– Nosso povo não se importa com o sangue e sim com o coração –
informou Lou-lou.
– Então por que tentou me esganar sem saber como sou? – ela
desafiou-o.
– Eu vou te contar uma história – disse Lou-lou – há alguns anos
houve uma guerra aqui. Duas crianças do povo inimigo permaneceram
em nossa terra. Eles se tornaram discípulos de meus pais.
Kipga ficou cheia de esperança com a história. No entanto, aquele
mundo estava tão destruído que não poderia ajudar nem seus próprios
habitantes.
O bebê começou a chorar, pois o servidor não conseguiu mantê-lo
calado por mais tempo. De qualquer forma, não havia mais perigo que o
choro fosse ouvido.
Ou ao menos era isso que pensavam. Por trás da mata, surgiu uma
fada de asas azuis banhada em sangue, carregando uma espada.
– Carne! – ela pronunciou, com espada em mãos, agonizando –
Recuperar forças!
As duas crianças, que não tinham poderes mágicos, não possuiriam
meios de se defender contra a fada moribunda. Ela falou alguma coisa na
língua das fadas.
– Ela disse que também vai me comer – disse a criança – e me
chamou de traidora.
– Como sabe falar tão bem nossa língua? – perguntou Lou-lou.
– Sou um membro da realeza! Você quer mesmo discutir isso agora?
Corra!

78
A Guerra dos Esquecidos

Os dois dispararam. Lou-lou levava o bebê nos braços e o servidor os


seguia.
– Servidor, por favor, salve-nos!
A fada voava no encalço deles, movendo a espada debilmente e
lançando raios roxos com os dedos.
Subitamente, eles sentiram o corpo girar. O servidor abriu um portal;
as duas crianças e o bebê escaparam por lá. Viram um show de cores e
formas geométricas. Até que, perdidos em meio às dimensões, caíram
em terra firme.
Era outro mundo. Certamente naquele mesmo universo, mas numa
terra distante. Nada que fosse próximo do reino das fadas ou do reino
dos gigantes.
– Olá? – perguntou a criança gigante – Tem alguém aqui?
– Olhe, tem uma casa lá – apontou a fada.
A fada bateu na porta de uma casa em formato de cogumelo. Como
não obteve resposta, abriu a porta, que estava sem tranca. A criança
gigante também entrou, sempre levando o bebê consigo, curvando as
costas para caber na casa. Ah acompanhou-os com curiosidade, pois
provavelmente nem mesmo ele sabia para onde os havia mandado, no
momento do desespero.
Notaram que a casa estava vazia. Saíram de lá e observaram que
aquele era um mundo bastante exótico, repleto de insetos gigantes.
– Não tem guerra aqui – observou Lou-lou – isso provavelmente é o
suficiente.
– A propósito, de quem é esse bebê humano nos seus braços? –
indagou Kipga.
– Eu também gostaria de saber – confessou Lou-lou – tem um frasco
estranho no pescoço dela, mas provavelmente nunca saberemos o que
significa.

79
Juliana Duarte

Capítulo 4

– Ganhei, ganhei!
A chaminé da graciosa casa com telhado de cogumelo soltava fumaça,
indicando que havia habitantes lá dentro. E mais um membro da família
chegou, correndo a passos apressados. Abriu a porta de madeira tão
rápido que ela bateu e voltou.
– O que você ganhou?
Quem perguntou isso foi um ser muito alto. Ele precisava se curvar
para não bater a cabeça no teto da casa.
– A fantástica competição do Centro de Meados! – anunciou a garota,
orgulhosa – Uma batalha de ilusionismo. Fiquei em segundo lugar e meu
prêmio foi esse belo par de brincos de insetos vivos! Ai, faz cócegas!
Ela mostrou as próprias orelhas e riu.
– Que mau gosto – comentou a moça mexendo uma caldeira de ferro
com colher de pau – só você mesma para gostar desse mundo de insetos,
Bibi. Afinal, você veio para cá com poucas semanas de vida, então não
tem do que se queixar.
A moça bonita tinha nas costas asas multicores de fada, além de
longos cabelos negros. Acrescentava pós e líquidos de frascos coloridos
na caldeira enquanto mexia a mistura, sempre consultando um grosso
grimório.
– Ah, esses insetos são meus, sai de cima! – Bibi não parava de rir –
Seu chato!
Ah, o servidor mudo, mexia os minúsculos bracinhos freneticamente,
tentando tocar nos insetos que se contorciam. Rodeava Bibi e saltitava,
até que pulou nas costas dela.
– Bobo – falou Bibi, pegando o servidor no colo e colocando-o no
chão – que temos para o almoço?
– Restos! – exclamou a fada Kipga, de mau humor – Azar o seu que
chegou atrasada. Seu prato está em cima da mesa, gelado!
Bibi sentou-se e fez uma careta.
– Eca! Você sabe que odeio essas folhas roxas e amarelas.

80
A Guerra dos Esquecidos

– Vai ter que comer ou ficará sem a sobremesa de gelos de leite.


Emburrada, Bibi encheu a colher de folhas e grãos, enfiando na boca.
Ainda teve que tomar uma batida de mel até conseguir a sobremesa. Ela
agarrou o potinho como um tesouro precioso. Deu um beijo na
bochecha de Kipga. Bibi e Ah correram para fora.
– Tchuna! – Bibi chamou, entre as folhagens.
Sua abelhinha quadrada de estimação chegou, bamboleando-se toda.
– Olá, amiga! – Bibi cumprimentou-a alegremente – Que me conta de
novo?
– Fofocas, fofocas! – riu-se Tchuna, sacudindo-se – Em uma hora
haverá uma formidável batalha: Klebako versus Cheiq!
– Uaaaaau! – exclamou Bibi, boquiaberta – Klebako venceu-me na
disputa de ilusionismo. Ele ganha todas! Eu faço questão de testemunhar
o esmagamento de Cheiq. Ele é tão metido e agora será
vergonhosamente derrotado. Bem feito.
– Posso pegar um cubinho de gelo? – perguntou a abelhinha,
lambendo-se.
– Claro, mas só unzinho, tá?
As duas se deliciaram com o gelo de leite. Bibi e Ah deitaram-se na
grama. Tchuna repousou numa folhinha. Os três curtiram a luz dos
cinco sóis verde-limão.
Duas grandes lagartas se aproximaram.
– Vocês sabem da maior? Sabem da maior? – repetiu a lagarta verde.
– Klebako e Cheiq! – exclamou a lagarta azul, quase sem palavras.
– Já sabemos – comentou Tchuna, monotonamente.
– Faltam dez minutos para a grande luta! – informou a lagarta verde,
toda boba – Precisamos nos apressar!
Bibi assobiou e gritou:
– Loconda!
Uma abelha amarela gigante apareceu.
– Você vai trair nossa amizade por essa grandalhona – comentou
Tchuna, emburrada.
– Desculpe, Tchuna – falou Bibi – Loconda só vai me levar até o
local da batalha. Não tenho asas e você é pequena demais para me
carregar.

81
Juliana Duarte

O servidor também seguiu-os voando. Ah às vezes sabia voar e


outras vezes se esquecia.
Por sorte a disputa ainda não havia começado quando chegaram. Bibi
desceu da abelha e sentou-se no cogumelo ao lado da amiga.
– Oi, Kiana.
Kiana tinha asas e anteninhas de fada. Também caiu naquele mundo
por acaso, alguns anos depois de Bibi.
– Bibi! Quase chega atrasada, sua louca – falou Kiana.
– Olha o respeito – avisou Bibi, de peito estufado – tenho 14 anos e
você só tem nove. Então não me chame de louca, sua maluca.
– Tá certo – Kiana soprou bolhas de sabão no aro – eis um feitiço
que inventei. Misturei uma poção de flores cheirosas aí dentro, para dar
sorte ao Klebako.
– Esse sujeito tem muitos fãs, hã? – comentou Pooçu, a lagarta azul –
É muita fama pra quem nunca abriu a boca.
– Ninguém nunca viu o rosto dele! – disse Jupz, a lagarta verde –
Estou tão empolgado! Será que ele finalmente vai retirar o pano do
rosto?
– Não ligo, só quero ver Xigaita em ação – disse Tchuna, bebendo
água com açúcar de uma caneca – o majestoso inseto dinossauro
vermelho!
O próximo a chegar foi Torureru: o carneiro negro ciclope.
– Olá amigos! – sorriu Torureru, com sua voz de trovão.
– Em cima da hora, Toto – comentou Kiana, apertando os olhos em
desaprovação.
Aquele era o mundo dos insetos gigantes, mas havia vários híbridos
de outros mundos por lá. Torureru vinha de um planeta próximo, em
que havia carneiros e ovelhas brancos, pretos e cinzentos.
Cheiq chegou voando em sua poderosa montaria: a vespa verde e
vermelha Hiaquia. Houve muitas vaias da torcida.
– Boooooo!!!
– Uuuuu!! – vaiou Tchuna.
– Bu, bu, bu! – gritou Jupz, direcionando as patinhas pra baixo.
– Yuk, yuk, yerk! – clamou Bibi, colocando a língua pra fora.
Finalmente houve a entrada triunfal de Klebako, mascarado e
montando no monstro magnífico Xigaita.

82
A Guerra dos Esquecidos

– Aweeee!! – Kiana deu um grito agudo, escondendo as bochechas


nas mãos.
– Uououououououoooooou! – urrou Torureru.
– Waaaa! – berrou Bibi.
– Aeeeee!
– Kle-ba-ko, Kle-ba-ko! – a multidão pronunciava, em uníssono.
Embora tanto Cheiq como Klebako carregassem lanças, aqueles eram
somente os bastões mágickos com os quais conjurariam suas magias.
O juiz da batalha seria Fanora, uma lesma branca espinhosa muito
sábia. Fanora era famoso e respeitado, pois conhecia muito sobre duelos
mágickos e aplicava as regras com justiça. Não era fácil consegui-lo
como juiz. Ele só era chamado para duelos extraordinários e também
tinha muitos fãs.
– Olha lá o Fanora! Uhuuu! – gritou Kiana, cada vez mais
emocionada.
– Esse cara arrepia – disse Jupz, balançando a cabeça loucamente –
Dá-lhe Fanora! Conceda a vitória a Klebako em dois segundos!
– Soba, soba, soba, sobaaaaa! – exclamou Cheiq, traçando com a
lança um símbolo mágicko no ar.
– Uau, ele vai pegar pesado já no começo! – Bibi colocou as mãos na
cabeça, sem acreditar.
– E Cheiq evoca sua entidade através do Selo de Limalha: Soba, a
lacraia alada! – narrou Fanora, com sua voz penetrante.
Paro o espanto de todos, com um único movimento Klebako evocou
um besouro cor-de-rosa em forma de coração.
– Seria esta Amolana, a besta mortal do sono? – anunciou Fanora.
Os dois espíritos dos insetos duelaram, mas aquela luta durou poucos
segundos. A doce Amolana soprou na direção de Soba e este caiu num
profundo desmaio.
– Soba está inconsciente!
Amolana foi em direção à montaria de Cheiq, Hiaquia. Fez com que
esta desmaiasse também e tombasse pesadamente no chão.
Cheiq ficou de pé e, erguendo a lança, desafiou Klebako:
– Desça aqui e lute como homem! Pule de sua montaria e me
enfrente face a face, se tem colhões!

83
Juliana Duarte

– Cheiq se enfezou – Bibi sussurrou para Kiana – também, pudera:


vindo do reino dos zumbis, ele não aceita perder.
Todos gritaram quando Klebako pulou de sua montaria e, envolto em
panos de tom mostarda, colocou-se diante de Cheiq. Nem mesmo uma
parte de sua pele era visível. Era impossível determinar sua raça.
Contudo, sua coragem era bastante visível, de onde quer que se olhasse.
Cheiq deu um sorriso perigoso. Retirou do bolso uma garrafa com
um líquido metade verde e metade rosa. Quando puxou a rolha, o odor
fétido espalhou-se rapidamente. Todos taparam o nariz.
– A famosa poção mágicka do Pântano de Motriz! – pronunciou
Fanora com voz fanhosa, enquanto tampava as narinas – É capaz de
paralisar em milésimos de segundo!
Mas Klebako não parecia ter sido atingido. Lá estava ele, imponente e
sem temor diante do inimigo. Era impressionante, pois o rosto
horroroso de Cheiq era capaz de intimidar qualquer um.
Com um movimento lento, Klebako tirou de dentro da manga uma
espécie de tarô dos insetos. Puxou apenas uma carta, que continha uma
torre de moscas e formigas amontoadas. Elas foram materializadas no
corpo de Cheiq, que caiu no chão, contorcendo-se em agonia. A vitória
veio logo após, pois seu adversário não foi capaz de erguer-se outra vez.
– Saúdem o vencedor: Klebako de Volição!
A comemoração não poderia ser maior. Estavam todos fascinados.
– Klebako é de Volição? – perguntou Bibi, curiosa.
– Sim, é um reino de ricos – explicou Pooçu – ele fatura muito nos
duelos. Dizem que ele tem um palácio por lá.
Fanora entregou um saco de moedas a Klebako, que aceitou-o,
baixando a cabeça ligeiramente em agradecimento.
– Ele é tão educado... – comentou Kiana, sonhadora.
– Vamos visitá-lo no palácio dele? – sugeriu Bibi.
Os amigos dela gargalharam.
– Se fosse fácil assim, qualquer um saberia a identidade dele –
explicou Tchuna.
– Há muitos palácios naquela zona – esclareceu Pooçu – não se sabe
qual é o dele. E mesmo que você descubra, claro que não poderá entrar.
Mas Bibi era teimosa e não ia desistir fácil. Obrigou Tchuna a ir com
ela investigar.

84
A Guerra dos Esquecidos

– Que ideia de jerico! – disse Tchuna – Se ele nos pegar invadindo a


propriedade dele, capaz de nos matar!
– Que nada, você o viu agradecer pelo prêmio – disse Bibi,
astutamente – ele é gentil.
– Mas nós não somos um saco de moedas! – argumentou Tchuna – E
com a força que tem, duvido que ele vá apenas nos chutar para fora. Se
sairmos em coma de lá, teremos muita sorte.
– Vamos agora.
– Quê?!
– Estou hipnotizada pelo poder dele – declarou Bibi – também quero
ter essa força.
– Além de ir perturbá-lo, irá requisitar que ele seja seu mestre de
magia?! – perguntou Tchuna, escandalizada – Impossível! Está fora de
questão!
– Fique quieta, sua abelhinha impertinente. Por que é impossível?
– Dizem que ele nunca aceitou treinar ninguém até hoje.
– Pois hoje eu descobrirei quais dos boatos sobre ele são verdadeiros.
Bibi pegou uma borboleta táxi para chegar até o bairro chiquérrimo
de Volição. Era bem bonito daqueles lados. Havia besouros azuis pelos
ares. Os palácios também eram dessa cor.
Decidiu pedir informações aos vizinhos. Para sua surpresa, todos
sabiam onde Klebako morava. Aquele era um bairro de poderosos
magistas. Embora Bibi tenha conseguido o número do palácio facilmente,
foi alertada para não perturbá-lo.
– Não te disse? – falou Tchuna – Vamos voltar.
– Jamais – pronunciou Bibi, determinada – já estou aqui. Seguirei em
frente.
Sem cerimônia, ela tocou o sino do portão principal. Tchuna
encolheu-se, preparando-se para voar de lá a qualquer momento.
Quem atendeu foi uma espécie de grilo mordomo gigante, que vestia
trajes muito elegantes.
– Quais os nomes das senhoritas? – perguntou o mordomo.
– Biefa e Tchuna – informou Bibi.
Ele verificou os nomes numa lista.
– Sinto muito, não localizei seus nomes. Desejam marcar horário?
– Sim – confirmou Bibi – tem para hoje?

85
Juliana Duarte

– Somente para o próximo mês – informou o mordomo.


– Droga! Não posso entrar por uns minutos?
– O amo não está em casa no momento, mas verificarei se sua esposa
está disponível.
O mordomo pediu que aguardassem na entrada, que ele logo
retornaria com a resposta.
– Quem sabe a esposa dele não seja tão assustadora e possamos
receber informações em primeira mão – disse Tchuna.
Bibi também ficou animada. O mordomo logo retornou,
convidando-as a entrar. O coração de Bibi estava acelerado.
Enquanto caminhava pelos corredores luxuosos, observava a
decoração. Era tudo bem fino e delicado, com lustres grandes e
luminosos. A tapeçaria bordô tinha fios de seda.
Quando chegaram à sala de visitas, a esposa de Klebako estava
sentada num dos sofás. Sua aparência era exótica até para os habitantes
daquele mundo.
Trajava vestidos finos e um véu transparente sobre a face. Usava
pulseiras e tornozeleiras de contas; um colar com uma pedra vermelha
brilhante. A pele era azulada. Suas bochechas, lábios e olhos eram bem
vermelhos. Os cabelos eram finos e da cor do mármore. Os longos
cabelos harmonizavam-se com sua face redonda e bem cheia.
Ela fez um movimento com as mãos, convidando-as a se sentarem.
Nesse momento notaram que ela tinha quatro braços.
Bibi sentou-se num sofá em frente a ela e Tchuna repousou num
vaso de flor. A esposa de Klebako segurou um bule e serviu mais duas
xícaras de chá.
– A senhora não precisa se incomodar... – Bibi tentou dizer.
Mas ela não deu atenção e serviu o chá mesmo assim. Bibi não sabia
explicar porque estava tão nervosa.
– Assistimos à competição de Klebako e ficamos impressionadas –
começou Bibi – eu realmente desejaria tê-lo como mestre, mas não sei se
isso é possível.
Ainda assim, a senhora mantinha silêncio.
– Eu agradeceria qualquer informação que pudesse me dar sobre seu
marido, pois isso é muito importante pra mim – prosseguiu Bibi – você

86
A Guerra dos Esquecidos

deve ter visto o rosto dele... ora, que bobagem, claro que viu; e muitas
outras coisas. Perdão, estou sendo indelicada! Hã...
Bibi nem sabia mais o que dizer. Por um momento arrependeu-se de
ter pisado lá e principalmente por abrir a boca. Tchuna cobriu o rosto,
para indicar que Bibi era uma tapada.
– A raça dele, por exemplo – Bibi tentou consertar – eu me pergunto
se ele é um habitante desse mundo. Eu mesma não sou daqui. Sou
humana e venho de muito longe. De tão longe que nem sei ao certo de
onde...
Nesse instante, a mulher de cabelos cor de mármore pareceu
interessada. Fitou-a intensamente.
– Meu pai e minha mãe morreram na guerra – prosseguiu Bibi,
baixando os olhos – graças a Ah, servidor de meu pai, fui transportada a
esse mundo. Ele me salvou.
Ao ouvir seu nome ser pronunciado, Ah materializou-se na sala.
– Ei, Ah, volte agora para sua dimensão! – mandou Bibi – Isso, bom
menino. Sabe, este servidor já contou algumas coisas sobre mim. Ele não
sabe falar, mas já se comunicou comigo nos sonhos. Só sei que ele é o
servidor do meu pai. Moro com um gigante e uma fada, que são minha
família atual, mas eles tampouco sabem sobre minha família de sangue.
A esposa de Klebako tocou um sino. O mordomo chegou
imediatamente.
– A senhora fez voto de silêncio – explicou o mordomo – e irá
informar a mim telepaticamente o que deseja lhes falar, assim darei o
recado.
“Essa família é meio esquisita” pensou Bibi, contrariada.
– A madame pergunta a respeito de suas experiências prévias de
magia – disse o mordomo.
– Sou boa em ilusionismo. Fiquei em segundo lugar na competição,
perdendo apenas para Klebako – Bibi informou, orgulhosa – quando eu
me concentro, consigo formar imagens no mundo real, que são
hologramas bem realistas. Meu amigo gigante que mora comigo tem
experiência em radiestesia e consegue sentir as radiações e campos de
energia com pêndulos de madeira e metal, possuindo amor pela terra,
geologia e cristais. Minha amiga fada é exímia no preparo de poções
mágickas. Kipga é boa em química e culinária. Na verdade ela é perita em

87
Juliana Duarte

temperos. Teve uma vez em que ela me preparou uma sopa mágicka
quando eu estava doente, que...
Tchuna limpou a garganta. Bibi deu-se conta de que estava falando
demais.
– Em suma, sou boa em montar quebra-cabeças com a realidade –
resumiu Bibi.
– Tenho habilidade em magias com mel – informou Tchuna – para
celebrar a doçura da vida! Você precisa experimentar meu hidromel.
Garanto que jamais provará algo melhor.
A mulher parecia estar comunicando mentalmente uma nova
mensagem ao mordomo, pois quando ela fazia isso cerrava os olhos.
– A ama pergunta quais de nossos Deuses vocês louvam – informou
o mordomo – afinal, uma maestria no reino do espírito deve
acompanhar a correspondente na esfera divina.
Bibi foi pega de surpresa pela pergunta.
– Não sou daqui, mas aprendi sobre os Deuses desta terra –
respondeu Bibi – Desde pequena vejo meus amigos com oferendas às
divindades. Ouvi falar da Deusa das Flores, o Deus dos Besouros, a
Deusa das Borboletas, o Deus dos Palácios, as ninfas dos elementos
açúcar, sal, trovão, nuvem e pedra...
– Sempre forneço oferendas às ninfas do açúcar – informou Tchuna,
contente.
– ...mas nunca ofereci nada a nenhum deles – confessou Bibi – a não
ser meus sorrisos e alegria a todos os seres, simples ou grandiosos.
O mordomo recebeu uma nova mensagem.
– A senhora dará uma cesta à senhorita – explicou o mordomo – que
deverá ser levada como oferenda à Deusa da Chuva.
A mulher levantou-se e entregou-lhe a cesta.
– Que há nessa cesta? – perguntou Bibi – E onde poderei encontrar
esta Deusa?
– Você não poderá conhecer o conteúdo da cesta – disse o mordomo
– e deverá investigar onde esta Deusa mora, pedindo auxílio aos outros
Deuses, da mesma forma que encontrou esta residência batendo nas
portas de nossos vizinhos.
Bibi aceitou o desafio. Afinal, se fosse capaz de completá-lo
provavelmente receberia autorização para falar com Klebako em pessoa.

88
A Guerra dos Esquecidos

Já lá fora, Bibi caminhava pensativa.


– Onde posso achar um Deus, Tchuna?
– Eles estão em todo lugar – explicou Tchuna – Somente tente...
escutar.
Bibi apertou os olhos e concentrou-se.
– Não dá – constatou Bibi – em primeiro lugar, se preciso achar a
Deusa da Chuva seria uma boa se caísse água do céu.
Ela sentou-se. Tchuna repousou em sua perna.
– Eu podia fazer um retiro na floresta, tentar comunicar-me com os
espíritos das árvores e dos animais – sugeriu Bibi – mas meu ouvido é
meio surdo até pra escutar o sopro do vento, imagine o sussurro de uma
dríade. Não quero saber! Vou para o Centro de Meados comer e me
divertir!
O centro do vilarejo era famoso. Reunia a maior parte dos
mercadores, caçadores de recompensa, palhaços, malabaristas, magistas,
taberneiros, guerreiros, contadores de piada e qualquer tipo de cultura
nobre ou vulgar.
Enquanto Bibi e Tchuna passeavam por aquelas bandas, viam muitas
atrações, como atiradores de facas e engolidores de fogo; principalmente
insetos com muitos pares de patas, que eram capazes de fazer dezenas de
coisas ao mesmo tempo e entreter a plateia.
– Moça bonita, quer comprar um tapete? É mágico! Ele voa!
– Que acha, Tchuna? – perguntou Bibi – Eu preciso de um tapete
voador? As borboletas táxi estão caras hoje em dia.
– Não peça minha sugestão o tempo todo, tenha opinião própria! –
contestou Tchuna – Mas acho melhor economizar seu dinheiro para algo
mais útil; como aquele grimório ali que ensina a levitar.
Bibi parou numa das bancas, que vendia grimórios raros,
defumadores e uma série de artefatos misteriosos. Ela folheou o tal
grimório.
– Nessa garrafa há um gênio!!
Bibi levou um susto quando o mercador subitamente gritou no seu
ouvido. Olhou para a garrafinha: lá dentro havia um bichinho
aprisionado, metade inseto, metade menina.
– Que legal – falou Bibi, sem muito interesse.

89
Juliana Duarte

– Temos em várias cores! – ele mostrou outras garrafas – verde-


musgo, azul-turquesa, amarelo-xixi, e tenho até o gênio especial que de
dia é branco e de noite é negro! O melhor é que brilha no escuro! Este
está em promoção, somente hoje, pela metade do preço.
– OK, eu compro – decidiu Bibi.
– Assim, sem nem pechinchar antes? – perguntou o mercador,
desapontado.
– Tá bom. Me faz por um quarto do preço? – sugeriu Bibi.
– Um terço – disse o mercador.
– Ai! Tchuna, você me picou!
Tchuna arrastou-a de lá.
– Você não precisa de um gênio que brilha no escuro! – avisou
Tchuna – Sinceramente, o que você faria sem mim? Por que em vez
disso não compra aquela pintura bonita?
– Que tédio – falou Bibi – epa, epa! É uma pintura de Klebako!
A pintura mostrava uma figura misteriosa de capuz montando um
inseto vermelho gigante que arrancava a cabeça de outros insetos.
– Que absurdo – protestou Bibi – Klebako é um cavalheiro e sempre
é misericordioso com seu oponente. Ele não mata ninguém. Que
injustiça retratá-lo decapitando os outros!
O pintor deu de ombros.
– Essas vendem mais.
– Não tente justificar – falou Bibi – não vou comprar sua arte suja e
vendida!
– Também tenho esta aqui de Klebako e Xigaita destruindo uma
ponte.
– Que linda! Eu compro!
Apesar de não ser barata, Bibi ficou contente com a aquisição.
– É violência igual – observou Tchuna.
– Que nada – disse Bibi – a ponte não está viva.
– Mas tem gente embaixo da ponte na imagem...
– Aposto que Klebako irá salvar todos no último instante. Esse é só
um detalhe.
– Você não o conhece – falou Tchuna – pode ser que ele seja cruel.
Só porque ele baixou a cabeça em agradecimento ao receber o saco de

90
A Guerra dos Esquecidos

moedas não significa que ele seja gentil. Até os malvados são educados
quando lhes convém.
– Ora, Tchuna, nem parece você. Achei que também admirasse o
herói mais poderoso do planeta.
– Eu admiro a habilidade dele com magia. Ele é um gênio em muitas
áreas: empatia com animais, controle mental, cartomancia, evocações...
mas não o conheço como pessoa.
– Tenho certeza de que ele é admirável – falou Bibi, com os olhos
brilhando – estou com fome. Vamos à taverna?
– Você está sempre com fome...
Lá dentro, insetos e híbridos das mais diferentes raças bebiam chá
alcoólico e jogavam “Onze, Passa e Sova”; o OPS era um jogo muito
popular por aqueles lados. Funcionava da seguinte forma: você lançava
onze pedrinhas na mesa e tentava adivinhar a posição de uma delas, de
olhos fechados. Caso acertasse, você ganhava um ponto e diminuía uma
pedra no seu montante. Em caso de erro, era acrescentada mais uma
pedra e o jogador levava um soco na cara. Alguns saíam de lá tão
surrados como se tivessem se metido numa briga feia. Pelo menos o chá
era tão forte que funcionava como morfina.
– Moça, quero um chá alcoólico! – Bibi pediu à elegante atendente
com cara de libélula.
– Se Kipga descobrir que você está bebendo, não vai gostar –
observou Tchuna.
– Ela não vai descobrir se você não contar, sua enxerida. Quero chá
sabor água, que é mais fraco.
– O meu será sabor mel – solicitou Tchuna – Eu posso, pois sou
mais velha que você – ela acrescentou para Bibi, ao perceber seus olhos
apertados e bochechas infladas.
Enquanto bebiam, Bibi perguntou:
– O que significa o “Passa” na sigla do OPS? Eu sei que “Onze” é o
número de pedras e “Sova” é o soco que você leva na cara. Será que o P
é de “passar a vez” em caso de erro? Ou é porque eles comem uvas
passas?
– Antigamente esse jogo era usado para definir quem entrava na
Academia de Magia Negra, Branca e Multicor, a AMNBM – disse
Tchuna – mas houve muitas fraudes com a telepatia e a telecinesia, então

91
Juliana Duarte

eles mudaram. Atualmente para entrar você precisa realizar um pacto


bem sucedido com entidades do triunvirato.
– Um demônio, um anjo e um Deus? – perguntou Bibi.
– Não, os Deuses estão meio fora de moda hoje em dia na academia.
Eles são muito fortes e houve histórias de Deuses se fingindo de alunos,
então não rolou. Também há casos de anjos passando pro lado negro e
demônios indo pro lado branco. Tá uma salada. A universidade perdeu
sua credibilidade.
– É, ouvi falar.
– No tempo dos meus avós, era o sonho de toda criança um dia ser
aluno da AMNBM. Atualmente os magistas procuram mais magos
solitários em cima de montanhas, à moda antiga, para tê-los como
mestres.
– É exatamente o que estou querendo fazer em relação à Klebako:
torná-lo meu instrutor – comentou Bibi, decidida.
– Ei, espia lá naquele canto – Tchuna apontou – olha os uniformes
deles. Aposto que são alunos da AMNBM.
Eram adolescentes e jovens. Os uniformes dos alunos eram coloridos,
dependendo da linha que seguiam: havia robes brancos, negros,
vermelhos, azuis, verdes, roxos e até com mais de uma cor. A cor da
ponta das mangas indicava o grau de cada um. Alguns usavam chapéus,
capuzes ou fitas.
– Dever de casa: decore a fórmula de evocação do Gênio da Fazenda
e esteja preparado para transcrevê-la no quadro com o Alfabeto do
Carpinteiro – leu o aluno de vermelho em seu caderno – Que piada!
Esses professores da AMNBM são uns retardados.
– Que é o Gênio da Fazenda? – perguntou o sujeito de azul.
– Você está no 4º grau e não sabe disso?
– Não tinha essa besteira na minha época.
– Aqueles fantasmas dos velhos fazendeiros, de onde surgem as
lendas – explicou o aluno de vermelho – sabe, o Zumbi Perneta, a Sereia
sem Braços... sons da natureza. Os professores querem que resgatemos
isso.
– E que raios seria o Alfabeto do Carpinteiro? – indagou o cara de
azul.

92
A Guerra dos Esquecidos

– Uns risquinhos ridículos que você entalha na madeira – comentou


o mago de vermelho – é um saco ser iniciante. Tem que estudar esses
troços chatos pra caramba. Eu queria aprender logo o Alfabeto de
Sargaço. É tão elegante e profundo...
– Aquelas letras enroladinhas que os seres marinhos usam? –
perguntou o mago de cinza.
– São belíssimas! – exclamou o mago de vermelho – E possuem uma
filosofia. Você somente pode traçá-las com um pincel aguado. Sabe, com
aquarela. Na verdade existe um pincel específico de algas e um papel
especial que se usa pra isso. A textura da folha é bem grossa e resistente,
para aguentar a água.
– Isso não é filosofia – riu o mago de amarelo – é frescura! O
Alfabeto de Esconjuro que é destruidor. Ele é usado para separar o
corpo da alma. Você o traça com cabelos. E cada letra tem um som
diferente escrita ao contrário. Tem várias maneiras de ler a mesma
palavra, muito louco.
O mago de roxo tirou da mochila um calhamaço pesado. Lançou-o
na mesa com um baque e o pó voou para todos os lados.
– Isso sim é a magia dos fortes: o Grimório do Grito!! Fujam para
baixo da saia da mamãe, crianças, porque chegou a hora do medo e
terror!
O magista de robe roxo gargalhou loucamente. Os demais alunos se
entreolharam.
– Você só pode estar brincando – falou o mago de cinza – não sei
nem porque ainda existem essas bibliotecas velhas nesse planeta. De
onde vim era tudo computadorizado. Não tinha essa de quadro e caneta.
Os grimórios eram digitais.
– Isso tira toda a graça da coisa.
– E quem disse que é para rir, palhaço?! – urrou o magista de cinza,
com um careta horripilante – Vai brincar de cheirar pó, babaca! Uma
biblioteca digital é muito mais prática.
– E a arte?!
– Enfia a arte sabe aonde?
– Não sei. Aonde?
Todos riram. O mago de cinza segurou o mago de roxo pela gola do
manto.

93
Juliana Duarte

– Eu sou do quinto grau! – gritou o mago de cinza – Eu sou foda,


meu filho! E você é só um verme! Bastardo miserável, comedor de pó,
filho da mãe, covarde, fracassado!
– Tenho um dicionário aqui – disse o mago de roxo, oferecendo um
livro para ele – assim você pode procurar xingamentos mais dignos. Não
fiquei ofendido ainda.
– Ah, você quer ficar ofendido, infeliz? Quer que eu evoque uma
entidade devoradora de cérebros sob o selo de OH-EU-SOU-
BOOOOM? Isso se ainda restar algo em vossa massa encefálica irrisória
e indigna!
Quando o servidor de Bibi ouviu o “Ah” ser pronunciado, ele
materializou-se em cima da mesa dos alunos da AMNBM, deslizando e
sapateando, acidentalmente chutando grimórios, chás, jogos, cadernos,
cajados, cristais, sementes, carne de lagarto com salsa e toda parafernália
aleatória que havia em cima daquela mesa.
– Por todos os mundos possíveis, que criatura bizarra é essa? –
perguntou o mago de cinza, ao mesmo tempo furioso e espantado.
– Sinto muito, ele é meu servidor idiota – explicou Bibi,
aproximando-se da mesa – estávamos perto e ele foi evocado por um
mantra, lá da outra dimensão. Volte já, seu cretino, ou vai ficar sem gelo
de leite!
Ah fez uma expressão triste e desapareceu.
– Isso significa que você estava escutando nossa conversa – observou
o aluno de cinza – qual a sua idade?
– Quatorze – informou Bibi.
– Considerando as medidas da rotação deste planeta? – perguntou o
mago de cinza, para confirmar.
– É óbvio! Nunca saí daqui.
– Que roceira! – riu o sujeito de azul – Quer dizer que tudo que
conhece é esse mato velho?
– E o que me diz de vocês? – desafiou Bibi – Alunos daquela
academia decadente! Até vocês falam mal das aulas. Se são assim tão
ricos, por que não se matriculam numa universidade de magia num
mundo mais próspero?
– Esses são meus planos – informou o mago de cinza – estou no
último ano. Mais três meses e me formo. Tenho vinte anos. A propósito,

94
A Guerra dos Esquecidos

em mais um ano você já pode ser aluna da academia. Isso se você tiver
capacidade de passar naquele teste imbecil. Dizem que tem gente que
não consegue. Talvez uma roceira como você não saiba nem evocar um
elemental.
Os outros riram.
– Ainda não entendi o que você está fazendo nesse mundo, já que se
acha tão esperto – observou Bibi.
– Estou aqui por causa das batalhas mágickas, é claro – informou o
mago de cinza, cheio de si – meu mundo original tecnológico é tão
civilizado que proíbe esse tipo de luta bárbara. Por aqui eles dão prêmios
altíssimos por derrotar adversários ruins. Já consegui muitas moedas e
irei trocá-las no meu mundo por computadores de última geração.
Inclusive máquinas e androides que realizam mágicka!
– Hm – comentou Bibi, sem muito interesse – aposto que não
consegue derrotar Klebako.
O sorriso sumiu do rosto do mago cinzento.
– Você sabe sobre ele?
– Claro! Todos sabem sobre ele! – comentou Bibi – Ele é uma estrela
por aqui.
– Quem diria que até garotinhas do campo soubessem sobre esse
magista extraordinário – falou o mago de cinza.
– Você não sabe com quem está falando – Bibi estufou o peito –
fiquei em segundo lugar na competição de ilusionismo!
– Grande coisa. Só não participei dela porque o prêmio era uma
pilhéria. Eu teria te vencido de olhos vendados.
– Aceito o desafio – falou Bibi, entregando-lhe uma venda negra.
O mago de cinza levantou-se. Ele apontou para uma parede.
– Eu abrirei buracos ilusórios naquela parede e você deverá lacrá-los
– explicou o magista – se conseguir manter o lacre em todos eles, será a
vencedora.
Sem aviso, o mago de cinza abriu o primeiro buraco, como se tivesse
arrancado a madeira. E o buraco ia ficando cada vez maior, conforme a
madeira dos lados era lançada longe.
Bibi fez o holograma da madeira no chão voar e recolocou-a no lugar,
inserindo pregos holográficos.

95
Juliana Duarte

– Tola – disse o magista – não perca tempo com pregos. Sua


imaginação é muito mais poderosa e poderá produzir uma cola invisível.
Mas não adiantou. Bibi não conseguia acompanhar o ritmo. Mesmo
assim, foi capaz de lacrar pelo menos metade do estrago.
– Vamos parar por aqui – decidiu o magista.
Quando a concentração de ambos foi rompida, a parede estava
normal outra vez.
– Conseguiu acompanhar? – Bibi perguntou para Tchuna,
impressionada.
– Mais ou menos – confessou Tchuna, meio zonza – em que
dimensão vocês estavam?
– Aqui mesmo – explicou o mago de cinza – só utilizei uma
dimensão de tempo e outra de espaço adicionais, para acelerar o
processo e posicionar uma profundidade inexistente no espaço, senão eu
quebraria aquela parede de verdade.
– Incrível – confessou Bibi – se vocês aprendem tudo isso naquela
universidade, também quero entrar.
– Não se empolgue – alertou o mago de cinza – muito do que sei
vem de família. Essa academia é um tédio e confesso que estou admirado
com seu potencial. Não é todo mundo que acompanha meu ritmo. Meu
nome é Iutrebvua. O seu?
– Biefa.
– Obrigado pela disputa – ele estendeu a mão – eu me diverti, Biefa.
Bibi apertou a mão dele e sorriu.
– Não fique nesse mundo. Não destrua esse potencial – alertou
Iutrebvua – mas você que sabe. A vida é sua.
– Tenho amigos aqui – disse Bibi – vivo nessa terra desde pequena e
me apeguei de uma forma que doeria meu coração partir.
– Você não parece ser daqui.
– Sou humana. Provavelmente venho de outro sistema. Quem sabe
até de outra galáxia.
Os magistas se entreolharam, meio surpresos.
– Nunca tinha visto uma humana antes – disse o mago de roxo –
bem impressionante.
– Vocês dois têm traços bem humanos – observou Bibi, referindo-se
ao mago cinza e ao roxo.

96
A Guerra dos Esquecidos

O mago de roxo fez uma careta e seu rosto deformou-se, colocando


para fora uma língua de cobra.
– Sou meio dragão – explicou o mago de roxo – você fez uma cara
engraçada agora. Ficou com medo?
– Só um pouquinho – mentiu Bibi, que havia se apavorado – e você,
Iutrebvua?
Ele retirou uma parte da pele da face e mostrou os ossos por trás dela.
Dessa vez Bibi fez uma expressão de dor extrema.
– Não dói fazer isso – falou Iutrebvua.
– Nunca mais faça na minha frente! – reclamou Bibi, horrorizada.
Iutrebvua deu um sorrisinho. “Canalha” pensou Bibi, irritada.
– Qual seu nome, mago meio dragão? – ela perguntou, curiosa.
– Solimol. Em meu mundo há batalhas muito mais ferozes que as
daqui, então estou acostumado. Também vim pela grana.
“Mercenários” pensou Bibi, contrariada.
– Senta aí, Biefa – convidou o mago de azul – a gente te paga uma
bebida e compartilha com você os rumores mais interessantes entre os
magistas da nossa época. Você não tem cara de quem sabe metade deles.
Tchuna sussurrou para Bibi:
– Não confie neles. Você acabou de conhecê-los. Viu como são
poderosos. Podem ser perigosos.
– Bobagem – disse Bibi – vai ser legal fazer novos amigos.
Ela aceitou sentar-se com aqueles cinco. Descobriu que o mago de
amarelo chamava-se Susuwei e era meio inseto. O mago de azul era
Chankzem: era grande e semelhante a um leão. Djurep era o magista de
vermelho, parecido com uma planta carnívora: o mais novo entre eles,
com 15 anos.
Bibi observava encantada os cadernos de aula dos estudantes.
Também folheava os grimórios, maravilhada.
– Por que no nome da academia o N de “magia negra” vem
primeiro? – indagou Bibi.
– Coisa de Luxuch, o fundador – informou Iutrebvua – ele era da via
negra. Dizem que a universidade não era ruim no tempo dele. Foi só o
desgraçado bater as botas que destruíram todo o trabalho do pobre
infeliz.

97
Juliana Duarte

– Eu gosto dos grimórios desse cara – disse Solimol – ele meio que
sabe algo. Se sabia mesmo ou não, é um mistério. As crianças queimaram
a biografia dele.
– Que crianças? – perguntou Bibi.
– Uns alunos de primeiro grau, isso há mais de duas décadas.
Incendiaram a biblioteca. Era um trote dos veteranos, mas a culpa foi
dos novatos que eram idiotas.
– Iutrebvua e Solimol se acham o máximo; o suprassumo da
academia, só porque estão no 5º e 4º grau – observou Djurep.
– Estou no 4º grau também, mas sou humilde – disse Chankzem – e
Libaz, que você respeita, também está.
– Eu desconfio de alguém que diga “sou humilde” – disse Iutrebvua
– se fosse humilde mesmo, não diria isso.
– Estou sendo irônico, trouxa – falou Chankzem.
– Então fica quieto, novato do 4º ano – retrucou Iutrebvua – sou
mais velho que você e estou um grau acima, então respeite-me e cale-se.
Depois eles começaram a falar das entidades que queriam evocar e
dos selos que estavam treinando fazer.
– Há uns selos muito pirados – Iutrebvua mostrou um livro de 5º
grau – você tem que fazer uns cálculos viajantes demais para chegar à
imagem. No livro texto não há as figuras dos selos. Você precisa
desenhar resolvendo as equações. Tem que usar esquadro e compasso
para traçar as linhas e montar as figuras geométricas. Ferra demais
quando é tridimensional.
– Eu odeio selos tridimensionais – falou Solimol – não sei quem foi o
miserável que inventou isso.
– O fundador filho da mãe – disse Djurep.
– Mas eles funcionam melhor – explicou Chankzem – porque selos
não foram feitos pra se desenhar em 2D no papel, e sim para traçar no ar
e alimentá-los com energias.
Bibi estava completamente perdida com as explicações. Ela não sabia
patavina sobre geometria mágicka ou alfabetos ocultos.
– Vocês rapazes não têm namoradas? – perguntou Bibi,
interrompendo a linha de pensamento deles.
“Ou namorados” pensou Bibi, pois também era uma alternativa.
Eles demoraram um pouco para responder.

98
A Guerra dos Esquecidos

– Não sabemos da vida pessoal um do outro – disse Iutrebvua – e


para mim não interessa.
– Achei que vocês fossem amigos – observou Bibi.
– Estamos mais para adversários – explicou Iutrebvua – já
batalhamos em competições oficiais. Quando nos formarmos, nossa
inimizade somente aumentará.
– Mas há moças alunas da universidade – disse Bibi.
– Há – confirmou Solimol – mas é um costume que somente pessoas
de raças parecidas compartilhem os genes.
– Por quê?
– Porque muita mistura pode enfraquecer o poder mágicko –
explicou Solimol – você tem sorte em ser raça pura, não importa qual
seja.
– Que besteira – falou Bibi – se eu me apaixonasse por alguém, não
me importaria com a raça. O importante é o amor, certo?
– Ao pensar assim você está desconsiderando o futuro do seu filho –
disse Solimol – ele pode odiá-la por nascer fraco.
Bibi não podia acreditar que estava ouvindo aquilo.
– Isso não vai fazer diferença se ele decidir exercer uma profissão
comum, que não seja magista.
– Hoje em dia ser magista dá futuro – disse Iutrebvua – porque dá
dinheiro. Sem falar no poder. Guerras acontecem em muitos mundos.
Você precisa ter força para proteger a si mesmo. Então o maior ato de
amor será formar um filho com genes fortes.
Bibi não estava simpatizando mais tanto com eles. Achou que eram
muito frios. Se eles não queriam saber de amizade e sim de lutas, não
tinha mais razão para permanecer naquela mesa.
Mas antes de levantar-se, ela se lembrou de perguntar:
– Sabem onde posso encontrar a Deusa da Chuva?
Eles se mataram de rir quando ela perguntou isso. Ela ficou braba.
– Vocês são intelectuais demais para acreditar em Deuses? – ela
desafiou-os.
– Que nada – disse Iutrebvua, que gostava de falar por todos, já que
era do último grau – pelo jeito quem não sabe dos Deuses é você,
menina tola.
Ele retirou da mochila outro grimório grosso e entregou a ela.

99
Juliana Duarte

– “A Balada dos Deuses de Água” por Micharek Puopola – leu Bibi –


Capítulo 19: “A Deusa da Chuva e suas regiões”.
Lá havia um mapa que marcava os limites de água e terra.
– Essa marca com um “x” é o local das oferendas – explicou
Iutrebvua.
– Obrigada. Tenho uma oferenda para esta Deusa. Agora devo me
apressar para ofertá-la antes do fim do dia. Prazer em conhecê-los. Boa
formatura, Iutrebvua.
Ela devolveu o grimório. No entanto, Iutrebvua fez um movimento
com a mão e disse:
– Irei emprestá-lo. Você irá devolvê-lo na minha festa de formatura.
Ela ficou muito agradecida por ter sido convidada. Despediu-se de
todos alegremente. Já lá fora, Tchuna fitava Bibi com uma expressão
desconfiada.
– Esses intelectualóides são tão estúpidos.
– Não tão rudes – disse Bibi – pelo menos saí ganhando. Vou levar a
cesta ao local indicado, que não deve ser longe.
Ela decidiu ir a pé. Em menos de uma hora chegou lá. Surpreendeu-
se, pois ao adentrar na clareira da floresta, uma nuvem escureceu o céu e
caíram singelas gotas de uma chuva fraca e mansa.
– Fantástico...! – pronunciou Bibi – Quem foi o gênio que mapeou
esses locais de Deuses?
Bibi sentou-se no local indicado e entrou em meditação, deixando a
cesta diante de si. Ela pronunciou a evocação da chuva do grimório.
– Sua pronúncia é terrível – observou Tchuna.
– Que posso fazer? Não sei esse idioma! Dei o meu melhor. Fiz a
operação com sentimentos. Acho que quase chorei.
Quando olhou para frente, a cesta já tinha sumido.
– A Deusa da Chuva fez minha cesta levitar e carregou-a até os céus!
– comentou Bibi, maravilhada.
– Não, bobinha – zombou Tchuna – eu ouvi passos. Alguém entrou
aqui e roubou sua cesta.
– Ladrão! – exclamou Bibi, desesperada.
– Calma! Pode ter sido a Deusa. Não vi, porque também fui
hipnotizada pela atmosfera delirante da chuvinha batendo na folhagem e
acentuando o cheiro da terra molhada.

100
A Guerra dos Esquecidos

– Nem pra isso você serve, sua inútil? – queixou-se Bibi.


Mesmo assim, estava satisfeita. Havia cumprido sua tarefa
maravilhosamente. Já era quase madrugada, mas ela estava ansiosa para
falar com a esposa de Klebako; ou quem sabe até vê-lo em pessoa.
À noite o bairro dos palácios ficava ainda mais bonito. Os palácios
azuis brilhavam intensamente.
Quando já estava perto do palácio de Klebako, viu uma sombra
aproximar-se. Era uma figura de mantos esgueirando-se na escuridão.
Instintivamente, Bibi escondeu-se. Só espiou quando a figura adentrou a
porta do palácio de Klebako.
– Era ele...! – ela ficou impressionada – Você viu alguma coisa,
Tchuna? O rosto? Alguma parte do corpo?
– Nadinha – respondeu Tchuna – Era como se... ele fosse feito de
panos.
Depois que Bibi viu Iutrebvua tirar a própria pele da face, ela não
duvidava de mais nada.
Dessa vez ela teve medo de bater na porta, já que tinha certeza de
que ele estava em casa. Era tarde da noite e ela não queria incomodá-lo.
Klebako devia estar cansado.
– Toque o sino ou vá embora! – exclamou Tchuna, impaciente – Só
não fique aí parada feito uma espantalha feiosa!
– Obrigada pelo elogio – comentou Bibi, sarcasticamente.
Resolveu não pensar e, tomada de coragem, tocou o sino.
Lá foi o mordomo grilo atender.
– Ofertei a cesta para a Deusa da Chuva! – informou Bibi
imediatamente, antes que ele batesse a porta em sua cara – Preciso dar
essa incrível notícia à esposa de Klebako.
– Sinto muito, mas a senhora já se deitou – disse o mordomo – peço
que retorne pela manhã. Boa noite.
– Espere! – falou Bibi, com urgência – O senhor Klebako está em
casa?
– O amo não deseja ser incomodado a esta hora da noite. Passar bem.
– Mas... isso é somente uma suposição sua! Estou certa de que ele
ficará contente ao me ver!
– Por quê? – sussurrou Tchuna, franzindo a testa.
– Sei lá, tô inventando, cala a boca – Bibi murmurou de volta.

101
Juliana Duarte

– Um momento, por favor.


O mordomo se retirou enquanto as duas aguardavam lá fora.
– Funcionou? – perguntou Bibi.
Tchuna deu de ombros. Ele logo retornou.
– A senhora ainda está acordada e irá recebê-las – informou o
mordomo.
A felicidade de Bibi não poderia ser maior. Novamente, seu coração
disparou ao passar pela porta.
Ocorreu o mesmo ritual: elas sentadas na sala tomando chá. Bibi se
perguntava quantos chás ainda beberia naquele dia. Aquele já era o
quarto.
– A madame deseja informar-lhe sua segunda tarefa – disse o
mordomo.
– Ah, por favor! – disse Bibi – Quantas tarefas ainda terei?
Antes que seu servidor Ah pulasse para essa dimensão, Bibi chutou-o
de volta.
– Mais duas – informou o mordomo – a próxima tarefa será obter o
raro grimório “Magia Negra Para Assassinatos Com Dor” de Micharek
Puopola.
– Que título insano é esse? Serve este exemplar?
Ela mostrou o livro sobre os Deuses de água, do mesmo autor.
– Não.
Bibi começou a pensar se aquela madame era algum tipo de sádica.
Mas não conseguiu relacionar esse volume com a oferenda para a Deusa
da Chuva.
– Sei que Klebako está em casa. Não posso falar com ele agora?
– O mestre está ocupado.
Bibi resolveu não insistir. Bastava conseguir o grimório e realizar a
última tarefa. Assim falaria com ele.
Voltou para casa e recebeu um xingão de Kipga.
– Estava morrendo de preocupação, Bibi! Vamos, coma todo seu
jantar. Não acredito que passou o dia inteiro só com chás.
– E uvas passas.
– Esse odor no seu hálito é álcool? – perguntou Kipga, furiosa.
– Não, imagina – mentiu Bibi.
– Andou indo naquela taverna suspeita outra vez?

102
A Guerra dos Esquecidos

– Pelo menos meus antepassados não comiam carne humana! –


retrucou Bibi.
– É, eu tive que segurar minha vontade de te devorar muitas vezes
quando você era bebê – disse Kipga – só está viva graças ao Lou-lou,
que te protegeu. Por outro lado, você só permanece viva atualmente por
causa das minhas refeições, então feche a boca e coma!
Bibi comeu tudo, aguardando ansiosamente pela sobremesa.
– Não tem.
Bibi fechou a cara. Pensando bem, queria se tornar uma magista
poderosa. Assim venceria duelos e teria muito dinheiro para comprar
todo o gelo de leite que desejasse.
Na manhã seguinte foi até a academia, pois não via lugar melhor para
encontrar uma boa biblioteca de magia. Contudo, não foi tão fácil entrar
como imaginou. Somente os alunos tinham acesso ao campus.
– Eu tenho um amigo que estuda aí! – tentou Bibi.
“E agora, quais os nomes deles?”. Ela coçou a cabeça tentando se
lembrar. Infelizmente Tchuna não estava junto daquela vez, então ficaria
difícil.
“Ah, me diga algum nome que ouviu ontem na mesa do bar!” pediu
Bibi mentalmente, acessando a dimensão dele.
Ah desenhou cinco letras no ar.
– Libaz! – informou Bibi – é o nome do meu amigo.
O porteiro disse que iria chamá-lo. Retornou com uma garota de uns
18 ou 19 anos.
“Ah, seu estúpido inútil, você me disse o nome errado!” Bibi xingou-
o mentalmente, com muita irritação.
– Oi, amiga! – Bibi exclamou alegremente, por trás da grade –
Lembra de mim? Bibi, sua amiga de infância de longa data!
– Oi, Bibi, que alegria revê-la! – disse Libaz, sorrindo gentilmente –
Cirid, pode deixá-la entrar. Ela não vai demorar.
O porteiro permitiu sua entrada. Bibi e Libaz permaneceram sorrindo,
uma do lado da outra. Mas quando o porteiro sumiu de vista e as duas já
estavam num corredor da universidade, o sorriso de Libaz sumiu
instantaneamente.
– Quem é você e o que quer aqui? – ela perguntou abruptamente.

103
Juliana Duarte

“Woa!” pensou Bibi, espantada “A doce garota de trancinhas se


transformou!” Ela também parecia ser metade inseto e tinha pele
amarela.
– Sou amiga de... como era o nome dele mesmo? Um aluno do 5º
ano: Iutreva... Iutrebo...
– Iutrebvua?
– Isso!
A expressão dela ficou ainda pior.
– Essa é a pior informação que poderia ter me dado. Eu e ele somos
inimigos mortais. Eu o odeio tanto que um dia fiz uma magia para
queimá-lo vivo. Ele escapou por pouco e costurou uma pele nova no
corpo.
“Caramba! Caracóis me mordam!” Bibi ficou chocada. Então era
aquela garota que Iutrebvua respeitava? Pelo jeito, quanto mais inimizade
tivesse por uma pessoa e quanto mais poderosa ela fosse, mais ele teria
estima por ela.
– Preciso desse grimório emprestado – informou Bibi, entregando a
ela um pedaço de papel.
Ela franziu o nariz.
– Você é das minhas – falou Libaz – siga-me e irei consegui-lo para
você.
As duas foram até a biblioteca; até a seção mais sombria e macabra,
com livros despedaçados e malcheirosos. Alcançou um volume que tinha
várias páginas queimadas e borradas com tinta.
– Aí está. Divirta-se.
– Obrigada, amiga – falou Bibi.
– Agora suma daqui – disse Libaz, com um sorrisinho.
Bibi apressou-se em fazer isso. Deu um largo sorriso para o porteiro
também, enquanto saía.
Sem nem contar para Tchuna ou chamá-la – ela devia estar dormindo
ainda, pois era bem cedo – retornou ao palácio de Klebako com o
exemplar.
– Você foi rápida – disse o mordomo – agora a senhora irá informar-
lhe sua última tarefa. Você deverá derrotar o magista Kleebkitu num
duelo.
– Quem é esse? – perguntou Bibi.

104
A Guerra dos Esquecidos

– Ele está presente hoje nessa residência. Vocês poderão duelar na


sala ao lado. Ele irá propor-lhe o desafio.
Bibi estava cada vez mais entusiasmada. Entrou na próxima sala com
cuidado. O que viu lhe surpreendeu.
Sentado no chão, ao lado da lareira acesa, estava um pequeno inseto
verde. Suas garrinhas abraçavam um ursinho.
– Oi bebê! – Bibi sentou-se ao seu lado – Sou Biefa, mas pode me
chamar de Bibi. Você é o Kleebkitu?
– Sim – ele respondeu, com uma voz aguda – mas pode me chamar
de Kleeb.
Bibi sentiu vontade de apertá-lo, de tão gracioso que ele era. Tímido e
lindinho. Mas não fez isso.
– Iremos travar uma batalha – explicou Kleeb.
– Quantos anos você tem, meu amorzinho?
– Cinco. Posso ver seu livro, moça?
Bibi estendeu o grimório para ele.
– Você consegue ler? – perguntou Bibi, impressionada.
Ele confirmou. Provavelmente era um superdotado. Ele folheava as
páginas rapidamente. Cinco minutos depois, devolveu o grosso volume.
– Pronto, li.
– Nossa! – Bibi ficou boquiaberta – Eu teria levado mais de uma
semana para terminar. Isso somente se eu lesse sem parar.
– Pedi para que a mamãe conseguisse esse livro pra mim – disse
Kleeb – e a Deusa da Chuva apareceu nos meus sonhos e pediu que eu
lhe desse uma oferenda. Como sou muito pequeno, não posso ir lá fora
ainda.
O coração de Bibi se derreteu ainda mais e, ao mesmo tempo, ela
sentiu uma sensação linda, maravilhosa e assustadora: aquele inseto
fofinho era o filho de Klebako.
Tentou fitar os olhos foscos da criancinha e ver nele traços de
Klebako, mas não conseguiu. Ele não se parecia em nada com a mãe,
que tinha corpo humanoide, pele azul e cabelos brancos. Ele era um
inseto verde. Seria essa a verdadeira aparência de Klebako? Seria Kleeb
um Klebako em miniatura?
– Kleeb, vamos ser amigos? – perguntou Bibi, esperançosa.

105
Juliana Duarte

Caso se tornasse a melhor amiga do filho de Klebako, teria instruções


de magia maravilhosas em primeira mão!
Ele fez que sim.
– Mas só se você me derrotar.
Bibi ficou desanimada. Se aquela criancinha conseguia ler um livro de
mais de mil páginas em cinco minutos, poderia supor que ele fosse
igualmente habilidoso em magia.
– Quero que você faça meu ursinho de pelúcia adquirir vida – falou
Kleeb – eu vivo pedindo isso pro papai, mas ele diz que não...
– Meu amor, há uma razão para que seu pai não deixe – falou Bibi,
carinhosamente – ele quer que você tenha amigos de verdade.
– Eu sei, mas meus amigos imaginários também são legais.
– Acho que ele devia te deixar sair mais de casa, para fazer amizades
– sugeriu Bibi – ou eles são superprotetores?
Kleeb baixou os olhinhos e começou a chorar. Bibi abraçou-o.
– Kleeb, vou ser sua amiga – prometeu Bibi – você pode continuar a
amar seu ursinho mesmo que ele não ande e fale. Isso não significa que
ele não tenha vida. Entende?
– Você é muito sábia, moça. Gostei de você. Fui derrotado.
“Assim, sem lutar”? Bibi tinha certeza de que teria perdido uma
disputa mágicka. Kleeb pegou cartinhas no chão e espalhou-as.
– Esse será o último desafio. Quero que você descubra minha carta
preferida.
As imagens estavam viradas para cima. Era um tipo de baralho
infantil e feliz. Havia muitas imagens: a lua, o sol, o arco-íris, uma casa,
uma árvore...
– Sua preferida é esta daqui – falou Bibi, alcançando a carta em
branco – pois como não há nada na carta você pode imaginar o que
desejar nela.
– Acertou! – Kleeb sorriu – Você é mesmo esperta, moça. Como
prêmio pela sua perseverança e inteligência, vou deixar que veja meu pai.
Irei chamá-lo agora.
Bibi espantou-se. Seu coração estava quase saindo pela boca. Ficou ali
sentada, manipulando as cartinhas coloridas, enquanto aguardava a
chegada de Klebako.

106
A Guerra dos Esquecidos

Quando ouviu passos próximos, ela suou frio. Não ousou erguer a
face.
Percebeu o instante em que alguém se sentou no sofá. Bibi estava
quase tremendo. Não sabia que ia ficar nervosa daquele jeito.
Escutou o barulho de uma folha caindo no chão. Havia algo escrito
nela.
“Boa tarde”
A letra era tremida, como se fosse escrita por alguém que estivesse
recém aprendendo a escrever. O último “e” estava virado. E não era
tarde ainda. Era manhã.
Bibi suspeitou que devesse escrever a resposta logo abaixo. Ela
escreveu “Boa tarde” também, mas achou que seria rude apontar o erro
dele. Por isso, embora sua letra não tenha sido tremida, ela escreveu o “e”
virado também.
Ela estava com o olhar baixo, mas sentiu um calafrio quando viu uma
mão com dedos humanoides e pele verde segurar o papel.
“Meu filho gostou de você”
Foi a próxima mensagem. Os “es” estavam virados de novo. Bibi
escreveu na folha: “Também gostei dele”. Ele alcançou a folha de volta.
Ela percebeu que a mão dele era meio trêmula e realizava movimentos
involuntários.
“Minha esposa não fala para fazer par comigo, pois sou mudo” ele
escreveu, com a mesma letra tremida.
“Também tenho um servidor mudo. Quer conhecê-lo?” escreveu
Bibi. “Sim” foi a resposta dele.
– Ah – pronunciou Bibi, baixinho.
E mentalizou a seguinte frase: “Por favor, Ah, seja gentil com ele...
esse daí é o mago mais poderoso do reino”.
Ah correu de um lado a outro da sala, fazendo barulhinhos.
“Droga, esse maldito!” pensou Bibi, com raiva.
– Pare, Ah, seu teimoso! – exclamou Bibi.
Mas ele continuava a correr. Bibi ouviu alguns sons de onde Klebako
estava. Ela assustou-se, pois parecia que ele estava sentindo dor. Mas
talvez fosse uma risada.
Ele começou a estalar os dedos. Kleeb apareceu na sala. Ele ficou
encantado com o servidor e abraçou-o.

107
Juliana Duarte

– Que lindo! – disse Kleeb.


– Meu pai o fez – explicou Bibi – ele é um servidor. Uma magia da
minha terra. Com ela é possível inventar seres imaginários e dar vida a
eles.
– Quero aprender! – disse Kleeb – por favor, ensine-me, tia Bibi!
– Claro. Mas eu também adoraria que seu pai me ensinasse as
incríveis magias que ele usa!
– Papai está muito doente – contou Kleeb, cabisbaixo – e não terá
muito tempo de vida. Sabia que ele é o autor do livro que você me deu?
– Ele é o fundador da AMNBM? – perguntou Bibi, impressionada –
Diziam que ele tinha morrido...
– Ele quase morreu num acidente – disse Kleeb – minha mãe é a
Deusa da Esperança e cuidou dele. Mesmo assim, meu pai estava
amaldiçoado e era impossível remover esta maldição. Ele sempre teve
verdadeiro amor pelas lutas mágickas e decidiu continuar a batalhar em
segredo. Mas ele diz que o maior presente que minha mãe deu a ele não
foi ter-lhe salvado a vida. Qual o maior presente que a mamãe te deu,
papai?
Klebako apontou uma mão trêmula para Kleeb. Ele correu e abraçou
o pai. Bibi quase chorou de emoção. Mesmo tão doente assim, sem
conseguir falar ou se mover direito, Klebako ainda era tão forte!
Finalmente, tomada de coragem, Bibi levantou o rosto. Contudo, a
face de Klebako estava coberta por um capuz. Bibi via apenas as mãos
verdes e trêmulas. Pareciam mãos de uma pessoa de idade avançada.
– Entendi – falou Bibi – não precisa me ensinar suas magias, senhor
Klebako. O senhor deve cuidar de sua saúde. Mas pode deixar que irei
instruir Kleeb na magia dos servidores. Assim ele poderá dar vida a todas
as suas criações.
Klebako pegou a folha de papel e escreveu “Obrigado”. Isso foi tudo.
Bibi percebeu que já era hora de ir embora, apesar das insistências de
Kleeb para que ela ficasse mais.
– Amanhã eu volto, amiguinho – Bibi prometeu – e iremos brincar
muito juntos!
– Com servidores? – ele perguntou, esperançoso.
– Sim. Amanhã começo a te ensinar.
Ao sair, Bibi passou pela sala e avistou a esposa de Klebako.

108
A Guerra dos Esquecidos

– Muito obrigada por tudo – Bibi disse.


Pois graças a ela e ao filho deles tinha conseguido conhecer Klebako
frente a frente. Não importava que não visse seu rosto. Ela já sabia quem
ele era e como ele era. Ficou muito feliz.
Também agradeceu ao mordomo grilo, pois ele foi a pessoa que
proporcionou o início de tudo.
Pegou uma borboleta táxi e correu de volta ao seu vilarejo. Estava
doida para espalhar todas aquelas fofocas, mas decidiu contar aquele
segredo somente para sua melhor amiga Tchuna (que era quase como
seu bichinho de estimação e companheira de jornada) fazendo-a
prometer não revelar a ninguém.
– Não sou seu bichinho de estimação! – protestou Tchuna,
emburrada.
– Para com isso, Tchuna. Eu te conto todas essas revelações
surpreendentes e isso é tudo que tem a dizer?
– Pelo menos agora sabemos que Klebako tem razões para esconder
a identidade. Há histórias sinistras envolvendo o fundador da academia.
Diziam que ele tinha morrido num duelo mágicko.
– Então foi esse o “acidente” – concluiu Bibi – quem foi que quase o
matou?
– Cheiq.
A expressão de Bibi mudou.
– Não acredito. Então por isso ele é tão odiado.
– Atualmente ele é o diretor da academia.
– Quê?!
Aquilo já era demais. Ele devia estar fazendo uma lavagem cerebral
violenta nos alunos.
– Há rumores de que ele está incitando os estudantes a atacarem
nosso povo – contou Tchuna – ele diz que os insetos são inferiores.
– Há alunos insetos...
– É. Ele só quer uma desculpa para matar. Será que há alguma razão
para você ter retirado aquele grimório de título estranho da academia?
Deve haver algo perigoso lá dentro.
Bibi estava confusa.
– Sabia que já fui aluna da academia? – contou Tchuna.
– Tá de brincadeira.

109
Juliana Duarte

– Por um ano só. Por isso sei umas coisas de lá. E até onde sei, o
fundador era um mago negro cruel que assassinou muita gente
gratuitamente.
– Klebako fez isso...? – perguntou Bibi, sem acreditar.
– Cheiq tentou matá-lo por isso.
– Então os dois são malvados.
– Sei lá, Bibi – disse Tchuna – a existência é muito complexa. As
pessoas fazem coisas pelas mais diferentes razões. Não conhecemos nem
Klebako e nem Cheiq a fundo para julgá-los. Cheiq, por exemplo, vem
de um mundo de zumbis. Então ele deve ter uma compreensão da vida e
da morte bem diferente da nossa. Talvez saiba bem mais sobre isso do
que a gente.
Mesmo assim, Bibi não gostou do que ouviu. Quando retornasse ao
palácio de Klebako no dia seguinte, decidiu que iria perguntar a ele mais
detalhes sobre isso. Queria saber se ele era mau de verdade e porque
Cheiq tentou matá-lo. Por que eles ainda se enfrentavam em duelos? Será
que Cheiq sabia a identidade dele?
Porém, essa visita nunca chegou a acontecer.
Naquela madrugada houve muitas explosões. Todos acordaram e
saíram às ruas. O movimento vinha da academia. Aparentemente os
alunos, liderados por Cheiq, estavam invadindo as ruas para tomar o
poder. Eles se dirigiam até o bairro rico dos palácios para tomar o trono
do rei.
– A utopia de Cheiq é que todos os países devem ser governados por
reis magos – explicou Tchuna – e ele deve ter convencido todos os
alunos de que os magistas são superiores.
– Cale a boca, Tchuna! – gritou Bibi – Não me interessa mais os
comos ou os porquês! Por enquanto eles só estão agitados. Mas e se
alguém resistir e for morto? O rei pode ser o primeiro.
A maioria estava assustada e não reagiu. Pelo jeito, Cheiq tomaria o
poder facilmente, sem muita resistência ou violência. Bibi até preferia
que fosse assim. Mas decidiu que, mesmo sob risco de ser machucada,
queria ir até lá para acompanhar o rumo dos acontecimentos.
– Não, Bibi! – gritou Kipga.
– Bibi, não vá! – pediu Lou-lou, assustado.

110
A Guerra dos Esquecidos

Embora Lou-lou e Kipga fossem apenas amigos um do outro, para


Bibi eles eram quase como um pai e uma mãe, já que moravam todos
juntos.
Bibi e Tchuna chegaram ao bairro. Muitos habitantes estavam nas
ruas, incluindo o próprio Klebako.
– Você não é o rei! – exclamou Cheiq, em sua vespa gigante – Mesmo
assim se opõe a meu direito ao trono, Klebako? Para mim não faz mais
diferença se você está vivo ou morto; e nem para você. Viver ou morrer
não vai mais te machucar. Então que te importa quem governa esse país?
– Eu me importo e meu pai também! – gritou Kleeb, saindo da casa,
mesmo que a sua mãe tentasse segurá-lo para protegê-lo – Ele quer um
mundo bom para eu viver. E para as próximas gerações.
– Que interessante – observou Cheiq, com os olhos brilhando – Será
este o filho de Klebako? Sinto que eu irei ferir o pai um pouco se eu
machucar o filho...
Cheiq traçou um selo no ar e lançou um raio com sua lança na
direção de Kleeb. Klebako protegeu-o.
Em seguida, Cheiq atacou a esposa de Klebako. Ela conseguiu
proteger-se e seria capaz de lutar com Cheiq de igual para igual.
– Pele azul... uma Deusa – concluiu Cheiq – muito esperto de sua
parte, Klebako. Mas você somente poluiu seu sangue e o dela com uma
mistura tão fraca. Um filho metade Deus metade inseto não vale nada! E
eis que agora irei apresentar o melhor aluno da universidade que você
fundou, para puni-lo por seu erro.
Bibi espantou-se ao ver Iutrebvua dar um passo adiante e, levantando
seu cajado, moldar as nuvens em forma de mosca gigante.
Iutrebvua atacou Klebako. Ele também era fã de Klebako e a
oportunidade de batalhar contra ele era imperdível.
Mas enquanto Klebako defendia a si, Cheiq atacou Kleeb. Tudo foi
muito rápido. A Deusa da Esperança pulou na frente para protegê-lo.
Cheiq lançou fogo na direção da Deusa. A sua pele azul derreteu
como cera de vela e, mesmo como Deusa, ela perdeu sua forma desse
mundo; este fenômeno a que chamamos morte.
Seu espírito ascendeu aos céus e chamou pela Deusa da Chuva. A
gigantesca Deusa, que habitava acima das nuvens, reuniu água nas vestes

111
Juliana Duarte

e derramou-a sobre os magistas da academia, provocando um violento


tsunami que apagou a chama da lança de Cheiq definitivamente.
As ondas levaram a todos para longe. Os alunos se afastaram, mas
Cheiq não se moveu. Já que não tinha mais o fogo, atacou o filho de
Klebako com raios, pois um enxame não funcionaria para ferir Kleeb,
que também era inseto.
Klebako parecia irado. Bibi sentiu medo.
– Bibi, fuja! – gritou Kleeb.
Cheiq notou Bibi ali pela primeira vez. Bibi deu-se conta da besteira
que tinha feito: Klebako não conseguiria proteger o filho se tivesse que
protegê-la também.
Bibi subiu na borboleta táxi e voou bem alto.
– Não estou sendo paga por isso, sabia? – reclamou a borboleta táxi –
Eu posso morrer!
– Eu sei – disse Bibi, irritada – se você morrer, pago o dobro pra sua
família!
Bibi voou tão alto que a Deusa da Chuva envolveu-a nos braços.
– A Deusa da Chuva existe mesmo...!
Bibi sentiu as mãos geladas e molhadas acariciando sua pele. Sentiu-se
protegida. Estava acima das nuvens!
A Deusa da Chuva abriu uma cesta. De lá tirou linha e agulha. Bibi
notou que aquela era a mesma cesta que a esposa de Klebako mandou
que ofertasse à Deusa.
– Meu nome é Kirima – disse a Deusa da Chuva – Getia, a Deusa da
Esperança, é minha irmã. Ambas somos exímias costureiras. Enquanto
Getia costura sorrisos e sonhos, eu costuro a terra e o céu, unindo-os
pela água. Costuro as sementes nos campos. E também as águas, onde
minhas mãos alcançam.
Kirima retirou o colar do pescoço de Bibi gentilmente. Destampou a
rolha e alcançou o bonequinho. Tirou a roupa dele e costurou na roupa
de Bibi.
– Seu aniversário de 15 anos seria daqui 5 dias – informou Kirima –
mas você precisa de proteção agora. Por isso, eu te concedo cinco dias,
assim como apresso a maturação dos frutos para aqueles que abraçam o
tronco das árvores com fervor e estão prestes a morrer.
– Que é este amuleto? – perguntou Bibi.

112
A Guerra dos Esquecidos

– Seu nome real é Lehnia – contou a Deusa da Chuva – foi este o


nome dado a você por seus pais Hauolimau e Yacamin. Seu avô
Queiroga era o descendente do trono do reino Capricho da Memória: a
terra original onde foi inventada a magia dos servidores para aqueles que
não tinham nada, apenas a imaginação. Fique viva e mantenha brilhando
a chama das ideias. Este amuleto é um feitiço feito por sua mãe para te
proteger.
Kirima tocou a testa de Bibi e concedeu-lhe cinco dias no corpo.
– Você não pode proteger a todos nós? – pediu Bibi – Traga Kleeb e
Klebako para cá.
– Cheiq é metade Deus, metade zumbi – informou Kirima – ele
poderia subir aqui. Ele odeia a ideia de um ser metade inseto ser mais
forte que ele. Agora vá, Bibi. Tem minha bênção.
Bibi caiu das nuvens. Sentia o vento pela face, mas foi resgatada pela
borboleta táxi. Ela deixou-a no solo e sumiu de lá, para proteger-se.
A batalha lá embaixo já estava bem avançada. Klebako estava tão
doente que aquilo começou a pesar em suas habilidades mágickas. Ele já
não conseguia derrubar Cheiq facilmente.
– Kleeb, proteja-se comigo! – Bibi pegou-o pela mão – Tenho na
roupa um feitiço. Se estiver comigo estará salvo.
Os dois se abraçaram enquanto a batalha explodia.
– Tchuna!
A abelhinha quadrada apareceu com uma asinha quebrada, tendo
dificuldade para voar.
– Minha amiga, fiquei tão preocupada – Bibi derramou lágrimas.
– Eu também – disse Tchuna, chorando – nunca mais vamos nos
separar.
Cheiq percebeu os três escondidos ali no chão. Nesse momento, seu
sorriso alargou-se. Ele enviou sua vespa gigante, Hiaquia, para atacá-los.
Eles gritaram e se abraçaram. A vespa esmagou os três imediatamente,
com seu enorme corpo.
Sem a vespa por perto, Cheiq tinha menos poder. Klebako enviou
Xigaita para abocanhar Cheiq. O inseto vermelho gigante devorou Cheiq
vivo.
A batalha terminou. Klebako não conseguia caminhar direito, mas
correu para tentar socorrer o filho.

113
Juliana Duarte

Era tarde demais. Tchuna e Kleeb estavam com o corpo colado ao


solo, envoltos em sangue. Também havia sangue no corpo de Bibi, mas
ela milagrosamente levantou-se. Ao ver a cena horrível, ela deu um grito
e chorou.
Klebako estava de joelhos, paralisado.
– Eu vi a Deusa da Chuva, Klebako! – exclamou Bibi, entre lágrimas
– Ela me contou que minha mãe, Yacamin, fez um feitiço para me salvar.
Ela despertou o feitiço em mim e achei que com ele eu poderia proteger
meus amigos. Mas não fui capaz!
Bibi chorou ainda mais alto. Klebako, com suas mãos trêmulas,
escreveu alguma coisa na areia:
“Tudo ficará bem. Não chore mais”
– Seu filho morreu! E sua esposa! Minha amiga também está morta! –
falou Bibi, desesperada – Como posso não chorar? A Deusa da Chuva
contou-me que meus antepassados são de um reino distante chamado
Capricho da Memória. Lá era a terra da imaginação, onde todos eram
pobres de corpo, mas ricos de espírito. Meu avô Queiroga era
descendente de reis. Seu filho Hauolimau gerou a mim. Eu desejava que
Kleeb continuasse a criar mundos e mantivesse viva essa arte. Então eu e
ele criaríamos muitos mundos!
Klebako surpreendeu-se com a revelação. Escreveu novas palavras na
areia:
“Há muito tempo enxerguei minha vida passada. Eu era o
descendente dos reis de Capricho da Memória e meu nome era
Queiroga”.
Quando leu aquilo, Bibi derramou muitas lágrimas. Ela queria abraçar
Klebako, mas ficou com vergonha. Ele mesmo fez um movimento com
as mãos, embora estivesse fraco demais para completá-lo. Então Bibi
abraçou-o fortemente.
Quando ergueu os olhos marejados, viu o rosto enrugado de Klebako
por baixo do capuz. Os olhos brancos de seu avô derramavam lágrimas
também.
Ele escreveu na terra novamente:
“Sei um último feitiço secreto. Irei usá-lo agora, no fim de tudo. A
morte é apenas um sonho”

114
A Guerra dos Esquecidos

Ele ergueu o grimório de sua própria autoria chamado “Magia Negra


Para Assassinatos Com Dor”. Tocou os dedos numa página e, através
disso, tirou a própria vida, devolvendo a alma a seu filho Kleeb. Tombou
no chão depois disso.
Bibi abraçou Kleeb com força e ambos choraram pela morte de
Klebako.
– Essa era minha amiga Tchuna – disse Bibi, tristemente – vamos
enterrá-la com honras, assim como a sua mãe e seu pai.
Quando houve a batalha, as ruas ficaram desertas. Todos correram e
fugiram, com medo. O vazio e a solidão continuavam, mesmo depois
que a luta foi encerrada.
Bibi nunca iria entender as reais razões daquela briga entre Klebako e
Cheiq. E descobriu que não importava mais quem era o bonzinho e o
malvado. Ela mesma se considerava às vezes boa e às vezes má. Não
sabia se tinha o direito de escolher quem iria viver e morrer. A única
certeza que tinha era que queria ver vida em si e nas pessoas que amava.
Não precisava ser por tanto tempo. Apenas por tempo suficiente para
que se divertissem juntos.
Bibi voltou para casa e levou Kleeb consigo. Contou toda a história
para Kipga e Lou-lou.
– Onde está Ah, Bibi? – perguntou Lou-lou.
– Não sei! – falou Bibi, com medo – Eu gritei tanto e ele não
apareceu durante a batalha. Ah, Ah!
Mas, por mais que chamasse, ele não vinha.
– O servidor bonitinho com cara de parede? – perguntou Kleeb,
preocupado – Ele não pode ter morrido!
Duas horas depois, alguém bateu na porta da casa de cogumelo. Bibi
atendeu. Quem entrou foi Iutrebvua, o mago cinzento que havia tentado
atacar Klebako sem sucesso – e por causa desse ataque não conseguiu
proteger sua esposa, que faleceu.
Ele estava muito machucado e carregava Ah nos braços.
– Ele morreu para me salvar – disse Iutrebvua, ao mesmo tempo em
lágrimas e irritado – Por que isso? Que entidade estúpida! Por que ele
salvaria alguém como eu?
Bibi abraçou o corpo de Ah com ternura. Com esse abraço, o corpo
se dissolveu no ar. Bibi colocou a mão no ombro de Iutrebvua.

115
Juliana Duarte

– Ah enxergava o coração das pessoas como nenhum outro –


explicou Bibi – ele deve ter visto algo de bom aí no seu peito.
– Não sei direito o que aconteceu lá fora e nem quero saber as
consequências do que fiz – disse Iutrebvua – mas o que esse pequenino
fez mudou minha vida. Eu sou o tipo de cara que quando ficasse mais
velho ia querer destruir pelo menos um mundo ou dois. Não quero mais.
– Então o sacrifício de Ah não foi em vão – constatou Bibi.
– Biefa, eu não sei o que te dizer.
– Então não diga nada. Assim como Ah e Klebako, que sempre
conseguiram dizer muito, mesmo sem pronunciar uma palavra.

Ainda demorou alguns meses até que tudo se acalmasse. A vida foi
voltando à sua normalidade. Havia um novo diretor na academia de
magia e Iutrebvua se formou. Bibi foi na festa de formatura e tinha quase
certeza de que desejava entrar para a universidade no próximo ano, pois
já estava na idade certa para isso.
– Também quero entrar! – disse Kleeb.
– Só daqui dez anos, irmãozinho – falou Bibi – tecnicamente você é
meu tio, mas acho que posso te chamar de primo ou irmão, não acha?
– Claro, irmãzinha – confirmou Kleeb.
Agora Kleeb morava com eles na casa de cogumelo. Felizmente o
mordomo conseguiu se salvar também, mas foi trabalhar em outra
residência, já que a família de Bibi não teria recursos para mantê-lo.
Era época de férias na AMNBM. Além de se encontrar com seus
amiguinhos insetos, que eram seus eternos companheiros de aventura – e
gostaram muito de Kleeb – Bibi se reunia de vez em quando na taverna
para conversar com os cinco magos que viviam falando mal dos
professores e dos colegas.
– Entre na academia no próximo ano, Biefa! – era só o que eles
diziam.
– Se eu entrar, acho que irei usar o nome mágicko Lehnia – ela
comentou, pensativa.
– Vou fazer pós-graduação na minha área de magia em minha terra
natal – contou Iutrebvua – você ia se dar bem nessas universidades,
então sugiro que reflita, pois também poderia cursar o ano lá após estas
férias.

116
A Guerra dos Esquecidos

Bibi fechou os olhos e pensou: “Não importa que Iutrebvua chame


seus amigos de inimigos. Ele é apenas um chato orgulhoso. Se Ah
decidiu salvá-lo, eu confio nele”.
Bibi tinha descoberto que Deuses existiam de verdade. E que alguns
deles estavam mais próximos do que imaginava.

117
Juliana Duarte

Capítulo 5

– Não acredito que a professora Dili passou esse dever tão tolo.
– Eu estava no toalete. Posso conferir seu caderno digital, Yucha?
Yucha passou para Bibi um dispositivo com tela de cristal líquido.
Bibi virava as páginas do caderno com movimentos no ar.
– “Realize uma entrevista com um aluno de grau mais avançado para
obter sua visão sobre a magia” – leu Bibi – Não vejo nada tolo aqui.
Seria valioso aprendermos com um veterano.
– Somos novatas, recém entramos na Academia da Vontade Máxima
– comentou Yucha – não tenho coragem de conversar com o pessoal
mais velho. Ao nos apresentarmos formalmente, capaz de aplicarem
trote nos calouros.
– Eu ouvi falar que o trote dos veteranos da AVM no ano anterior foi
trancar os alunos do primeiro grau numa sala e somente liberá-los
quando terminassem de ler certos grimórios de magia avançada –
comentou Fafripa – preenchê-los com esse tipo de carga mental foi uma
tortura. Tenho medo do pessoal daqui. Essa é a melhor universidade do
país. E sabemos que os gênios são loucos.
Bibi riu.
– Também fomos aprovadas – argumentou Bibi – não somos
inferiores a eles. Eu estou completamente tranquila em relação a essa
tarefa. Conheço um pós-graduando que poderá, de bom grado, fornecer-
me a entrevista.
– Tenho um irmão mais velho no 4º grau, mas ele é insuportável –
informou Yucha – por isso irei procurar outra pessoa. Quem é seu
conhecido na pós, Bibi?
– Iutrebvua, mestrando de magia pura.
Yucha e Fafripa ficaram surpresas.
– Ele não é qualquer um – comentou Yucha – ganhou menção
honrosa pelas altas notas no teste de admissão.

118
A Guerra dos Esquecidos

– Eu soube – disse Bibi – quanto a mim, passei raspando na prova de


entrada para graduação na AVM. Entrei em segunda chamada, mas isso
não significa que sou menos capaz.
– Ninguém disse isso – falou Yucha – mas ele se saiu especialmente
bem na área de geometria mágica e fractais para evocação de entidades
das cartas de Crupiê.
– Crupiê não é a alcunha daquele doutorando em divinação da
simbologia pictórica?
– Está correto. Ele é outro monstro.
– Os graus mais avançados estão repletos de pessoas assustadoras –
comentou Fafripa, com os olhos baixos – dizem que somente metade
dos alunos das turmas de 1º grau avançam para o 2º.
– Entendo que o ensino seja puxado – confessou Bibi – mas pensei
que os calouros se esforçariam mais.
– Eles costumam fugir antes mesmo da reprovação. É o terror.
– Que terror? – perguntou Bibi, achando graça.
– Psicológico – explicou Yucha – sob a influência psíquica extrema.
Bibi abriu sua bolsa e colocou o próprio caderno digital no colo.
Copiou o dever e guardou suas coisas, levantando-se da escadaria.
– Não temo fantasmas – ela esclareceu – se de fato surgirem para
assombrar-me, irei dominá-los com todas as minhas forças. Estamos na
AVM para mostrar que nossa vontade máxima de aqui permanecer é
muito maior que isso.
Ela afastou-se e seguiu pelos corredores. Ao observar os alunos ao
redor via pessoas normais. No máximo um pouco excêntricas, mas nada
que a fizesse temer.
Subiu as escadas e foi até o andar do mestrado. Não demorou muito
para encontrar Iutrebvua num canto conversando com outros estudantes
na faixa dos vinte anos.
Apesar de haver raças variadas entre os estudantes, muitos
mantinham traços semelhantes aos dos seres humanos, o que fazia com
que Bibi não se sentisse uma alienígena naquele meio.
Yucha se parecia um pouco com um gato, com olhos amarelos e
traços da face que se assemelhavam a um felino. Já Fafripa era mais
como um ratinho, com pele meio cinzenta e corpo miúdo. Ambas eram
de sua idade: quinze anos.

119
Juliana Duarte

Bibi tinha cabelos castanhos encaracolados e olhos escuros. Usava o


uniforme feminino das graduandas: casaco, saia plissada azul clara, meias
longas floridas e sapatos brancos. Aquilo era bem diferente dos mantos
multicores dos magos da AMNBM.
Os uniformes masculinos também eram um misto de branco, azul
claro e azul escuro: sapatos alvos, calças escuras, camisa social. Já as
roupas dos mestrandos eram em tons de marrom, para indicar que
estavam mais adiantados. Os doutorandos vestiam o cinza. Ou seja: nada
de farra. O pessoal lá era sério.
Por isso, bastou ver a cor marrom das roupas de Iutrebvua e dos
quatro rapazes que estavam com ele para saber que tinham pelo menos
vinte anos e estavam na etapa intermediária dos estudos.
Normalmente bastaria constatar a cor da roupa diferente para que os
estudantes azuis corressem. Mas Bibi não se intimidou. Mesmo sendo da
turma dos novatos da magia básica, aproximou-se e interrompeu-os.
– Iu.
Quando ela disse isso, os cinco se viraram para fitá-la. Bibi sentiu o
sangue subindo no rosto. Eles eram muito altos e respeitáveis. Na
verdade um deles era até baixinho, mas tinha uma face séria demais, o
que faria qualquer um recuar.
Mesmo possuindo corpos humanoides, cada um tinha características
únicas: pedaços de metal pelo corpo, traços de animais, diferentes cores
de pele, cabelos e olhos. Bibi estava acostumada com os amigos insetos
do mundo em que foi criada, então aquela visão sempre lhe era
admirável.
– Que faz aqui, Bibi? – perguntou Iutrebvua.
Em vez de explicar, ela tirou o caderno digital da bolsa e entregou a
ele. Iutrebvua leu a parte que ela lhe indicou.
– Fui o escolhido para a entrevista? Estou honrado – zombou
Iutrebvua – Ou foi por falta de opção?
– Você sabe que não conheço muita gente por aqui.
– Que seja – Iutrebvua devolveu-lhe o caderno – vamos fazer isso
logo, porque tenho grupo de estudo vespertino. Onde vai ser?
– Que acha do pátio?
– Parece bom. Nos bancos, longe da cafeteria para evitarmos barulho
desnecessário.

120
A Guerra dos Esquecidos

Ele despediu-se dos colegas. Iutrebvua e Bibi desceram os lances de


escada e atingiram o pátio.
Quando se sentaram nos bancos, o silêncio de Iutrebvua incomodou
um pouco Bibi. Desse jeito ela ia ficar nervosa na presença dele também,
só por ele ser do nível intermediário. O que era estranho, sendo que ela
já o conhecia há um bom tempo.
– E então, vai ficar quieta? Pensei que pretendia me entrevistar.
– Ah, sim! – disse Bibi, meio atrapalhada – O problema é que não sei
direito o que perguntar, já que não montei o questionário.
Iutrebvua suspirou, impaciente.
– Não desperdice o meu tempo. Não sou desocupado como você e
seus colegas. MI não é brincadeira. Prepare logo esse questionário e me
chame somente quando terminar.
Ele já ia levantando quando ela o segurou pela manga da camisa.
– Eu invento na hora – ela decidiu – já podemos começar.
Ele fez um movimento forte com o braço, desvencilhando-se dela.
– Não encoste em mim, caloura – ele avisou – não te dei essa
liberdade.
Bibi não podia acreditar no que estava ouvindo.
– Achei que fôssemos amigos – ela disse – passamos por muita coisa.
– E isso ficou no passado – ele respondeu – estamos no meu mundo
agora. Você só soube dessa universidade de renome por indicação minha.
E agora deve fazer do nosso jeito e respeitar o seu sênior.
– Eu estou respeitando!
– Então se dirija a mim e aos estudantes mais velhos que você por
“senhor” e “senhorita” – ele explicou – não pelo nome, muito menos
pelo primeiro e menos ainda por um apelido, como você fez na frente de
meus colegas. Eles zombarão de mim quando eu retornar.
Compreenderão de maneira errada, pensando que temos mais intimidade
do que realmente possuímos.
– Você se preocupa demais com sua imagem – comentou Bibi.
– A imagem é tudo nesse lugar. A honra, as notas, o poder, o quanto
te respeitam. É esse legado que te fará subir na vida mais tarde. Eu não
quero que meu futuro mestre de magia saiba que eu era chamado de “Iu”
por uma caloura. Assim ele não me levará a sério.

121
Juliana Duarte

– Você ficou muito arrogante desde que foi aprovado na AVM. Fica
desfilando por aí com seu uniforme marrom, fitando os outros de cima...
– Eu fito de cima quem está embaixo – explicou Iutrebvua – e fito de
baixo quem está em cima. Vejo que ainda não compreendeu as diretrizes
básicas.
– Não devemos tratar os outros de forma diferente por causa de
meros títulos –argumentou Bibi.
– Eu também pensava assim quando era calouro. Aguente mais
alguns anos e desfrute da honra e poder de ser uma veterana. Quando
chegar lá descobrirá que não se trata apenas de pedaços de papel com
diplomas e sim de anos de esforço e luta. Quem realiza essa conquista
merece respeito. Pelo menos um “senhor” na frente do nome. Não estou
exigindo que se ajoelhe ou nada do tipo.
– Meus colegas temem vocês – disse Bibi – mas eu não.
– Pois deveria.
– Por quê? Por serem mais velhos? Por terem a cor do uniforme
diferente?
– Pelo que essas condições representam – respondeu ele – somos
mais sábios e mais poderosos. Lemos muito, estudamos mais que vocês
e despertamos habilidades especiais em muitos campos do conhecimento.
– E o que isso tudo significa? Que têm poder para nos matar com
uma fagulha elétrica lançada pelos dedos?
– Algo bem pior que isso. Estudamos lógica e álgebra. Mais
especificamente, operações algébricas como princípio dialético.
Traduzindo para seu entendimento, isso significa que conhecemos os
fundamentos da compreensão do raciocínio humano. Sabemos também
a história do pensamento: como se investigava o mundo no passado,
como pessoas o fazem no presente e, de acordo com essas condições,
mensurar o entendimento do futuro. Conhecimento é poder. É como
aprender a manipular uma ferramenta suntuosamente primorosa para
abrir seu cérebro e introduzir em sua massa encefálica o que for de meu
apreço. Ao estudarmos a linguagem ficamos a par da origem de
expressões idiomáticas e compreendemos mais um pouco da lógica que
rege essas escolhas, tão profundamente intrincadas ao aspecto histórico e
geográfico. Quais as suas disciplinas preferidas, Biefa?

122
A Guerra dos Esquecidos

– Não gosto de calcular, mas acho belo – respondeu Bibi – por isso
me encantam mais as belas artes, como a música, que é uma matemática
artística.
– Somente pessoas simplórias apreciam mais a música do que a
matemática – respondeu Iutrebvua – é como desfrutar somente do
aspecto lúdico que um computador oferece sem desejar penetrar na real
diversão jamais sonhada: o universo dos códigos binários. Seres fúteis
enxergam somente a pele lisa e possuem desejo pela carne, sem ansiar
apalpar os órgãos internos, a perfeição dos ossos, da suprema medula
óssea!
– Credo, que papo mais esquisito! – comentou Bibi, com uma careta
– Eu não passarei a gostar mais de uma coisa devido a uma aparente
complexidade. Nossas emoções são muito mais complexas do que tudo
isso que você disse. A música e as “meras diversões” mexem diretamente
com as emoções. Portanto, são importantes.
– É possível despertar emoções muito mais fortes através do
entendimento lógico dos processos que regem o mundo e a mente
humana.
– Nem tudo é tão lógico quanto você imagina. Não é possível
traduzir o universo inteiro em códigos. Quando você se excita com seus
números e sua “magia pura” dos princípios, isso não passa de uma
masturbação mental. Só muda o lugar que você põe a mão.
Iutrebvua fitou-a incrédulo, sentindo-se extremamente ofendido.
– Como ousa fazer essa comparação obscena com meu estudo
respeitável? Essa é uma tentativa sua de constranger seu sênior?
– Não sabia que você era tão sensível – comentou Bibi – seus amigos
me contaram lá no meu mundo que vocês já foram num bordel.
– Eles sempre tiveram a boca grande demais. Não se atreva a
espalhar qualquer boato que escutar dentro dessa academia. O que eu
faço da minha vida pessoal não lhe diz respeito. Os calouros adoram
espalhar fofocas sobre sexo, exatamente por serem crianças e não o
conhecerem, considerando algo impressionante demais para suas mentes
imaturas. Nós, veteranos, que conhecemos o sexo, não fazemos alarde
sobre o assunto, pois se tornou algo tão normal quanto comer e dormir.
Você comparou o meu estudo com uma prática sexual, na tentativa de
mostrar uma suposta maturidade que não existe em você. Eu me ofendi

123
Juliana Duarte

porque não irei admitir qualquer brincadeira desrespeitosa vinda de


calouros. Então peça desculpas, pirralha, e jamais mencione algo do tipo
de novo na minha frente.
– Vocês falam disso entre vocês – argumentou Bibi – não só sobre
magia pura...
– Nós falamos sobre o que quisermos, quando desejarmos –
esclareceu Iutrebvua – e não lhe devo nenhuma satisfação. Fale o que for
de seu agrado com os amigos da sua idade, mas bem longe de meus
ouvidos.
– Você se acha tão adulto... mas é apenas cinco anos mais velho que
eu.
– Isso é muita coisa na idade em que estamos. Eu estou no MI1. E
você no MB1. Um universo nos separa.
– O que significa todas essas siglas com letras e números?
– A magia básica dura 5 anos e corresponde à graduação. Você está
no primeiro grau do nível básico. Portanto, Magia Básica Um. Ocorre o
mesmo com a magia intermediária, que é o mestrado. Estou na Magia
Intermediária Um. Depois existem os cinco graus de magia avançada, ou
doutorado, que é a especialização.
– Você chama por “senhor” quem está no MI2 em diante? –
perguntou ela, duvidando.
– Claro.
– Então deve temer os estudantes de cinza, da mesma forma que
meus colegas temem os de marrom.
– Da mesma forma que “nós” tememos os de marrom, você deveria
dizer – corrigiu ele.
– Vocês não são Deuses.
– Admita que se impressiona ao nos fitar – desafiou Iutrebvua.
Bibi baixou os olhos. Ela já tinha ouvido falar que o ensino
fundamental naquele mundo também era feito em cinco graus: dos cinco
aos dez anos. E o ensino médio dos dez aos quinze. O número “cinco”
parecia ter um alto simbolismo naquela terra de tecnologia. Muito mais
que o “um” e o “zero”. Ela mencionou isso a ele.
– Um dia você irá compreender melhor como funciona o universo
dos números, das letras e de tantos códigos. Até que poderá desenvolver
suas próprias letras e números para utilizar selos tridimensionais que

124
A Guerra dos Esquecidos

geram a abertura de dimensões astrais e conexão com entidades ao nível


vibracional de seu cérebro.
– Como se cria um número novo? – perguntou Bibi, perplexa.
– Primeiro me diga o que é um número.
– Um símbolo utilizado para notação de uma quantidade,
representando uma abstração? – tentou ela.
– Isso é um numeral – corrigiu Iutrebvua – que é a notação simbólica
do número, representado graficamente. Temos uma relação semelhante
entre letra e fonema. Então para você números e fonemas são meras
abstrações? Em primeiro lugar, você compreende o significado do
conceito “abstrato”?
– É quando você abstrai, tira uma parte para uma operação intelectual
– ela respondeu – mas não seja tão metódico e detalhista! Quando eu
uso o termo “número” ou “letra” fica subentendido o objeto ao qual me
refiro. Não preciso esmiuçar esses conceitos.
– Você pode utilizar linguagem comum para falar com pessoas
comuns, mas isso não me deixa satisfeito. Estamos em ambiente
universitário e você deve se adequar a tal! – exclamou Iutrebvua.
– Pare de falar comigo desse jeito. Você não é meu professor para dar
sermão.
– Eu sou seu veterano e devo servir de exemplo. Você de fato
aprenderá coisas na vida, em seu relacionamento com pessoas, em
conversas triviais, nas suas diversões e passatempos, não importa o que
for. Contudo, a universidade fornece um estudo temático especialmente
direcionado. Azul não é o mesmo que vermelho. Não busque um no
lugar do outro. Tenha amizades informais em outros ambientes. Aqui
existe uma hierarquia em que todos os professores estão num patamar
acima dos alunos e os seniores estão acima dos juniores.
– Não dá para dividir o mundo em caixinhas como você quer – disse
Bibi – não cabe. Portanto, isso não tem cabimento!
– É por isso que nós, o segmento inteligente da sociedade, estamos
aqui: para construir novas caixas até que caiba. Os professores oferecem
essas caixas de presente aos alunos. Isso serve para que no futuro eles
construam novos pacotes com conteúdos ainda mais formidáveis. E com
suas colocações fora de hora você já interrompeu dois de meus

125
Juliana Duarte

discursos: sobre a origem do temor da magia e o princípio dos números


na lógica matemática formal.
– Ainda bem! Eu não via nenhuma conclusão próxima para
raciocínios vaidosos como esses.
– Para entender os números você precisa estudar a lógica e vice-versa
– ele explicou – e para esse tipo de debate filosófico necessitamos dos
fundamentos da linguagem. Para saber como letras, palavras e a sintaxe
são construídas, estudamos a história. A história depende dos aspectos
geográficos. Está tudo inter-relacionado: a gramática, a literatura, a
música, a física, a química, a biologia... é infinito. É lindo! Não há limites.
Não há beleza somente no que chamam de arte, como a música, a
pintura e a dança. Para possuir o refinamento de enxergar outros graus
de beleza, e assim desfrutar a vida numa escala imensurável, precisamos
estudar os códigos que regem essas áreas.
– Sei disso – falou Bibi – dá para apreciar a música num nível mais
profundo se você compreende a teoria musical: a harmonia, a melodia, o
ritmo, a técnica. E para entender a música existe o estudo de áreas como
matemática e física. Mas eu não preciso estudar química avançada para
desfrutar da sensação do cheiro de um perfume ou do sabor de um bolo
na minha boca!
– Correto – disse Iutrebvua – se a sua ambição é sentir apenas o
gosto vulgar, não precisa ir tão longe. Não é necessário conhecer os
ingredientes ou a composição deles, tampouco tornar-se cozinheiro ou
químico. Mas também é verdade que assim seria possível realizar testes
até chegar ao seu gosto favorito.
– Se você é tão nobre quanto diz, deve ser um chef.
– É imprescindível conhecer mais a respeito das áreas relacionadas ao
seu objeto de maior interesse. Na magia não é diferente. A matemática e
a linguagem constituem as bases para o resto. É assim que traduzimos o
mundo, que o decodificamos. Isso intelectualmente falando, é claro.
Também temos o atletismo para o corpo, pois necessitamos de um
corpo bem constituído para abrigar um intelecto sagaz. As artes e as
ciências partem disso tudo: investigação intelectual e observação
empírica.
– Então vamos direto ao ponto da minha entrevista: que é a magia
para você?

126
A Guerra dos Esquecidos

– É aí que chegamos ao tema do temor da magia – explicou


Iutrebvua – você pode temer um atleta especialmente habilidoso. Um
lutador de artes marciais, por exemplo, pode ser temido por sua força
bruta. Um artista será temido por sua sensibilidade única de captar o
mundo, pois será como fitar através de você, tal qual um psicólogo
sobrenatural. Um cientista terá a técnica e será temido por lhe fornecer a
informação em si, de acordo com o que parece mais coerente à
comunidade científica. Um filósofo será temido pelo seu raciocínio
lógico apurado, fornecendo-lhe boas respostas. Mas a melhor parte vem
agora: um mago é o mais assustador de todos. Sabe por quê?
– Porque ele combina todas essas áreas para realizar manipulação do
mundo e da mente? – tentou Bibi.
– Existe o treinamento físico, quando você realiza exercícios
respiratórios, meditação, posições das mãos e do corpo, para conhecer a
embalagem que possui, a relação entre o físico e alteração emocional.
Você olha para o mundo e para si como um artista em busca da beleza.
Precisa das ciências exatas e humanas, que são como uma teia poderosa:
a melhor armadilha para prender o inseto epistemológico na artimanha
ardilosa da aranha. A dialética e a argumentação técnica sustentam a
teoria da magia. Mas o ápice do transe está na prática.
– O empirismo está na psicologia?
– Finalmente chegamos à resposta para sua pergunta. A magia é
poderosa porque reúne inumeráveis áreas com a finalidade de fornecer
alterações físicas e emocionais necessárias. A lógica é o berço da criança.
Quando surge o medo, seja do leão prestes a nos devorar ou de um
fantasma a nos assombrar, a lógica se quebra e resta somente a essência
do coração pulsante: a adrenalina. Nossas concepções mais fundamentais
estão em jogo. E como se vence o jogo da vida?
– Trapaceando? – tentou Bibi – Enganando a morte?
– Devemos alcançar a compreensão acerca de nossa imortalidade
fundamental – explicou Iutrebvua – não precisamos temer a vida ou a
morte, porque elas são somente faces diferentes do mesmo dado dos
Deuses. O dado será jogado para sempre. O jogo não tem um fim. Uma
expiração dá continuidade a uma nova inspiração.
– Desculpe, eu estou no MB1, não entendo disso – admitiu Bibi –
então traduza.

127
Juliana Duarte

– Você acredita nos Deuses? Então é ingênua. Não acredita neles? É


ingênua também. Pois acreditar ou não acreditar é dar espaço para a
esperança. E temos a expectativa da esperança quando existe desespero.
Não há motivo para desespero. Não precisamos ser salvos da vida ou da
morte. Não necessitamos escapar do prazer ou da dor. Sem necessidade
de fuga para o tudo ou nada, como um coelho que se enfia numa toca
aberta, regada pela chuva. As flores estão na terra; não abaixo dela ou no
céu.
– Poético.
– Obrigado. Eu tento.
– Então você diria que esses Deuses e espíritos existem ou não?
– Nós temos os substantivos concretos e os abstratos – explicou ele
– um bolo é mais real que o amor?
– Meu corpo precisa de um e minha mente do outro.
– Mas algumas vezes sua mente precisa do bolo e seu corpo precisa
do amor – explicou Iutrebvua – porque a comida também influencia nos
sentimentos e o amor em nossa saúde física. E há momentos em que não
precisamos de uma coisa nem outra. Já comemos bastante, estamos
cheios. E queremos um momento de solidão.
– Isso significa que não faz mal ser ingênuo às vezes – concluiu Bibi
– podemos precisar dos Deuses ou descartá-los.
– Há corpos e mentes que precisam de Deuses. Outros não. E ainda
outros precisam somente quanto têm fome. Basta preencher com
guloseimas e o jantar principal pode ser dispensado.
– E se as cáries vierem?
– Eis a função dos dentistas e dentaduras.
– Certo, agora você deu um nó no meu cérebro – concluiu Bibi.
– Por isso magos são sujeitos perigosos – disse Iutrebvua – portanto,
você deve me temer. Somos verdadeiros mestres da filosofia e psicologia
aplicados às maiores bênçãos ou maldições. Eu posso te destruir em
pedaços nesse instante.
– Psicologicamente?
– Psiquicamente.
– Qual a diferença?
– Toda. Isso ultrapassa a mente. Atinge suas concepções mais
profundas acerca da existência, do mundo, do amor, de si mesmo, do

128
A Guerra dos Esquecidos

sentido de tudo. Penetra na carne, atinge sua corrente sanguínea e


deteriora seus ossos. É como veneno: posso escolher te matar
lentamente ou num só golpe. E além de quebrar sua mente e seu corpo,
posso destruir sua alma ou chegar ao seu espírito. Quem sabe até atiro
uma flecha no coração do seu Deus.
Bibi sentiu um frio na espinha. Iutrebvua deu um sorriso satisfeito.
– Isso se chama poder – ele informou – algo que a magia pode te
oferecer de forma mais eficaz do que nenhuma outra área. É como uma
religião pessoal em que você, seus Deuses e entidades, duelam contra
espíritos e Deuses errantes, ou contra guardiões de outros magistas. Um
religioso pode enfrentar as limitações das desgraças e bênçãos oferecidas
pelos seus Deuses e livros sagrados. Nem tudo é permitido. Um cético
pode enfrentar mais desespero em face da dor e da morte, pensando ser
a dor algo ruim e a morte o fim. A magia ultrapassa essas fronteiras e
oferece uma visão que te forneça tudo o que deseja: poder, fama, vida
eterna, beleza, riqueza e absolutamente qualquer coisa. Não precisa dar
nada em troca. Somente, é claro, exige algum tempo de estudo, leituras,
disciplina mental, certas práticas. Mas o prêmio é delicioso.
– Tudo é mental. Em nosso mundo, que é mental, basta convencer-
se profundamente de qualquer coisa e ela acontece lá fora, certo? Mas
isso não significa mentir? A base da magia é a trapaça?
– Não pode ser mentira ou trapaça, pois não há como conhecer ao
certo o que é a verdade para haver a enganação – respondeu Iutrebvua –
temos a limitação do cérebro, então não podemos olhar de fora para
tentar descobrir se a vida e o mundo também não são enganações.
Quando as pessoas derrubam árvores e com a madeira constroem
cadeiras elas estão trapaceando? Talvez. A cadeira é falsa, não é real, já
que foi uma invenção nossa. Mas a árvore em si é real ou um truque do
cérebro? Ela parece estar viva, então deveríamos respeitar a vida e deixá-
la lá? Por outro lado, somos obrigados a matar para nos mantermos
vivos. Isso é a natureza trapaceando? A natureza sendo terrível? Ou os
Deuses? Até onde vai nossa imaginação?
– Para mim isso tudo é química cerebral – disse Bibi – estudar magia,
construir valores. Pessoas só querem sentir emoções fortes, seja com
drogas ou com lógica. Então você não é superior a um analfabeto,
espertinho. Ele pode até ser mais feliz que você.

129
Juliana Duarte

– Pode. E aqui chegamos a um paradoxo e retornamos à estaca zero.


Viver, morrer, tudo dá na mesma quando tudo ou nada existe. Mas aqui
vem a sacada da magia ortodoxa salvando a pele dos heterodoxos: não
podemos destruir nossas concepções mais fundamentais acerca da
existência. Se destruíssemos completamente nosso medo da morte e da
dor, nos mataríamos, nos jogaríamos na chama. Isso não é esperto. Não
é coragem e sim tolice. Precisamos do medo, do amor, disso tudo. Até
do egoísmo, da raiva. O truque é ter a sacada para manipular essas
noções quando sentirmos ter chegado o momento. Regras não são
absolutas, mas tocar tudo pro alto e dançar não pode ser feito todas as
vezes.
– Ótimo, então faz um resumo de tudo isso que você disse para eu
entregar pra minha professora? – pediu Bibi, estendendo a ele seu
caderno.
– Eu não! O dever é seu. Eu já fiz demais fornecendo-lhe todas essas
nobres explanações, fruto de anos de estudo.
– Tantos anos de estudo pra esse monte de baboseira? Eu hein –
disse Bibi – Da próxima vez vou entrevistar um analfabeto mesmo.
Aposto que ele terá mais senso de humor e disposição.
– De fato, ele pode saber coisas que desconheço – reconheceu
Iutrebvua – pois o conhecimento de cada indivíduo é singular. Tem
pessoas que já são de bem com a vida desde o começo. Apertam a mão
da morte numa boa. Já eu prefiro uma batalha épica para finalizar com
estilo. No final, a diferença das escolhas das pessoas é puramente
artística: uma questão estética.
– Se a problemática aqui é a beleza, vou me dar bem – observou Bibi
– porque minha aparência não é ruim e irei conseguir um parceiro belo e
inteligente para propagar meus genes.
– Sinceramente, o que fará diferença para que seu filho seja forte não
pesará na aparência e sim em sua potencialidade para o poder. Então
selecione um parceiro de sua raça, para ter sangue forte.
– Bobagem. Misturas geram o potencial para a mutação e geração de
poderes imprevisíveis, tendo uma chance de haver o desenvolvimento de
magias novas e exclusivas. Isso eu aprendi na minha aula de biologia
mágica.

130
A Guerra dos Esquecidos

– Não vou contra-argumentar esses dados – disse ele – mas isso é


como jogar numa máquina de caça-níqueis: pequenas chances de ganhar.
Perda de dinheiro praticamente garantida. A não ser que pretenda ter
cem filhos até acertar na loteria.
– Se você é tão lógico assim e afirma que os prazeres da mente são
superiores aos da carne, qual a sua explicação para frequentar bordéis
sem propósitos reprodutivos? – perguntou Bibi.
– Você e essa história de novo? – perguntou Iutrebvua, aborrecido –
Em primeiro lugar, eu não preciso lhe dar satisfações, mas eu vou dar
para que você não me incomode com esse assunto novamente. Durante
o ano letivo eu somente estudo. No período das férias eu relaxo para que
minhas funções cognitivas estejam bem dispostas para o ano seguinte. E
eu não afirmei em nenhum momento que prazeres da mente são
superiores. Seres que são naturalmente mais avançados possuem a
capacidade de tornar nobre até o ato aparentemente mais trivial.
– Mas o sexo já é nobre! – riu Bibi – É o ato que define o nascimento
de um novo ser e a perpetuação da espécie. É praticamente o objetivo da
vida de nossa parte animal. Que há de mais nobre que isso? E quando
não é para propósitos reprodutivos ele gera aproximação do parceiro, o
que aumenta o amor, a saúde, tantos aspectos positivos! Quando não é
com um parceiro fixo, ainda assim gera alegria e saúde. Afinal, é uma
atividade física e contribui para o sistema circulatório, respiratório,
endócrino...
– O assunto está encerrado – ele interrompeu-a – e após nossa breve
conversa concluí o que eu já sabia: conversar com os estudantes da MB é
perda de tempo. Eu somente relato meus conhecimentos e não aprendo
nada. Prefiro conversar somente com os alunos de minha série, com os
das mais avançadas ou professores. Temo ser contaminado pela sua
burrice.
– Você mesmo me indicou para vir à AVM porque me considerou
inteligente e habilidosa – argumentou Bibi.
– Por incrível que pareça, até eu posso me enganar às vezes. Ou
quem sabe foram seus colegas que lhe deram más influências. Felizmente
metade deles não continuará para cursar a MB2. Quanto mais você
avança, mais altamente selecionados se tornam seus colegas. Isso virá
para melhor.

131
Juliana Duarte

Iutrebvua levantou-se do banco e retornou ao prédio. Bibi precisava


admitir que conversar com um aluno da MI era outro universo. Não era
a mesma coisa que papear com Yucha ou Fafripa. Elas eram inteligentes,
pois passaram no exame de admissão. Ainda assim, se encontravam num
nível menos interessante que o dos veteranos.
Mas Bibi não teria coragem de fazer amizade com alguém mais velho
que ela. Claro que os veteranos não queriam nada com o pessoal do
primeiro grau do nível básico. Sabiam que eram fogo de palha, pois
pouquíssimos permaneceriam para os níveis seguintes.
“Então é dessa maneira que eles me olham” concluiu Bibi, fitando
seu uniforme azul. Felizmente o uniforme não revelava seu grau;
somente seu nível. E utilizar aquele uniforme fora das dependências da
universidade era sinal de status, pois somente os mais inteligentes
passavam na prova. Claro que os alunos mais avançados consideravam
aquela prova uma piada. Mas Bibi esforçou-se muito para ser aprovada.
Ela suspirou. Ainda teria alguns minutos livres até sua próxima aula.
Resolveu ir até a cafeteria procurar algo para comer.
Iutrebvua tinha razão: aquele lugar era muito barulhento. A
universidade estava repleta de estudantes de azul, que, por sinal, eram os
mais baderneiros. Suspeitou que até ela mesma fosse começar a ter
preconceito contra o pessoal da MB. Aquele lugar era como uma
pirâmide: as turmas de graus mais baixos eram as mais lotadas.
Conforme se subia ia afinando, restando somente os mais inteligentes,
que geralmente também eram mais centrados e comportados.
“Será que essa universidade é pra mim?” pensava Bibi. Ela sentia-se
confusa com todos aqueles estudantes que não levavam os estudos a
sério. Até alguns professores lhe davam nos nervos, como foi o caso da
professora que passou a tarefa i