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Juliana Duarte
2013
Para Israel
Sumário
Livro 1__________________________________________________7
Livro 2________________________________________________162
Livro 3________________________________________________310
Livro 4________________________________________________456
Velevi
LIVRO 1
Parto da Criação
Primeira Parte
O Lago e o Arco-Íris
7
Juliana Duarte
Ela deitava sobre a terra. Suas garras de leão cravavam o solo, mas seu rosto e
seu busto eram de mulher. A voz que saía daquela garganta era grave e
incomparável. Possuía língua e cabelos de serpente. Seus quatro olhos eram
cinzentos e corroídos, mas jamais poderiam ser fitados. Um chifre prateado de
unicórnio sobressaía em sua fronte carbonizada. Aquela estátua viva e colossal
possuía um corpo completamente negro.
Quem se dirigia à górgona era uma pequena criatura. Seus olhos eram como
flores púrpuras e cheias de vida. O monstro era inigualavelmente maior do que
aquele ser frágil e belo. Sua pele e suas crinas claríssimas eram rosadas. Os
cascos dourados clamavam a imponência de uma rainha. E a pônei falou assim:
– Meu corpo quer tocar o lago. Necessito lavar meu coração de poeira.
A esfinge não amoleceu diante dessas palavras. Se possível, endureceu ainda
mais.
– Eis meu nobre arco-íris.
A criatura de quatro olhos possuía o lago, mas o arco-íris não era seu. A pônei
equilibrava a metade do mundo na balança da terra.
– Tu aceitas todos os riscos. Admiro essa coragem. Acaso terás suficiente
ousadia para fitar os olhos da medusa?
– Que meu corpo se torne pedra e se faça história.
– Palavras impensadas, imaturas, perigosas. Mas por que sinto tanta força nelas?
Ah, é a loucura! Somente ela te tenta. Eu sinto a loucura em ti.
– Então me entrega o capricho da insanidade – a pônei ajoelhou-se – a natureza
das esfinges são as charadas. Tal qual a natureza dos pôneis é correr em
liberdade.
– Ou sacrificar essa mesma liberdade por sonhos tolos e apaixonados.
O gigantesco monstro negro fitava o ser cor-de-rosa ajoelhado.
– Uma criatura necessita de uma força para existir. Revela-me qual é a força
vital, sem a qual o final chegaria para todo o ser que vive.
A resposta da pônei foi imediata:
– O sonho que se faz memória. Uma lenda.
– Quanta profundidade e sinceridade emanam desse coração de pedra. Dessa
loucura e desse anseio pela eternidade e pelo fim. Pouco te importa a água, a luz
ou a sombra. Buscas aquilo que é belo. Para isso estás disposta a pagar o preço
maior.
– Entrega-me o fim.
A esfinge levantou o seu enorme corpo, apoiando-se nas quatro patas. Seus
quatro olhos jamais deixavam de fitar aquele ser absoluto.
– Bebe até a última gota. Embebe teu espírito. Fita-me nos olhos e terás o que
procuras. Logo não somente o teu coração será de pedra.
– Assim aceito. Essa é a maneira de ser no mundo. E escolho a glória.
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muitos falam coisas engraçadas e você ri. Mas você nunca é daqueles que falam
as coisas engraçadas.
Sempre fui uma pessoa tão vazia e sem graça que nem ficar depressiva eu
conseguia. Você já ouviu falar que depressão só serve para pessoas ricas?
Finalmente estava livre do colégio! Eu e meus vinte anos. Estava tão cansada
que pedi aos meus pais para ficar de férias por um ano. Meu irmão já tinha
começado a trabalhar, saltando de um emprego a outro. Eu assistia de longe a
rotina dos meus pais e me sentia uma mera parasita. As coisas que sei fazer bem
são apenas ficar na frente de uma televisão, dormir, comer e namorar as roupas
lindas das vitrines.
Falando em namorar, de vez em quando eu me apaixonava em segredo por um
colega ou por um cara bonito da novela, mas nunca levei isso a sério. Afinal,
eram só paixões bobas e nunca gostei realmente de alguém.
No entanto, essa não é a questão que mais me preocupa. Você acreditaria se eu
dissesse que não há nada me preocupando no momento? As pessoas estão
sempre insatisfeitas com alguma coisa. Geralmente o problema é dinheiro e
aparência. Óbvio que dinheiro sempre faz falta, mas por que se estressar por
causa disso? Eu também não sou nenhum modelo de magreza e muito menos
uma top model. O meu emprego não é o melhor do mundo, mas eu gosto dele
e as pessoas de lá são simpáticas.
Minha bebida favorita é Coca-Cola e a comida que mais gosto é pizza de
camarão. Também adoro chocolate; minha maldição cheia de calorias.
Cheguei em casa numa sexta-feira, cansada, após trabalhar o dia inteiro.
Esperava assistir ao final da novela, esquentar o feijão com arroz do almoço
para jantar, tomar um banho e desmaiar na cama. Mas uma notícia me pegou de
surpresa:
– Vamos nos mudar.
Será que teríamos que morar num lugar menor ainda? Não era possível que,
com quatro pessoas trabalhando o dia inteiro, o dinheiro não desse conta de
cobrir as despesas. Naquele instante, meu irmão apareceu na sala com um
grande sorriso.
– O novo apartamento tem três quartos, acredita? Vou ter um quarto só para
mim. Aleluia! Livre da chata!
– Eu não sou chata, seu mal educado – retruquei – sou muito legal.
– Você também saiu ganhando. Vai ter seu próprio quarto. Está satisfeita?
Num dia mais à frente eu estaria relembrando das coisas, sentada num banco:
“Ouço os sinos baterem para a missa de domingo. Penso em pássaros e
chocolates”.
Carrossel. Ursinha de pelúcia rosa. Gritos. Venda negra. Número Cinco.
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Suco de Morango
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Ora, claro que eu tinha preferência, mas estava com vergonha de dizer. Era
sempre assim. Eu falava “tanto faz” quando era visita e me ofereciam alguma
coisa. Eu não gostava de dar trabalho e nunca me sentia à vontade na casa de
um estranho.
– Claro que não. Você é minha visita, então pode escolher o que quiser. Tem
leite também, caso goste de café com leite ou com açúcar. Ou prefere Nescau?
Aquilo tudo estava cada vez mais complicado. Por que ela simplesmente não
servia copos com qualquer coisa e colocava na minha frente em vez de
perguntar?
– Você gosta de suco, não é? – perguntou o Jean – Quais sabores você tem?
– Só limão e morango.
– Então... morango – falei, sentindo meu rosto se aquecer.
Será que era pedir demais? Eu deveria ter dito limão? E se ela gostasse mais do
sabor morango?
– Vou preparar. Já volto.
E ela foi até a cozinha.
– É tão difícil assim dizer que quer um suco? – perguntou Jean.
Mas eu não respondi. Eu gostava de suco. Pena que não tinha a opção de
refrigerante, senão eu teria escolhido essa. Mas claro que eu não era mal educada
para perguntar: “Tem refrigerante?” Imagina! Ela retornou com um copo de
café para o Jean e um suco para mim. Senti meu rosto corar ao segurar o copo e
agradeci baixinho.
– Vocês são daqui?
– Nossos pais são nordestinos – falou o Jean – quase toda nossa família é do
Maranhão, então acho que pegamos um pouco do sotaque por conviver com
eles. Mas nós dois nascemos aqui mesmo em Brasília e sempre moramos aqui.
– Mesmo? Que máximo! Eu sou da Bahia e moro aqui há três anos. Meus pais
ainda moram em Salvador. Vim para cá atrás de emprego e consegui ser
contratada numa loja de roupas lá no shopping. Tenho 23 anos. Contem–me
sobre vocês.
– Eu tenho 22 anos e a Fran tem 24 – contou o Jean – trabalho num
supermercado aqui perto e ela é garçonete de um restaurante.
Naquele ano eu tinha completado 24 anos no dia 24 de março. Desde o começo
achei que aquilo significasse alguma coisa e pensei: “Nesse ano irá acontecer
algo especial”.
– Ah, então você a chama de Fran. Posso te chamar assim também?
Fiz que sim e baixei os olhos. Ela deveria estar me achando uma idiota.
– E vocês já conhecem o Peter. Mas não ache que pode ganhar dele, Fran,
porque ele é mais velho que você. Tem 25 anos. E adivinhem qual é a profissão
dele? Entregador de pizza! Isso é super demais!
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Acho que combinava com o jeito dele. Ah, não era possível! Será que eu estava
me apaixonando por ele? Eu me apaixono com muita facilidade, mas é sempre
de brincadeira. Mas depois de saber que ele era mais velho e entregador de
pizza... aquilo simplesmente fez o meu coração bater mais forte.
Era bom se apaixonar. Permiti que acontecesse. Depois ia passar.
– Ele mora com a namorada, a Jéssica. É uma menina muito querida. Tenho
certeza que vão gostar dela.
Pronto. Acabou. Ele já tinha namorada.
Visualizei a minha futura tragédia em questão de segundos: a Jéssica se tornaria
a minha melhor amiga, eu me apaixonaria pelo namorado dela e ele a trairia. Eu
nem conhecia essa tal de Jéssica, mas possivelmente ela seria a pessoa que me
mataria junto com o namorado depois que nos flagrasse.
– A Jéssica é um doce. Aliás, ela tem a sua idade, Fran. Acho que vocês vão se
dar bem. Ela é costureira, muito habilidosa.
“Diferente de mim, que não sei nem colocar linha numa agulha”.
– E sobre os outros vizinhos? – perguntou Jean – Esse Peter comentou algo...
– Ah, eu terei o maior prazer de contar com detalhes! Vocês escolheram a
pessoa certa para conversar. Como já vi que o papo será longo, vou trazer um
pouco de bolo.
Ela retornou para a cozinha imediatamente. Voltou com um saco de pão de
forma, bolo de milho, pratos, facas e manteiga.
– Querem queijo e presunto? Acho que tem mortadela na geladeira. Hoje vocês
estão com sorte. Estamos com muitas opções.
Quando ela retornou com a mortadela e o queijo, o Jean passou duas fatias para
mim ou eu não teria coragem de pegar. Por isso nessas horas era bom tê-lo por
perto. Claro que muitas vezes ele aproveitava essas ocasiões para zoar da minha
cara na frente das visitas, já que eu não teria como me defender.
– Nós do segundo andar temos a fama de sermos os jovens criadores de caso, e
agora mais jovens vieram para aumentar a nossa fama. Viva a juventude!
– E o que vocês fazem para ter essa fama? – perguntou Jean.
– Nada, para ser honesta. Apenas auxiliamos a espalhar as fofocas.
Aquilo por si só já me parecia bem perigoso. Será que eu e o Jean iríamos nos
reunir a eles para formar um quinteto fantástico de fofoqueiros? Talvez eu
adquirisse a fama de membro silencioso do grupo.
– Vou contar sobre o terceiro andar. Quanto mais sobe, mais empolgante fica.
– Então vocês são os menos empolgantes? – perguntou Jean.
– A nossa função é ser coletor de informações. Somos bons naquilo que
fazemos. A tarefa de ser empolgante fica para os outros andares.
Ao menos eu não precisaria me esforçar muito para ser empolgante. Bastava
saber escutar os boatos e passá-los adiante.
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– No 301 mora um casal com dois filhos gêmeos. Pelo que eu saiba, os gêmeos
não fazem nada da vida. De vez em quando arrumam uns bicos, mas nada fixo.
Eu também queria ficar sem fazer nada.
– No 303 mora um casal gringo que só vive viajando. No 304 mora um casal
com duas filhas adolescentes. Ainda não iniciaram as reformas do 302 depois do
incêndio. Mas estamos apenas no começo, pois agora contarei sobre o quarto
andar: o andar dos velhos loucos!
Dessa vez eu e o Jean nos entreolhamos. Será que tínhamos ouvido direito?
– Basicamente só há velhos naquele andar. No 401 mora um velhinho viúvo.
Deve ser depressivo. Raramente sai do apartamento desde que a mulher dele
morreu.
– Ela morreu de quê?
– Acho que foi câncer. Ou será que foi algo no coração? Não tenho certeza. No
402 mora o famoso casal de chatos. Eu alerto para tomarem muito cuidado com
esses dois. O seu Lauro é muito perigoso. Porte–se como um anjo perto dele. Se
há um barulhinho ou um pontinho fora da linha ele já faz o maior escândalo.
– Ninguém nunca reclamou dele com o síndico?
– Ele é o síndico. Mas por aqui ninguém leva muito a sério essa história de
síndico, a não ser ele. Eles têm um filho também, que é nosso amigo.
Será que era louco também?
– No 403 mora um casal de velhinhos. Eles são simpáticos e também vivem
trancados no apartamento.
– Nossos avós – falou Jean.
– Não me diga! – ela adorou a notícia – Esperem até eu contar isso para o
pessoal. Ah, mas vocês não sabem da maior. No 404 mora a velha louca! Ela é
completamente pirada e isso é super genial!
– Por que ela é louca?
Provavelmente a Tábata desejava que todos fossem loucos, incluindo meus
avós. Mas para a decepção dela, eles eram tão normais quanto eu e o Jean.
– Não precisa haver um motivo para a loucura. E o último andar é o mais
interessante. O 501 e o 502 estão vagos. Ouvi falar que os antigos moradores se
mudaram com medo das assombrações. No 503 mora uma bailarina. Aliás, uma
ex-bailarina. Há dois anos ela sofreu um acidente e ficou paraplégica. Agora ela
passa os dias chorando. Dizem que ela chora todas as madrugadas. Às vezes ela
grita demais e tem ataques. Há alguns meses o pai dela veio morar com ela. Ela
nunca mais saiu do apartamento desde que aconteceu.
Aquilo era um pouco triste. Será que ela iria contar mais histórias como essa?
Por mim eu só ouviria contos de fadas em que o príncipe se casava com a
princesa e acabavam todos sorrindo.
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– No 504 mora uma única pessoa. Ele só sai do apartamento tarde da noite para
trabalhar como segurança. Dizem que ele é satanista e faz uns rituais macabros
nas madrugadas dos fins de semana. Me disseram que já o viram com uma
garrafa com sangue e carne de boi. E de lá também costumam vir alguns sons
estranhos.
Confesso que senti um arrepio quando escutei aquilo. Eu era uma pessoa meio
religiosa, então... satanista?! Um deles no meu prédio? Era melhor a minha mãe
não saber disso ou provavelmente nos mudaríamos de lá no mesmo instante.
– Assustador, não é? – comentou Tábata, interpretando meu olhar – Eu
também tenho um pouco de medo, mas acho que a curiosidade é maior.
– Eu não tenho medo – Jean, metido como sempre, fez questão de deixar aquilo
claro imediatamente.
– Que ótimo! Então você será um excelente investigador. O que acha de
espionar o quinto andar hoje à meia-noite? Na segunda-feira você nos revela o
que descobriu.
O Jean ficou quieto.
“Quis se fingir de valentão, hã? Aposto que também está morrendo de medo do
satanista”.
– Bem, isso é tudo o que sei sobre os moradores daqui. Gostaram? Um relatório
completo. Acho que eu daria uma boa detetive.
Comemos mais um pouco e conversamos sobre outros assuntos. Mais tarde eu
e o Jean nos despedimos e voltamos para o nosso apartamento. Durante a noite
fiquei com as histórias sobre os moradores na cabeça. Por que aquilo me afetava
tanto?
Tomei uma decisão. Vesti o meu roupão de dormir por cima do pijama. Peguei
a escova de dente e o meu travesseiro.
– Já vai dormir na casa da vizinha? – perguntou minha mãe, surpresa.
– Vou dormir no vô e na vó.
– Ela quer escutar os fantasmas – falou Jean – ou os rituais do...
Eu olhei feio para ele. Era melhor que ele não mencionasse aquilo na frente da
minha mãe. O Jean entendeu e ficou quieto.
Resolvi subir pela escada com o travesseiro na mão. Não queria correr o risco
de encontrar alguém no elevador, já que eu estava de pijamas. Nós jantamos
assim que eu cheguei lá e fomos dormir muito cedo. Foi tão cedo que eu nem
estava com sono. Estava ansiosa para que chegasse a meia-noite.
Já era quase uma da manhã. Acabei dormindo. Acordei em algum momento no
meio da noite. Estava com vontade de ir ao banheiro. Assim que entrei no
banheiro, fiquei em silêncio. Ouvi um som que se parecia com um choro. Mas
era tão baixinho...
“Então a bailarina ainda chora...”
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Existe uma única ocasião em que consigo me soltar: no meu serviço. Está bem,
confesso que até hoje ainda fico um pouco tímida. Teve uma vez que um cliente
me chamou para reclamar de um prato de sopa gelado e eu fiquei tão triste que
corri de lá e depois chorei. Minhas colegas tiveram que me consolar e foi uma
vergonha.
– Está sonhando acordada? Sonhando com o príncipe encantado? Hora de
trabalhar!
Era a Natália. Mas ela não está realmente irritada comigo. Foi só um alerta,
entende?
– Poderia pegar aquela bandeja lá dentro para mim, Fran?
Essa é a Kelly. Muito querida. É até mais nova que eu. A Natália é mais velha e
é bem mandona, mas eu gosto dela.
A hora do almoço era sempre a mais movimentada. Só tínhamos tempo de
relaxar e almoçar às duas da tarde, quando o movimento começava a diminuir.
E foi exatamente na hora do meu intervalo que vi um rosto conhecido.
– Ei, Francisca!
Fui até lá. O Peter estava acompanhado de uma moça e de um rapaz.
– Perguntei para o seu irmão o endereço do restaurante. Pedi que viesse para cá
também.
O Peter estava tão animado quanto no sábado. Como eu gosto de pessoas
simpáticas! Fui apresentada à Jéssica e observei–a por um momento. O sorriso
dela era tranqüilo. Usava um vestido azul encantador. Será que ela mesma o
costurara? Como se parecia com uma índia! Se não fosse pela roupa, eu teria
dito que viera de uma tribo indígena. Se bem que eu nunca tinha visitado uma...
– Esse aqui é o Afonso. Ele também mora no nosso prédio.
Observei–o com curiosidade. Um rapaz de olhar vago, sorriso bobo, cabelos
espetados, meio gordinho. Senti certa simpatia por ele. Mas quem seria? Depois
do dia anterior, eu estava quase me tornando uma fã dos moradores do nosso
prédio.
– Moro no 402. Eu e o Peter já somos amigos há bastante tempo. É um prazer
conhecê-la.
– Sente-se, Francisca – insistiu Peter – vamos todos almoçar juntos. O que
acha?
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Finalmente tomei coragem e me sentei. Logo o Jean também apareceu por lá.
Ele avistou a nossa mesa e arrastou uma cadeira. Os dois se apresentaram de
novo.
– Você trabalha no quê, Afonso?
– Faço faculdade de gastronomia.
Genial! Primeiro eu conhecera um entregador de pizzas e agora um futuro
mestre–cuca. E ainda havia uma índia costureira e uma detetive em potencial.
Eles eram incríveis! Logo eles começaram a falar sobre passatempos.
– Eu gosto de costurar – falou Jéssica – é minha paixão. Eu faço de tudo: tricô,
crochê...
– Gosto de jogar futebol nos fins de semana – falou Jean.
– Eu sou muito bom para preparar lasanhas – falou Afonso – com alguns
ingredientes acho que consigo inventar uma boa comida.
– Ainda quero comer um prato seu – falou Jéssica – vamos reunir todos algum
dia para provar uma refeição preparada por um especialista.
– Também acho uma excelente idéia – concordou Peter – quanto a mim, gosto
bastante de usar o computador. Digamos que seja um vício meu.
“Eu não tenho computador” pensei, desapontada. E, mesmo que tivesse, nem
fazia idéia de como se mexia numa só tecla.
– O que você faz no computador? – perguntou Jean, curioso.
– ARGs, basicamente – contou Peter – eu e o Afonso somos viciados nessas
coisas.
Eu e o Jean nos entreolhamos. Desconfiei que ele também não fizesse idéia do
que se tratava.
– É parecido com um jogo, mas na verdade isso não é um jogo. Entende?
– ARGs são jogos de realidade alternativa – falou Afonso.
– Existe um cara chamado Mestre dos Fantoches ou Marionetista – explicou
Peter – ele bola um desafio. A Cortina o separa dos jogadores. Nem sempre ele
deixa as regras claras, pois elas devem ser descobertas ao longo do jogo. Há um
site inicial chamado “Toca do Coelho”. Lá existe o contato ou quebra-cabeça,
onde tudo se inicia: onde há as primeiras dicas para resolver o enigma.
– É diferente do RPG porque não há personagens – falou Afonso – Nós somos
os próprios personagens desse “jogo real”. Você pode usar meios de
comunicação como telefones e e-mails ou mesmo atividades do cotidiano para
interação.
A cada palavra que eles diziam, Jean e eu parecíamos cada vez mais perdidos.
– Não há uma fronteira muito definida entre o mundo real e o virtual – falou
Peter – Os publicitários podem promover uma marca de uma pasta de dentes e
lançar um desafio na net. Alguns desafios são famosos e milhares de pessoas no
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mundo todo se reúnem para tentar resolver. Enviam e-mails falsos, hackeiam o
site...
– Mas a maioria faz isso por diversão – explicou Afonso – como nós. Vamos
supor que alguém divulgue a notícia de um assassinato. Você precisa buscar
pistas espalhadas pela internet. Existem muitos sites de notícias falsas, com
cidades falsas e acontecimentos inventados. O pessoal costuma deixar claro que
tudo é uma mentira, por isso muitas das notícias estão datadas com o ano de
2080, por exemplo. Claro que sempre têm aqueles que querem criar confusões e
daí nascem lendas urbanas.
– Digamos que é outro universo com infinitas possibilidades. E existem diversas
equipes sérias que se dedicam à fabricação e resolução de problemas. Diversos
Marionetistas bolam novos desafios e, vez ou outra, algo grande aparece e
mobiliza todas as equipes a responder: nós, os palhaços, que não temos mais
nada para fazer. Mas, para nós, é claro que isso não é um jogo.
Peter e Afonso riram. Eu e o Jean estávamos boiando nas nuvens, sem
acompanhar uma palavra do raciocínio.
– Não liguem para eles – falou Jéssica.
– Não querem tentar? – sugeriu Peter – posso passar uns sites muito bons para
vocês. Incluindo informações exclusivas. Posso ensinar uns truques geniais.
– Meu computador está estragado, infelizmente – falou Jean – eu realmente
queria tentar, mas...
Depois de todas aquelas explicações difíceis, eu me convenci de que o Peter era
realmente inteligente. E até o Afonso, que achei que tinha cara de bobo, me
surpreendeu com aquela conversa.
– Tudo bem, não tem problema – falou Peter – vocês gostam de jogar RPG?
– Eu já tentei uma vez – falou Jean, orgulhoso – num jogo de Playstation.
– E você já tentou o sistema clássico de dados e fichas?
– Esse não.
– Eu costumava narrar algumas campanhas quando estava no segundo grau,
mas isso já é passado. Agora eu só quero saber de ARGs e LARPs.
– LARPs? – perguntou Jean.
“Como é chato ser uma ignorante” pensei. Mas antes de sentir inveja, eu sentia
admiração por aquelas pessoas que sabiam de tantas coisas. Talvez se andasse
com elas eu também pudesse me tornar sábia.
– Significa live action role-playing game – explicou Afonso – você interpreta os
personagens em carne e osso.
– Nada de ficar sentado lançando dados e escrevendo em fichas – falou Peter –
isso limita a imaginação. O que acham de tentarmos? Precisamos reunir várias
pessoas para termos uma tripulação suficiente.
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– Não venha tentar narrar o jogo. Você vai se comportar como um personagem
obediente. Nada de querer mandar dessa vez.
Eu achei muito legal toda aquela paixão com que eles falavam daquelas coisas
estranhas.
– Não me digam que também terei que participar de novo da brincadeira de
vocês? – perguntou Jéssica.
– Você pode nos emprestar algumas das roupas divertidas que você costura.
– Eu não costuro fantasia.
– Ah, olha mais tripulação lá! – Afonso apontou.
– Hein? Terra a vista, marujo? – perguntou Peter – Bombordo ou estibordo?
Nós olhamos para trás.
– Tábata! – falou Jéssica, surpresa – Mas será que ninguém trabalha hoje? É
segunda–feira, gente!
– Eu avisei no trabalho que me atrasaria – falou Tábata – pois estou
incrivelmente resfriada.
– Não parece – falou Peter – e você chegou atrasada e perdeu o almoço. Azar o
seu.
– Ora, eu fiz isso somente para vê–los e é assim que me recebem? Os meus
informantes me contaram sobre a localização de vocês.
– Os seus informantes devem ser realmente inteligentes – observou Peter.
– Pare de se gabar. Ah, Afonso! Você também está aqui hoje. Que ótimo! Como
anda a velha louca do 404?
– Continua louca – respondeu Afonso, simplesmente.
– Muitos barulhos assustadores no andar de cima de madrugada?
– Sinceramente, não ouvi nada ontem.
– Que pena – Tábata ficou um pouco desapontada – Será que o satanista foi
tirar umas férias na praia? Foi surfar com os demônios marinhos?
– De onde tirou isso?
– Da minha cabeça que emana criatividade – Tábata arrastou uma cadeira – E
então, pessoal? Qual será a nossa próxima aventura de investigação? Vejo que
todo o time está reunido hoje, inclusive os novos membros. Por onde querem
começar o trabalho de detetive? Alguém quer ficar de patrulha no quinto andar
outra vez?
– Eu tive uma idéia melhor – falou Peter – uma aventura de LARP.
Tábata fez cara feia.
– Vocês vão obrigar os novos moradores a fazer isso? Vão espantá-los com
essas loucuras, isso sim. Nós somos os investigadores e não os loucos, lembra?
– Que mal há em ser louco de vez em quando? – perguntou Peter.
– Topam participar, Jean e Francisca? – perguntou Afonso.
E, para a minha própria surpresa, eu respondi antes mesmo que o Jean:
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Juliana Duarte
O Teatro Improvisado
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Velevi
– Então, vamos começar. A tripulação está preparada? Que tal vestirem suas
fantasias? Vamos brincar de espadas.
Afonso tirou algumas espadas de madeira das caixas e jogou uma para cada.
– Quem ganha? Quem atingir o outro primeiro?
– Ganha quem for mais engraçado – falou Peter – Inventem um personagem.
Dou quinze segundos, para começarmos isso logo.
– Explique a ambientação – lembrou Afonso.
– Vocês estão num navio. Eu e o Afonso somos os piratas maus e queremos
raptar a princesa de vocês.
Jéssica levantou a mão para indicar que era a princesa, mas isso não seria nem
mesmo necessário. O vestido amarelado e rendado sugeria aquilo perfeitamente.
– Quero ser o capitão do navio – anunciou Jean.
– Então tá, capitão – Peter pegou alguns pedaços de tecido da mochila e jogou
para ele – enrole esse pano na cabeça, na cintura, no pescoço ou onde preferir.
Tanto Peter quanto Afonso vestiam roupas com listras vermelhas e brancas,
lenços, tapa-olhos e portavam espadas de madeira. Eles começaram a amarrar
algumas cordas em árvores enquanto escolhíamos as vestimentas. Jean escolheu
uma capa vermelha e dourada para ser o capitão, além de um chapéu preto com
abas longas.
– Essa coisa está coberta de pó – reclamou Jean.
Assim que terminamos, Peter e Afonso saltaram das árvores nos “cipós”, que
nem o Tarzan, com as facas de madeira nos dentes.
– Houlá tripulação! – falou Peter – Hora da morte chegar a vós! Há, he, hi!
– Esse navio é nosso – anunciou Afonso – Passa a princesa agora ou hei de
arrancar as tuas tripas.
– Nem pensem nisso, seus piratas malignos – Jean colocou–se adiante, com os
braços cruzados – Eu, Sir Górgorraz Frazón, o capitão desse navio, não
permitirei. Que a justiça prevaleça aqui e acima dos céus!
– Esse capitão é muito estranho, não acha, companheiro Tutu? – perguntou
Peter.
– Concordo plenamente, companheiro Feijão – falou Afonso – Devemos acabar
com esse convencido linguarudo?
– Ah, que nada. Eu o achei um cara bem divertido. Então vamos poupá-lo para
que possa viver mais um pouco.
– Poderíamos raptá-lo para ser o nosso bobo-da-corte. Que te parece?
– Oh, excelentíssimo! O Tutu sempre tem boas idéias. Por isso você é o Tutu
do meu Feijão.
– Mas que blasfêmia! – clamou Jean – Como se atrevem a divagar essas pilhérias
diante de minha imponência?
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– Passe a princesa de uma vez porque não temos o dia todo – falou Peter – Se
não fizer isso vamos desencaixar a sua cabeça do pescoço.
– Pois ousa! – clamou Jean – Eu te desafio!
– Huiá! – Peter colocou–se diante de Jean – Eis meu grito de guerra, Capitão
Gagarraz Fragoso.
– Cala–te, infiel! – falou Jean – Blasfemador filho da mãe!
– Puxa, que sujeito pouco polido – observou Peter – eu vou te ensinar
xingamentos mais elegantes: cara de alcaçuz! Abobrinha cozida! Feijão sem
arroz! Caramelo amarelo! Mico lilico! Lula lararilá! Cogumelo fungoso!
– Como é? – perguntou Jean, indignado – Que desrespeito. Isso é um insulto! E
por que os tripulantes do navio estão sentados e não ajudam o seu capitão?
– Há, há, há. Isso porque ninguém tem respeito por você, seu cara de panela de
aço inoxidável.
– Agora você pediu, verme insolente! – Jean deu um passo à frente e atacou–o
com a espada.
– Chega, seus burros – Tábata colocou-se entre eles – Já cansei de assistir à essa
batalha besta de vocês. Vamos colocar alguma ordem na casa.
– Que tal uma disputa de dança? – sugeriu Jéssica, com um sorriso meigo.
– Se é a princesa quem sugere, eu aceito – falou Peter – o que me diz, Capitão
Gorgoroso? Está bom assim para você?
Peter e Afonso se deram as mãos e começaram a dançar uma espécie de
tarantela, com rodopios e gestos exóticos. Eu achei aquilo bem estranho.
– Hei! – clamou Peter – Que acha disso, seu capitão? Ainda continua metido,
cara de forifá?
– Cara de quê? – perguntou Jean.
– Farifunfoso zunzungo e fungoso!
– Como ousa inventar esses termos tão vulgares? – perguntou Jean.
– Furumfumfum! – prosseguiu Peter, prosseguindo a tarantela – Lararilororó!
Jean segurou Peter pela gola da camisa com tanta força que fez com que o
chapéu de Peter caísse.
– Woa! – falou Peter, com um grande sorriso – Ele se irritou de verdade!
– Estou apenas interpretando o meu personagem – falou Jean.
– Você é um excelente ator. Mas acho que já é hora de dizer adeus, porque eu
irei raptar a princesa Filadélfia. Adiós!
Peter pegou Jéssica pelo braço e subiu num cipó... ou melhor, na corda
amarrada à árvore. Jéssica retirou da cintura uma espada de madeira e apontou
para o pescoço de Peter.
– Solte–me, seu pirata atrevido! – rosnou ela – Ou irá experimentar a minha ira!
– Mas que princesa valente! – exclamou Peter, fingindo estar impressionado –
Muito bem. Aceito o duelo.
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Velevi
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Juliana Duarte
A Encomenda
– E uma vez eu coloquei sal num café em vez de açúcar, acredita? – contou a
Kelly – Morri de vergonha depois!
Nós duas rimos. Mas enquanto eu e a Kelly comentávamos sobre coisas bobas,
as outras garçonetes cochichavam sobre os rapazes bonitos: os clientes do
restaurante. Eu ainda não me encontrava naquela fase para participar de tais
discussões. Pelo jeito a melhor amiga para mim seria realmente a Kelly.
Naquele final de dia, quando cheguei à entrada do prédio, estava tão distraída
que nem reparei quando quase tropecei no pé de um homem que passava.
– Olha por onde anda, menina – falou ele, aborrecido.
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Velevi
E saiu de lá. Ainda permaneci parada por um momento, imaginando quem seria.
Afinal, era como se meus vizinhos fossem grandes estrelas de alguma espécie de
reality show. Mas... e se aquele fosse o síndico? Seria muito azar.
Abri a porta do meu apartamento. Não havia ninguém em casa ainda. Na porta
de entrada, meu pé chutou uma caixinha de papelão. Resolvi abaixar-me para
ver o que era. Levei–a para dentro, fechei a porta e acendi a luz da sala.
Era uma pequena caixa marrom com fitas adesivas, mas não havia endereço.
Removi as fitas e abri a caixa. Dentro dela havia duas pequenas caixinhas
redondas vendadas por plásticos hermeticamente fechados. Resolvi abrir um
dos plásticos. Abri a tampa de uma das caixinhas brancas. Parecia um remédio.
Tinha alguém doente na minha casa? Tentei procurar alguma bula, mas não
encontrei.
Segurei uma das cápsulas nos dedos. Tinha uma consistência estranhamente
gelatinosa. Era esquisito. Na verdade, se parecia mais com uma lente de contato.
– Lentes de contato coloridas! – descobri, maravilhada.
Qual seria a cor? Castanho? Verde? Azul? E se fosse alguma cor exótica como
roxo e rosa? Seria lindo! Será que meu irmão tinha encomendado para os
encontros de LARPs? Afinal, ele mencionara que queria interpretar um mago,
então seria muito mais elegante um mago com lentes brancas ou vermelhas.
Havia um “L” em relevo na superfície do pote branco, então deduzi que fossem
lentes para o olho esquerdo.
– A-há! – falei comigo mesma – Viu como sou boa em inglês, Jean?
Mas onde estava a lente do olho direito? Nas duas caixas havia a letra “L” e
nenhum “R”. E de onde uma pessoa da minha família havia tirado dinheiro para
encomendar lentes de contato?
Talvez ficasse bonita em mim. Tirei um espelho da bolsa. Será que eu sabia
colocar uma lente? As primeiras tentativas foram frustradas. Não teria algum
desenho explicativo na embalagem? “Abra o olho com o dedo, enfie a lente” ou
algo assim. Encontrei um papel branco. Seriam as instruções? No topo dele
estava escrito uma única palavra: “Levi”.
Deveria ser a marca. Tomei coragem e tentei colocar a lente novamente.
Finalmente consegui. Espiei no espelho para descobrir qual era a cor, mas
minha vista esquerda estava um pouco embaçada. Comecei a sentir tontura.
Levantei–me imediatamente da cadeira e cambaleei. Caí sentada no chão. Minha
vista simplesmente apagou. Só fui acordar depois, com os chamados de uma
voz bastante familiar. Sentei-me e toquei o olho esquerdo para retirar a lente.
– Não me diga que você... experimentou?
Era o Jean que falava comigo. Eu estava completamente perplexa. Ainda sentia
a minha cabeça latejando. Uma sensação de ausência e vazio.
– Não podia usar? – perguntei, sem nem saber o que dizia – O que é? É seu?
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Juliana Duarte
O Coelho e a Cenoura
Um mês se passou. Eu sabia que ele usava a droga todos os dias, pois ele não
parecia normal ao conversar comigo. Sempre estava levemente zonzo, como se
estivesse bêbado, e outras vezes ficava empolgado demais.
– O Jean está meditando bastante ultimamente – observou meu pai um dia.
– Será que ele vai virar um zen budista? – perguntou minha mãe.
Não era possível que meus pais fossem tão cegos. Era evidente que, quando
soubessem da verdade, a reação seria outra. Um pouco mais... enérgica.
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Velevi
Bati na porta do quarto dele. Como não houve resposta, eu abri. Ele estava
deitado no chão. “Será que dormiu?” Abanei a mão.
– Que saco, Chica. O que você quer?
– Pare de usar drogas.
Ele riu.
– Isso é sério! O pai e a mãe já estão desconfiando que você está agindo
estranhamente. Se estiver oferecendo para a Jéssica...
– Nem precisei oferecer a ela. O Peter ofereceu por mim.
– Então você drogou o Peter, seu demônio! – gritei, horrorizada.
– Isso é um jogo. O Peter encomendou pela internet. É algo muito raro, caro e
difícil de obter. Café também é uma droga. Ou chocolate. Mas posso garantir
que o que tenho em mãos é ainda mais divertido.
– Vá se internar numa clínica e se tratar.
– Você só desmaiou porque não está acostumada. Coisas assim podem
acontecer da primeira vez, embora não tenha acontecido comigo. Essas lentes
simulam uma realidade virtual. É uma geringonça de alta tecnologia. Mais
especificamente diz respeito à área da medicina do que propriamente à
nanotecnologia, já que mexe com o cérebro humano.
– Você não vai me enganar falando esse monte de besteiras pseudo-intelectuais.
Eu não sou tão burra quanto você pensa, para cair nessa.
– Você não acredita na ciência, por acaso?
– Na ciência eu acredito. Mas não em você.
– Essa maravilha é a invenção mais genial do mundo. Na internet todos só
falam disso.
– E desde quando você tem acesso à internet?
– Na casa do Peter. Foi ele quem me contou sobre isso. Eu e ele dividimos o
valor e fizemos a encomenda. Ele deixou a minha parte do pacote aqui na porta
e você pegou sem minha permissão. Eu não te contei antes porque você me
irritou, mas eu encomendei duas porque uma é para você. Viu como sou
generoso?
Mais ou menos.
– Mas depois você vai me pagar. Já faz um tempo que saiu no mercado, mas
ainda é um mercado bem underground. Poucos sabem da existência das lentes. O
Peter encontrou uma loja virtual onde vendiam.
– E o que você faz com isso?
– Você cria. Prefiro não explicar em palavras. É melhor você sentir.
Era um momento decisivo. Talvez eu não pudesse mais voltar atrás depois do
estrago feito. Eu não queria simplesmente acabar com a minha vida e destruir
tudo em questão de segundos. Mas a responsabilidade seria dele. Ele quem
levaria as flores no meu enterro e pagaria o meu caixão.
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para usar isso e não ser louco ou paranóico. É definitivamente proibido para
esquizofrênicos.
Observei–o com desconfiança. Decidida, recoloquei a lente, depois de mais dez
minutos de tentativas. Abri meu olho esquerdo e, para o meu espanto, não vi
nada.
– Eu fiquei cega! – falei, chocada.
– Claro que não – o Jean só se divertia – feche os olhos, mas se mantenha
sentada e acordada. O que está vendo?
Foi nesse momento que senti uma sensação maravilhosa. Eu não sabia de onde
vinha, mas parecia que o meu corpo desaparecia pouco a pouco.
– Me deixa deitar, por favor. Prometo que não vou desmaiar.
Algumas coisas começaram a acontecer.
– Não sinto meu corpo... – falei a ele, impressionada.
– Nossa! Que rápido. Eu demorei a conseguir fazer isso pela primeira vez.
– Estou com medo.
Era estranho. Eu escutava tudo o que ele dizia e todos os barulhos daquela sala.
Eu ainda deveria estar deitada ali, mas não parecia.
– Concentre–se e imagine um coelho de pêlo branco e olhos vermelhos. Preste
atenção em cada parte dele: as patas, os bigodes, o focinho... não perca nenhum
detalhe.
Eu me concentrei ao máximo para imaginar o coelho e não pensei em nada
mais.
– Veja a cor, sinta o odor. Faça–o extremamente palpável e real. Ouça o som
que ele faz. Capte–o com todos os seus sentidos.
Eu obedecia, mas nada acontecia.
– Agora imagine uma cenoura em frente a ele. Laranja, com a folhagem verde–
viva. Sinta o cheiro dela. Dê a cenoura ao coelho.
“Você está indo rápido demais!”, pensei, irritada.
– Você estragou tudo. Eu teria conseguido se você não estivesse falando do
lado.
E, sem nem tirar a lente, saí de lá, entrei no meu quarto, fechei a porta e deitei
no chão. Assim que fechei os olhos senti aquela sensação agradável de novo.
Parece aquelas coisas de místico, sabe? Aqueles tais estados alterados de
consciência. Eu sempre achara tudo isso a maior lorota, embora tivesse um
pouco de medo dessas pessoas que se dizem médiuns, bruxos e todas essas
coisas ilógicas.
Decidi que não imaginaria o coelho e sim uma maçã. Se fosse para imaginar
algo, que fosse uma comida. E eu gostava mais de maçãs do que de cenouras.
Eu ia dar a maçã para mim. Não queria saber de coelho nenhum. Que tal um
prato de macarrão? Um bolo de chocolate? Um bife suculento e mal passado,
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pingando sangue? Mas era melhor começar com algo mais simples. Então optei
pela maçã.
Vermelha, lisinha, com aquele odor doce, refrescante e leve. O toque da casca, a
cor vermelha, o cheiro agradável, o sabor... Onde estava a maçã? Permaneci
mais de meia hora tentando me concentrar, mas me cansei.
– Ué? – falei comigo mesma – Já terminou o efeito?
Desapontada, levantei–me e bati na porta do quarto do meu irmão. Ele
provavelmente estaria deitado, então resolvi entrar e o chamei.
– Uau – foi a primeira coisa que ele disse – isso é bom demais.
– Tentei ver uma maçã, mas ainda não consegui.
– Provavelmente ainda vai levar alguns dias até que consiga. Portanto, tenha
paciência. Mas você precisa treinar diariamente e se dedicar muito.
– Como vou saber quando conseguir? É parecido com o que acontece quando
eu penso?
– Não. Apesar de você conseguir imaginar um coelho na sua mente, debaixo das
suas pálpebras você continua apenas vendo uma tela negra. Com a lente você
consegue fazer a imagem do coelho aparecer com clareza nessa tela, como se
olhasse um livro ilustrado. Mais tarde você pode ir mais longe: fazer o coelho
possuir três dimensões, por exemplo. Mas é necessário muito treino até chegar
nesse nível.
– Incrível! Quantas coisas posso ver com esse método?
– O seu sucesso depende de várias coisas: o grau de dedicação e esforço, sua
capacidade de concentração, pensamento rápido, memória, habilidade de tornar
os seus cinco sentidos mentalmente reais...
– Não acho que eu seja tão boa assim – confessei – mas posso tentar. Até onde
você já conseguiu ir? O que consegue fazer com essa coisa?
– Sugiro que você mesma descubra o que é possível ser feito. Vou te dar uma
semana para treinar. Depois desse tempo poderemos compartilhar experiências.
– Ah, é assim? Daqui a uma semana estarei melhor que você.
Nos dias que se seguiram eu me concentrei ao máximo para adquirir alguma
habilidade com a lente, mas não era nada simples. Aquilo se tornou um ritual
diário: eu chegava do trabalho e colocava a lente. Ficava com ela até cair no
sono.
– Agora os dois só querem saber de meditação – comentou minha mãe um dia.
– Deixe que se divirtam – falou meu pai – Daqui a alguns meses eles vão
inventar outra coisa e esquecer. Deve ser a nova moda.
O meu objetivo principal era provar para o meu irmão que eu era habilidosa e
“intelectual” o suficiente para mexer com aquilo. Pensei em todas as comidas
que havia na geladeira e tudo o que aconteceu foi apenas eu ficar com fome.
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– Achei que você também fosse mostrar alguma habilidade, mas parece que me
enganei. Afinal, você conseguiu mergulhar logo no primeiro dia.
– Mergulhar?
– Deixar o corpo para trás. Você sentiu aquela sensação de abandono do corpo
muito rápido. Até me assustei. É como um mergulhador que explora as
profundezas do abismo. Primeiro você precisa mergulhar. O próximo passo é
ser capaz de acender uma luz que te revele todas as formas do imenso oceano.
Tudo já está aí na sua mente: todas as formas possíveis de serem criadas. Você
só precisa acender a luz para enxergá–las.
– E você já “acendeu a luz”?
– Já. A imagem ainda está instável e logo se apaga, mas... é impressionante da
primeira vez.
Depois daquelas palavras, decidi voltar para o meu quarto e me dedicar o
máximo possível. Aquele processo exigia sacrifícios. Logo a minha mãe nos
chamou para o almoço. Tanto eu como o Jean nos atrasamos.
– Meia hora de atraso – falou minha mãe – a comida já esfriou. Da próxima vez,
jogo o almoço de vocês no lixo! Esse vício está muito irritante, sabia?
Eu e o Jean apenas almoçamos quietos. Assim que terminamos, voltamos para
os nossos quartos. Por volta de cinco horas da tarde senti uma fisgada no meu
olho. Fui obrigada a me levantar. Decidi que era melhor retirar a lente. Ao olhar
no espelho, me assustei: percebi que meu olho estava vermelho.
“Isso machuca”, pensei, desesperada. “Isso faz mal”.
Bati na porta do quarto do Jean. Tive que interrompê-lo.
– O que você quer? Logo agora que eu quase consegui acender a luz por cinco
min... o que aconteceu com seu olho?
– Já estou com a lente há mais de oito horas – falei – não diz nada no manual
sobre algum mal que possa fazer se usar a lente por muito tempo?
– Teve uma vez que usei por dois dias seguidos. Às vezes até esqueço de tirar
para dormir e nunca me fez mal. Por que as partes ruins só acontecem com
você?
– O que quer dizer? Que eu sou o demônio?
– Que você é azarada demais. Desmaiou duas vezes e agora mais essa. Talvez
você não tenha sido feita para as lentes. Tem certeza de que quer continuar?
– Não quero ser deixada de fora! E se eu for ao oftalmologista?
– Nem pensar. Eles iriam confiscar as nossas lentes.
– Não vou poder usar de novo até meu olho melhorar – fiquei desapontada –
Dá para mergulhar sem lente?
– Dá. Já ouvi falar de gente que consegue. Mas nunca ouvi sobre alguém que
formasse as imagens sem ela. Aproveite esse tempo para treinar os seus
mergulhos. Se não pode usar a sua lente hoje, ao menos deixe que eu use a
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minha! Ou esse é um plano seu para me atrapalhar, para que você não fique
mais para trás do que já está?
– Claro que não – retruquei, incomodada – seu grosso. Para a sua informação já
são sete da noite. Que tal fazer um intervalo? Não quer fazer um lanche?
– Mais tarde. Agora feche a porta.
Resolvi ir até a cozinha comer alguma coisa. Peguei pão de sanduíche na
geladeira e passei manteiga. Enquanto isso, meu pai e minha mãe assistiam a um
filme na sala. Mas eu não poderia assistir. Precisava descansar a minha vista.
Aquela parecia ser a nova diversão do meu estranho grupo de amigos, sendo
que mal éramos amigos ainda. Mas se o preço para ganhar a amizade deles fosse
ser habilidosa com aquela lente, eu aceitava o desafio. Eu não precisaria falar
para conseguir isso. Bastava treinar. A minha timidez não ia atrapalhar agora.
Antes de descobrir as lentes, jamais se passaria pela minha cabeça que deitar
pudesse ser tão cansativo. Lembro que algumas vezes desejei apenas poder
permanecer deitada para sempre.
Depois que terminei o lanche, voltei a deitar no chão do meu quarto. Se eu
deitasse na cama, dormiria.
E se... eu tentasse colocar a lente no olho direito? Provavelmente não faria mal.
Até ali eu só vira lentes para o olho esquerdo, mas deveria ser apenas uma
convenção. Decidi testar.
Senti as mesmas tonturas da primeira vez. Não era possível! Mas agora eu já
tinha mais habilidade para lidar com elas. Estava bem mais fácil me concentrar
depois do meu tempo de descanso. Eu iria me lembrar disso no futuro e fazer
mais intervalos.
Eu não conseguia formar imagens. Todas as minhas tentativas foram em vão.
Na hora da janta, contei para o meu irmão o que eu tinha feito. Ele ficou
chocado.
– Você usou... no olho direito?
– Algum problema? – perguntei, estranhando – Funcionou muito bem.
– Você não pode. Não faça mais isso. Lentes de olho direito são proibidas. Nem
pense em testar isso de novo ou você vai se dar mal.
– Do que estão falando? – perguntou meu pai.
Nós nos calamos.
Antes de fechar a porta do quarto, meu irmão me falou alguma coisa.
– Eles ainda estão em fase de testes, idiota. A venda de lentes é proibida. A
gente encomendou num site não oficial. Eles deixam bem claro que a
experimentação e uso estão por nossa inteira conta e risco e proíbem o uso no
olho direito.
– O que tem o olho direito de especial?
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– Você viu o que aconteceu no seu olho. E se eles autorizassem o uso das duas
lentes e algum palhaço ficasse cego dos dois olhos? Os caras iam se ralar muito.
Então largue de ser idiota e contente–se em perder apenas o seu olho esquerdo.
Que sirva de advertência.
E ele fechou a porta. Fiquei um pouco nervosa. Será que eu realmente não fora
feita para usar aquilo? Era melhor parar agora enquanto ainda era tempo. Mas
eu não podia. Por que meu corpo era tão fraco assim? Em vez de acender a luz
eu ia acabar apagando. Não veria mais imagens com lente ou sem lente.
Resolvi apenas deitar na cama e descansar. Mesmo depois de ter passado o dia
inteiro deitada, eu estava com um extremo desgaste físico e mental. Observei
meu olho num espelho. Resolvi que seria melhor só tentar usar a lente de novo
no dia seguinte.
– Fran, posso entrar?
“Que boa educação”, pensei, admirada.
– Eu falei com o Peter sobre o seu problema. Ele disse que já leu casos como
esse. Nunca se ouviu sobre algo grave que tenha acontecido. No máximo essa
vermelhidão, irritação ou qualquer problema que talvez ocorra devido ao uso
excessivo de lentes comuns. Mas, ainda assim, os caras do site sempre alertam
que não se conhece todos os efeitos e recomendam não usar a lente 24 horas
por dia.
– Eu não uso 24 horas por dia! – protestei.
– Nem eu. Acho que isso seria meio que uma loucura. Mas esqueça. Apenas
avisei para que não se preocupasse.
– Como o Peter está no treinamento?
– Ele já consegue acender a luz com facilidade. As imagens dele sempre são
bem nítidas e ele consegue mantê–las por muito tempo. E a Jéssica já começou
a formar imagens há alguns dias. O Afonso disse que descobriu algo fantástico,
mas só vai contar para nós quando nossas imagens estiverem firmes e fortes e
conseguirmos fazê–las aparecer e desaparecer à vontade.
Agora eu tinha mais um motivo para me esforçar. Quando acordei no domingo,
percebi que meu olho já estava bom. Satisfeita, coloquei a lente e a usei quase o
domingo inteiro. Mas, para a minha decepção, nada de imagem.
Passou–se segunda e terça, mas a imagem não chegava. Foi só na quarta-feira à
noite que alguma coisa aconteceu. Eu insisti em pensar na maçã até o fim.
Finalmente alguma coisa piscou na tela negra da minha mente e senti meu
coração acelerar. Será que... era a maçã que estava tentando chegar?
Eu me concentrei ao máximo. Estava nervosa e emocionada ao mesmo tempo.
E, pouco a pouco, a luzinha vermelha foi piscando e uma imagem fora de foco
foi surgindo devagar até que eu pude distinguir perfeitamente a maçã vermelha
diante de meus olhos. Foram os segundos mais emocionantes da minha vida
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– A Jéssica já me fez colocar uma, mas não vi nada demais. Não tenho a mesma
dedicação de vocês para passar horas a fio tentando me concentrar. Sou muito
preguiçosa. Gosto de resultados imediatos.
Eu sabia exatamente o que ela queria dizer. Se não fosse o desejo de competir
com o Jean, eu provavelmente já teria desistido das lentes há muito tempo.
Nunca fui disciplinada para fazer nada. Então se até eu tinha conseguido, é claro
que a Tábata também conseguiria. Mas não tive coragem de dizer nenhuma
dessas coisas a ela.
Logo o Jean sentiu confiança para conversar com o Afonso. Isso aconteceu
mais ou menos na mesma época que a própria Jéssica decidiu fazer isso. Agora
era o Jean que ia muitas vezes ao 402 nos últimos dias. O que será que o Afonso
tinha para revelar? Era tão longo que necessitava de várias visitas?
Não demorou muito até que eu fosse capaz de focar a maçã com clareza. Tentei
imaginar outros objetos como cenouras, abacaxis e cerejas. Resolvi formar o
bendito coelho e lá estava ele na minha frente. Experimentei formá–lo com
diferentes cores. Como era divertido! Criei todas as frutas e comidas que
lembrei. Pensei em vários animais. Folhei um livro velho de biologia para me
inspirar. Experimentei colocar animais perto de suas comidas preferidas.
Resolvi que estava no meu momento de visitar o Afonso. Quando me senti
confiante o bastante, subi sozinha até lá.
Conexão
Acompanhei o Afonso até o quarto dele. Levei a caneca e o prato com o bolo
de morango para lá. Sentamos em almofadas no chão. No quarto havia um
computador, muitos livros, vídeo-games e alguns itens de colecionador. Que
divertido! Eu nunca tinha ido para um quarto assim antes.
Percebi que havia uma prateleira apenas dedicada a livros de gastronomia. O
bolo estava simplesmente divino. Teria sido preparado por ele?
– Gostou do bolo?
Eu concordei com a cabeça.
– Eu que fiz – sorriu ele.
Pena que não tive coragem de elogiá-lo antes.
– Consegue focar as imagens com exatidão? Já consegue imaginar duas juntas?
Confirmei.
– Pode sentir cheiros ou fazer com que elas se movimentem?
Eu quase deixei a caneca cair. Aquilo era mesmo possível?
– Será o seu próximo passo. Mesmo assim, vou te contar. As lentes, além de
formar imagens, podem ser usadas para observar as imagens dos outros. Você
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treinou tanto que é capaz de criar uma maçã perfeita. Duvido que eu mesmo
fosse capaz de fazer melhor. Você disse ao Jean que imaginou um camelo, mas
o camelo tem duas corcovas e não uma só. O que você imaginou ontem de
madrugada foi um dromedário.
Eu quase engasguei dessa vez. Ele... era capaz de ver as minhas imagens! Mas
como? Quando? Por quê...? Ele ficou satisfeito com a minha surpresa.
– Eu já ensinei para os outros como se faz. O Peter está particularmente bom.
Ele já consegue ver a uma distância de uns cinco metros da pessoa. A Jéssica e o
Jean ainda precisam se colocar a um metro para conseguir captar. Quanto mais
passa o tempo, mais longe se é capaz de enxergar. Mas não se preocupe. Acho
que por enquanto fui o único capaz de ver suas imagens.
– Vocês... conseguem ler pensamentos...? – perguntei, impressionada.
O Afonso riu. Senti meu rosto corar.
– Não é para tanto! Duvido que eu consiga fazer isso um dia. Você apenas
consegue enxergar as imagens que alguém forma com o auxílio da lente. Por
mais habilidoso que alguém seja, não poderia captar nada de alguém que nunca
usou uma lente na vida. Só é possível ver as imagens que você permite que os
outros enxerguem. Quer tentar? Ficarei sentado a um metro de você. Diga–me
o que vê.
Fechei os olhos. Mergulhei e me concentrei.
Mas eu não sabia como fazer. Ficamos quinze minutos ali sentados e nada.
– A capacidade de criar imagens é chamada mentalização. Mas dessa vez você
deve mergulhar na tela da outra pessoa. Essa é a visualização.
Tentamos de novo. Eu mesma me surpreendi quando vi minha mente
mergulhar em algum lugar que não era dentro de mim. Eu seguia outra direção.
Minha mente sabia exatamente para onde ir. Vi uma tela negra que não era
minha. E havia algo lá:
Era um vaso com uma única margarida. Eu nunca tinha formado uma imagem
tão perfeita e tão realista na minha tela. Tinha tantos detalhes...!
A margarida se mexeu. Era como se soprasse alguma espécie de vento
imaginário. As folhas se dobravam, assim como as pétalas.
– Uma margarida linda! – exclamei, de repente – Ela se mexia com o vento!
Como se faz para mover as folhas?
– Já vou lhe mostrar.
Afonso levantou-se e saiu do quarto. Retornou com um pote de barro em que
havia uma grande margarida. Era a margarida real! Ela existia. Ele colocou-a no
parapeito da janela, onde soprava uma brisa.
– Eu não fico o dia todo testando as lentes. Também observo os objetos do
lado de fora. Eu observei essa única margarida muitas horas por dia nas últimas
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computador. Em troca, formei duas maçãs. Ele ainda não era capaz de criar dois
objetos juntos. Orgulhosa, dessa vez mentalizei um tomate e uma cenoura. O
problema foi que a cenoura saiu vermelha e o tomate saiu laranja. Ele riu da
minha cara.
– É isso que dá querer se mostrar.
Mas até que aquela guerra estava divertida. Dessa forma conseguíamos evoluir
juntos. Aos poucos eu começava a escutar alguns sons das mentalizações dele.
– Eu não sabia que você já era capaz de reproduzir sons na sua tela.
– Já faz tempo – falou ele – você que não ouvia.
– Consegue mexer as imagens também? Quero tentar fazer isso.
Mas não era nem um pouco fácil. Eu precisava observar um objeto por muito
tempo do lado de fora até que fosse capaz de reproduzir os movimentos com
exatidão.
Eu e o Jean fomos convidados naquele sábado para a casa do Peter e da Jéssica.
Como prometido, Peter e Afonso tinham algo a nos mostrar. Era a primeira vez
que nós cinco nos reuníamos desde que tudo começara.
Peter e Afonso sentaram–se um diante do outro. Eu estava tão orgulhosa dos
meus próprios avanços que nem tinha notado que aqueles dois estavam muito a
frente.
– Devemos observar a tela de quem? – perguntou Jean.
– Tanto faz – falou Peter – Apenas mantenham o foco nessa direção.
O que eu vi teria feito o meu queixo cair se eu ainda soubesse onde meu queixo
estava. Havia uma cesta de palha com um cobertor. Dentro dela havia um gato
preto e um cachorro branco. Eles se mexeram.
O gato preto ronronou e abriu seus olhos amarelos. O cachorro branco tinha
olhos vermelhos. Ele latiu muito forte. O gatinho saiu da cesta e caminhou por
aquele espaço negro e vazio. O cachorro puxou a coberta com os dentes. O
gato se espreguiçou. O cachorro correu, abanando o rabo. O gato deu um
miado manhoso. Então os dois voltaram para a cesta e dormiram.
Eu abri os olhos. A Jéssica e o Jean estavam tão impressionados quanto eu.
– Gostaram? – Peter sorriu.
– Qual dos dois fez isso? – perguntou Jean, completamente pasmo.
– Nós dois – falou Afonso – era isso que queríamos mostrar: a conexão das
lentes. Se você está diante de uma pessoa, não apenas consegue assistir o que o
outro imagina, mas também pode interferir com novos elementos. Eu criei o
cachorro.
– E eu o gato – falou Peter – o que vocês assistiram foi a junção das nossas
telas. Vocês escolheram aleatoriamente uma delas para olhar. Provavelmente a
minha criação e a dele estavam muito semelhantes, então não fez tanta
diferença. Querem tentar?
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modo máximo. A partir daí você possui livre manipulação das egrégoras.
Existem muitos termos que se usa na internet para as levis.
– Levis? – perguntou Jéssica.
– Não me diga que nem isso você sabe? – perguntou Peter, surpreso – Mas
como? Eu nunca te falei? Levi significa lente virgem. Está escrito na embalagem.
É para diferenciar das leals, que seriam as lentes alternativas.
– Qual a diferença?
– Não há nada nas virgens. Só uma tela negra. Por outro lado, um feiticeiro das
lentes poderia produzir uma leal, que seria um mundo. Se você possui o poder
de livre manipulação, é possível embutir um mundo na lente e qualquer pessoa,
mesmo que não possua muita habilidade, poderia utilizá-la para mergulhar.
– Que confortável! – falou Jéssica – Enquanto nós estamos aqui morrendo para
criar nas lentes virgens, existem lentes em que já vem tudo prontinho e você não
precisa fazer nenhum esforço?
– Isso mesmo – confirmou Peter – mas não sei se leals existem. Isso porque
apenas um feiticeiro possuiria habilidade suficiente para criar uma delas. Ou
seja, um cara, como nós, que vem se esforçando muito e descobriu todos os
segredos das levis.
– Dizem que isso dá a maior grana – comentou Afonso – afinal, estão todos
atrás dessas leals.
– O pessoal na net se divide. Os aventureiros e exploradores em busca de
diversão estão interessados apenas nas levis, pois desejam adquirir o poder de
criar mundos. Os ricos preguiçosos querem leals, pois não requer esforço
algum, apenas dinheiro. Seria como uma sauna: se você está enfrentando
problemas, você escapa para um mundo maravilhoso e cor–de–rosa para ficar
por lá deitado numa rede.
– Vocês não perceberam que isso tudo é lorota? – perguntou Jean – E das
grandes. É simplesmente impossível. Vocês levaram meses para criar um gato
numa cesta e acham que vão conseguir criar um mundo inteiro com essa coisa?
E não me venha com essa história de penetrar na tela da mente que eu não
acredito.
– Está bem, São Tomé – falou Peter – então explore você mesmo as
possibilidades da sua lente e descubra até onde é capaz de chegar. Só
descobrimos sobre visualizações e conexões porque achamos essas dicas em
sites. Se não fosse pelos “boatos mentirosos”, Jean, você provavelmente ainda
estaria na segunda ou terceira etapa dos testes. Você não precisa fazer tudo
sozinho.
Dessa vez Jean ficou quieto.
– O que acham de criar uma paisagem para seus personagens? – sugeriu Peter.
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– Ninguém teria coordenação para isso – falou Jean – a não ser que seja uma
paisagem completamente estática, como uma foto. E ainda assim...
– Você só será capaz de ir adiante depois do glamour. Se ele nunca acontecer,
você sempre possuirá limitações. É como um vestibular ou um exame de
admissão para um emprego. Você só pode ir para a próxima etapa depois que
passar dessa.
No fundo eu queria descobrir antes de todos como penetrar na minha tela da
mente. Mas por que seria logo eu a primeira? Afinal, eu sempre fora a última em
todas as coisas. Mesmo entre nós cinco eu era a mais fraca. Então, como eu
poderia?
O Balde d’água
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– Porque assim foi mais divertido – Genaro sorriu – Se você não perdesse no
final, seria chato.
– Eu era o patinho de borracha – acrescentou Bianca, baixinho.
– Oh, então a vitória é das meninas! – observou Peter – Já que elas não vão
comemorar, vamos comemorar por elas!
Mas antes que fizessem isso, uma tromba d’água derramou–se em cima do Peter
e do Afonso.
– Ué, está chovendo? – Peter olhou para o céu – Estranho, nessa época.
– Fiquem quietos, seus marmanjos barulhentos! – um senhor gritou lá de cima,
com um balde vazio na mão – Não têm vergonha, não?
E fechou a janela. Quarto andar. Sem dúvida o síndico: o mesmo senhor em
quem eu quase tinha tropeçado há tanto tempo. Ao que parecia, um senhor bem
decidido: não pensava duas vezes antes de derramar um balde d’água sobre a
cabeça do próprio filho ou de quem quer que fosse.
– É bom um banho de vez em quando para refrescar no calor do inverno –
comentou Afonso, despreocupadamente.
Pelo jeito eles tinham adorado aquilo. Desconfiei até que o Peter tivesse feito de
propósito e ficado bem embaixo da janela daquele senhor só para provocar.
No final, aquela disputa estranha não tinha levado a nada. Disputa dos meninos
contra as meninas? Ninguém sabia quem era quem e deu tudo na mesma.
Aos poucos as coisas voltavam ao normal. Lá estava eu no trabalho,
conversando com a Kelly.
– Eu prefiro copos de vidro porque são mais bonitos – comentou ela.
Eu fiz que sim, como se ela tivesse toda a razão. Mas no momento em que
baixei a cabeça senti uma tontura. Precisei me apoiar no balcão para não cair.
– Fran? – perguntou ela, com urgência – O que você tem? Está enjoada?
– Acho que preciso ir ao banheiro.
Corri até lá. O meu olho estava vermelho de novo. Eu estava usando a lente na
noite anterior e acabei dormindo com ela! Como eu não tinha percebido? A
minha visão desaparecia no momento em que eu a colocava. Por que agora eu
era capaz de enxergar as coisas normalmente, mesmo estando de lente?
Naquele dia resolvi fazer hora extra. Como meu olho ainda estava machucado,
eu não poderia chegar cedo em casa para treinar. Aproveitei para lavar alguns
pratos até tarde da noite. Cheguei ao meu prédio morta de cansaço. Estava tão
distraída que nem vi que havia uma pessoa saindo do elevador no mesmo
instante em que eu ia entrar...
Levei um susto tão grande ao percebê-lo que dei um salto para trás. Quase dei
um encontrão nele sem querer. E se fosse o síndico? Era melhor eu ficar
esperta.
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– Tudo bem, esqueçam – falou Jean – divirtam–se por nós. Em troca, nos
contem tudo com detalhes quando estiverem de volta.
– Até agora só vi quinze inscritos no campeonato de amadores – falou Peter – e
são pessoas do país inteiro, imagine! Eu diria que os presentes podem chegar a
algumas centenas de curiosos. A maioria vai lá só para assistir aos veteranos.
Você precisa estar muito confiante para fazer uma inscrição como essa.
– Eu me pergunto se os veteranos são veteranos mesmo – falou Jean – Devem
ser apenas amadores convencidos.
– Comentaram sobre alguns candidatos fortes. Dizem que um deles é um
feiticeiro.
– Um feiticeiro em São Paulo? – perguntou Jéssica, impressionada – Acho que
vale a pena ir lá somente para ver esse cara.
– Que piada. Feiticeiros... – pronunciou Jean, com desdém.
Tivemos que aguardar uma semana até que o pessoal retornasse. A primeira
coisa que fizeram ao chegar de viagem foi tocar a nossa campainha.
– Arrastem todos para fora, vamos! – falou Peter.
Jéssica e Afonso fizeram isso literalmente. Todos entramos no 201. Um falava
em cima do outro e não conseguíamos entender nada.
– Feiticeiros existem! – foi a primeira coisa que o Peter anunciou.
Afonso e Peter não paravam de falar. Estavam simplesmente fora de si.
– Vocês não vão acreditar se eu contar! – falou Peter, atropelando–se nas
próprias palavras – Vocês precisavam ter presenciado. Foi simplesmente surreal!
O cara é um monstro!
– O que ele mostrou? – perguntou Jean.
– Paisagens, por exemplo.
– Realistas? Cor, som, movimento?
– Sim, isso tudo!
Eu tinha perdido um grande espetáculo. Era chato ser pobre.
– Ele é do Rio – falou Peter – mas a maioria dos competidores era de São
Paulo. No último dia aquilo estava lotado! Todos queriam assistir à competição
dos veteranos.
– Mas no final havia apenas um veterano – falou Jean – acertei?
– Bem, ele era o único ali que conseguia penetrar na tela da mente. Mas tinha
outros caras muito bons por lá.
– Como vocês se saíram na competição?
– Eu fui bem, considerando o número de inscritos. Mais gente se inscreveu na
hora – falou Peter – fiquei em oitavo.
– Nono – falou Jéssica.
– E você não vai acreditar em que posição o maldito do Afonso ficou – falou
Peter, sorrindo – o cara ficou em terceiro! Eu tive vontade de matá–lo! Como
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você pode ser tão bom? Tinha uns caras muito feras por lá e você
simplesmente...
– Mas foi terceiro lugar dos amadores – falou Afonso.
– Não importa. Terceiro lugar é terceiro lugar. Mas infelizmente o sucesso dos
veteranos acabou deixando a glória dos amadores em segundo plano. O
feiticeiro que ficou em primeiro virou uma estrela! Todos queriam conversar
com ele.
– Aposto que vocês também – falou Jean – conseguiram conversar ou a
“agenda” dele estava cheia demais para receber vocês?
Percebi algum traço de desprezo na voz do Jean. Com certeza aquilo era inveja.
Eu o conhecia bem. Só porque ele não conseguia penetrar na tela da mente e o
outro cara conseguiu, ele estava emburrado. Típico.
– Nós conversamos um pouco com ele – falou Afonso.
– O nome dele é Félix – falou Peter – todos queriam saber as técnicas que ele
usava ou como tinha chegado tão longe, mas ele disse que apenas treinava como
qualquer outro. Como se acreditássemos nisso.
– Ele só quer se mostrar – falou Jean – dizendo que treinou pouco e que chegou
tão longe por possuir uma habilidade natural.
– Será? – perguntou Peter – eu não o achei tão convencido assim. Você achou,
Afonso?
– Até que não, considerando as circunstâncias. Ele é legal.
– Ele nos contou umas coisas muito interessantes. Não sei se vocês estão
lembrados, mas as levis não começaram no Brasil. No começo as encomendas
só eram feitas no exterior. Ele disse que não é o único “feiticeiro” que existe.
– Há outros países em que o uso das lentes já é muito forte e está bastante
difundido – explicou Afonso – teve um evento na Califórnia que reuniu alguns
milhares de pessoas. Mas o povo não quer saber de duelos e sim de leals.
– Eu achava que essas coisas fossem lendas urbanas – falou Jean.
– Definitivamente não é – falou Afonso – o próprio Félix nos mostrou uma leal
que ele produziu, mas ele disse que por enquanto está na fase de testes e ainda
não está à venda. Essas lentes são caríssimas. Você precisa ser rico para comprar
uma.
O Peter começou a pesquisar em alguns sites.
– Eu não sabia que as levis estavam tão populares na Ásia – comentou Peter –
China, Japão, Coréia, Índia... aqui diz que tem uns indianos muito bons.
– Não é na Índia que eles fazem aquelas meditações? – perguntou Jéssica – Para
eles deve ser muito fácil usar levis.
– Os indianos são perigosos, então – Peter sorriu – vamos ver quem mais...
russos! Talvez faça sentido. Deve ser tão frio na Rússia que eles preferem ficar
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faz tempo. Os fãs dela fazem questão que o mundial seja lá e não querem
colocar o pé atrás.
– Teimosos – falou Jéssica – O povo que tem grana é que tem que viajar e não
tomar a posse do campeonato. Na minha opinião, os riquinhos do primeiro
mundo deveriam pegar os seus jatinhos particulares e irem até a África.
– Se querem saber, a África é exatamente um dos favoritos – falou Afonso – a
maioria está torcendo para que seja na África do Sul. Afinal, foi lá que tudo
começou. O povo deseja investigar mais sobre os fabricantes.
Eu estava emocionada com tudo aquilo. Ao mesmo tempo, estava um pouco
desapontada. Eu não tinha nem condições de viajar para São Paulo e muito
menos para outro país. Logo os dias foram voltando ao normal. Fui voltando à
vida real, ocupando-me do meu trabalho, dos meus afazeres...
Para ser sincera, eu até já tinha esquecido tudo por um momento. Por isso fiquei
completamente em choque quando um dia o Peter literalmente invadiu a nossa
casa, entrando pela porta, dando pulos e gritos:
– Aaaaaaahhhh!!
Foi o que ele disse. Ele pulou no pescoço do Jean e derrubou–o no chão.
– Mas o que foi isso, seu bizarro? – perguntou Jean, indignado – Você entra na
casa dos outros assim, sem nem...
– É Brasil!!!
– Hein? – perguntou Jean.
“Foi gol?”, pensei, confusa.
– Acorda, acorda, que o dia é belo! – bradou Peter – O campeonato mundial vai
ser no Brasil! Escutou? Preciso traduzir? Yes, sir, my sir!
Eu simplesmente não podia acreditar. Só podia ser piada.
– É sério! – insistiu ele, ao ver a nossa expressão de choque – Juro que é sério!
OK, Sir São Tomé. Eu já sabia que você ia fazer essa cara, então aqui está um
presente especialmente para você.
Peter amassou uma folha na cara do Jean. Completamente aturdido, o Jean
segurou a folha. Havia alguma coisa impressa nela.
– Se você não consegue nem ler, eu faço isso por você – falou Peter – aqui está
escrito: campeonato mundial de levis. País: Brasil. Cidade: tcham, tcham, tcham,
tcham! Brasília! A nossa belíssima capital! Disseram que aqui há uma boa
estrutura de hotéis para receber os gringos. Surpresos?
Surpresos era pouco. Eu achei que não conseguiria falar mais. Mas como eu
nunca falava, aquilo não era novidade. E definitivamente o meu queixo caiu
quando eu vi a cena a seguir: o Jean levantou os braços e deu um grito.
– Brasil!!
Peter e Jean gritavam feito loucos. Logo a Jéssica saiu do apartamento e
começou a comemorar. O Afonso apareceu por lá trazendo os gêmeos e todos
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Mundial
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viriam para Brasília nessa época. Isso sem falar nos estrangeiros. Uma coisa era
certa: os melhores usuários de lentes do mundo pisariam na minha cidade.
Todos os doze feiticeiros estariam lá. Era simplesmente surreal demais para ser
verdade. Naquele exato instante, pessoas de todo o país aprendiam a usar as
levis pela primeira vez, somente para adquirir a capacidade de visualizar a tela da
mente dos usuários das lentes e ter a oportunidade de assistir as prováveis
mostras extraordinárias dos feiticeiros.
Afinal, seria impossível televisionar as competições ou qualquer coisa assim.
Apenas usuários de lentes teriam a chance de presenciar aquele incrível evento.
Era algo extremamente restrito aos especialistas. Até mesmo a Tábata, a
contragosto, começou a treinar mais um pouco para não perder o foco na hora
de assistir. Ter a oportunidade de presenciar um evento assim era algo que só
acontecia uma vez na vida. Foi esse discurso que a Jéssica usou para convencê–
la.
– Só porque eu gosto de vocês – acrescentou Tábata.
Até o Jean deixou de ser chato, confessou que estava adorando aquilo tudo e
começou a treinar a sério. Eu e ele treinávamos quase todos os dias. Até
tentamos convencer os nossos pais a usar as levis, mas não deu muito certo.
Minha mãe até experimentou, mas não gostou muito. Meu pai achou divertido e
brincou algumas vezes, mas logo se cansou.
– Que tal ganharmos uma grana ensinando os novatos a realizar visualizações? –
sugeriu Peter.
Jéssica olhou feio para ele.
– Calma. Foi só brincadeira.
O Afonso mostrou a nós o calendário do evento:
– Na primeira semana haverá a mostra e a venda de leals. Na segunda serão as
disputas dos amadores, mas a mais esperada de todas é a terceira semana: a
competição entre os velevis. Inventaram um evento especial para o final e não
vão divulgá–lo até lá.
– Afinal, por que escolheram o Brasil? – perguntou Jean.
– Houve uma discussão feia entre os organizadores do Cairo e de
Johannesburgo – contou Afonso – os finlandeses ainda estavam enchendo o
saco, então Helsinki também estava fora de questão. Alguns sugeriram
Estocolmo, mas teve um pessoal que não gostou porque achou que seria
favoritismo aos finlandeses.
– Que zona – falou Jéssica – bando de chatos.
– E foi exatamente a chatice deles que nos favoreceu – falou Afonso – os países
mais insistentes acabaram ganhando a antipatia dos demais.
– O importante é que acabou aqui – falou Peter – porque nós somos bonzinhos,
educados e não compramos briga com ninguém.
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– Nós só não compramos briga porque ninguém acreditava que o Brasil pudesse
ser escolhido – falou Jéssica – se o melhor do mundo estivesse aqui, aposto que
seríamos os primeiros a começar a discussão.
– Verdade – Peter teve que concordar – só espero que os gringos não digam
que a capital do Brasil é Rio de Janeiro ou Buenos Aires e que aqui se fala
espanhol. Se bem que seria engraçado.
– Todos os velevis concordaram em participar, certo?
– No site diz que a presença dos doze está confirmada – falou Afonso – Afinal,
só faltam duas semanas para começar e se ainda não tivessem encontrado os
caras a esse ponto, seria bem complicado.
– Conseguiram contatar o veterano daqui?
– Claro! – falou Peter – Imagina se o velevi que mora no país do evento não
estivesse presente. Iam nos trucidar! Ele meio que foi obrigado a aparecer. Eu
diria que se sentiu intimado a isso depois que o Brasil foi escolhido.
– E eu diria que a tal finlandesa deve ser a menos escondida de todas. Afinal, ela
deve estar gostando muito de toda essa babação dos fãs. Deve estar se sentindo
uma pop star. O americano parece ser outro convencido, pelo que ouvi falar. E
o australiano tem o pavio bem curto. Ele já deve estar de saco cheio com toda
essa incomodação. Você vê: alguns adoram tudo isso e outros odeiam.
– Acho que isso vai ser uma disputa de egos – falou Jéssica.
– Eu soube que o cara de Johannesburgo jamais apareceu num evento – falou
Afonso – nem mesmo nos de lá. Isso é estranho. Afinal, ele mora no país em
que as lentes foram criadas e é um usuário muito antigo.
– Se eu fosse ele, faria o mesmo – falou Peter – aposto que só quer ficar na dele,
treinando. Um velevi não se interessa pelo mundo lá fora, mas só pelo mundo
de dentro.
– Se você fosse um velevi estaria se gabando lá na esquina – falou Jéssica.
Aqueles dias passaram muito rápido. Para a minha alegria, consegui encontrar
uma pessoa de lente no restaurante. Naquela noite resolvi tentar descobrir se
alguém do prédio estava treinando. E encontrei uma imagem impressionante:
um gigantesco monstro de pedra. Era a imagem mais perfeita que eu já tinha
visto numa tela da mente.
– Estava tão perfeito assim? – perguntou Peter.
Fomos conversar com os gêmeos. Eles nos disseram que também tinham visto
e pensavam que um de nós o tinha criado. Os dois mostraram a versão deles do
monstro.
– Mas se mexia – falou Genaro – e produzia uns sons guturais fantásticos.
A próxima visita foi à casa das irmãs, mas elas estavam tão confusas quanto
todos os outros.
– Não me diga que foi a Tábata!
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– Não pode ser – falou Afonso – Provavelmente essa pessoa é até melhor que
eu.
– Ê, convencido – falou Jéssica.
Batemos na porta do apartamento da Tábata mesmo assim.
– Hein? Monstro de quê?
As nossas opções estavam se esgotando. Mas não nos perturbamos com aquela
questão por muito tempo. Faltava menos de uma semana para o dia 1º.
Começamos a escutar que os primeiros estrangeiros começavam a chegar.
– O Afonso falou que separaram três andares de um hotel só para os velevis –
lembrei – Será que algum deles já chegou?
– Se tivessem chegado provavelmente já saberíamos – falou Jean.
– Acho que a mídia não está tão interessada assim nesse evento.
– Quando os gringos começarem a chegar em bando, não vão simplesmente
ignorar. Mesmo assim, concordo que não é coisa de passar em TV aberta. O
interesse nas levis é restrito a um pequeno público de intelectuais e não chega a
atingir o grande público.
“Oh, e você se acha muito intelectual, não é?”. O Jean era metido demais.
Aposto que ele só usava a levi para se achar um “intelectual”.
– A japonesa já aterrisou no Brasil!
Meu coração dava um salto cada vez que o Peter ou o Afonso davam uma
notícia daquelas.
– Mas onde está o nosso velevi? – perguntou Peter – Era ele quem deveria ser o
primeiro a chegar. Afinal, é o nosso país! Por que a japonesa teve que ser a
primeira?
Acompanhamos um site brasileiro que um grupo de fãs tinha criado. Eles
resolveram ficar de tocaia no aeroporto para postar algumas fotos dos recém–
chegados. Existiam almas boas no mundo, afinal.
Vimos algumas fotos da japonesa. Ela tinha cabelos nos ombros e um sorriso
natural e alegre. Deveria ser poucos anos mais velha que eu. Então era esse o
rosto de um velevi. O que eu via de diferente? Ela me parecia ser apenas uma
moça gentil. Mas certamente havia muito mais, que eu não era capaz de
enxergar.
Naquela mesma madrugada chegou o segundo. Peter bateu na porta do nosso
apartamento de manhã e deixou uma folha impressa embaixo da porta.
Era a indiana. Ela também me pareceu simpática. Tinha cabelos pretos, longos e
ondulados. Sua pele era morena. Algo naquele sorriso me indicava que ela era
um pouco tímida. Deveria ter mais ou menos a idade da japonesa. Ao mesmo
tempo, o seu olhar era inocente como o de uma criança. Era impossível não se
encantar com ela.
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Todos gostaram da idéia. No entanto, ela não chegou a acontecer, pois ele logo
descobriu uma nova atualização.
– Finalmente chegou o Félix! Por que demorou tanto?
Todos nos levantamos no mesmo instante e corremos até lá. Na tela estava a
foto de um rapaz bem sorridente, fazendo um sinal de “v” com os dois dedos
da mão direita.
– Que palhaço – comentou Jean – então é esse aí o nosso velevi?
– Exatamente – Peter deu um sorriso satisfeito – É isso aí! Contamos com você!
No site, o pessoal apoiava o brasileiro, tratando–o como um herói, já que só
quando há disputas entre países os brasileiros ficam patriotas. Se fosse apenas
uma disputa nacional, eles teriam poupado alguns adjetivos.
No dia seguinte, fomos incomodá–los às seis e meia da manhã. Peter estava
mais animado do que nunca.
– Chegou mais uma! Faz só meia hora. Como descreveram no site: “A estrela da
manhã chegou com o nascer do sol!”
A foto mostrava uma garota de cabelos loiros, bem longos, encaracolados e
muito cheios. Seus olhos eram castanhos claros. Como era bonita! O sorriso
dela era lindo e radiante. Havia praticamente um book no site, de tantas fotos que
colocaram.
– E a princesa, vinda do mundo dos deuses celestiais, finalmente aterrisou os
pés na terra! – clamou Peter – Apresento–lhes a famosa e desejada musa
finlandesa!
– Não me diga que até você virou fã dessa menina? – perguntou Jéssica,
incrédula.
– Eu só entrei no clima da empolgação – explicou Peter, com um sorriso –
Inacreditável! Os caras preencheram parágrafos inteiros só com elogios à
“Deusa”. Olha só essa foto! Olha a quantidade de fãs! Aqui diz que quinze para
as sete terá uma pequena reportagem sobre a chegada dela num canal que eu
nunca vi na vida.
Esses ricos que tinham TV a cabo... Uns cinco minutos depois de a Jéssica ligar
a TV, deu a tal reportagem. Foi algo bem curto: apenas alguns segundos. Foi o
suficiente para ver o caos da situação. Havia flashes de câmeras e filmadoras. Vi
um grande grupo de pessoas, provavelmente os fãs finlandeses, gritando coisas
num idioma esquisito.
Também havia fãs brasileiros, principalmente homens. A finlandesa dava
grandes sorrisos e parou para fazer poses para as fotos. Ela não caminhava
normalmente e, sim, desfilava. A emissora apenas mencionou qualquer coisa
sobre o Brasil ser a sede mundial de um importante campeonato, mas não
disseram que campeonato seria esse e era possível que nem eles soubessem. Mas
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como parecia ser gente famosa – e gringo ainda por cima – já era motivo
suficiente para colocar na TV.
– Incrível, não? – comentou Peter – mas acho que isso já era esperado da
finlandesa. Com certeza ela fazia questão de chegar com classe e causando um
estardalhaço, e pelo jeito conseguiu. Eu li num outro site que os hotéis já estão
enchendo de estrangeiros. Mas claro que o maior público somos nós. Também
já chegou muita gente de outros estados. Veio gente de tudo que é canto.
– Até do Acre? – perguntou Jéssica.
– Ah, pois é, do Acre eu não sei – falou Peter – mas que veio uma multidão é
verdade.
Era a tão esperada sexta–feira. Sábado seria o início do evento. Alguns viriam
apenas na semana de mostras dos velevis. Afinal, nem todo mundo poderia
permanecer durante o mês inteiro.
Outro velevi chegou pela manhã. No site havia a foto de um jovem de cabelos
pretos. Ele deu um sorriso como se dissesse: “estou podendo”.
– Esse cara deve se achar “o galã” – comentou Jéssica.
– Quem é esse imbecil? – perguntou Jean, simplesmente.
– O americano – contou Peter, sorrindo.
– Ah, claro, só podia – falou Jean – o outro idiota. Ele e o australiano são dois
babacas. Não dá para acreditar que esses sujeitos desagradáveis são velevis.
– Assim é a vida – comentou Peter, dramaticamente – nem tudo acontece como
nós queremos. Os caras do site fizeram observações muito elegantes. Leiam isso:
“O senhor príncipe expressa a sua dor de dentes na foto acima”.
– Pelo menos os sujeitos desse site são inteligentes – comentou Jean.
O egípcio também tinha chegado. Havia uma foto. Apesar de estar sério, ele não
me pareceu antipático, pelo contrário. Apenas não estava sorrindo. Ele tinha a
pele em um tom moreno escuro e os cabelos negros. Por algum motivo, eu o
achei diferente das outras pessoas que eu conhecia. Seria pelo fato de ser um
velevi?
– Ainda falta chegar alguém?
– O sul–africano – falou Peter – ah, e vocês não sabem da última! Disseram que
o australiano bateu num repórter insistente na noite passada.
– Isso já era esperado – falou Jean – Estão enchendo muito o saco deles no
hotel?
– A finlandesa deve estar adorando tudo isso e suponho que a maior parte dos
repórteres esteja lá por causa dela. Mas claro que isso acaba incomodando os
outros. Lembram que os velevis vão ficar no mesmo hotel? Ouvi dizer que há
uma penca de americanos por lá. Acho que até eles são mais fãs da finlandesa
que do americano.
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– Entendo – comentou Jéssica – bem, mas acho que é assim mesmo que
funciona o cérebro dos homens. Primeiro a beleza e depois a pátria.
Infelizmente, mais uma vez tivemos que cortar a conversa por ali e voltar ao
trabalho. De noite eu estava nervosa quando voltei para casa. O sul–africano ia
finalmente chegar. Já deveria ter chegado, pois eram mais de oito da noite. Eu
corri para o 201. Mas não vi nenhuma animação quando a Jéssica atendeu a
porta.
– Nada ainda.
– Tem um site em que os africanos postaram algumas mensagens. Pelo menos é
certo que ele saiu de Johannesburgo num avião. Que eu saiba há vôos diretos de
lá até Brasília. É estranho ele não ter chegado ainda.
O Afonso se sentou na cadeira e começou a checar vários sites diferentes,
principalmente internacionais.
– O pessoal não está muito preocupado. Parece que ele saiu bem tarde mesmo.
Deve levar muitas horas para chegar aqui.
Assim que deu onze horas, o Afonso checou o site, mas não havia nada.
Tentamos conversar sobre outras coisas e desviar o assunto, mas ninguém
conseguia esquecer. Quando deu meia–noite o Afonso olhou novamente.
– Vamos relaxar, gente – sugeriu Jéssica – devo fazer um jantar?
– Boa idéia! – falou Peter – Quer que eu ajude?
– Ora, quanta gentileza. Não é típico de você. Mas não se preocupe, porque
você ia me atrapalhar mais do que ajudar.
– Oh, eu sou um inútil! – lamentou–se Peter.
Tomei coragem e perguntei se eu podia ajudar. Era raro eu falar, por isso eu
morria de vergonha toda vez que fazia isso. A Jéssica deu um sorriso gentil e
aceitou. Eu a acompanhei até a cozinha e preparamos um macarrão com atum e
molho de tomate. Quando aprontamos a janta, eu arrumei a mesa e a Jéssica
chamou o pessoal. Depois de se servirem, eles já iam levar o prato até o
computador, mas a Jéssica proibiu:
– Todos vão comer sentados à mesa!
– Sim, senhora – falou Peter, sentando–se.
Todos comeram em um silêncio incomum. Eu já sabia o que isso significava: já
era mais de uma da manhã e o africano ainda não tinha chegado.
Depois da janta, o Afonso e o Jean se prontificaram a lavar os pratos.
– Só eu fiquei de fora? – perguntou Peter, desapontado.
– Então arrume a toalha da mesa e coloque de novo o vaso de flores por cima –
sugeriu Jéssica.
– Oba! – comemorou Peter – Uma tarefa para mim!
E ele fez como ela instruíra.
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– Mas não é possível que nem isso você saiba fazer direito – falou Jéssica – você
é mesmo uma negação para afazeres domésticos.
Depois que os pratos foram lavados, permanecemos sentados sem dizer nada.
– Devemos ir embora? – perguntou Afonso.
– Claro que não – falou Jéssica – eu não vou dormir até que o africano chegue.
– Eu também não – falou Peter, decidido.
Que teimosos!
– Tem gente aguardando no aeroporto e informando a situação nas
comunidades de levis na internet – falou Peter.
– Que tal irmos para lá? – sugeriu Jéssica – Melhor do que esperar aqui.
– Não tem mais ônibus a essa hora – falou Peter – e eu não tenho carro.
– Meu pai tem carro, mas acho que ele não deixa usar – falou Afonso.
Usar o carro do síndico? Nem pensar! Era mais seguro caminhar pelas ruas de
madrugada até o aeroporto do que correr o risco de provocar um arranhão no
carro daquele homem. Jogamos pôquer por algum tempo – eu não sabia as
regras e tiveram que me ensinar; e eu fui a pior de todas – mas logo nos
cansamos.
– Mas não é possível! Três da manhã! Pelo jeito esse vôo atrasou muito.
– Ou os idiotas da internet informaram o horário errado – falou Jean.
– Então, hoje é o grande dia! – falou Peter, para tentar animar – Já vi que vamos
virar a noite. Pelo jeito já vamos sair daqui e ir direto para o evento.
– Vai começar às nove – falou Afonso – não é possível que o vôo atrase nove
horas.
– Tudo é possível – comentou Peter, misteriosamente.
– Que tal ser um pouquinho mais otimista? – sugeriu Jéssica.
Os minutos se arrastavam. Já estávamos bocejando. Achei que se continuasse
sentada naquele sofá por mais tempo eu dormiria. Era uma sexta–feira e todos
estavam morrendo de cansaço. Virar a noite e ainda ir ao evento no outro dia
era demais.
– Cinco horas. Alguém está pronto para levantar a bandeira branca?
– Eu não – falou Peter, decidido – tem certeza de que você olhou direito,
Afonso?
Peter abriu o site de novo.
– Viu? – falou Afonso, lá do sofá – Não acredita em mim?
– O site está atualizado – falou Peter.
Despertamos no mesmo instante.
– Está escrito que ele acabou de chegar agora mesmo.
– Ufa. Ainda bem – falou Jéssica, aliviada.
Todos estavam cansados demais para comemorar animadamente aquela notícia.
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A Cerimônia de Abertura
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Eu não tinha visto fotos do velevi sul–africano. Até então eu sempre o havia
imaginado com a pele bem escura, mas depois de avistar aquele pequeno grupo,
percebi que era possível que minha imaginação não correspondesse à realidade.
Estava tão perdida em pensamentos que nem percebi quando os portões
abriram. Muitos deram gritos e assobios. Claro que o Peter e o Afonso
participaram da manifestação.
– Aêêê!! – falou Peter – É mundial!
Fiquei muito feliz. Estava um pouco nervosa, mas ao mesmo tempo a ansiedade
e a emoção eram muito grandes. Ainda demorou um pouco até que chegasse a
nossa vez de entrar, mas aguardamos com paciência. Ou nem tanta.
– Estou torrando aqui nesse sol – reclamou Jean – que pessoas mais lerdas! Essa
gente não tem pernas? Eles não andam!
– Eu estou com sono, isso sim – falou Afonso, bocejando de novo.
– E eu estou com fome – falou Peter – só comi uma banana no café da manhã.
Isso não é suficiente. Assim que entrar, vou procurar mais comida.
– As reclamações de vocês estão me deixando com mais raiva ainda – falou
Jéssica – então façam o favor de ficarem quietos.
Finalmente conseguimos entrar. Era um imenso pavilhão coberto e lá dentro
tudo já estava organizado.
– Comida! Comida! – falava Peter, o tempo todo, olhando para os lados – Onde
está a comida?
– Lá! – Afonso apontou, dramaticamente.
Imediatamente, os dois correram como loucos na direção em que o Afonso
apontava, como se disputassem uma maratona.
– Finja que não os conhece – Jéssica me sugeriu.
Era uma boa sugestão, mas como eu também estava com fome, não vi outra
escolha a não ser segui-los. Acabamos comprando um monte de coisas:
cachorro–quente, pastel, refrigerante... até que havia bastante variedade. E os
dois exagerados nem conseguiam segurar o monte de comidas que compraram.
– Eu, hein? – falou Jéssica – Vocês não estão mais em fase de crescimento.
– Eu preciso de muita proteína e carboidratos – justificou Peter, dando uma
grande mordida no cachorro–quente – só assim para agüentar o dia inteiro em
pé.
– E não fale de boca cheia.
Mas como a Jéssica reclamava! Cruzes! Coitado do Peter.
– E eu preciso de... – Afonso lia o rótulo da latinha – aspartame, benzoato de
sódio, acessulfame de potássio... o que é isso?
Alguém subiu no palco. A maioria dos presentes olhou naquela direção e um
senhor grisalho de terno começou a falar num microfone:
– Sejam bem–vindos ao primeiro evento mundial de levis!
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Velevi
Ele falou isso em inglês, mas eu entendi. Pelo jeito meu inglês estava bom.
Todos bateram palmas, assobiaram ou se manifestaram de alguma forma. O
Peter colocou a latinha no chão e bateu palmas segurando o cachorro-quente
com a boca. Simples assim. O Afonso também teve que improvisar de maneira
semelhante.
Depois disso, aquele senhor falou mais um monte de coisas que eu não entendi
direito. Mas como todo mundo bateu palmas depois, eu bati também. Depois
do primeiro discurso, apareceu um segundo senhor que começou a falar ainda
mais do que o primeiro. E, depois dele, ainda veio um terceiro que falou mais
que o segundo.
Já tínhamos até terminado de comer e Afonso bocejou. Para mim não era
exatamente interessante, já que eu não estava entendendo muita coisa. Mas algo
me dizia, que mesmo que o discurso fosse em português, teria me entediado da
mesma forma.
Quando a quarta pessoa começou a falar, havia outra ao lado que traduzia as
frases para o português. Finalmente o tradutor tinha acordado. Teve um quinto
senhor que discursou e em algumas partes interrompia para rir. Ele deveria
achar que seu discurso estava fazendo o maior sucesso. Quando esse quinto
cidadão terminou de falar, houve uma salva de palmas. Achei que todos estavam
muito satisfeitos que os discursos tinham finalmente terminado.
– Definitivamente eu devia ter dormido mais um pouco – falou Afonso – nessa
primeira semana só vai ter enrolação, burocracias e melindres.
– Mas vai ter a venda das lentes alternativas – falou Jéssica – e pode ser que um
velevi apareça hoje mesmo. Fiquem de olho.
– Não será muito difícil encontrá-lo – falou Afonso – basta ver alguém cercado
de gente. Aposto que os repórteres irão encontrá–los antes.
– Não vejo nenhum repórter – observou Jéssica.
– Ainda não. Basta colocar um velevi aqui que os repórteres brotam do chão.
Provavelmente os velevis tinham sido informados que o primeiro dia seria
apenas uma falação chata. Deveriam estar cada um em seu quarto de hotel. Ou
quem sabe passeando pela cidade? Afinal, não haveria muito perigo de ser
reconhecido naquelas circunstâncias, já que todos que poderiam reconhecê–los
estavam reunidos num grande pavilhão escutando discursos intermináveis e
entediantes.
Mas eu estava falando dos veteranos. Então o mais provável seria que eles
estivessem mesmo no hotel, utilizando as levis. Não deviam mesmo fazer outra
coisa da vida para serem tão bons.
Relembrei dos rostos das fotos. Eu os tomaria por pessoas comuns se os
encontrasse na rua. Jovens, todos eles, que optaram por dedicar o resto dos seus
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Juliana Duarte
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Velevi
sentar–me. Mas eu nada podia, pois apenas sentia tudo de fora. Era como se um
vidro muito fino me separasse.
Havia um redemoinho no céu. Ele fazia as nuvens se retorcerem com muita
beleza. Encontrei uma harpa. O vento tocava o majestoso instrumento de
cordas douradas como raios de sol. E que som era aquele? Era assim que as
harpas reais soavam? Se assim fosse, eu desejava encontrar uma harpa somente
para dedilhar aquelas cordas até o fim da vida.
Se fosse para que meu corpo repousasse em algum lugar, decidi que seria
naquela terra. Eu ia economizar... comprar aquela lente. Eu queria viver no
mundo cor–de–rosa e jamais voltar para aquele lugar terrível em que eu vivia.
Mas não era eu. Era outra pessoa que experimentava, sentia e tocava todas
aquelas maravilhas. Era um desconhecido que tirava os sapatos e caminhava
com os pés nus naquela terra. Aqueles não eram os meus pés. Desejei que
aqueles pés fossem meus.
Não suportava mais observar algo que não me pertencia. Havia encantos
demais, pássaros brancos, flores macias, sinos de cristal e pedras de quartzo
rosa. A maior perfeição não estava ao meu alcance. E aquele era o meu maior
horror e meu tormento.
Não consegui permanecer de olhos fechados por mais tempo. Contemplei a
mim mesma em meio a uma multidão de pessoas de pé, de olhos fechados. E
ali, sozinha, abaixei–me no chão e escondi o rosto nas mãos. O Jean percebeu o
som e abriu os olhos.
Eu não me movia. Ele pegou no meu braço e eu me levantei. Fomos lá para
fora.
– Por que está chorando?
Fiquei quieta no começo.
– Porque eu queria os algodões-doces – respondi, simplesmente – os sinos de
cristal e as flores. Queria pisar naquela terra. Queria tudo só para mim.
– Também senti algo parecido.
– Então você entende o que quero dizer – levantei os olhos – Vamos vender a
nossa casa toda e comprar aquela lente!
– Não, Fran! Aquilo lá não é algo que a gente possa comprar. É simplesmente
caro demais para que você possa imaginar.
– Então eu não quero mais viver. Não quero mais esse mundo frio e horrível.
Só quero continuar se for naquele.
– Você o observou por apenas um minuto e já diz isso com tanta convicção?
– É a única coisa que quero. Nunca senti isso antes. É importante.
O Jean ficou em silêncio. Também resolvi me calar. O que eu estava fazendo?
Quem era aquela pessoa que dizia todas aquelas coisas tão tolas e ingênuas? Eu
tinha me deixado levar pelo momento.
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Juliana Duarte
– Esquece – falei, simplesmente – Vamos voltar para junto dos outros. Pode ser
que já tenham aberto os olhos. Quero estar lá antes que aconteça.
Depois daquela experiência decidi que não queria mais observar outras leals.
Doía demais. Já os outros, depois de ver o mundo rosa, ficaram maravilhados e
loucos para ver mais. Resolvi me afastar e caminhar sozinha. Aquele lugar, todas
aquelas pessoas... era por isso que estavam lá? Para namorar as leals? A maioria
ali não tinha condições de comprá-las, então por que faziam aquilo? Por serem
masoquistas? Eu sabia que a culpa era minha por ter me deixado levar pelo
encanto. Mas era impossível não se encantar. Teria outros mundos por ali até
mesmo mais maravilhosos do que aquele, mas eu já não tinha coragem de vê–
los.
Mais tarde consegui reencontrar o meu grupo de novo. Saímos para almoçar.
Como todas as opções de lanchonetes e restaurantes pareciam muito caras,
optamos por um restaurante barato em que serviam um buffet em self-service.
Assim que retornamos para o local do evento, encontramos os gêmeos.
– Yo – cumprimentou Genaro.
– Salve! – falou Peter – Que coincidência vê–los aqui. Já viram muitas coisas?
– Agora aqueles gringos anciãos voltaram a discursar e fiquei com sono – falou
Genaro – estávamos observando umas leals. Vocês já viram que fantástico?
– Pena que não podemos experimentar – falou Afonso – deve ser o sétimo céu.
Mas só assistir já é um deleite dos deuses.
– Viram as leals do egípcio? – perguntou Genaro – Cara, o que era aquilo? Eu
quase caí para trás!
– Eu não vi ainda! – falou Peter, impressionado.
Os dois saíram de lá e foram até a banca.
– E você? – perguntou Afonso – Curtindo o evento?
– Relativamente – respondeu Gabriel – está interessante, mas também quero
assistir às levis. Você se inscreveu em alguma competição?
– Várias – falou Afonso – Será que estou confiante demais?
– Você tem alguma chance – falou Gabriel, simplesmente – a sua técnica é boa.
Por outro lado, eu não tenho a menor idéia do tipo de gente que está pisando
aqui.
Genaro era um palhaço como Peter, mas o Gabriel era mais sério. O Afonso,
dependendo da companhia, era tranqüilo. Quando estava junto com o Peter, se
transformava num Peter segundo. O Gabriel parecia ser simpático, apesar de eu
não conhecê–lo muito. A única maneira de distinguir os gêmeos era pela
personalidade, pois fisicamente eu não conseguia notar muita diferença, a não
ser pela roupa.
– Quais leals você gostou mais? – perguntou Afonso.
– Gostei das da sueca – falou Gabriel – são muito... profundas.
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Velevi
– Entendo o que quer dizer. São densas e melancólicas. Mas não sei se esse tipo
de coisa é do meu gosto. Eu prefiro algo mais alegre. Aposto que você também
gostou daquelas coisas depressivas da russa.
– Elas perturbam um pouco, mas acho que isso me faz sentir mais vivo.
– Sério? – perguntou Afonso – Sinceramente, eu me sinto meio morto. Mas
nem todas estão aqui hoje. Eu não encontrei as leals do americano e nem as do
australiano. E onde estão as lentes da finlandesa? Achei que ela seria a primeira a
mostrar.
– Só na segunda–feira – falou Gabriel – ela estará aqui pessoalmente ao meio–
dia, provavelmente cercada de fãs, repórteres e confetes.
– Eles também preparam leals sob encomenda – Afonso leu num panfleto –
durante essa semana os velevis estão aceitando pedidos. Vamos supor que
alguém diga: “Eu desejo uma ilha particular laranja, com céu roxo e palmeiras
com cajus e melancias”. Essas lentes são caríssimas. Acho que só milionários
poderiam comprar.
– Afonso! – era o Peter que chamava – Venha ver essa lente do egípcio. Você
não vai acreditar!
Eu não sabia se desejava passar por aquela experiência uma segunda vez. A lente
da chinesa me deixara tão melancólica e perdida...
Resolvi arriscar. Eu não queria ser a única ali que ficaria de fora. E se olhasse, eu
não teria nada a perder. Somente alguma água dos olhos.
Era um labirinto de pedra bruta. As muralhas eram altíssimas e não se poderia
saber em que momento o céu era visível. Eu quase sentia o calor do toque e a
dureza da pedra. A grama era de um verde fosco e escurecido, ainda mais
realista do que a grama da vida real. Todas as falhas, rasgos e sujeiras estavam
presentes. Pela primeira vez eu me dava conta da beleza da imperfeição e a
apreciava como merecia.
Avistei alguns pequenos cogumelos e pedrinhas no chão. Havia tantos
cogumelos! Achei aquilo bem divertido. Eram tão macios e redondos que senti
vontade de despedaçá–los. Uns eram brancos e outros possuíam uma tonalidade
bege pálida. Encontrei até um caracol arrastando–se nas proximidades.
O comprador seguia pelo caminho. Musgos preenchiam as paredes do labirinto.
Vi também trepadeiras e... que plantas eram aquelas? Desconfiei que fossem
plantas inventadas, que se retorciam como conchas de caracóis.
Desejei explorar o caminho das árvores em formatos espirais e com folhas
encaracoladas. Os galhos retorciam-se para formar esculturas deslumbrantes.
Musgos reproduziam uma obra-prima. Cogumelos gigantescos circundavam
portais. As paredes de pedra deram lugar a um labirinto de cogumelos. Havia
lombas que levavam até o céu e de volta a terra. O labirinto transformou-se em
nuvens brancas e quase se podia tocar o céu claro.
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Velevi
Ele não queria dividir aquilo com curiosos. Desejava curtir o mundo de areia só
para si. Se eu fosse uma compradora, não seria arrogante como esse senhor. Eu
iria me fingir de curiosa e dizer que estava em dúvida por qual delas comprar,
enquanto provava todas as lentes pelo maior tempo possível, para permitir que
todos os curiosos assistissem. Mas, por outro lado... talvez eu não desejasse que
outros presenciassem o meu deleite. Era algo muito pessoal. Acho que eu
entendia um pouco o lado dele. Já os meus acompanhantes não foram tão
compreensivos assim.
– E ele interrompeu bem na melhor parte! – protestou Peter – Mas acho que eu
escolheria a lente do labirinto. Deve haver uns monstros e quimeras fantásticos
escondidos em algum lugar.
– Isso certamente assustaria os fregueses – falou Jéssica – Em geral as leals são
feitas para proporcionar um ambiente pacífico de relaxamento.
– Deve ser chato não poder produzir o mundo que se deseja – comentou
Afonso – porque eles precisam agradar aos fregueses. Tenho certeza de que eles
preferiam fazer umas coisas bem divertidas e assustadoras, mas os
“empresários” devem colocar um limite na criatividade.
– Que tal irmos à banca da sueca? – sugeriu Gabriel.
Aceitamos a sugestão. Assim que mergulhei, meu corpo começou a tremer.
Estava extremamente frio! Tudo estava coberto por geleiras gigantescas. O
vento rasgava tudo com crueldade por onde passava. Imensos icebergs
mostravam-se em meio à imensidão daquele oceano magnífico.
Encontrei alguns iglus bem simpáticos e criativos, de diversos tamanhos e
formas. Era muito gracioso vê-los ali, em meio ao gelo absoluto. Visualizei, por
trás de uma imensa montanha, dezenas de estatuetas de neve e de gelo: pianos,
cascatas, violoncelos, árvores de cristal... Os instrumentos musicais reuniram-se
para produzir um concerto sinfônico. Aquelas notas gélidas e penetrantes eram
tristes, mas possuíam muita beleza. Pequenos flocos de neve caíam numa
lentidão tão preciosa que eu poderia apreciar de perto cada floco e cada
movimento. Aquele era o mundo branco. Os flocos formavam estrelas
recortadas. E foi em meio ao branco que eu vi uma aurora boreal.
O céu tingiu-se de rosa e verde com a elevação da aurora. Ela coloria os céus
com suavidade. Soltei uma exclamação de admiração. Esperava que ninguém a
tivesse escutado no mundo real, mas no fundo aquilo não importava. A senhora
simpática que experimentava a leal abriu os olhos. Ela estava visivelmente
emocionada e sorria.
– Magnífico! – falou ela, maravilhada – Deslumbrante! Eu vou levar.
A experiência dela deveria ter sido muito mais real e palpável que a minha.
Aquilo era um privilégio dos ricos. Para nós, meros mortais, se desejássemos
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Velevi
– Duvido que, depois dessa, mais algum veterano ouse aparecer por aqui hoje –
observou Jean – Seria suicídio.
Somente às nove da noite o primeiro dia do evento acabou. Fizemos questão de
ficar até o fim, porque nunca se sabia quando uma surpresa poderia acontecer.
– Estou quebrado – falou Peter – não sei como agüentei até agora com apenas
duas horas de sono.
Eu também estava morta de cansaço e tinha planos de dormir cedo. Assim que
voltei, tomei um banho, vesti meu pijama e já me preparava para dormir quando
alguém bateu na porta do nosso apartamento. O Jean saiu do quarto dele.
– Visita às onze da noite. Já sei quem é.
E eu também sabia.
– Venham! – o Peter estava empolgado mesmo – Novidades! Fofocas!
– Você não vai dormir, não? – perguntou Jean.
– Assim que contar para vocês.
Eu e o Jean, de pijamas, fomos até o 201 e olhamos para a tela do computador.
– Esses dois encontram tudo – comentou Jéssica.
O Afonso também estava lá.
– Estão todos falando sobre a aparição do velevi egípcio. Teve gente que ficou
realmente irritada com a reação do pessoal, porque, segundo eles, isso vai
afugentar os outros velevis.
– Eu vi mais fãs tirando fotos do que repórteres.
– Porque eles estavam em maior número – falou Peter – e os fãs ao menos são
fãs! Admiram o trabalho deles. Mas os repórteres não estão nem aí. Metade
deles nem deve saber o que são as levis. Devem achar que é a nova moda das
lentes de contato. Mas quem está mais aborrecido com isso são os vendedores.
Afinal, receber a encomenda de uma leal dá uma grana preta.
– Eles não podem simplesmente anotar os pedidos e repassar ao fabricante?
– Os compradores fazem questão de explicar pessoalmente a eles aquilo que
desejam.
– O velevi prepara a lente na hora? – perguntou Jean, impressionado.
– Ele testa – falou Peter – por exemplo, o cara diz que quer um mar verde e o
velevi mostra o mar mentalmente para ele, para certificar–se de que está fiel. Ele
corrige até ficar perfeito e anota os detalhes principais. Ah, lembrei de uma
coisa! Disseram que a finlandesa e o africano se cruzaram hoje no corredor do
hotel e duelaram.
– Mas já? – perguntou Jéssica, surpresa – Que apressadinhos, hã?
– Eles simplesmente pararam por alguns segundos e fitaram um ao outro.
– Isso foi o duelo? – perguntou Jéssica – Alguns segundos? E quem ganhou?
– Ah, mas aí você já está querendo demais. Eu nem sei se foi mesmo um
“duelo” ou o pessoal só está exagerando ou viajando na maionese.
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Juliana Duarte
– Vai que os dois só se fitaram e depois seguiram sem dizer nada – falou Jéssica.
– Dois velevis? Duvido – falou Afonso – Eles não deixariam escapar essa
oportunidade. No mínimo cada um olhou a tela da mente do outro.
– E se eles não estivessem formando nenhuma imagem no momento?
Peter riu.
– Eles devem formar imagens até nos sonhos para serem tão bons.
– E quem foi que espalhou o boato na internet? – perguntou Jéssica, ainda mais
desconfiada – A camareira?
No segundo dia havia muitos compradores em todas as bancas. Eu não sabia
que havia tantas pessoas ricas no mundo! Eles faziam até fila para experimentar.
Quanto às lentes da russa, eu não consegui assisti–las por muito tempo, pois
fiquei assustada. O gosto dela era um pouco mórbido.
– Você precisa ter o estômago forte – comentou Jean, ao ver a minha cara.
– Será que eles conseguem vender esse tipo de coisa? – perguntou Jéssica.
– Olha a mulher lá comprando – Genaro a apontou com a cabeça.
– É... tem gosto para tudo.
– Alguns possuem o gosto um pouco mais refinado – falou Gabriel – essas
lentes são simplesmente geniais.
– Vejo que você ficou fã da russa – observou Peter.
– Fiquei – confessou Gabriel – acho que vou torcer por ela no campeonato.
– E o Brasil? – Peter fingiu estar escandalizado – Seu vira–casaca!
– E você vai torcer para o Brasil, por acaso? – perguntou Jéssica.
– Vou torcer para a finlandesa.
Jéssica fitou–o com uma cara feia.
– Brincadeira. Eu gostei bastante das lentes do brasileiro. São bem engraçadas.
– Hoje tem a banca do americano – lembrou Afonso – Vamos lá ver?
– Divirtam–se – falou Jean.
– Ah, qual é, Jean! – falou Peter – Deixa de ser chato e vem ver também.
E Peter arrastou–o até lá. A primeira leal foi uma paisagem muito bonita, com
montanhas. O Jean não pareceu gostar nada da segunda.
– Praia! Não me diga que esse sujeito é um surfistinha? Eu odeio surfistas!
– O comprador gostou das lentes – observou Jéssica – tem gente que gosta de
relaxar na praia.
– E essa praia era bem diferente e criativa – acrescentou Afonso.
– OK, puxem o saco do americano, então. Eu vou para a banca da chinesa.
E o Jean simplesmente saiu de lá.
– Eu quero ver se tem novidades na banca do brasileiro – falou Peter.
– Vou com você – falou Afonso.
O Gabriel permaneceu mais um tempo na banca da russa e o Genaro o
acompanhou. Os dois deviam estar se divertindo com qualquer tipo de cena
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Velevi
terrível que eu não teria coragem de olhar. Por mais incrível que parecesse, a
banca da russa estava fazendo bastante sucesso.
– Para onde vamos, Fran? – perguntou Jéssica, com um sorriso simpático –
Tem alguma preferência?
Eu só queria ficar bem longe da banca da russa e da banca da chinesa.
Percebi que a banca do australiano estava lotada. Havia uma lente que continha
um jogo de caça ao tesouro. Todos estavam loucos para jogar, mas claro que
isso só era permitido aos compradores. Alguns jovens mentiam que queriam
comprar, mas eram afastados de lá na mesma hora. O vendedor parecia ter um
bom faro para distinguir compradores de mentirosos.
“Ele sabe sentir o cheiro dos burgueses” pensei. Eu tinha cara de pobre, então
se eu mentisse com certeza não daria certo. E imagina se eu teria coragem para
fazer isso!
As lentes que continham jogos estavam entre as mais populares. O brasileiro
também adorava preparar jogos, por isso as lentes dele eram famosas.
As leals permitiam relaxar, divertir–se, descontar o estresse, assustar–se, rir...
Era como filmes: havia os de romance, comédia, terror... as lentes da russa
provavelmente se encaixariam na categoria suspense ou terror. As lentes do
egípcio seriam de aventura. As da chinesa e as da sueca eu classificaria como um
musical bastante artístico. O australiano criou uma cena de um universo, que era
simplesmente fantástica! Eu encaixaria na categoria “ficção científica”.
Eles não produziam um só tipo de lente, mas precisavam ser bem versados nos
mais diversos tipos. Afinal “o cliente sempre tem razão”. Como a maior parte
dos ricos do evento parecia ser de pessoas mais velhas, eles preferiam as leals de
relaxamento: um campo, uma praia, um mar, um cenário romântico e poético.
Por outro lado, os jovens estavam atrás de grandes emoções. Eles desejavam os
jogos, enigmas e desafios. Os cenários macabros, empolgantes e assustadores.
Nada de paz. Eles queriam sentir o coração acelerar.
Como os próprios produtores eram jovens, provavelmente também possuíam
preferência por criar lentes assim. Algumas delas até vendiam, mas a paz parecia
ser a mais popular das emoções. A maioria já tinha uma rotina cansativa de
trabalho e estresse durante o dia e só queria chegar em casa, colocar as pernas
para o ar e enfiar uma lente de relaxamento no olho para descansar numa praia
ou sob uma montanha.
Depois de um dia cheio de “emoções” e cansaço, um passeio numa montanha-
russa, num túnel do terror, num cemitério ou enfrentar monstros malignos para
obter a lendária pistola verde e amarela, não seria uma boa pedida.
– Por que eles não alugam as lentes, então? – sugeriu Peter – Seria bem mais
prático e não sairia tão caro. Eu queria poder ao menos experimentar uma vez.
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Juliana Duarte
– Os compradores não iam querer leals usadas – falou Afonso – já é muita coisa
elas serem experimentadas pelos demais compradores. E há público suficiente
para comprar para que eles percam tempo alugando.
– O que será que os velevis acham de toda essa fábrica de dinheiro em cima
deles? – perguntou Jéssica – Será que estão satisfeitos em serem usados assim?
– É o trabalho deles – falou Peter – O que há de mal nisso? Todos nós também
vendemos o nosso trabalho para obter dinheiro em troca. Não vejo nada de
errado.
– Sei lá, nesse caso parece um pouco mais forte – falou Jéssica – tenho a
impressão de que eles os obrigariam a produzir as lentes, mesmo que não
quisessem. Não foi por isso que alguns deles estavam escondidos?
Tudo o que fizemos durante o domingo foi caminhar de banca em banca para
assistir às leals, conversar, passear e procurar comida.
– Já estou cansada de caminhar – falou Jéssica – são mais de oito horas. Vocês
querem mesmo ficar até o final?
– Vai acabar às nove – falou Peter – então não falta muito tempo.
– Cinqüenta minutos! – queixou–se Jéssica – Domingo é para descansar! O que
esperam que aconteça de extraordinário? Que o teto caia? Você não percebeu
que a primeira semana foi feita para os burgueses? A nossa é a segunda semana.
– Calma! – falou Peter – Relaxa. Está bem, mas vamos esperar pelo menos até
às oito e meia. Queria ver mais uma vez a banca da japonesa.
– Você fica vendo mil vezes as mesmas coisas.
– Posso esperar outro comprador usar de novo aquela lente da lagoa?
A contragosto, Jéssica acompanhou–o. Nós os seguimos também. Em breve
iríamos embora, então era melhor não nos separarmos. Esperamos o Peter se
divertir assistindo à lente da japonesa. Eu já estava cansada para olhar.
– Satisfeito? – perguntou Jéssica.
– Acho que sim – falou Peter – você me deixa ver por mais cinco minutos a...
Mas a voz do Peter foi abafada pelos gritos que explodiram no pavilhão.
Mesmo depois de todas as advertências dos organizadores, a mesma cena iria se
repetir. Mas nem mesmo nós estávamos contribuindo para manter a ordem,
pois também corremos para tentar ver alguma coisa.
Os gritos vinham da banca ao lado da nossa, então não foi preciso ir muito
longe. Era a banca da chinesa. E lá estava ela. Eu a reconheci na mesma hora: a
garota bonita de longos cabelos negros que dera um grande sorriso na foto do
site.
Novamente, o comprador se aborreceu, pois mais um cliente foi espantado. E
cada cliente que fugia significava alguns milhares de dólares voando pelos céus.
Os repórteres chegaram empurrando todo mundo e tirando fotos. A chinesa
tentou se esconder. A banquinha quase caiu e o vendedor xingou bastante. Eu
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Velevi
nem queria sonhar com o que aconteceria se alguma daquelas lentes preciosas
quebrasse.
Logo chegaram os fãs loucos. Além dos chineses, havia um grupo
particularmente maluco de americanos que começaram a gritar
desesperadamente.
– Eu te amo, Chanjuan!
Percebi que a situação estava ainda mais descontrolada do que no dia anterior,
provavelmente por tratar–se de uma garota. Foi então que, antes que os
seguranças chegassem, uma coisa terrível aconteceu.
Um dos americanos puxou a velevi chinesa pelo braço e a arrastou para o lado
deles. Ele tentou abraçá–la e ela tentou empurrá–lo. Alguém foi separá–los e a
chinesa pequenininha acabou sendo derrubada no chão em meio àquele bando
de fãs malucos. O pessoal ao redor gritava, não mais de animação, mas de
choque e indignação. Os chineses estavam completamente fora de si e queriam
simplesmente matar os americanos.
– Americano filho-da-puta! – gritou um dos chineses, em inglês.
E o chinês deu um soco na cara do americano. Mas, antes que o americano
revidasse e que os americanos e os chineses partissem um para cima do outro,
os seguranças chegaram para separá–los. Daquela vez foram necessários muitos
seguranças para impedir ao mesmo tempo aquela briga que estava prestes a
estourar e para proteger a chinesinha daquele bando de fanáticos, ou ela seria
pisoteada. Por fim, eles conseguiram, em meio ao tumulto, guiar a chinesa até o
portão de saída.
Nesse ponto a situação estava completamente caótica. Foi necessário que um
dos organizadores subisse no palco e falasse no microfone. Era o mesmo
senhor do dia anterior. Mas dessa vez ele não foi tão educado e não fez questão
de esconder a raiva.
– A situação está completamente insustentável. Perdoem–me o termo, mas
alguns presentes aqui estão agindo como animais. Esse é um evento sério e
amistoso para unir os especialistas de diversos países. É completamente
inaceitável uma situação como essa. Os senhores já foram advertidos no dia de
ontem e eu não vou me repetir. Se isso acontecer amanhã mais uma vez, o
evento será finalizado imediatamente e não haverá mais torneio ou mostra
alguma. E agora o meu discurso será traduzido para todas as línguas possíveis
para me certificar de que todos compreenderam o que eu disse e que fui
perfeitamente claro.
Depois disso, o mesmo discurso foi traduzido para o português. A terceira
língua de tradução foi o mandarim, por razões que julguei óbvias. Houve outros
idiomas esquisitos que eu nem fazia idéia do que seria. O sujeito que falou em
83
Juliana Duarte
mandarim parecia bastante irritado, com toda a razão. E o evento daquele dia
terminou ali mesmo.
– Eu não acredito que vamos perder de assistir o campeonato por causa desses
idiotas – reclamou Peter.
Era a primeira vez que eu via o Peter irritado.
– Americano imbecil – falou Jean – eu não falei que são todos uns ignorantes?
– Isso é preconceito – falou Jéssica – mas eu concordo que esse americano de
hoje passou dos limites.
Eu também estava indignada com a situação, mas resolvi ficar quieta. Os outros
já estavam se expressando por mim. Quando pegamos o ônibus para retornar,
as reclamações continuaram até chegarmos ao nosso prédio.
Então aquele foi o fim de semana de abertura do evento. Já tinha começado
com confusão. Se prosseguisse naquele ritmo, poderia acabar muito mal.
O Pronunciamento
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Velevi
Fomos até as bancas menos tumultuadas para descobrir o que ela havia
preparado. O que vi foi uma paisagem simplesmente fantástica. Era uma cidade
colorida e o céu era adornado pelo brilho de um gigantesco arco–íris. Tinha até
mesmo pessoas! Era a primeira vez que eu via uma lente assim.
Todos estavam felizes e as crianças carregavam balões. Havia muitos parques e
todos se divertiam e sorriam. Tinha carrinhos de algodão–doce pelas ruas e as
pessoas distribuíam brinquedos para as crianças. Parecia uma eterna festa.
Todos dançavam e cantavam pelas ruas. As crianças riam e os adultos se davam
as mãos.
Lá fora havia um grupo musical. O comprador decidiu dar as mãos para as
pessoas da roda e pulou animadamente com elas. Logo alguns começaram a
escalar as centenas de arcos coloridos e a escorregar pelo outro lado. O
comprador se deixou guiar por crianças, também escorregou pelas cores do
arco-íris e mergulhou num pote de ouro. Todas as moedas se transformaram em
borboletas douradas que voaram pelos céus derrubando um pó brilhante sobre
todos. O comprador retirou a lente, satisfeito.
– Genial! – riu-se ele – Eu adorei isso! Vou me ocupar de explorar com detalhes
essa cidade tão divertida quando chegar em casa.
Aquele comprador era legal. Quem dera todos eles fossem assim: deixassem-nos
observar a lente por bastante tempo e ainda fosse tão simpático.
– Realmente, essa garota é genial – falou Peter – Como ela conseguiu programar
todas as pessoas da cidade com tanta perfeição?
Naquele momento, uma coisa inesperada aconteceu. Ouvimos gritos e olhamos
ao redor. Um rapaz subiu no palco. Ele usava uma bermuda folgada, tênis e
uma camiseta de mangas curtas com o desenho de uma prancha. Tinha um boné
por cima dos cabelos escuros e os olhos dele eram claros. Ele estava sério. Os
presentes ficaram mais surpresos ainda quando ele caminhou até o microfone e
começou a falar, num inglês perfeitamente claro:
– Eu gostaria de pedir desculpas pelo que aconteceu ontem, em nome da pessoa
que causou o tumulto. Espero que isso não se repita.
Ele fez uma pausa, mas ninguém se pronunciou.
– Hã... – prosseguiu ele, como se tentasse escolher as palavras – as minhas
desculpas se dirigem principalmente aos chineses. Eu também não fiquei nada
satisfeito com o ocorrido. Espero que não levem isso para o lado pessoal e
também que se encerre essa rivalidade entre países. Afinal, estamos aqui pelas
levis. Vamos mostrar ao mundo o que sabemos fazer melhor, que é a criação.
Podemos fazer isso de uma maneira pacífica e divertida. Espero que todos
aproveitem o evento daqui para frente, porque acho que ainda é muito cedo
para acabar com ele. E queria acrescentar que ninguém me mandou falar isso.
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Juliana Duarte
Ele ia dizer mais alguma coisa, mas pensou melhor. Depois de uma pausa,
simplesmente falou suas últimas palavras para indicar que o discurso terminara:
– É isso aí.
Ele se afastou do microfone e desceu do palco. Foi bastante aplaudido.
– Até que o velevi americano falou umas coisas interessantes – observou Peter –
Você ainda pensa mal dele, Jean?
– Só um pouco. Mas eu não gostei das roupas dele. Não falei que era um
surfista?
– Grande coisa. Bem, mas se você necessita tanto assim continuar implicando
com ele, fique à vontade. Não vou impedi–lo. Até que eu me divirto.
Finalmente tudo tinha voltado ao normal. Isto é... ainda não seria tão normal
enquanto o pessoal não se acostumasse com a presença dos velevis rodando por
aí. Assim que o americano desceu do palco, foi rodeado por repórteres, mas ele
não parecia com muita vontade de falar. Alguns fãs se aproximaram para elogiá–
lo pelo discurso e logo depois se afastaram. O americano dirigiu–se
discretamente até a banca da finlandesa, mas claro que ele foi notado. Talvez
tivesse planos de conversar com ela, mas aquilo não foi possível. Ele apenas
trocou algumas palavras rápidas e depois se afastou.
Eu não sabia que o velevi americano era assim tão sério. Ele apareceu sorrindo
na foto do site e todos diziam que ele era convencido, mas não era o que parecia.
Ele falou do caso que aconteceu com a chinesa. Provavelmente se sentiu um
pouco responsável, já que era o representante dos americanos.
Era uma pena, mas eu precisava voltar ao trabalho. E logo quando havia dois
velevis na minha frente.
No resto do dia eu já estava mais tranqüila. Consegui fazer as coisas direito e até
aproveitei para fazer hora extra. Cheguei em casa completamente exausta, mas
feliz.
– Os americanos e os chineses pararam de brigar? – perguntei ao Jean.
– Parece que pararam. O discurso do americano fez algum efeito.
– Como a chinesa reagiu?
– Acho que não disse nada. O que você queria que ela tivesse dito? “Até que
não doeu tanto quando me jogaram de cara no chão”?
O telefone tocou. Provavelmente era o Peter. O Jean atendeu.
– O Peter soube que um fã conseguiu entrar no quarto de hotel da sueca.
– Mas onde está a segurança? E foi um homem que entrou?
– Foi um moleque. E quando ela o encontrou lá, pegou uma faca de cozinha e
ameaçou cortar o pescoço dele se não sumisse naquele instante.
– Nossa! E depois?
– Ele sumiu, é claro. Interessante, não?
– Parece coisa de filme.
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Velevi
As Lentes Dele
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– Eu não faço a menor idéia de como isso pode ser feito – falou Jéssica.
– Acho que para eles as regras funcionam de maneira diferente – falou Peter –
digamos que é um mundo sem regras, onde tudo é possível. E eu li que nem os
próprios velevis conseguiram espiar a tela do africano.
– Nem mesmo os velevis! – falou Afonso, impressionado – Agora entendi o
desespero para olhar as lentes dele.
– E elas são umas dez vezes mais caras do que as lentes dos outros – falou Peter
– A melhor leal dele foi vendida por um preço absurdo no tal “leilão”.
Naquele momento, uma senhora no palco começou a explicar como
funcionariam as regras durante a semana da competição dos amadores.
– Algum velevi pode aparecer de surpresa aqui para assistir – falou Peter – na
sexta–feira terá a competição entre os dois finalistas de todo o campeonato.
Acho que até um velevi teria curiosidade para ver isso.
Assistimos a muitas mostras interessantes naqueles dois dias. Houve um torneio
infantil que me surpreendeu. Agora as lentes já eram liberadas para as crianças.
Elas tinham muito potencial. A campeã já foi decidida no final de domingo. Foi
uma garota sul–africana de onze anos, que com certeza era muito melhor que
eu. Todos começavam a desconfiar que os africanos fossem roubar – ou
melhor, conquistar seria o termo correto – a maioria dos primeiros lugares.
No torneio dos adolescentes, ganhou um rapaz coreano de 17 anos. Resolvi
participar de uma mostra da criação da imagem mais realista. Utilizei a minha
maçã para isso. Para a surpresa de todos, conquistei o incrível quinto lugar. O
primeiro lugar ficou para uma italiana mais nova que eu, que criou uma
tartaruga.
– Não dá para acreditar que essa sua maçã se mostrou útil – comentou Jean –
então pelo jeito valeu a pena ter insistido tanto nela.
Foi muito divertido poder assistir àquelas mostras, pois eu percebi como o
pessoal era esforçado. Até crianças e adolescentes inventavam umas imagens
que simplesmente me deixavam com o queixo caído.
“Futuros velevis”, eu não podia deixar de pensar.
Infelizmente, os outros não se saíram tão bem nas competições das quais
participaram.
– Parece que surgiram uns monstros por aí, enquanto estávamos brincando de
assistir às leals. Não me lembro de ter visto tanta gente boa no torneio nacional.
Depois disso, eles até ficaram desanimados para participar das competições ao
longo da semana. Era difícil admitir que houvesse uma quantidade
impressionante de pessoas ali que estavam muito acima de nós, tanto brasileiros
quanto estrangeiros. Não dava para competir nem com os amadores. O nosso
nível não alcançava mais.
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Velevi
A Terceira Semana
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Juliana Duarte
quem apareceu para falar e sim um jovem sorridente, recebido com uma salva
de palmas.
– Uau! – exclamou Peter – o nosso!
Finalmente eu o via bem na minha frente. Que demais!
– Bem-vindos à semana de mostras dos velevis!
Ele colocou as mãos para cima e houve mais uma salva de palmas. Outro jovem
ao lado traduzia o que ele falava para o inglês e fez o mesmo movimento com as
mãos. O tradutor estava tão animado quanto o Félix. Desconfiei que devessem
ser amigos. O velevi brasileiro falou “bem–vindos!” em várias línguas. A cada
vez que ele falava havia mais palmas. Realmente, o nosso velevi tinha
conquistado a simpatia de todos.
– Espero que se divirtam bastante ao longo dessa semana, assim como eu
pretendo me divertir. Preparamos muitas coisas legais e tenho certeza de que
vocês vão gostar. Por isso, não faltem nenhum dia, pois cada um dos
espetáculos será especial. Como nosso amigo americano falou, vamos mostrar
ao mundo aquilo que sabemos fazer melhor. E viva as levis! Viva nós! Viva o
mundo inteiro! Viva a ousadia, a imaginação e a criação!
Mesmo quem não entendeu nada bateu palmas, atingidos pela atmosfera
contagiante. Adorei o sotaque carioca dele. O tradutor pronunciou o mesmo
discurso em inglês.
– Agora vou dar espaço para o nosso amigo organizador falar. Ainda
precisamos de algumas explicações e burocracias antes que tudo se inicie, mas
não se preocupem que não vai demorar muito. Afinal, todos nós já passamos
pelo árduo processo de imaginar um coelho ao lado de uma cenoura sem
dormir, então perto disso será muito fácil nos mantermos acordados até o
discurso terminar.
O rapaz ao lado traduziu esse último discurso e muitos dos presentes riram.
Certamente o coelho e a cenoura era uma instrução universal do manual das
levis, pois todos entenderam a piada. Em seguida, o brasileiro deixou o palco
sob muitas manifestações de apoio. Como ele avisou, iniciou–se a falação
interminável dos organizadores. Depois começaram a distribuir panfletos.
– O calendário das competições! – exclamou Peter, ao pegar o panfleto – Vou
ler primeiro e depois conto para vocês.
– Me dá isso aqui – Jéssica puxou o papel da mão dele e começou a ler – serão
11 mostras no total. As seis primeiras serão entre as duplas. Depois haverá mais
três entre os seis vencedores. Dos três finalistas, dois irão se enfrentar e o
vencedor irá duelar com o último. Talvez o campeão já seja decidido nessa
competição. Se eles quiserem fazer mais duelos para que fique mais justo, isso
provavelmente acontecerá na quarta semana.
– Quando vai começar?
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pedir esclarecimentos, mas eles apenas insistiam que o velevi deles existia,
embora não pudessem provar. Pelo jeito aquela era uma questão de “fé”. Aquele
papo estava cada vez mais esquisito.
Depois que a palestra do africano terminou, era a vez de uma palestrante sueca
falar. Ela explicava sobre a atuação da lente no cérebro e algumas teorias sobre a
formação das imagens na tela da mente, assim como os efeitos neurológicos
advindos disso. Depois começou a falar sobre os efeitos na saúde, os testes,
indicações e contra-indicações, recomendações para as crianças, para os pais,
etc.
Mas o pessoal estava perturbado demais com a história do africano para prestar
atenção em qualquer outra coisa. Nós até ouvimos falar que tinha gente bolando
um plano para invadir o hotel naquela mesma noite e descobrir se ele existia ou
não.
Assim que retornamos ao prédio, fomos até o 201 para que o Peter procurasse
alguma novidade na internet. Ele ficou pasmo.
– Invadiram o apartamento do africano.
– Não é possível – falou Jean.
– Meu caríssimo São Tomé. Veja aqui. Foram duas brasileiras. Não sei como
conseguiram esse feito. Esse site é delas, mas elas dizem que não podem revelar
o segredo ou outras pessoas vão conseguir entrar no hotel também e vai virar
zona.
– Já virou há muito tempo – falou Afonso – mas se começarem a invadir o
hotel em bando vão transferir os velevis de lá imediatamente e acabou a festa.
– “Segredo”, hã? Aposto que subornaram um funcionário. Ou tem algum levi
trabalhando lá.
– Mas só conseguiram ficar dois minutos. E, obviamente, não conseguiram
espiar a tela dele. Disseram que o africano não expressou a menor reação.
Olhou para elas, tirou o celular do bolso e discou um número. Um minuto
depois, chegaram os seguranças para tirá–las de lá.
Na segunda-feira fomos para o evento junto com os gêmeos. Infelizmente as
irmãs tinham aula de manhã, mas confirmaram que iriam às disputas da tarde e
da noite.
– Que tal matar aula? – sugeriu Peter.
Depois a Jéssica ralhou com ele por ter dito uma coisa dessas. Mas elas não
puderam nos acompanhar, de qualquer forma.
– Até queria – disse a mais nova – mas nossa mãe não deixa.
Depois foi a vez de tentar convencer a Tábata. Combinamos que ela iria ao
menos nas duas últimas mostras.
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Velevi
O palco fora arrastado para o canto e a área central ficou vazia. As cadeiras
estavam dispostas em formato circular ao redor do centro.
– Eles vão ficar tão perto assim? – perguntou Peter, surpreso.
A dupla ficaria cercada por centenas de cadeiras. A maior parte delas já estava
lotada. O local em que sentamos não garantiria uma visão muito boa, mas não
importava. Não era os competidores em carne e osso que estávamos mais
interessados em ver, e sim suas telas da mente.
Subitamente, muitos gritos começaram. Os dois velevis tinham chegado. O
brasileiro estava sorridente como sempre. Ele vestia uma camiseta verde e
amarela, escrito “Brasil”. Era o momento ideal de ser patriota. Agora o Brasil
precisava se destacar não só pelo futebol, mas também pelas levis.
Foi a primeira vez que eu vi o moçambicano. Ele tinha a pele e os cabelos
escuros e me pareceu simpático. Na verdade, a maioria ali apoiava os dois.
O velevi brasileiro foi o primeiro a passar pelo corredor e o moçambicano logo
o seguiu. O brasileiro foi apertando a mão dos levis pelo caminho, enquanto
passava. Já o moçambicano foi mais discreto. Talvez fosse um pouco tímido ou
não estava acostumado com aquela multidão. Logo os dois chegaram ao centro.
Em seguida, uma terceira pessoa atravessou o corredor com um microfone na
mão:
– Sejam bem-vindos ao primeiro dia da mostra mundial dos velevis! Hoje os
veteranos das lentes virgens irão nos demonstrar as suas poderosas criações!
Houve manifestações animadas.
– Agora teremos Brasil e Moçambique! Permitam–me apresentar os veteranos:
Félix, o velevi brasileiro, especialista dos jogos!
Aquele lugar quase veio abaixo de tantos gritos.
– E o velevi moçambicano: Juvane, o mestre do circo!
As leals circenses dele eram famosas.
– Gostariam de dar algumas palavras antes de iniciarmos?
O moçambicano não fazia muita questão de falar, mas o brasileiro fez. O
apresentador entregou o microfone a ele.
– Bom dia! Estou muito contente em ver essa multidão. Precisamos de cada vez
mais fanáticos pelas levis para que essa arte maravilhosa permaneça sempre viva.
E para que vocês estejam aqui na frente na próxima mundial!
Realmente, ele era um sujeito legal.
– Que cada um dê o seu melhor! Espero que se deleitem com o que
preparamos. Será uma surpresa para nós também, então vamos ver no que essa
disputa divertida vai dar. Estou tão ansioso quanto vocês. Aproveitem o
espetáculo e mergulhem bem fundo para não perder nenhum detalhe. Nos
veremos novamente daqui a umas duas ou três horas. Vamos aproveitar
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Juliana Duarte
Segunda Parte
O Jogo do Circo
Era uma vez um menino que desejava buscar a essência da vida. Mas ele achava
que queria apenas brincar. Isso era tudo o que sabia.
Você possui muitos conhecimentos. Mas se pudesse fazer uma faxina no seu
cérebro e varrer tudo o que não importa, veria que sobraria pouca coisa. O seu
cérebro é como uma sala coberta de pó, teias de aranhas e coisas quebradas.
Você jamais chamou ninguém para habitar essa sala vazia.
Você não chamou os insetos. Não os convidou para entrar e ofereceu chá. Eles
vieram sem serem chamados porque havia uma sala ali. E agora a sala está cheia:
de pó, de insetos e coisas quebradas. Essa é a casa deles.
Você ainda se lembra daquele comercial da Coca-Cola em que aparecia o gelo e
o urso polar? É claro que se lembra. Dessas coisas você não esquece. O
comercial da Coca-Cola se chama escaravelho. O escaravelho encontrou uma
sala dentro da sua cabeça e resolveu habitar lá. Essa criatura possui uma coisa
chamada instinto. Você também é um animal e sabe que quando o instinto
chega, ele penetra sem controle. Toma conta da mente e do coração e você não
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Velevi
possui mais controle sobre eles. Você ama os seus insetos. Isso porque você
pode chamá–los de seus. O pó é confortável. Dá aquela sensação de que a sala
está cheia e não vazia. Cheia de lixo.
Você possui muitas coisas que pode chamar de suas. “Isso é meu porque está na
minha sala querida”. Mas veja só! Você terminou a faxina e o que sobrou? Nada!
Colocou a vassoura para o lado e plá! Varreu o comercial da Coca–Cola.
Colocou a vassoura para a esquerda e plá! Varreu os nomes dos Ursinhos
Carinhosos. O que faria se soubesse de todos os nomes dos Ursinhos
Carinhosos? Acho que você poderia ganhar um prêmio um dia se estivesse num
programa estilo vale–tudo na televisão e caísse exatamente essa questão!
Você deu um grande sopro e voaram diversos comerciais, nomes de
personagens de histórias, fórmulas extremamente chatas que aprendeu na escola
e todo o resto de lixo não re–aproveitável. Tcharans! Sua sala está limpíssima!
Olhe para ela agora. Infelizmente não sobrou nada. Como o seu cérebro é vazio
e inútil. Essas concavidades interessantes que há nele são só enfeite? O que fez
com sua preciosa massa cinzenta? Jogou–a fora também?
Lembra–se da primeira frase da história? Claro que não, então vou colocá–la
aqui novamente: “Era uma vez um menino que desejava buscar a essência da
vida”.
Eu não estou falando do menino. Estou falando de você.
O personagem não existe, mas você existe. Ou eu deveria dizer: o personagem
existe em você. Mas por que o menino – ou seja, você – buscava a essência da
vida e ainda não sabia que a buscava?
Porque ele achava que a coisa mais importante era o comercial da Coca-Cola.
Estou aqui para explicar a moral da história antes mesmo de começá-la. Isso é
estranho? Geralmente a moral vem no final, então eu decidi inovar e colocá-la
no começo. A moral da história é que você é burro. Você acha que sabe muita
coisa, mas na verdade não sabe nada. E daí todos aqueles nomes inúteis que
decorou na escola e na faculdade? É isso que chama de sabedoria?
Eu não sou contra o ensino. Sou a favor do ensino inteligente. Do tipo que você
está aprendendo agora, porque eu sou um cara esperto. Então quero
compartilhar a minha sabedoria. Como eu me tornei tão sábio? Ah, isso foi
resultado de limpar a minha sala muitas vezes, enchê-la de tranqueiras de novo,
apenas para esvaziá–la outra vez e enchê-la com novas tranqueiras. Creio que no
processo consegui eliminar as poeiras mais grosseiras.
Era uma vez um menino que ansiava alcançar uma estrela do céu. A estrela
estava muito longe. Então ele mentia, dizendo que era capaz de girá-la entre
seus dedos.
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Juliana Duarte
Essa criança era mentirosa e cruel. Ela passava o seu dia na sala de brinquedos.
A coisa mais importante para ele era brincar. Brincar, brincar, brincar. Você
sabe o que é isso? É o que você faz o tempo todo.
A sala de brinquedos era belíssima. Era gigantesca. Esse menino era rico. E por
isso ele era feliz. Afinal, nós sabemos que somente as pessoas ricas são felizes.
Esse papo–furado de que dinheiro não traz felicidade foi uma mentira deslavada
contada pelo seu pai pobre porque ele queria que você se sentisse menos infeliz
e fracassado do que o seu vizinho que tinha um Game Cube. Não, o Cube já é
coisa do passado. Hoje em dia você quer um Wii. Então seu pai te comprou um
computador caindo aos pedaços para você baixar os jogos de última categoria
da internet.
As pessoas não são iguais. Os ricos são felizes e os pobres são infelizes. Assim é
a vida e essa é uma verdade absoluta. Dizem que na morte todos se tornam
iguais. Mas isso não interessa. Não faz a menor diferença. Você já está morto.
Na vida as pessoas são diferentes. Eu estou vivo agora. Depois da morte posso
bater um papo com Deus ou com o Diabo, não importa. Sinceramente, não
tenho nada contra nenhum dos dois, então pretendo ouvir os conselhos de cada
um de forma imparcial. Nada de favoritismos. Na vida o importante é ter
diversão. Isso é o ser humano. Você não é um esqueleto. É carne e sangue.
O menino está na sala belíssima, com seus brinquedos.
A sala é completamente dourada. Ela é de ouro. Consegue vislumbrar o brilho
do ouro? Sente o toque do ouro? O cheiro do ouro? Todos desejam o ouro.
Os brinquedos do menino eram dourados, pois eram todos de ouro. As suas
roupas também e ele vivia num mundo amarelo brilhante que lhe cegava a vista
de tão cintilante. Foi por isso que ele começou a usar óculos. O mundo doía
demais a sua vista, mas ainda assim aquilo era bom.
O brinquedo favorito dele era um globo de ouro, que ele jogava para cima e
para baixo, o qual ele dera o nome de “A Bola”.
Quando ele jogava A Bola para cima, ela fazia “Vuuum”. Quando ele a jogava
para baixo ela fazia “Cruc”. Mas ela nunca quebrava, porque o ouro sempre foi
muito forte e poderoso. Havia umas sujeirinhas n'A Bola, que tinham formatos
estranhos e recortados. Ele não gostava daquelas sujeiras, pois eram muito feias.
Por isso ele resolveu apagá–las com seu pano de ouro.
Mas até o menino começou a cansar de todo aquele mundo amarelado e
enjoado. Por isso, o próximo presente de aniversário que pediu foi vários baldes
gigantes de tintas coloridas e muitos pincéis. Ele começou a pintar a sala e todos
os seus brinquedos de muitas cores diferentes. O menino ficou bastante
satisfeito com isso, pois um mundo colorido era bem mais divertido.
Ele pintou o carrinho de azul. Pintou os tabuleiros de marrom e os
bonequinhos de branco e preto. Cada brinquedo agora tinha uma cor diferente.
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Velevi
Quando ele chegou n'A Bola, estava em dúvida sobre que cor usaria. Afinal, era
uma decisão importante. Ela era seu brinquedo favorito. Portanto, ele decidiu
que A Bola seria o único brinquedo que não seria pintado. Isso porque ela era
especial. A Bola era a única coisa amarela no mundo e só a ela seria permitido
ter essa cor.
E esse era o quarto de brinquedos do menino que só queria saber de brincar.
Ele era rico e feliz, embora dizer isso seja uma redundância. Passava o dia
inteiro jogando A Bola, pois era isso o que sabia fazer bem e lhe dava prazer.
Vuuum, Cruc.
Vuuum, Cruc.
Vuuum, Cruc.
Era apenas esse som que se ouvia.
Mas um dia ele surpreendeu–se, porque estava entediado. Afinal, mesmo que
seja a diversão mais extraordinária, fazer a mesma coisa a vida inteira cansa.
Você deveria entender isso. A vida precisa de mudanças o tempo todo, pois o
movimento é necessário. Não apenas o Vuum-Cruc eterno.
Você odeia mudanças, porque é muito teimoso. Você queria que a vida durasse
para sempre e não quer que isso mude. Essa é a sua ignorância. Até uma criança
daquele tamanho é mais esperta que você.
Então a criança resolveu sair da sala de brinquedos e foi até o salão de jogos dos
adultos. Eles chamavam aquele lugar de “O Cassino”. Por lá, o menino
encontrou muitas pessoas interessantes. Elas eram bem altas e isso era muito
legal. Usavam roupas finas e elegantes, o que combinava muito bem com a
burguesia. O verdadeiro desejo do menino era o ouro.
Ele se encantou com as máquinas de caça–níqueis. Elas se tornaram seu
brinquedo favorito e ele esqueceu A Bola por um momento.
Bar! 7, 7, 7! Limões! Cerejas! Que fome!
O menino lembrou–se de que estava com sede, sentou–se à mesa e solicitou
educadamente ao garçom um drinque. O garçom disse a ele que não poderia
servir drinques para menores de idade. O menino mandou o garçom se calar,
mostrou sua carteira de identidade e ameaçou chamar o seu pai – o poderoso
chefão – se não fosse atendido imediatamente, para demitir o sujeito
impertinente. O garçom pediu desculpas pela grosseria e trouxe o drinque para
o garoto.
O menino bebeu com gosto e deu um grande arroto. Ele não sabia que arrotar
era falta de educação. Ou talvez soubesse e desejasse mostrar quem era o
maioral por ali. Afinal, quando um rico arrota, não importa a ocasião: ele sempre
está certo.
Agora ele não tinha mais sede e voltou a divertir–se nas máquinas de caça-
níqueis. Claro que ele logo enjoou de toda aquela baboseira chata e daquele
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Juliana Duarte
lugar cheio de luzes. Mas como ele quis ser metido e mostrar que tinha ouro,
jogou cartas e fez algumas apostas. Ele também deu uma tacada na bola branca
da mesa de bilhar. Tragou um charutão e passou a mão na bunda de uma loira
oxigenada com vestido branco decotado e sapatos de salto fino, que parecia a
Marilyn Monroe. E obviamente o vestido dela voou com o vento encanado do
cassino.
Mas depois o menino se cansou, tirou os óculos escuros e o gel do cabelo.
Começou a olhar para a lua da janela de sua mansão e a sonhar. Ele a imaginava
como um queijo suíço, porque tinha fome.
A sua mãe lhe dizia: “Você deveria sair mais de casa, praticar algum esporte,
jogar futebol com seus amigos, comer mais brócolis”. Mas ele só queria saber de
jogar Mortal Kombat em seu Playstation, ler quadrinhos eróticos, comer pizza
de carne de porco, fumar a sua erva e encher a cara de cachaça.
Um dia ele relembrou-se d'A Bola. Até que não seria má idéia jogar futebol com
ela. Afinal, era ouro. Algo que tivesse ouro no meio não poderia ser ruim. Ele
solicitou à sua mãe que lhe arranjasse alguns amigos para formar um time de
futebol e ela obedeceu. Depois de cinco minutos, ele desceu ao seu estádio de
futebol particular, de grama sintética – para não sujar seus sapatos.
– Quem gosta de ouro? – perguntou o menino.
O time inteiro levantou a mão. Então o menino deu a boa nova de que aquela
era uma bola de ouro e todos se agradaram disso. O problema é que ninguém
conseguia fazer gols sem ficar com um calo no pé. Mas se o seu pé nega o ouro,
o seu cérebro também o nega e você não é mais digno dele.
O jogo não durou muito tempo porque um dos jogadores do time adversário –
ou talvez tenha sido do time dele, mas não fazia muita diferença – roubou A
Bola. Sem A Bola não haveria mais como jogar e todos os meninos voltaram
para casa.
Mas claro que o dono d'A Bola não ia deixar assim e perseguiu o ladrão. Ele
alcançou–o, pois tinha seu jato particular e sempre conseguia tudo o que queria.
Nem mesmo precisou convocar o seu esquadrão de detetives ou o regimento de
cavalaria, porque fazia tempo que não usava seu jatinho e queria aproveitar a
oportunidade. Logo alcançou o gatuno. O ladrão justificou-se, dizendo que
gostava de ouro. O menino achou a resposta muito boa e pensou: “Esse é dos
meus” e se tornaram amigos.
– Agora que recuperei A Bola, eu desejo o sol, a lua e as estrelas. Entregue-os a
mim agora.
O ladrão prontamente obedeceu. Mas como o sol era muito quente, ele precisou
segurá-lo com a luva de assar bolos de sua mãe. Como ele era ladrão, aproveitou
e roubou a luva também.
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– Você não sabe o que é diversão. Essas coisas chatas como possuir o sol, a lua
e as estrelas não têm a menor importância. Você vê alguma graça em girassóis,
queijos e purpurina?
– Claro que não – respondeu o menino, imediatamente – desejo ficar bem longe
dessas pilhérias. Mas se o queijo estiver derretido, aceito um pedaço.
– Que tal comermos queijo derretido enquanto nos divertimos de verdade? –
sugeriu o ladrão – vou te mostrar o que é diversão.
Cada um cortou um galho de árvore, transformou num espetinho e com ele
arrancou um pedaço da lua. Eles aproximaram os espetos enluarados do sol e
assim o queijo derreteu–se rapidinho e ficou muito bom de comer.
– Eu ainda tenho fome.
O ladrão pegou a luva de assar bolos de sua mãe e alcançou o sol. Lançou–o
numa fazenda e assim foi capaz de assar algumas dezenas de cabeças de gado
que eles devoraram no espeto junto com o queijo derretido.
– E para beber, alguma coisa com álcool.
O ladrão subiu num cometa que passava e anunciou para que Deus realizasse o
juízo final mais cedo. Ele esperou que o anjo tocasse a terceira trombeta e
transformasse as águas dos mares em absinto.
– OK, assim já está bom. Mais tarde você continua. Agora precisamos tomar
um drinque.
Como o quarto anjo não poderia mais ferir o sol e a lua – pois eles já tinham
comido a lua no espetinho e usado o sol como fogueira para esquentar o queijo
e comer carne de gado – e ele não tinha mais nada para fazer, o ladrão pediu
para o anjo sacudir o céu para que caíssem as estrelas no mar de absinto. As
estrelas eram os gelinhos. Assim o drinque poderia ficar geladinho. O menino e
o ladrão beberam com gosto.
Naquele momento, o mundo estava cheio de fogo e sangue. Como aquilo era
algo vulgar, o ladrão sugeriu que deixassem toda aquela baboseira de lado e
fossem ao circo. Como o circo era muito caro e eles estavam de bom humor e
bem alimentados, pagaram a entrada com A Bola, pois ela já não teria muita
utilidade.
Os dois se sentaram, negaram as pipocas – pois já estavam de barriga cheia –
mas não negaram a cachaça e assistiram ao cirquinho infantil, em que as crianças
riam bastante, pois já estavam bêbadas com toda aquela cachaçona.
A primeira atração foram os macacos saltitantes. Os macacos faziam: “Ic, ic, ic”.
E então todas as crianças apontaram para eles e riram, porque sabiam que os
bichos também estavam bêbados, pois essa era sua natureza. Deram de beber a
eles, ignorando os avisos do zoológico que diziam para não alimentar os
animais. Era um pouco difícil dizer se aquilo era um circo ou um zoológico, pois
o palhaço se parecia muito com um porco.
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Juliana Duarte
Claro que ninguém gostou da música, pois a piada do palhaço era muito absurda
e não fazia sentido – e ninguém gostou de ser chamado de criança mijona, pois
era um insulto muito grande – Todos odeiam coisas ilógicas, porque se você não
entende alguma coisa, precisa odiá–la e livrar–se dela.
As crianças começaram a vaiar, a cacarejar e a jogar a cachaça e a pipoca no
palhaço. Mas aquilo não era suficiente, então elas jogaram barro na cara dele,
tomates, abacaxis e um frango assado. Lançaram um rádio velho, uma cama e
uma máquina de lavar. Arremessaram um rinoceronte, uma girafa, as cadeiras, a
arquibancada, a lona do circo, romperam o chão, encontraram uma usina de
petróleo e os anões e jogaram tudo na cabeça dele.
Quando o palhaço morreu, todos deram gritos e vivas; e sapatearam.
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A próxima atração era o equilibrista. Todos gostaram dele. Mas como ele não
chegava nunca do outro lado, o ladrão resolveu cortar o fio e o equilibrista caiu.
Todos deram assobios, latiram e jogaram cachaça para cima.
– Mais cachaça! Mais cachaça! – as crianças gritavam com alegria, enquanto
apitavam as suas cornetas.
Eles descobriram que o palhaço não tinha morrido ainda – seria imortal? –
então o menino recuperou A Bola e lançou na cabeça dele e dessa vez o palhaço
foi para o buraco.
– Vai uma comida para três?! – urraram as crianças.
E riram até suas gargantas secarem. Elas riam como os macacos: “Ic, ic, ic” e
também zurravam, como intelectuais.
Começou o teatro de bonecos e todos adoraram. Havia fantoches muito
simpáticos. Mas que raiva sentiam deles. Queriam tomar a posse dos fantoches
para si.
Quem era aquele que se tornaria o supremo Mestre dos Fantoches?
As crianças levantaram e os roubaram. Claro que o ladrão, que era especialista
em furtos, roubou o maior número deles e deu um também para o menino. O
ladrão e o menino saíram do circo muito satisfeitos, pois agora tinham dois
fantoches mui bonitos.
O mundo lá fora ainda estava todo cheio de sangue e fogo. Eles foram para
cima de uma montanha, pois lá era mais emocionante. Vomitaram o queijo
suíço para o alto e a lua grudou de novo no céu. O fantoche do ladrão começou
a divagar pilhérias:
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Depois do Show
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– Mas eu sei criar imagens bem macabras – falou Peter, orgulhoso – quer ver?
– Não, obrigada – respondeu Jéssica, secamente.
Quando retornamos ao evento encontramos as duas irmãs, que tinham vindo
direto da escola. Ficamos surpresos ao descobrir que o brasileiro e o
moçambicano ainda estavam por lá. Provavelmente pretendiam assistir à
competição da tarde.
E foi naquele momento que as manifestações recomeçaram. Mais dois velevis
tinham chegado. Todos se viraram para trás para observar a entrada.
Observei o australiano para tentar descobrir que tipo de pessoa era. Ele usava
uma calça jeans e uma camisa social branca. Tinha cabelos castanhos bem
claros, quase loiros, e olhos castanhos. A expressão dele era séria.
A chinesa usava roupas muito bonitas e estava sorridente. Ela usava uma espécie
de vestido oriental vermelho, de gola alta e mangas curtas. Calçava sapatilhas
pretas. Os cabelos estavam amarrados. O penteado era lindo.
Os dois passaram pelo corredor e só se ouvia gritarem o nome da chinesa. O
australiano não pareceu se importar muito. Logo os dois chegaram ao centro e o
apresentador empolgado os seguiu, com o microfone na mão:
– Comecemos a segunda mostra do torneio internacional de velevis: China e
Austrália! Apresento–lhes uma das velevis mais populares e habilidosas: a
brilhante chinesa Chanjuan! Mestra dos mundos das cores!
Desconfiei que o apresentador estivesse tão empolgado porque também era um
grande fã. A chinesa deu um largo sorriso.
– E aqui está o velevi australiano: Daimon! Gostariam de dizer alguma coisa
antes de começarmos? – perguntou ele, como se desejasse que a chinesa falasse.
Ela resolveu aceitar o microfone.
– Apenas umas poucas palavras – o inglês dela tinha um sotaque bem carregado
– Estou muito feliz que estejam aqui para nos assistir. Vou me esforçar para que
gostem do que terei para mostrar. Que o céu seja o limite para a nossa
imaginação!
O australiano não parecia ter nada a dizer.
– Nós que agradecemos, Chanjuan, por suas palavras gentis!
Estava na hora do segundo espetáculo. De fato, a chinesa ia se esforçar
bastante.
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sempre está lá, por todos os lados. Se você se acha uma pessoa corajosa,
certamente não sabe nada sobre o mundo.
O mundo é assustador.
Nesse momento você não consegue ver nada assustador. Quando você pega um
ônibus ou olha pela janela do seu quarto. Quando assiste a um filme ou deita na
cama. Essas coisas te fazem sentir leve; e essa leveza mata.
Na verdade, você não tem medo da morte. Você teme outras coisas que ainda
não sabe. Provavelmente as coisas que mais teme ainda não aconteceram na sua
vida. Mas não se preocupe. Vai chegar o seu momento.
O medo é divertido. Você morre de rir. Eu gostaria de morrer rindo. Acho que
provavelmente vai acontecer, pois não vou me conter.
É engraçado que as piores coisas sejam exatamente as mais emocionantes. Sem
elas, você morreria de tédio. Mas não se preocupe; o tédio não mata. Você
nunca vai morrer disso. Seria mais fácil morrer de susto ao olhar o seu rosto no
espelho aos noventa anos e dizer: quando foi que me tornei um monstro?
Mas não me culpe. Eu não te conheço. Não sei o que virá para você. Por outro
lado, seres humanos são muito previsíveis. Há poucas opções de
acontecimentos para eles. Se você escuta por cinco minutos sobre a rotina de
alguém, talvez possa prever se essa pessoa vai morrer de um acidente de
trânsito, de câncer ou de ataque cardíaco.
Você come alimentos enlatados. Aquelas coisas esquisitas que vendem no
supermercado, com nomes assustadores. Você vai morrer de câncer. Vai
definhar numa cama de hospital depois de morar lá por um bom tempo fazendo
coisas interessantes. “Eu não quero morrer de câncer” você me disse.
Mas você não quer deixar de comer as delícias artificiais, de esquentar o seu
almoço no microondas, de usar repelentes de mosquitos e pasta de dentes. Não
é tão ruim assim. Você vai morrer de qualquer jeito, então que seja de câncer. É
um bom jeito de morrer. Conhece jeito melhor? Eu não conheço. Câncer é a
melhor maneira de morrer. A dor, o fim lento e certo, te fazem vivo como
nunca.
Mas não estamos aqui para falar da morte e sim para falar da vida. O que acha
da vida? Está muito chata? Talvez alguma dose de medo seja necessária. Mas eu
não falo daqueles medos evidentes e previsíveis. Não falo dos filmes de terror.
Esses sustos pequenos não permanecem, porque eles só te tocam na pele. Você
precisa de um terror penetrante que enterre na carne e atinja a alma. Ainda bem
que alma não existe. Algo que não sente dor não pode ser real.
Eu vou te ensinar o significado de suspense. É essa a pitada que você deve dar
antes que chegue o medo. É necessário preparar seu corpo da maneira certa
para receber o convidado, como um bom anfitrião. Basta preparar a mente. O
corpo te obedece. É verdade que o corpo às vezes é teimoso e age como um
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não chega a hora da próxima refeição. Se não houvesse as refeições para alegrar
seu dia... você morreria de depressão antes de morrer de fome.
Por que filmes, eu pergunto? Porque eles são a reunião de todas as artes.
Estimulam o sentido da visão e audição de maneira fenomenal. Há o
movimento, a cor, o som. Tudo isso é estonteante. Você precisa assisti-los
muito alto. Ah, a música! Você precisa de uma trilha sonora para o dia, mas... a
sua vida não é como os filmes. Nos filmes há uma música emocionante bem na
hora em que o mocinho salva a mocinha. Naquela cena fantástica em que o
sabre de luz corta as pernas do vilão bonitão.
Mas agora imagine se fossem fazer um filme com a história da sua vida.
Enquanto toca aquela trilha sonora maravilhosa, você está deitado na cama. Que
chato, não é? Como a sua vida é muito previsível, você vê filmes para lembrar
de cenas inventadas que nunca aconteceram. E você finge que elas são reais.
Mas se sua vida fosse um pouco mais interessante, você não precisaria de filmes.
Eu não estou te criticando. Também sou uma pessoa previsível como você. Até
que é confortável ser assim. Dessa forma o medo fica bem longe. E quando ele
chega, com força total, não há como lidar com ele. A sua rotina te tornou fraco.
Você quer que as coisas continuem como estão. Os acontecimentos
empolgantes costumam ser desconfortáveis na hora em que acontecem. Eles só
servem para depois virar memória, relembrar daquilo com saudades e,
principalmente, contar a outros.
Acabei de ler a sua vida. Talvez a sua seja diferente disso, aqui e ali. Isso varia
conforme o país, idade, classe social. Mas no final não muda muita coisa. No
meu exemplo eu falo de um jovem burguês desocupado, mas isso pode ser
substituído.
Talvez você tenha um passatempo extremamente interessante. Eu me pergunto
qual é e quanto tempo vai durar. A vida é longa demais para segurar o mesmo
passatempo para sempre. E isso seria um pouco chato. Uma decepção. O
importante na vida é ser criativo, independente das conseqüências.
Eu sei que você não pensa só em comida e conforto. Já mencionei sobre o sexo.
Afinal, você não vê filmes para ver pessoas comendo – embora isso também
possa ser interessante. Por quê? Não sei. É um mistério – mas sim para ver
pessoas fazendo sexo.
Quando falo de sexo, também me refiro aos romantismos. Você assiste a filmes
para ver o amor. Se não houvesse o amor, não teria graça. Pode ser que você
seja um homem e prefira filmes pornôs ou uma mulher e prefira aqueles
romantismos baratos, bregas e sem sal. Uma pessoa com bom gosto
acrescentaria uma pitada dos dois.
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Mas a combinação perfeita é casar os dois temas mais desejados: amor e morte.
Shakespeare sabia disso. Dizem que o amor é a única coisa capaz de nos fazer
vencer o medo da morte. Já ouviu falar?
Isso porque quando você ama, coloca a perpetuação da sua espécie acima da
manutenção do seu próprio ser. É mais importante que seu filho viva do que
você, que já cumpriu seu papel de gerar o descendente. Por isso, o medo
desaparece no momento da cópula. A mulher foi feita geneticamente para viver
mais que o homem, porque ainda precisa amamentar e criar o bebê. O homem
já espalhou o sêmen e pode morrer. O amor serve para que a mãe não abandone
seu próprio bebê à morte ou ele não conseguiria chegar à fase adulta e a espécie
desapareceria. O ódio serve para que você mate quem ameaça seu filho, você ou
outros seres de sua espécie, nessa ordem de prioridade.
Sabe por que você gosta tanto de comer e de fazer sexo? Por causa do seu
instinto animal. A comida serve para que você sobreviva. O sexo serve para
perpetuar as gerações. Simples, não? Geralmente as coisas mais simples são as
que menos nos damos conta. Portanto, nossos gostos e sentimentos constituem
estratégias da natureza; está em nossas entranhas. Somos joguetes dos deuses. Se
quiser desafiá-los, negue seus instintos, seu ódio e seus medos. Mas eu não
recomendo. Isso pode te custar muito caro. Se eles existem, significa que servem
para alguma coisa. É mais interessante descobrir o uso deles em vez de parar de
jogar, ou não seria divertido. Se você não quer se divertir, então morra de uma
vez. Não há nada para você aqui.
Eu não sei por que a natureza se esforçou tanto em criar truques para nos
manter vivos, se vamos morrer no final. Ela deve ser muito estúpida para ter
feito uma besteira dessas. Parece que ela está brincando conosco. Entrega–nos
todos os prazeres em mãos somente para que eles sejam arrancados de nós.
Comida e sexo são gostos universais. Todos gostam deles.
“Eu não gosto de comer”
“Eu não gosto de sexo”
Mentira. Seu mentiroso. Até um orangotango é mais sincero que você.
Eu odeio pessoas mentirosas.
Provavelmente a mentira é a pior coisa do mundo. Ela também te soa assim,
desagradável? Há quem diga que não faz mal mentir às vezes, mas eu te alerto:
tome muito cuidado com as pessoas que dão esses conselhos. Jamais confie
nelas. Elas já mentiram muitas vezes para você antes. Irão mentir no futuro,
apenas porque é conveniente para elas. Querem se esconder porque morrem de
medo.
Eu permito que você tenha medo de qualquer coisa. Apenas um medo eu não
tolero: o medo de falar a verdade. Você não deveria mentir. Mentir é muito feio,
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preferidas são comer e fazer sexo? Pois então. Em ambos homens e mulheres
vêem o mundo de forma diferente.
Para a mulher, o momento da refeição deve acontecer de forma controlada.
Cada tipo e quantidade de alimento devem ser selecionados cuidadosamente no
prato. Já o homem, aceita ser servido pela mulher. Ele só quer comer muito e o
mais rápido possível para satisfazer o seu instinto animal.
No sexo é a mesma coisa. A mulher deseja o romantismo e o mistério antes que
as coisas aconteçam. Tudo precisa acontecer de forma lenta, descobrindo o
outro aos poucos. Já os homens só querem a carne, o mais rápido possível.
Carne no prato no almoço; carne na cama na madrugada. É a fome da carne.
Já a mulher possui a sede do vinho, porque ela é elegante. Vinho na taça no
almoço. Vinho na taça na ceia, antes de tudo acontecer.
Carne e vinho; eis a união do homem e da mulher. E eles nunca se misturam. A
mulher embriaga. O homem pode causar indigestão a um estômago fraco.
Ela sabe que é um ser mais fraco e precisa da força do homem. Por outro lado,
o homem sabe que também precisa da delicadeza da mulher e não poderia viver
sem ela: uma mulher para cuidar da casa, enfeitá–la de flores, preparar o jantar,
cuidar dele quando estiver doente e satisfazê–lo na cama.
Quando um homem ama, ele se entrega. Mas as mulheres são orgulhosas e
pensam: “Eu não acho que sou inferior a um homem”. Eu sei que você precisa
dizer isso como defesa nessa selva de super machos. Mas cuidado para não
mentir para si mesma. Eu prezo, acima de tudo, a sinceridade. Não são os
homens os maiores preconceituosos, meu amor. É você mesma. O maior e mais
perigoso preconceito vem de dentro e não de fora.
Sim, até as mulheres consideram os homens superiores, embora não admitam.
Por isso é algo poderoso dominar um homem. Ora, ao dominar uma mulher,
elas não se sentiriam tão fortes. Ela se sente poderosa ao dominar um ser
superior.
Eu gostaria de ser lésbica para não admitir que preciso dos homens. Será que os
gays e lésbicas estão mais avançados no nível evolucionário? São independentes
e bravos como gatos desgarrados. Eu os invejo.
Se eu fosse um homem, acho que não ia conseguir levar as mulheres a sério.
Elas são tão bonitas que você nem consegue escutar o que elas estão dizendo.
Você só quer olhar para aquele corpo e ouvir aquela voz melodiosa... que às
vezes é bem irritante quando ela fica brabinha.
Sabe por que existe o preconceito em relação às mulheres? Exatamente por
causa da beleza delas. Dois corpos não podem existir no mesmo lugar ao
mesmo tempo. Então, como inteligência e beleza poderiam estar juntos? A
beleza mascara a inteligência. Como as mulheres são mais belas que os homens,
gostam de se aproveitar dessa característica e se arrumar ainda mais. Por isso
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– Não gosto de alfaces. Prefiro cenouras. Se eu não te comer, minha vida não
terá mais significado e vou morrer.
– Eu não tenho nada a ver com isso. A propósito, estou procurando a princesa
desse planeta. Você sabe onde ela está?
– Sou eu – respondeu a coelha – e, como uma boa cenoura, você deve me
obedecer.
– Eu trago uma mensagem do rei – informou a cenoura – ele exige que a
princesa retorne à floresta imediatamente.
– Floresta? – perguntou a coelha, confusa – O que é uma floresta? Um lugar
onde há muitas cenouras?
– Sim, exatamente. Mas lá as cenouras são laranjas. Houve uma superpopulação
de fêmeas e está acontecendo uma guerra por cenouras, então eles precisam da
princesa para colocar ordem na situação. O rei diz que a princesa possui a
simpatia do povo e sabe lidar com isso.
– Eu não quero saber dessa porcaria. Só me chamam quando precisam, hã? Eu
prefiro ficar aqui com minhas cenouras roxas de bolinhas verdes. Dê essa
mensagem ao meu papai: “Virem canibais, assim vocês sobreviverão com honra
e elegância e já resolvem o problema da superpopulação”. Ou se preferir,
comam as alfaces, já que estão em excesso.
– Mas não me coma! – implorou a cenoura – eu posso mostrar algo muito mais
divertido para você: o universo inteiro. Se procurar, encontrará o seu verdadeiro
lar.
– Nenhum lugar nesse universo é nobre o suficiente para ser digno de minha
existência magnífica. Mas como não tenho nada para fazer, vamos perpetuar a
espécie.
A cenoura cresceu assustadoramente e virou uma nave espacial. A coelhinha
subiu em cima dela e a nave decolou, soltando muita fumaça de vitamina A.
Portanto, em meio à fumaça, a coelha possuía uma boa visão do universo.
– Cante-me uma canção agora, servo – ordenou a princesa – ou vai apanhar.
E a cenoura cantou:
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– Quero um mar verde para que os meus patos de borracha passem a lua de
mel. Aliás, quero uma lua feita de mel também. Quando eu passear na rua quero
abrir a boca para que se derrame mel dentro dela, onde eu estiver.
Bidu.
– Agora eu quero um sol de baunilha – prosseguiu a princesa – e uma colher
gigantesca para que eu possa comer e misturar com mel num potinho rosa, com
limonada.
– Não acabou ainda essa porra? – perguntou a cenoura–chefe, aborrecida –
Acho que já deu, né? Não precisa abusar também.
– E isso lá é jeito de tratar a sua princesa, seu cavalo? – perguntou a princesa
coelha, extremamente ofendida – Só falta uma última coisa.
– Fala então, caceta – falou a cenoura, impaciente – e eu sou uma cenoura e não
um cavalo. Os cavalos também estão extintos.
– Falta a música. Como as dançarinas podem dançar sem música? E elas
precisam de castanholas também.
– Desculpe, princesa. Nós cenouras temos o poder e o dever de garantir
qualquer desejo seu, menos esse. Precisamos do silêncio. Devido à reverberação
do som resultante de todas essas tralhas que você me fez trazer, se houver o
menor barulhinho todas as cenouras irão ensurdecer e morrer.
– Que frescura. Então eu mesma cantarei!
A coelha dançou pelo campo de cenouras e cantou uma canção belíssima. A
cada nota, uma cenoura dava um guincho e desaparecia daquele mundo.
Quando a música acabou, o local era velho e vazio de novo. Todas as belezas
tinham desaparecido. A única que restou foi a primeira cenoura, que se
recordou de colocar algodão nos ouvidos. A coelha deu uma risada profunda
que fez com que metade do chão rachasse.
– Pare! – gritou a cenoura – Se continuar, serei obrigada a libertar todo o meu
poder terrível!
– Quero ver – desafiou a coelha – com meus próprios olhos cor–de–rosa.
Vamos ver se é tão valentão como diz, ó, ser das bolotas verdes!
– Eu te proponho um desafio. Se cumpri–lo com sucesso irei torná–la uma
estrela. Mas se falhar, irei te devorar.
– As estrelas podem dançar? – perguntou a coelha, interessada.
– Elas são poderosas. Dançam, cantam e até na morte possuem glória,
explodindo em um milhão de cores e brilhos, de impressionar o coração mais
duro.
– Que seja – falou a coelha – qualquer coisa é melhor do que esse buraco.
Contanto que tenha cenouras com mel estarei feliz. Dê–me o seu desafio.
A cenoura gigantesca começou a cantar e a pular:
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Grande e pequeno
O maior e o menor ser do universo
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Que vergonha!
Todos temem a dança
Pois nela se encerra toda a beleza da criação
A criança envergonhada se esconde no quarto escuro
Com medo de dançar
Ousaria dançar no seu próprio funeral?
A dança da morte
La danza macabra
Totentanz
Quem é aquele que ri melhor no final?
Aceita me dar o braço
E dançar comigo uma tarantela
Antes de deitar no seu caixão?
Me dá esse prazer
Me faz sentir o gosto da dança
Do formol e da penicilina
Pobre criança assustada!
Pobre coelhinho dançante!
Você não sabe cantar? Então dance!
Dance junto das estrelas
Copule com as nebulosas
Eis a viagem extraordinária
A mais louca aventura dos meus sonhos apaixonados
Porque eu te amo, ser de carne
Meu ser amassado de plástico
Minha boneca maquiada envergonhada
Canalha!
Tão vulgar que me dá pena
E que me faz chorar
Você pode chorar
Eu te entrego o meu ombro, o meu peito e o meu coração
Mas você jamais irá atingir os meus ossos
Pois minha sede de deuses é infinita
Tenho comigo a magia das cores e dos retratos
Aceita tocar a minha pele? Ela está gelada
O vento está frio
Mas eu sei dançar sem casacos ou agasalhos
Sem pele e sem sapatos
Dou meu último sapateado
Com os pés nus sobre a terra
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As Impressões
– Majestoso, Chanjuan!
As duas irmãs estavam maravilhadas, já que aquela foi a primeira mostra que
viram. Um coelho e uma cenoura! Aquilo era muito forte para os usuários de
levis. Quase nostálgico.
A chinesa deu um grande sorriso, mas o australiano não expressou reação.
Algumas pessoas também parabenizavam o australiano, mas os elogios à chinesa
estavam ofuscando a atenção que ele recebia.
Eu e os meus amigos fomos comprar alguns lanches lá mesmo nas bancas de
comida do evento, pois já era quase cinco horas.
– O final foi o melhor – falou Peter – quando a coelha abriu aquela boca gigante
escorrendo saliva, cheia de dentes pontiagudos.
– Quem diria – falou Jéssica – a coelhinha fofinha se tornar assim tão terrível.
Vocês só gostam dessas partes macabras e monstruosas, não é?
– Foi linda a parte em que todas aquelas cenouras viraram borboletas e voaram
pelos céus! – comentou Bianca, sonhadora.
– E a cachoeira de mel! – lembrou Cíntia – A lua de mel. Aquele cheiro doce!
Foi estonteante. E o castelo de cristal!
– Eu gostei do espancamento das cenouras – falou Peter.
– Tadinhas! – falou Bianca – Seu malvado.
– Coelha e cenoura, hã? – observou Peter – quando caiu o mel em cima da
cenoura, a coelhinha fez uma cara de...
– Peter, por favor – falou Jéssica – respeite a Cíntia e a Bianca.
– Tá bom, tá bom.
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Flores Congeladas
Eu sou apaixonada pelos seres humanos. E essa paixão regenera minha úlcera.
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para o precipício. O senhor pingüim mergulhou na água fria para garantir sua
refeição. Até aquele dia ele só viu o branco da neve. Era um tenor amador.
Canta, tenor. Canta!
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O Americano e a Finlandesa
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O Ursinho do Arco-íris
Era uma vez um reino muito distante e lendário. Esse reino era chamado País
das Pelúcias e Fantasias. As pessoas festejavam muitos aniversários, pois como
todo dia alguém fazia aniversário, toda hora era motivo para festa. Os cidadãos
eram unidos e conheciam uns aos outros, por isso todos se davam presentes, se
ajudavam e sorriam.
Nas ruas se via todos eles carregando balões, pois os habitantes só saíam de suas
casas se levassem um balão consigo. Gostavam de ir ao parque de diversões e os
brinquedos mais populares eram a montanha–russa e a roda-gigante. Se você
olhasse para uma roda-gigante seria fantástico, pois veria girar dezenas de
balões.
Esqueci de dizer que esse reino lindo só era habitado por bichinhos de pelúcia.
Havia a mamãe urso, o papai urso e o filhinho urso. Havia o coelho, o cachorro,
o gatinho, o macaquinho, o elefante; todos eles fofinhos, felpudos e de pelúcia.
E eles falavam a língua pelúcia, é claro. E hoje vou contar a história de um dos
bichinhos que morava nessa cidade: um ursinho de pelúcia com lacinho laranja.
Ele estava fazendo aniversário naquele dia.
Infelizmente ele não ganhou presentes. Mesmo com todo o país sabendo que
aquele era o dia do seu aniversário! Isso porque ele era diferente de todos: era
um ursinho pretinho. Todos consideravam isso de muito mau agouro, uma vez
que os ursinhos deveriam ser marrons, as girafas amarelas, os elefantes cinzas,
essas coisas. Mas como poderia haver um ursinho preto? Estava errado.
Ele não foi abandonado, mas criado com muito carinho por sua família. No
entanto, todos o tratavam de modo diferente e mantinham distância. Tudo o
que ele queria era um amigo. O ursinho preto de fita laranja no pescoço estava
triste, por ter sido esquecido por todos. Ninguém queria saber dele e ele se
sentia muito solitário.
Ele via todos os outros bichinhos de pelúcia carregando balões, sorrindo e
andando de roda–gigante. Só ele estava melancólico. Ele também carregava um
balão laranja, mas era mais por costume do que por qualquer outro motivo.
Qualquer dia ele iria soltá-lo, o balão ia voar para longe e nunca mais seria visto.
Como estava muito triste por ninguém ter lembrado de seu aniversário – não
houve nem uma lembrança, nem um presente e nem mesmo um sorriso – ele
resolveu subir no topo de um arco-íris. E lá estava o ursinho no arco-íris:
sozinho.
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– O que foi que eu fiz? – perguntou o ursinho, com muita tristeza; a sua voz
parecia a de alguém com nariz entupido – Por que ninguém lembra de mim?
Por que estou assim, tão solitário?
– Porque você é mau.
O ursinho virou–se para o lado para ver quem se dirigia a ele. Era um estranho
duende narigudo de capuz amarelo. O urso nunca tinha visto nada parecido,
pois até ali só conhecia bichinhos de pelúcia.
– Bom dia – cumprimentou o ursinho – quem é o senhor?
– Eu sou o duende maravilhoso e tenho observado o tempo todo daqui de cima
esse país ridículo.
– Você acha o meu país ridículo, senhor? – perguntou o ursinho, espantado –
Pois eu o acho muito bonito. Ele é todo colorido e...
– E você ainda defende esses seres hipócritas e cruéis disfarçados de bichinhos
de pelúcia? Acho que você é muito puro e ainda não entendeu como o mundo é
terrível. Mas não se preocupe que eu vou te mostrar.
O duende transformou–se numa águia e levou o ursinho até o alto de uma
montanha. Lá embaixo via–se o mundo colorido, os balões e rodas–gigantes.
– Vê? É esse o seu mundo maravilhoso.
– Ele é maravilhoso mesmo.
– Então por que você parece tão abatido?
– Porque hoje é meu aniversário – falou o ursinho – e ninguém lembrou.
– Entendo. E por que você tinha ido até o topo do arco–íris?
– Eu queria perguntar ao criador porque eu sou um ser tão mau, assim como
você me disse.
– Aqui do topo da montanha fica mais fácil falar com ele – falou o duende – Ei,
seu criador! Está aí em cima?
Um rosto feito de nuvens, em formato de urso de pelúcia, apareceu no céu:
– Estou aqui. Bom dia. O que deseja?
– Esse ursinho quer saber por que ele não ganhou presentes de aniversário.
– Porque você é mau – respondeu O Criador.
– Viu? – falou o duende – Não te falei?
– Mas o que foi que eu fiz? – perguntou o ursinho, desapontado.
– Você nasceu – respondeu O Criador.
– Mas por que foi que eu nasci?
– Você não queria ter nascido?
– Se eu soubesse que ia ser tão triste, talvez não – respondeu o ursinho –
mesmo assim, eu gosto da vida.
– Gostaria de nascer de novo?
– Oba! Eu quero!
– Que assim seja.
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O ursinho preto perdeu a consciência. Quando deu por si, ele estava vendo a si
mesmo do lado de fora.
– Oh! Onde estou?
Ele percebeu que agora era o balão laranja que o ursinho preto segurava.
– Não gostei – reclamou o balão – Não quero ser balão. Ponha–me de volta no
meu corpo!
– Você reclama demais – falou O Criador – agora entendi porque ninguém te
deu presente de aniversário. Você é muito mimado.
– Não quero ser balão! Ahhh! Não–quero–não–quero–não–querooooo!!
– Mas que bicho irritante – reclamou O Criador – o que você quer ser então,
seu chato?
– Eu quero ser Deus!
– Um balão que deseja ser Deus? Você não acha que é ambicioso demais? Isso
não é possível. Um balão não teria sabedoria suficiente para lidar com minhas
tarefas administrativas.
– Então o que eu faço? – perguntou o balão, confuso.
– Curta um pouco a sua vida de balão. Depois eu penso no que fazer com você.
Agora eu tenho outros compromissos, pois minha agenda está cheia. Com
licença.
E o rosto nas nuvens sumiu.
– Não fique triste, balão – consolou o duende – pelo menos agora você é laranja
e não preto como antes.
– Grande coisa. Esse tal de criador é muito arrogante. Ele me chamou de chato,
mas na verdade ele que é. Vou tentar falar com o demônio.
– Está bem, vamos lá.
O duende transformou–se em uma cobra e levou o balão laranja na boca. Eles
retornaram à cidade dos ursinhos de pelúcia.
– Onde está o demo? – perguntou o balão.
– Ali – falou o duende maravilhoso, retomando sua forma original.
– Olá amigos – falou a roda–gigante – O que desejam?
– Bom dia, senhor fita cassete – falou o duende – ou melhor, senhor demo.
Bem, o caso é que esse balão não está satisfeito com sua vida de balão e quer ser
outra coisa, entende? Mas a verdade é que ele queria ganhar um presente de
aniversário.
– O que você quer ser? – perguntou o demo.
– Não sei – confessou o balão – só não quero mais ser um balão. Transforme–
me em qualquer coisa logo! Estou com medo de estourar de repente.
– Está certo – concordou a roda-gigante.
– Puxa, até que o senhor demo é gentil – comentou o duende.
O balão laranja voou pelos céus e o ex-balão tornou–se um bolo de aniversário.
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– Ei! – reclamou o bolo – Não posso ser bolo. Eu serei comido! Socorro!
– Ué? – falou o duende – Quem mais está fazendo aniversário hoje para haver
esse bolo de aniversário tão bonito por aqui?
– Não acredito! – exclamou o bolo – Então esse é meu próprio bolo de
aniversário! Eles lembraram de mim e queriam me fazer uma surpresa. Preciso
tornar–me ursinho de novo.
– Ei, senhor roda – chamou o duende – Transforme esse bolo aqui em um urso.
– Eu mereço – falou a roda; mas obedeceu.
E lá estava o ursinho preto, no topo da montanha. Ele estava tão ansioso para
comer o bolo, que desceu a montanha correndo. No entanto, ao chegar em casa,
descobriu que seus familiares cansaram de esperá–lo e já tinham comido o bolo
inteiro. Desapontado, ele percebeu que também tinha perdido seu balão laranja.
Agora ele estava tão deprimido que voltou a vagar pelo topo do arco-íris.
E cantou, com sua vozinha fanhosa:
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– Ah, mas que chatice. Ainda com essa história? Seu ursinho gótico depressivo.
Então se mate de uma vez, se tem coragem, seu bisonho. Vamos!
E o duende começou a cantar também, rebolando:
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– Esse ouro é meu! – gritou o duende – Não toque, ladrão! Foi o meu pote de
ouro que salvou o seu pescoço. Portanto, quero meu preço. Já que seu pescoço
não rachou, não precisa mais de lenço nenhum para cobri-lo.
E o duende arrancou o lenço laranja do pescoço do urso e sumiu de lá com seu
pote de ouro. Sem o pote, todos os arco–íris desapareceram e o país feliz dos
ursinhos de pelúcia ficou escuro e todos ficaram tristes.
– Não! – lamentou–se o ursinho – Não perdi apenas meu balão e meu bolo!
Agora perdi o meu lenço também. Que tragédia!
Mas ele estava tão deprimido que nem para se matar tinha ânimo, então desistiu
dessa idéia. Agora ele não era mais um ursinho puro e inocente e sim um urso
malvado tomado pela fúria: ele iria dar um jeito de se livrar de seu amigo da
onça.
O ursinho escalou o topo da montanha e gritou:
– Criador! Exploda esse mundo todo! O meu inimigo deve estar em algum lugar
por aqui, então queime tudo!
– Yes, sir, my sir – respondeu O Criador.
O país inteiro foi engolido pelas chamas. Milhares de balõezinhos coloridos
voaram. O ursinho conseguiu alcançar um balão rosa para si e riu
maleficamente.
– Teve o que mereceu, duende maldito!
– Eu, hein? Você virou gay agora, ursinho? – perguntou uma voz vinda de
algum lugar – Esse balão rosa está meio fru–fru. Mas enfim, gosto é gosto, eu
acho.
O ursinho ficou tão furioso ao descobrir que o duende ainda estava vivo, que
explodiu o balão rosa.
– Ui – falou o duende – Agora ele se enfezou.
– Morra, desgraçado! – gritou o ursinho – Rajada de fogo destruidor!
O ursinho lançou chamas alaranjadas pela boca. O duende rapidamente deu um
salto mortal de costas e desviou do ataque. Retirou um skate do bolso e desceu a
montanha nele.
– Ah, vai fugir, covarde miserável? – perguntou o ursinho, irado – Você não me
escapa, seu filho de uma cadela menstruada!
O ursinho adquiriu super velocidade e desceu a montanha correndo.
O duende fez uma manobra radical com o skate e correu até a praia. Em
seguida, pegou a sua prancha e começou a surfar, para fugir pelos mares.
– Eu invoco todos os tubarões! – gritou o ursinho.
Centenas de tubarões emergiram das águas.
– Ataque de barbatanas múltiplo! Mordida mortal! Rabada assassina!
Os tubarões perseguiram o duende surfista. Mas ele apenas deu um salto e
aterrisou na areia de pára-quedas.
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Velevi
Bravo!
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Juliana Duarte
Confronto de Deuses
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Velevi
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Juliana Duarte
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Velevi
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Juliana Duarte
O Deus Prateado estava muito curioso para saber como o Deus Dourado estava
se saindo em suas criações. Resolveu visitá–lo e os dois se sentaram para tomar
um chá.
– Pois é – comentou o Deus Dourado – criar um mundo dá muito trabalho.
– Também acho – comentou o Deus Prateado, bebericando a xícara de chá –
sugiro que paremos com toda essa baboseira inútil, pois é uma perda de tempo
precioso. E como tempo é dinheiro, se eu estivesse empregando meus esforços
para fazer algo de útil como plantar alfaces, já teria ficado rico.
– Uma plantação de alfaces é uma boa pedida. Poderíamos nos tornar excelentes
agricultores e alimentar a nossa belíssima sociedade. Resolver o problema da
fome é mais importante que a arte de criar mundos. Arte é coisa de burgueses
bem alimentados. Você até tem cara de fazendeiro, Deus Prateado.
– É mesmo? E por que seria?
– Por causa dessas luas rodando em volta da sua cara. Combina bem com um
homem do campo.
– Posso beber chá, amigo Deus Prateado? – perguntou Lua Número 5.
– O meu chá é com açúcar – falou Lua Número 6.
– Não creio que essas pragas ainda estejam rodando na minha cabeça – falou o
Deus Prateado – livre–se delas para mim.
– Mas elas me parecem tão simpáticas – observou o Deus Dourado – se bem
que lua é coisa de poeta... um fazendeiro não precisa dela.
– Então destrua esse lixo! – mandou o Deus Prateado, no limite de sua fúria.
– Há! – falou o Deus Dourado.
E ele explodiu as oito luas, juntamente com a cabeça do Deus Prateado.
– Quer ver uma foto do mundo que eu criei e acabei de destruir? – perguntou o
Deus Dourado, empolgado – era um lugar em que todos bebiam chá de cabeça
para baixo, pendurados em fios elétricos.
– Como eles bebiam chá se estavam de cabeça para baixo?
– Segredo.
– Fascinante. Eu adoraria ver, se achasse meus olhos. Nossos mundos são
perfeitos demais para que os reles cidadãos que criamos para habitá–los os
compreendam. Volto a apoiar a idéia da plantação de alfaces. Ser um Deus é
muito estressante. Preciso de umas férias no campo.
– Feito. Também quero pastar com as vacas.
Então o Deus Dourado virou o Fazendeiro Feliz e o Deus Prateado virou o
Fazendeiro Muito Feliz. Os dois aravam a terra alegremente e plantavam as
alfaces. Fizeram isso por um longo tempo, até que começaram a enjoar.
– Acho que estou com indigestão de tanto comer alface.
Os dois resolveram virar alfaces para variar um pouco. O Fazendeiro Feliz virou
a Alface Verde Musgo e o Fazendeiro Muito Feliz virou a Alface Verde
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Velevi
O Africano
147
Juliana Duarte
Eu estava cada vez mais nervosa. Até o Jean estava ansioso. O Peter tentava
disfarçar com piadinhas, mas eu sabia que ele também estava nervoso. Tinha
sido a mesma coisa na madrugada um dia antes de o evento começar. O
africano tinha sido o último velevi a chegar a Brasília. E todos só conseguiram
descansar e dormir depois de saber que ele tinha chegado.
Já estava quase na hora. Eram dez para as seis e nenhum dos dois estava lá. Será
que viriam juntos do hotel ou a russa chegaria primeiro?
Cinco para as seis. Os presentes começavam a ficar agitados. Era incomum
ocorrer um atraso. Seis horas. Será que tinha acontecido alguma coisa? Não era
só eu que estava preocupada. Talvez um atraso do africano já fosse esperado,
mas por que a russa se atrasou junto? Seis e cinco. Eu não podia acreditar que
aquilo estava acontecendo. Só faltava os dois não aparecerem e cancelarem a
competição.
Seis e dez. Seis e quinze... seis e vinte. Os minutos se arrastavam.
Os organizadores também já estavam preocupados. Os próprios velevis
comentavam alguma coisa entre si. Um dos organizadores dirigiu–se aos velevis,
mas algo me sugeria que eles não saberiam informar nada.
Seis e vinte e cinco. Finalmente algo diferente aconteceu.
Eu nunca tinha ouvido alguém gritar tão alto. Praticamente todos se levantaram
das cadeiras e correram para espiar a entrada. Os dois velevis tinham chegado. A
russa tinha o mesmo rosto depressivo da foto. Os cabelos lisos e castanhos
claros; a franja curta. Ela vestia um longo vestido negro. E ao lado dela... só
podia ser ele.
A situação estava praticamente incontrolável. Tiveram que chamar um número
impressionante de seguranças porque os fãs queriam se aproximar de qualquer
maneira dos dois velevis. Pelo jeito os dois não conseguiriam nem entrar, pois
eles ainda estavam no portão de entrada. O organizador pegou um microfone.
– Pedimos que se afastem do portão, por favor! Deixem a entrada livre.
Conseguiram afastar um bom número de pessoas e os dois velevis entraram. Os
organizadores convenceram as pessoas a se sentar. O corredor estava maior
naquele dia e como a situação assim exigia, dessa vez os dois o atravessaram
cercados pelos seguranças. Mesmo quando os dois atingiram a área central, os
seguranças continuaram lá e provavelmente daquela vez iam permanecer. Afinal,
deixar aquela pessoa ali no meio cercada por centenas de fãs, era muito
perigoso.
Eu percebi que todos o fitavam, impressionados. No momento em que ele
atravessou o corredor, centenas de olhos o acompanharam. As pessoas
comentavam entusiasticamente entre si, boquiabertas. Muitos estavam
emocionados e teve até uma menina que chorou. Mas eu entendia a situação.
148
Velevi
Havia usuários de levis muito mais fanáticos que nós, que tinham ouvido falar
sobre ele há muito tempo. E era a primeira vez que o viam.
Ele estava bastante sério. A expressão dele era diferente. Sinceramente, acho
que nunca vi ninguém com aquela expressão antes. Era como se ele não
estivesse ali. Parecia até que viera de outro mundo. Apenas vivia a realidade das
lentes e aquele era o universo dele. Tinha penetrado de forma tão profunda
como nenhum outro. Havia uma distância enorme que o separava de todos os
outros velevis. Parecia que ele não era mais humano.
Os olhos dele... aquele olhar perturbava. Eram olhos negros e impossíveis de
serem desvendados. Os cabelos eram negros. E a pele era uma das mais escuras
que eu já tinha visto na vida; daquelas que só se vê em fotos de livros. Era ainda
mais escura do que a pele do moçambicano ou do egípcio. Na verdade, nem se
comparava.
Aquela pessoa era extrema em todos os aspectos: o mais perfeito no controle
das levis. Os olhos, os cabelos e a pele mais negra que eu já vira. O rosto dele e
sua expressão eram completamente impenetráveis. Eu sentia que aquela pessoa
era a mais incrível que existia. Tudo nele me dizia que ele não poderia ser
ninguém mais, a não ser o velevi africano. Somente ele estava à altura de portar
aquele nome. Aquela aparência era tão... magnífica.
Eu não saberia explicar. Não era exatamente beleza; era muito mais que isso.
Algo muito mais importante e profundo. Aqueles olhos, aquele rosto, tudo
aquilo era inacreditável e fazia meu coração acelerar. Aquele momento, aquela
pessoa; eu desejava guardar aquilo tudo para sempre.
Os gritos eram ensurdecedores. Parecia que não iam parar mais. O apresentador
tentava falar qualquer coisa no microfone, mas ninguém deixava. Até ele parecia
estar nervoso, apesar de tentar disfarçar e soar natural. No fundo ninguém
esperava que ele fosse vir de verdade. E era mais do que óbvio que era ele.
– Eis a última mostra da primeira fase: África do Sul e Rússia! Apresento–lhes a
velevi russa, a mestra do horror e do sobrenatural: Margarita!
Houve muitos aplausos. Mas o rosto dela era tão profundamente depressivo que
com certeza um sorriso jamais se encaixaria ali.
– E também... – agora o apresentador estava nervoso – o famoso velevi sul–
africano, uma lenda entre os usuários de levis e tido como o melhor do mundo:
Sobhuza!
Meu coração quase parou. Até já tinha esquecido como ele se chamava. “O
nome de um rei”. Aquele nome era fantástico. Tudo nele era incrível e perfeito.
O pavilhão explodiu em gritos, mas o africano não expressou a menor reação.
Percebi que até os velevis presentes estavam boquiabertos. Então eu confirmei:
definitivamente era a primeira vez que eles o tinham visto. O rumor do
149
Juliana Duarte
encontro dele com a finlandesa também era falso, pois ela era uma das mais
impressionadas.
– Gostariam de dizer alguma coisa antes de iniciarmos?
Era óbvio que a russa e o africano não teriam nada a dizer. As pessoas
desejavam que ele falasse. Por isso todos começaram a gritar o nome dele.
Queriam “intimidá–lo” a falar. Mas seria necessário muito mais que isso para
intimidá–lo a fazer qualquer coisa. Ele não parecia ter muito interesse no que
acontecia ao seu redor.
– Que a mostra se inicie! – anunciou o apresentador.
O africano encarou a russa firmemente. Se ele me encarasse daquela maneira
com certeza eu sairia correndo no mesmo instante. Mas ela era outra teimosa e
não se incomodou. Era possível que ele já tivesse iniciado a mostra até mesmo
de olhos abertos, então todos se viram obrigados a fechar os olhos, pois
ninguém arriscaria perder nada, nem em sonho. Finalmente o africano retiraria a
barreira e abriria sua tela da mente pela primeira vez para que outros o
assistissem.
Estava na hora do show.
A Carne de Cristo
150
Velevi
A partir desse dia ela não comeu mais nada. Ela ainda ia buscar o pão e a carne
todo dia para a sua família, mas não comia a sua parte. Escondia a própria
comida em seu quarto para que seus pais não descobrissem.
Uma semana se passou dessa maneira. A menina estava vivendo apenas de água
e seu guarda–roupa já estava fedendo, entupido de pães e de pratos com arroz e
carne do jantar. Ela estava tão fraca que mal agüentava segurar a linha e a agulha
para costurar.
– Os seus cabelos, Costureira – falou Pão de Alface – você pode comer os seus
cabelos.
A Costureira aceitou a sugestão e a cada refeição ela se servia de um bocado dos
próprios cabelos. Mas ela logo ficou careca e ainda estava fraca e com muita
fome.
– As suas unhas, Costureira – falou Pão de Alface – você pode comer as suas
unhas.
E assim ela fez. Roeu as unhas das mãos e dos pés até o sabugo, mas ainda não
lhe era suficiente.
– A sua carne, Costureira – falou Pão de Alface – cada dia você pode comer um
pequeno pedacinho de sua própria carne e costurar depois. Basta tapar as feridas
com as roupas que você costura que ninguém vai notar.
Ela sempre mantinha o Pão em seu altar sagrado para escutar as palavras da
sabedoria nos momentos das rezas.
Naquele dia ela comeu um pedacinho da sua coxa e costurou com linha e
agulha. Ela tapava as feridas com uma meia de lã. Depois ela cortou os dedinhos
dos pés, pequenos pedaços da barriga e dos ombros.
Ela esmigalhou os ossinhos e as cartilagens de sua face, cortou pedaços das
orelhas e do nariz. Fez um pão com farelos de si mesma e serviu a própria carne
no jantar para a família. Ela apenas fingia que saía para comprar pão e carne.
Sempre tapava o nariz com um lencinho, para parecer que estava resfriada.
A mãe dela começou a notar que ela estava cada vez mais fraca e a levou ao
médico. O médico da Costureira descobriu tudo, mas a pobre menina implorou
para que ele não revelasse nada.
O médico disse para a mãe da Costureirinha que ela estava fraca porque não ia
mais à igreja. Ela precisava rezar mais para o Senhor. Assim encontraria sua
salvação.
Naquela noite, depois de uma longa ausência, a mãe da Costureirinha a obrigou
a ir à Igreja. Ao entrar lá, a menina se ajoelhou e rezou, com um Pão de Alface e
uma garrafinha na mão:
151
Juliana Duarte
Deus a carregou nos braços e saiu pelas portas da igreja. Caminhou com os pés
nus na chuva e a depositou na terra de um cemitério.
A Reação
A imagem desapareceu.
Eu sentia o meu corpo gelado tremer. A atmosfera perturbadora da cena foi
extremamente forte e poderosa. Não era apenas eu que sentia frio. Alguns até
sentiam um pouco de medo. O realismo era assustador. Foi chocante para mim,
assistir àquela autofagia violenta tão de perto. Eu senti até o cheiro podre.
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Velevi
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Juliana Duarte
– Seria o máximo assistir uma disputa dela com o nosso. À tarde será Suécia e
Finlândia. E à noite teremos África do Sul e Egito.
Antes de dormir, eu não conseguia parar de pensar naquele velevi.
As levis dividiam as pessoas: quem estava fora e quem estava dentro. Eu era
apenas uma observadora. Eu não tinha papel nenhum naquela peça de teatro.
Relembrei do nosso velho teatro improvisado. Naquele momento eu desejei ser
uma árvore. Isso porque ela teria uma função mais importante que a minha.
Tudo o que me restava era apenas continuar com meu papel de espectadora.
Em meio àquela multidão que ia ao evento todo dia, eu não faria diferença
nenhuma. Se eu nunca tivesse ouvido falar em levis, tampouco aquilo faria
diferença para o mundo. Até ali a minha vida não tinha alterado a ordem do
universo em absolutamente nada.
E era dessa maneira que eu pensava naquela época.
Brasil e China
Até tentamos chegar cedo ao evento. Mas, você sabe, de manhã é muito difícil
acordar. Acabamos dormindo demais e quase chegamos atrasados.
O brasileiro e a chinesa tinham acabado de chegar. Preciso confessar que fiquei
meio emocionada, pois eles passaram muito perto de nós. Atravessaram os
portões bem quando chegamos. Os seguranças estavam por perto e não deu
para ver direito, mas mesmo assim meu coração acelerou um pouco. Os dois
foram recebidos com muitos gritos, pois ambos eram muito populares. Era
difícil dizer quem era o mais aplaudido.
Eu vi alguns levis com camisetas escrito “Brasil” na frente e “Félix” atrás. Eu
também queria uma daquelas para mim. Novamente, o nosso velevi apertou
algumas mãos ao atravessar o corredor. Tanto ele quanto a chinesa estavam bem
sorridentes e recebiam a empolgação com muito entusiasmo.
E logo chegou um outro cara bem entusiasmado: o apresentador.
– Orgulhosamente apresento a sempre fantástica velevi chinesa, a nossa querida
Chanjuan! E o incrível velevi brasileiro, Félix!
O pessoal se manifestou bastante.
– E eu sei que vocês desejam dar algumas palavras antes de iniciarmos!
Dessa vez com certeza haveria pronunciamento. A chinesa se prontificou a
falar:
– Bom dia! É maravilhoso estar aqui. Desconfio que algumas cenas bem
interessantes estejam para acontecer.
O nosso também pegou o microfone:
154
Velevi
– E aqui estamos nós de novo! Imagino que estejam tão ansiosos quanto eu.
Parece que sempre escolhem as minhas disputas para a manhã e ainda estou
com um pouco de sono, mas verei o que posso fazer.
Algumas pessoas riram. Bem, eu era uma das que estavam com sono. Mas
digamos que aquela mostra me manteria bem acordada.
Você já ouviu falar que o cachorro é o melhor amigo do homem? Claro que já.
Só que até agora você não entendia o que isso queria dizer.
Pois hoje você vai descobrir. Isso porque iremos te contar a extraordinária
história sobre dois melhores amigos: o cachorro chamado Cachorro e a menina
chamada Menina.
Cachorro e Menina eram muito unidos e gostavam de fazer muitas coisas
juntos. A bebida preferida de Cachorro era leite com Nescau e a de Menina
também, por isso eles se davam tão bem. Diziam que era exatamente isso que os
unia.
– Você é meu Nescau – dizia Menina a Cachorro.
– E você é meu leite semi-desnatado – dizia Cachorro a Menina.
Era uma ligação inseparável.
Todos os dias os dois corriam juntos pelo campo florido para jogar Frisbee.
– Pega, Cachorro! – gritava Menina, emocionada, enquanto corria na areia da
praia com sua bermuda, sua viseira e seus chinelos.
E Cachorro dava um salto em câmera–lenta:
– Peguei! Viva! Au! Au!
Era lindo. Depois disso, os dois jogavam vídeo-game. Os jogos favoritos deles
eram fuzilamento na selva, esmagamento de alienígenas e atropelamento de
velhinhos.
– Eu atropelei um menino andando de skate! – comemorou Menina.
– E eu atropelei uma velhinha e um gay! – comemorou Cachorro – Eles dão
mais pontos! Au! Au!
Depois os dois pulavam corda na pracinha. E o final do dia era sempre
emocionante assim: terminava com um jogo de canastra no barzinho ao lado,
enquanto eles tomavam um drinque gelado e fumavam um cigarrinho com os
simpáticos coroas de barriga de cerveja.
– Você deveria sempre apoiar os partidos de direita – comentou um deles,
jogando um ás de copas na mesa – eu não quero meu dinheiro na mão fedida de
pobre.
155
Juliana Duarte
– O meu filho já está bem crescido e o time de futebol dele foi campeão esse
fim de semana – comentou outro, com uma caneca de cerveja na mão e às
lágrimas – ele é o orgulho do pai.
– Ei, esse cara roubou! Onde está o dois de espadas?
– Está debaixo da minha patinha! – sorriu Cachorro – Au! Au!
E Cachorro sempre era espancado no final do dia devido às suas robalheiras,
mas até que ele gostava disso, pois dava a impressão de que estava dentro de um
jogo de vídeo-game.
– Quantos pontos? Quantos pontos? Wof! Wof! – perguntava ele ansioso,
estatelado no chão.
E as manhãs eram sempre as mais alegres de todas. Isso porque quando os dois
despertavam de suas camas macias, abriam a janela e diziam ao sol:
– Bom dia, senhor sol!
E faziam um brinde com suas canecas de achocolatado.
– Hoje vamos fazer um brinde a quê?
– Aos meus sete mil quinhentos e oitenta e três pontos no jogo de
atropelamento de velhinhos! Woof!
E os dois batiam as canecas satisfeitos e bebiam de um gole só. Toda manhã
eles faziam uma competição para descobrir quem conseguia engolir o leite mais
depressa até que um dia Menina se engasgou. Imediatamente, Cachorro pegou
uma cadeira e bateu fortemente nas costas dela. Ela conseguiu lançar o leite para
fora, que atingiu a parede e formou uma belíssima obra abstrata.
– Yerk – resmungou a Menina – como você é forte, meu amigo.
– Sou mesmo. Graças às super técnicas que aprendi nos jogos de
espancamentos! Au! Woof! Wuf!
E os dois saíram para passear, sempre cantando e dançando. Cachorro cantou
assim:
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Velevi
E os dois cantavam assim de mãos dadas. E foi dessa canção que surgiu a idéia
do atentado ao presidente.
Ambos construíram um avião de papel e cola e voaram nele com os
passarinhos. Colocaram máscaras carnavalescas no rosto e saltaram pela janela
que fez Crás!
– Bom dia, senhor presidente – cumprimentou Menina, educadamente.
– Bom dia, meu filé! Wof! Wof!
O presidente olhou para os dois, curioso.
– Olá, cidadãos. Que-surpresa-agradável-o-que-os-trás-aqui? – ele lia num papel.
– O que nos trás aqui é que vamos te matar. Wuf! Carruf!
– Oh – o presidente ajeitou os óculos e leu – que-ocasião-oportuna-para-isso-
marque-na–agenda-do-meu-secretário-que-hoje-tenho-reunião-com-ministro-
dos-esportes.
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Juliana Duarte
– Oba! Então vamos fazer um jogo – sugeriu Menina – Quem conseguir soletrar
o abecedário de forma correta, salta da janela primeiro!
O presidente apressou–se para achar um segundo papel:
– A-B-C-D-E...
– A – começou Cachorro – C! De Cachorro! Droga, errei!
– A, E, I, O, U – falou a Menina.
– ...W, X, Y, Z! Eu–sou–o–vencedor–e–o–melhor–do–mundo! – comemorou o
presidente.
Menina e Cachorro aplaudiram respeitosamente e o presidente saltou da janela
em liberdade.
– Jerônimo! – gritou o presidente caindo, enquanto lia um papel – e-não-se-
esqueça-de-pedir-ao-secretário-para-que-o-ministro-dos-esportes-autografe-
minha-bola.
E Tuft. Caiu no chão. Menina e Cachorro dançaram um tango.
Mas eles não quiseram se tornar presidentes, porque ser presidente é muito
chato. Então eles voltaram ao parquinho para jogar Frisbee.
No dia seguinte aconteceu uma coisa horrível: logo de manhã os dois
preparavam–se para beber o seu achocolatado matinal, mas... cadê o Nescau?
– Aaaaaaahhhhh!!
– Oooohhh!!
– Eu acho que acabou o nosso achocolatado, Cachorro. Vamos ao
supermercado comprar mais.
– Vamos logo, porque minha garganta está seca. Au, au.
Mas mesmo depois de visitar todos os supermercados da cidade, não
encontraram achocolatados em parte alguma.
– Foi culpa sua, seu comilão! – acusou Menina – Você come uma lata inteira a
cada manhã e acabou com os estoques do supermercado!
Menina foi até o corredor de iogurtes e lançou todos em cima de Cachorro. Ele
engoliu todos os iogurtes e lançou na direção dela as garrafinhas de molho de
tomate. Menina deu um salto no ar e caiu sobre uma montanha de rolos de
papel higiênico.
Irados, foram até a banquinha dos peixes e cada um, munido de um peixe na
mão, o utilizou como espada e começaram a lutar. Mas como eles estavam com
fome e acabaram devorando os peixes, a disputa agora era corrida de carrinhos
de supermercado, em que eles derrubavam todas as pessoas pelo caminho.
– Wof! – clamou Cachorro, quando atropelou uma velhinha – 50 pontos!
– Strike! – clamou Menina, lançando uma latinha de cerveja que atingiu a cabeça
de Cachorro em cheio. Cachorro bebeu a lata imediatamente.
Infelizmente eles foram convidados a se retirar do supermercado, porque
estavam fazendo muito barulho e isso poderia perturbar os clientes. Um dos
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Velevi
As Européias
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Juliana Duarte
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Velevi
não fui capaz de compreendê-la. Teria que sentir na pele. Essa é a maneira mais
rápida de aprender as coisas. Eis uma das regras do jogo.
Mas eu era apenas a Fran. E a Fran nunca soube de nada.
FIM DO LIVRO 1
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LIVRO 2
Potencialidade Humana
Primeira Parte
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Velevi
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Juliana Duarte
Uma sereia belíssima estava sobre uma pedra, esfregando os braços com um
sabonete. Seus cabelos eram algas verdes. Mas no caso dessa sereia, ela não
tinha posição política definida.
– Que sorriso lindo! – falou a fada – acho que você encontrou o que procurava.
Viu? Sua jornada não foi em vão.
A sereia, surpresa, encontrou a escova de dentes boiando nas águas e segurou–a:
– Oh! Justamente o que eu precisava. Agora podemos começar, rapazes!
Dezenas de pessoas com filmadoras na mão saíram por detrás das árvores. Ela
abriu um tubo de pasta e colocou–a na escova de dentes.
– Faça como eu – sorriu a sereia – use a pasta de dentes Sorriso Sereia e adquira
dentes brancos e belos como os meus. Sorria como uma sereia. Sorria para a
glória! Seja um vencedor na vida, meu herói dos heróis! Minha heroína
maravilhosa! Você também pode ter um sorriso branco. É só escovar os dentes
desse jeito aqui, ó!
No instante em que ela foi colocar a escova na boca, a escova deu um salto
mortal no ar e voltou a mergulhar no lago.
A sereia riu. Como aquele riso era medonho e, ao mesmo tempo, tentador!
Dentes que pedem para serem quebrados.
– Parece que até a minha escova sabe que meu sorriso é tão perfeito que nem
preciso mais escovar os dentes hoje.
E depois disso, todos os homens com câmeras na mão a aplaudiram.
– Brilhante! – elogiou um deles – Perfeito! Não precisa cortar nada. A
propaganda vai exatamente assim para a televisão.
A fada e a escova já estavam bem longe dali.
– É em cada fria que você me mete, hein, fada! Eu quase fui utilizada pela pior
pessoa do mundo. Acho que hoje em dia ninguém mais sabe sorrir.
– Tive uma idéia de onde você poderá encontrar o sorriso mais verdadeiro!
As duas foram para um velho cemitério.
– Onde está o sorriso? – perguntou a escova, olhando ao redor.
A fada desenterrou um dos caixões e retirou a caveira de um dos cadáveres.
– Aqui – mostrou a fada – quer sorriso mais autêntico que esse?
– Que sorriso lindo! É perfeito!
– Oba! – falou alguém, de repente – Vão escovar meus dentes! Já estava na hora
mesmo. Por que demoraram tanto?
– Quem é você?
– Sou a antiga dona desse corpo – explicou a fantasma – eu era uma dentista e
meu maior medo sempre foi morrer, porque se isso acontecesse meus dentes
iriam se encher de cáries. Mas parece que os anjos ouviram minhas preces e
agora um deles desceu aqui para me ajudar.
– Você está enganada, madame. Sou uma fada e não um anjo.
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Velevi
– Que importa? Você ia escovar meus dentes, não é, dona escova? Pode
começar.
– Não quero mais – falou a escova – agora que te conheci, te achei muito
rabugenta.
– Escova filha da mãe.
– Eu só desejo escovar os dentes da pessoa mais pura e perfeita do mundo.
Você sabe onde ela está?
– É meu filho – falou a fantasma – ouvi dizer que ele perdeu um dente de leite
hoje e uma fada está indo visitá–lo. É você?
– Sim, sou eu mesma – mentiu a fada – diga–nos onde ele está.
A escova e a fada foram imediatamente até o quarto onde o menino dormia. Ele
tinha escondido seu dente de leite embaixo do travesseiro. A fada bateu na
janela.
– A Fada do Dente! Pode entrar – o menino deu um grande sorriso e abriu a
janela – aqui está o meu dente de leite.
– Bom menino – falou a fada – graças ao seu esforço, agora você vai ganhar
uma escova de dentes!
– O quê? – perguntou o menino, indignado – Eu não quero escova nenhuma.
Quero ouro! Onde estão as minhas moedas? Os meus dólares? Os meus euros?
– Não tem. Gastei tudo com doces.
– Ué? Não tem moedas? Mas você não é a Fada do Dente?
– Não, essa é minha mãe. Eu sou a Fada Tropical.
– Então fora daqui. Você e essa escova fedida.
O menino jogou as duas para fora e fechou a janela.
– Eu sou fedida? – perguntou a escova, em lágrimas.
– Só um pouco. Depois de cair no esgoto, rastejar pelo cemitério... essas coisas
acontecem.
– Será que vou me tornar velha e feia antes de perder minha virgindade? –
perguntou a escova, desesperada – Assim ninguém vai me querer mais! Preciso
arranjar logo um dono antes que seja tarde.
– Que tal eu? Acho que ando comendo doces demais ultimamente.
A fada deu um sorriso e mostrou os dentes cheios de cáries.
– Dentes virgens! – a escova ficou encantada – Dentes virgens para uma escova
virgem. Mas você não tem o sorriso mais lindo do mundo...
– Então vá escovar o primeiro dente de um bebê, sua fresca. O dente dele será
virgem e ele terá um sorriso puro.
As duas foram até a maternidade e conseguiram encontrar um bebê com um
dente.
– Boa sorte – desejou a fada, largando a escova ao lado do bebê.
A mãe dele olhou para o lado e achou a escova:
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Juliana Duarte
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Velevi
– Vá à merda! Até parece que só por ter quebrado aquela droga de espelho eu
vou ter azar, sua ignorante supersticiosa.
Todos os espelhos da farmácia ouviram o xingamento dirigido ao seu irmão
espelho. Saíram de lá e quebraram–se na cabeça da fada, suicidando–se. A fada
estava completamente rasgada e ensangüentada.
– Espelhos malditos! Estão mortos agora e jamais refletirão outra vez os
sorrisos miseráveis da mediocridade!
– Você terá exatamente 117.649 anos de azar – observou a escova, com uma
calculadora na mão.
– Não! – gritou a fada, desesperada – Por que essa porcaria de farmácia precisa
existir? As pessoas devem morrer logo e não tomar esses remédios artificiais!
Bando de covardes! Se a hora de morrer chegou, apenas morra!
A farmácia inteira saltou em cima da cabeça da fada e foi destruída. O crânio da
fada se partiu e ela foi soterrada.
– Viu só, sua baleia cachalote? – gabou–se a escova de dentes – Quem ri por
último, ri melhor. Sua vaca.
E a escova deu um grande sorriso que se refletiu em cada um dos milhões de
cacos de espelhos quebrados espalhados pelo chão.
Moral da história? Respeite as escovas de dentes e não escove os dentes nunca
mais. Mas se ainda assim quiser usar uma pasta de dentes, use com o dedo. Não
se esqueça de utilizar a pasta Sorriso Sereia. Deixa os seus dentes sempre mais
brancos. Esse é o recado de nossos patrocinadores.
Dentes cariados
Dos corpos sem mentes
Sorrisos errados
Arrancados a serra
Eu mereço um fim extraordinário
Para apagar o ordinário começo
Eu vou te revelar uma verdade
A mim tu não enganas, falso palhaço
Agora já é tarde para a despedida
No teste da vida falhaste
Fantasma invisível de terno e gravata
Eu vou escovar teus órgãos internos
Espelhos são lindos porque eu sou linda e adoro me olhar neles. Já você é um
monstro horroroso sem salvação, então se mate.
167
Juliana Duarte
Os Africanos
168
Velevi
– Até parece – riu Peter – ele nem tira. Para ele deve ser mais simples arrancar
um dedo do que tirar aquela lente.
– Vai se atrasar mais vinte minutos – falou Afonso.
– Eu aposto meia hora! – comentou Peter, alegremente – Alguém dá mais?
Não foi preciso esperar nem mais um minuto.
Devia ser a primeira vez que a sueca e a chinesa o viam. Até a sueca, sempre
impassível, expressou alguma reação. Já a chinesa não disfarçou o espanto e
parecia que não conseguiria tirar os olhos dele. Era como se os velevis fossem
grandes astros, cantores, estrelas de cinema. Já o africano... honestamente, quase
o tratavam como um Deus, de tanto respeito que tinham.
O egípcio não parecia tão tranqüilo como de costume. Notei que ele estava
meio tenso. O africano estava sério como na noite anterior. Agora que eu via o
egípcio e o africano lado a lado, confirmei minhas desconfianças: a pele do
africano era mais negra.
“Acho que um dia vou passar umas férias em algum país da África”.
Mas claro que eu estava apenas viajando na batatinha. Eu jamais teria dinheiro
para ir à África ou a parte alguma. E naquele momento, o único lugar em que eu
desejava estar era naquele em que eu me encontrava. E lá vinha o apresentador.
– Hoje teremos a tão esperada mostra dos africanos: Egito e África do Sul!
Quando o apresentador pronunciou o nome do velevi egípcio, houve muitos
aplausos. Mas o egípcio apenas desviou os olhos para o chão. Ele estava mesmo
um pouco nervoso. E os gritos foram ensurdecedores quando o nome do
africano foi anunciado.
O egípcio não ia falar. E o africano menos ainda. Pelo jeito eu não era a única
que gostava de ficar quieta.
A Ampulheta Invertida
Essa história aconteceu muito tempo atrás, na época em que os homens ainda
eram tolos. Hoje eles não são mais tolos. Eles evoluíram e se tornaram outra
coisa que ainda não descobri o que é.
A vida é algo peculiar. Eu não diria preciosa; talvez intrigante. Interessante até.
Você pode achar que isso é agradável ou desagradável, mas essas são palavras
inapropriadas. Eu diria que a vida é necessária. O problema é que as pessoas
reclamam demais e nunca estão satisfeitas. Elas falam demais. Deviam se calar
um pouco.
As pessoas querem se tornar aquilo que não são. Caso conseguissem, desejariam
ser outra coisa, ainda mais absurda. O ser humano é absurdo. Mas se ele não
fosse, deixaria de ser humano.
169
Juliana Duarte
Você consegue reconhecer o miado do gato? Por que isso é tão forte e
poderoso?
O gato é independente e solitário, mas muitas vezes é tolo. Ele é tolo porque
não está satisfeito com sua natureza de gato e aí reside seu maior erro.
Essa é a selva terrível. Eis o local em que os bichos comem uns aos outros.
Você devora a carne e fica satisfeito. Talvez você tenha um gosto exótico e
prefira plantas. Eu nunca simpatizei com vegetarianos. Eles negam o gosto da
carne; a própria carne que é a sua realidade de ser na terra. Vegetarianos me
irritam.
Eu sou a favor do consumo de carne humana. Seria um processo ainda mais
lógico do que devorar a espécie alheia. Em vez de jogar o corpo fora para
apodrecer, você deveria comê–lo. Isso pouparia muito tempo, dinheiro e
espaço. Nada de cremar ou enterrar. Converta o cadáver em fezes humanas.
Além de entregar adubo a terra, contribuiria para resolver a fome no mundo.
Mas você está mais preocupado em alimentar os vermes.
Ah, esqueci. A fome no mundo é necessária para manter o equilíbrio
populacional, então não vamos resolvê–la. Vamos fumar, beber, nos drogar,
comer alimentos enlatados e gordurosos. Essas coisas existem com um objetivo
bem definido: que as pessoas morram mais depressa e aliviem a superpopulação.
Mas precisamos dos jovens trabalhadores. Os velhos devem morrer, pois são
apenas um fardo que comem o dinheiro público com a aposentadoria.
Aprenda a lição da selva, pois só lá se conhece a maneira certa de viver e de
morrer. Truques não são necessários, pois a própria natureza se encarrega de
eliminar imediatamente quem não precisa ficar vivo. O gato sabe e não nega a
carne. É um gato selvagem. Não bebe leite e nem come peixe frito. Ele se
alimenta daquilo que merece. Ouve então o miado do gato:
170
Velevi
GATO: Um cão? Quão raro hoje em dia. Em especial, aqui em minha selva. És
a tua última geração?
CÃO: Possuo um desejo comigo. Necessito ocupar–me dele. Como diz respeito
diretamente a mim, me sirvo desse prato. O objetivo da pele é encontrar–me
com a Bruxa do Deserto. Eis a minha jornada satírica.
CÃO: A realização. Ouvi falar que a tal feiticeira possui poder para tanto.
Rumores planam e gritam que ela vive no interior da pirâmide de um deserto.
Para lá chegar faz–se necessário cruzar um labirinto nessa floresta.
GATO: Tu complicas demais. Por que não tornar–te um pássaro e sair voando?
171
Juliana Duarte
CÃO: Antes se eu tivesse tal poder; a bênção dos magos quebrados. A bruxa
possui exatamente a força da transmutação. A própria pirâmide é do metal puro.
Ela conhece o segredo da conversão da vida. O meu desejo é tornar–me um
lobo!
GATO: Tu és sincero. Resolvo abrir o meu coração para ti. Possuo desejo
semelhante: quero ser leão! O rei deve estar coroado. Queres prova superior da
força?
Cão e gato buscavam diferentes tipos de forças. Mas ambas eram forças fortes.
Andaram lado a lado, roçando nas árvores, folhas e galhos, até que seus olhos
alertas encontraram o labirinto.
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Velevi
CÃO: (à parte) Dessa vez exageraste, Gato descuidado. Terei que limpar o teu
estrago agora (à Águia) Águia, acalma–te. Não há palavra que não possa receber
o banho devido, tal qual um sapato velho que é engraxado e se parece com um
novo.
ÁGUIA: Cadê?
CÃO: Ah, pois é. Voou longe. Tua vista é boa, então sei que verás.
CÃO: Não foi essa a minha intenção, madame. Eu a respeito muito, devo dizer.
O meu respeito plana pelos céus com as aves de rapina e se espalha por todos
os cantos do mundo. Eu anuncio o meu respeito com uma trombeta!
ÁGUIA: Oh, cala-te de uma vez, paspalho. Hei de levá–los então. Mas não se
acostumem com regalias. Essa é a selva.
ÁGUIA: Prefiro não ouvir palavras de tua boca, Gato. Vesga é a tua mãe.
GATO: A minha mãe enxerga muito bem, senhora. Mas creio que esse assunto
não possua muita relevância na ocasião.
A águia levantou vôo com ambos, que subiram em suas costas. Lá de cima, os
dois avistaram as criaturas lendárias que habitavam o interior do labirinto que
escaparam. Ela deixou–os na fronteira das areias do deserto.
173
Juliana Duarte
BRUXA: Ah, pois pensas que é assim fácil, bichano ignóbil e sarnento? Eis a
força que mereces.
GATO: Teu espetáculo agrada somente aos olhos e não satisfaz a minha
vontade. Não me confunde com truques de terceira categoria, feiticeira!
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Velevi
CÃO: Possuo um desejo que quero que realizes. Bruxa, torna–me um lobo!
BRUXA: Tu, gato, na outra vida foste um leão. E tu, cão, foste um lobo. Pela
covardia renasceram nesses corpos fracos. Pobres infelizes! Antes fossem
batráquios para compor a minha sopa e teriam um destino menos terrível. Eis
que é hilário o destino. E mais hilário se mostra o precioso tesouro em minhas
mãos.
A bruxa tornou o gato um leão. O leão rugiu fortemente e satisfez–se com isso.
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Juliana Duarte
BRUXA: E tu, cão, recebe a tua paga. Experimenta a tua sede de lobo e assume
as conseqüências. Eu nada tenho que ver!
E o cão tornou–se lobo. Uivou para o sol vermelho. Leão e lobo iniciaram um
embate feroz. Quanto mais a carne era arrancada, mais a bruxa ria em seu tapete
voador.
BRUXA: Vocês? Viajantes de desejos sinceros! Puá, puá! Façam–me rir mil
vezes! Como me divirto! Ih, ih, ih, oh, oh, oh!
LEÃO: Quero ver o que eras em tua outra vida. Mostra–me! A força deseja a
sabedoria.
BRUXA: O que eu serei não os interessa, pois nenhum dos dois será mais! Eis a
minha despedida, formosos inocentes!
176
Velevi
A bruxa fez voar sobre eles muitos cactos e uma chuva de espinhos. Mas isso só
fez com que o leão tivesse ainda mais pena da bruxa. Ela mesma já fora um dia
aquela criatura.
LOBO: Tu nos deste a força. Iremos demonstrar o uso dela e o faremos com
nobreza.
GATO: Onde estará? Onde foi parar? Aquela que foi perdida.
As nuvens tornaram-se negras. Água caiu sobre a terra. Beberam das águas da
chuva. Giraram a ampulheta duas vezes. O gato tornou–se chuva. O cão
converteu–se em terra. Ambos queriam provar, dentre o céu e a terra, qual teria
a maior força. De nada adiantava as tempestades dançantes de areia ou a água
que beija o mar, pois as coisas não terminam. E a águia chegou.
ÁGUIA: Basta!
A águia girou a ampulheta e cão e gato retornaram. Mas agora eles possuíam
ódio da águia que interrompera. O gato girou o objeto e a águia tornou–se um
inocente passarinho, que ele tentou abocanhar.
Mas o cão abocanhou o pássaro antes disso e o matou. O gato, raivoso, meteu
as unhas no rosto dele.
177
Juliana Duarte
O gato lançou a ampulheta para cima. Ela girou dezenas de vezes antes de cair
no chão e nesse tempo gato e cão transmutaram–se em todas as formas
possíveis: hienas, rinocerontes, girafas, cerejas, pedras, folhas, galhos, olhos e
fotografias.
Finalmente a ampulheta tocou o solo. O gato era um sapo; o cão, uma mosca. O
sapo soltou a língua e a mosca foi devorada. A sobrevivência deve terminar
numa refeição.
E onde estava a força? Que mentira. Que é a força? A força é a grande mentira.
A imaginação é a força? Talvez seja uma verdade. Mas quem liga para mentiras e
verdades? Eu ligo apenas para a minha sobrevivência nessa selva humana
violenta e hilária.
A Experiência
178
Velevi
que as mostras são uma péssima influência para as crianças. E não só para
crianças, mas para qualquer pessoa, pois passam as mensagens erradas.
Mensagens totalmente negativas e ilógicas. Leiam isso: “Mostram a realidade de
uma perspectiva extremamente pessimista no contexto de uma lógica absurda e
sem consistência”.
– Que imbecis – comentou Jean.
– E isso não é tudo – prosseguiu Peter – eles criticam com detalhes. Parece que
o sujeito desse site se deu ao trabalho de assistir a todas as mostras até agora só
para criticar. Nossa, olhem só que viagem: “Incentivam a homofobia, o sexismo,
o edaísmo, o consumo de álcool, drogas e a tortura de pessoas e animais num
mundo extremamente capitalista e sem salvação. Até mesmo foi feita uma crítica
direta ao socialismo e apoio aos partidos de direita”! Cara, acho que vou morrer
de rir lendo esse site!
– Esqueceram de contar que eles incentivam as crianças a não escovarem os
dentes.
– Eles nos mostraram que comer alface é saudável – caçoou Peter – parece que
as maiores críticas estão nas mostras do nosso. Só faltaram dizer que ele é o
anticristo. É claro que todas essas “críticas” dos velevis são muito mais gerais do
que particulares. Elas só nos fazem referência ao nosso modo de vida absurdo e
ridículo e à nossa lógica contraditória. Onde está a liberdade de expressão?
Vivemos na época da ditadura?
– Censura não resolve nada – falou Jéssica.
– Nunca resolveu – falou Peter – então eles querem proibir os velevis de
mostrar que existe a violência, preconceitos, palavrões, que existem jogos em
que se mata gays e velhinhos... sendo que todo mundo sabe que essas coisas
existem lá fora! No mundo real não há ninguém do lado para censurar o que
cada um faz ou diz e moralizar. Eles querem criar um mundo artificial na arte,
em que só existem fadinhas coloridas, enquanto as guerras estouram lá fora. E
todos continuarão “puros”, ignorantes e alienados. Excelente.
– Alguém comentou sobre as mostras de hoje? – perguntou Jean.
– Tirando aquele site ridículo, no geral só há elogios. O pessoal está adorando
todas. Mas tem um povo aqui que está puto com a proibição para menores; e
com razão.
– Eu vi muitos adolescentes lá – lembrou Jéssica – só faltava proibirem a
disputa para menores de 21 anos e descobrirem que tem um velevi com 20.
– Essas proibições são uma piada – falou Jean – quando eu tinha 17 anos já via
todos os filmes de violência explícita. Isso é absurdo.
– Só falta mostrarem sexo! – lembrou Peter, empolgado – E acho bom
mostrarem tudo. Eu nunca fiz sexo com tarjas pretas.
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Juliana Duarte
A Semifinal
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Velevi
181
Juliana Duarte
O que é a beleza?
Eu tenho certeza de que você sabe me dizer exatamente o que é belo e o que é
horrível. A sua precisão para isso é tão perfeita que é quase assustadora.
Dizem que beleza é questão de gosto. Mas você está errado.
Existe o belo e o feio. Esses dois mundos estão completamente separados. Você
pode apontar exceções, é claro. Mas quem liga para as exceções?
É engraçado como conseguimos dar desculpas para tudo apenas para que a
situação seja conveniente para nós. Veja o próprio exemplo da beleza. Você
pode se achar uma pessoa feia, mas encontrará um consolo no meio disso tudo.
Afinal, “não existe beleza universal”. O que é belo para um pode ser feio para
outro.
Que grande mentira. Existe sim a beleza universal. Os seus pais nunca te
contaram? Ninguém nunca te ensinou isso na escola? É claro que eles nada
falam. Porque “eles” têm um interesse nisso. Você sabe. Você se faz de louco e
finge que não sabe de nada.
182
Velevi
Se a beleza é relativa como você diz, por que você se vira para olhar quando
passa aquela menina na rua? E você percebeu que não é o único. Todos os
outros se viram para vê–la. Mas por que ninguém liga para aquela outra? Dizem
que a unanimidade é estúpida. Claro que eles criaram o perfil de beleza que
necessitam, porque sempre possuem interesses por baixo dos panos. E você
caiu direitinho na maior armação do mundo.
Eles são espertos e você não é. Por isso só eles vencem e você é um perdedor.
Retomemos a pergunta inicial: o que é a beleza? Essa pergunta nem mesmo
precisa ser feita. É uma pergunta desnecessária e descartável. Portanto, não se
ocupe dela. Apenas venere o belo e despreze o feio. Separe o joio do trigo e terá
a sua recompensa.
Todos sabem muito bem como funciona o mundo; como rodam as engrenagens
na maquinaria do cérebro humano e como todas as outras coisas acontecem.
Ninguém é estúpido. Ninguém! As pessoas se fazem de burras porque gostam.
Elas sentem um prazer quase masoquista nesse processo. Amam enganar–se.
São apaixonadas em se convencer de que em suas faces horripilantes mora o
príncipe sapo!
“Veja o lado bom. Esse sinal te dá um charme a mais”. Mentira. Ele deforma a
sua cara. Você é uma pessoa tão desgraçada assim? Tão sem esperança para não
ter coragem de admitir essas coisas simples? Covarde.
Você se deleita com minhas palavras e deseja ouvir mais. O desprezo te conduz
ao nirvana de forma perfeita e completa. Mas eu não desejo te entregar o
nirvana.
A mídia tornou a beleza absoluta. Ela disse: os brancos, magros e jovens são
belos. Você vive dizendo que a televisão aliena as massas, mas esquece que faz
parte delas. E como é difícil admitir que ela fez lavagem cerebral em você
também.
Vamos ver se você foi contaminado pelo padrão de beleza do rebanho. Você
considera a gordura bela? Não, porque a mídia te fez acreditar que a magreza é
melhor, pois quer que você gaste com produtos para emagrecimento. Você
considera a velhice desejável e vê as rugas como um grande charme? Claro que
não. Afinal, a mídia dirigiu toda a indústria do entretenimento para a juventude,
pois quer que você gaste com cremes para rejuvenescimento e cirurgias
plásticas. E você quer ser considerado belo pelas outras ovelhinhas alienadas.
A princesa belíssima de cachos dourados repousa no interior do palácio. O que
você deseja para ela, senso comum? Qual é a beleza padrão e universal que
“eles” veneram?
Você deseja uma princesa doentia. Os ossos a movem como um esqueleto no
lugar da carne. A folha de papel seria clara demais para comparar com suas
entranhas. Até mesmo seus órgãos internos são brancos como a neve. Baixinha,
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Juliana Duarte
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Velevi
anormalidades. Você não deseja uma menina sem um braço apenas por ser
diferente.
Isso porque eu estava certa desde o começo. E eu vou repetir de novo para que
essa verdade penetre em suas entranhas de maneira que não te abandone nunca
mais:
“Eu tenho certeza de que você sabe me dizer exatamente o que é belo e o que é
horrível. A sua precisão para isso é tão perfeita que é quase assustadora.”
Assuste–se! Apavore–se! Sinta o medo e o terror! O seu gosto é igual a todos os
outros; um gosto humano e mortal. E isso não pode ser mudado.
E agora eu vou te mostrar essa verdade assustadora e terrível. Eu vou te
apresentar o mundo mais desejável. A perfeição universal: o País Vermelho!
Você gosta do vermelho porque é cor de sangue. E você ama o sangue e o
macabro.
Você gosta do negro porque é a cor da morte. Você é apaixonado pela morte,
apesar de tremer de medo dela.
Você ama o verde e o azul porque são as cores dos olhos que você não tem.
Como você é previsível. Eu rio da sua previsibilidade mórbida.
Numa história os personagens não são todos belíssimos e de olhos azuis. Isso
porque o autor tem pena do seu público. Ele deseja que as pessoas se
identifiquem com os personagens e não se sintam tão fracassados e desgraçados:
“Ela é gorda como eu”.
“Ele é burro como eu; estúpido como eu! Que alegria!”.
Como o ser humano é lamentável. Ele necessita encontrar alguém pior que ele
para se sentir um pouco menos que lixo. Você é velho, feio e burro e não deseja
personagens jovens, belos e inteligentes. Você os odeia, pois os inveja.
Mas eu não sou tão piedosa. No País Vermelho as coisas são um pouco
diferentes...
Vou te mostrar como são as coisas no país universal dos sonhos em que tudo
acontece da maneira mais bela e perfeita, para contentar o gosto de todos
aqueles que namoram a beleza universal. Eu tenho certeza de que você amará
esse país e se mudará para lá imediatamente.
No País Vermelho o céu tem cor de sangue, assim como as nuvens dançarinas
que formam um redemoinho. A lua é vermelha e é assim também o sol. Um
vermelho profundo, sangrento. A lua sangra todos os dias e as nuvens
derramam chuva de sangue sobre a terra rubra. No solo brotam plantas e flores
pingando sangue. No céu há fumaça vermelha envenenando os ares. O ar é tão
sufocante que é difícil respirar e as pessoas andam nas ruas com máscaras de
gás.
Mas depois eu te falo sobre os habitantes desse país. Agora vamos tratar da
princesa, porque somente ela nos interessa. Estamos falando da princesa albina
185
Juliana Duarte
que vive no castelo de gelo. Aquela é a única parte do país que não é vermelha;
quase como outro pequeno país, com uma única habitante. Em vez de uma
chuva de sangue, é a neve branca que cai. Vez ou outra pode acontecer um
fenômeno especial: uma nuvem vermelha carregada sangra sobre a neve.
Acho que você ainda se lembra da história da Branca de Neve. Se não se lembra
mais, eu vou te relembrar. A linda rainha estava junto à janela costurando
quando espetou a agulha no dedo. Uma gota de sangue cai na neve branca que
se acumulou no peitoril. E então a rainha diz, maravilhada:
– Como é belo o sangue que toca a neve! Desejo ter uma filha com a pele
branca como a neve, os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos negros
como o ébano desta janela.
E eis que nasce a Branca de Neve. Ridículo, não? Mesmo sendo ridículo, você já
desejou possuir a beleza da Branca de Neve. Mas eu vou acabar com seus
sonhos dourados. No momento ela não nos interessa, pois esse padrão de
beleza ainda é pouco elegante para a nossa princesa. Afinal, o nível da princesa
do País Vermelho é altíssimo. O espelho se quebraria ao ver Branca de Neve,
comparada a ela.
A nossa princesa chama–se Ratinha de Sangue. Ela possui um ratinho albino de
estimação e ele é o seu único amigo. Ela permanece no topo de sua torre de
gelo, trancada. Contempla a neve infinita e violenta cair de sua janela todos os
dias. Ao longe ela enxerga os raios que cortam o céu do País Vermelho.
Ela está com seus 13 anos. Se a princesa tivesse um ano a mais, já seria muito
velha e teríamos que fazê–la competir com Julieta. Mas deixemos Julieta com
Romeu porque a nossa princesa é tão pura que nunca será de homem nenhum.
Permanecerá para sempre isolada e imortal com seus 13 anos, fazendo a mesma
coisa de todos os dias: contemplar a neve do topo da torre enquanto alisa o pêlo
de seu ratinho albino.
Mas a verdade é que ela já está quase cega, porque nasceu tão doente e fraca que
mal pode mover–se mais. Os seus olhos são vermelhos e profundos. Olhos
puros, inocentes e assustados. Assustada com a beleza violenta do mundo.
Seus cabelos são tão longos que se arrastam pelo chão. Mas nós não queremos
competir com Rapunzel, pois nossa princesa não possui nenhum plano
maquiavélico de fugir da sua torre de gelo ou de permitir que alguém coloque os
pés em terra santa. Além de ser pura demais para um pensamento como esse,
seus ossos se quebrariam no processo.
Continuemos a falar dos cabelos, porque ainda não foi suficiente. Seus cabelos
são brancos como a neve. São mais brancos do que o mais branco dos cabelos
dos velhinhos que você já viu. São extremamente lisos, sedosos e macios. Ele
são tão finos! Finíssimos! Você mal os sente. Seria necessário reunir vários fios
para dar a grossura de um fio de cabelo seu. Sente o brilho da perfeição?
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Velevi
Querida, querida
Teus brancos cabelos
Tocam minha boca, novelos derretidos
Como macarrão de arroz
Quero te devorar, minha criança
Fofura pequenina, eu te cortejo
Em meu doce desejo de infância
Sagrada brancura!
Santa ignorância suprema
Falemos da pele. É uma pele doente e pálida. Difícil dizer se são seus cabelos ou
sua pele que é mais branca. Ela é uma princesa pequenininha, com altura de
1,44. Pesa 29 quilos, mas os boatos dizem que a maior parte disso é devido aos
cabelos.
Os seus pezinhos são minúsculos e graciosos. Mas vamos começar a descrição
por cima e depois nós descemos, pois assim fica mais emocionante.
Já falamos dos olhos e dos cabelos, então falemos do nariz. É um nariz
arrebitado de boneca. A sua boquinha é pequenina e pálida. Nada de “lábios
vermelhos como o sangue”. Em vez dos lábios, são seus olhos que são
vermelhos. Os lábios são brancos como a neve.
E nada de “bochechas rosadas”. Ela é doente e pálida. O seu rosto parece o de
uma boneca de porcelana que está para se quebrar a qualquer instante. Os seus
olhos são assustados e apavorados. A sua expressão é vazia. O coração é ao
mesmo tempo meigo e frio. Meigo porque ela é pura; frio devido à neve.
Mas não vamos chegar ao coração ainda! Estamos indo rápido demais. Vamos
falar das orelhas; pequeninas e delicadas, como você adivinhou, assim como os
dedinhos esqueléticos e as mãozinhas. O pescoço é finíssimo; quase um osso
sem pele. Eu desconfio que o pescoço dela foi inspirado no modelo da Barbie.
Os ombros e a base de seu pescoço são quebradiços, assim como os seus
braços.
Mas eu não vou falar sobre o que está abaixo do pescoço. Eu sei que você
estava ansioso esperando por isso, mas eu sou extremamente má e irei deixar
para a sua imaginação fantasiosa. Tente ser gracioso e gentil com seus
pensamentos, por favor.
As costelas são salientes e o umbigo é muito leve. A coxa é tão fina que não há
muita diferença dela para a perna.
Eu devo acrescentar que a nossa princesa só possui “pêlos” em sua cabeça.
Mesmo que fossem pêlos brancos seria muito deselegante, pois a nossa princesa
é suprema demais para precisar se depilar.
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Juliana Duarte
Mas ela menstrua, porque o sangue é algo belo e magnífico. E toda vez que isso
acontece, ela perde litros e litros de sangue e fica ainda mais fraca e doente.
Como ela não usa absorvente, o líquido vermelho sempre se espalha pelo chão
da torre. Mas como o chão também é de gelo, a substância não seca e sim
congela.
Claro que nossa princesa maravilhosa não está nua, pois isso seria muito
imprudente de nossa parte, embora a nudez dela seja pura. Ela usa um vestido
branco fino, de seda. Sim, ele possui algumas transparências, mas é algo
delicado.
Suponho que isso foi o suficiente para descrevê–la, embora eu saiba que você
esteja com vontade de ouvir mais sobre essa incrível beldade, essa miss
universo, essa top model arrasadora. Marilyn Monroe seria um monstro perto
dela.
Será que já podemos começar a nossa história? Vejamos se falta descrever
alguma parte do País Vermelho... ah, sim! Os habitantes! Ora, esse é apenas um
detalhe sem importância. Mas irei satisfazer sua curiosidade.
Eles não habitam casas e sim tumbas. Na cidade há diversos caixões e lápides,
onde os moradores dormem. A chuva ácida costuma matar a todos quando cai.
E como chove 90% do tempo, o povo decidiu que seria muito mais prático já
morar dentro de um caixão, pois se você percebesse que sua pele estava
derretendo rápido demais, bastava deitar num deles e ter uma morte com estilo.
O maior desejo de todos os habitantes do País Vermelho é receber a morte mais
linda e elegante do mundo. A expectativa de vida nesse país é de 15 anos. Como
criancinhas pequenas são muito chatas, as pessoas já nascem com 12. O máximo
que você poderia esperar de uma vida são uns 2 ou 3 anos e isso já é muito.
Nossa princesa já nasceu com 12 anos. Agora ela está com 13. Mas como o gelo
conserva bem a carne, a princesa é imortal, porque aqueles que moram no
palácio de gelo são agraciados com a beleza e a juventude eternas. Não se
preocupe que ela não completará 14 e muito menos 15 anos. Ela recebeu uma
maldição de permanecer com 13 anos para sempre – porque ter uma maldição é
mais elegante do que ter uma bênção – e enquanto ela pisar no palácio de gelo,
viverá.
Até a nossa princesa se alimenta. Uma vez por dia ela bebe metade de um copo
de leite fresco. As gotas pingam, ela as segura na palma das mãos e bebe.
Sim, vocês adivinharam! É o ratinho albino quem dá a ela o leite. Aliás, é uma
ratinha. Ela é fêmea, claro, pois homem nenhum seria permitido se aproximar
da nossa princesa, não importa a espécie. Isso seria uma heresia muito grande.
No País Vermelho também existem majestosos vulcões que expelem lava. Por
causa deles a paisagem que a princesa assiste é ainda mais bela. Dizem que o
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Velevi
País Vermelho só existe para que a princesa possua uma paisagem bonita para
contemplar da janela.
Os habitantes desejam morrer de uma das seguintes maneiras: derretidos pelas
chuvas de sangue; asfixiados pelo gás vermelho venenoso; atingidos por um raio
cor de sangue que sobe da terra ao céu; encobertos pela lava dos vulcões.
A maneira mais vergonhosa de morrer seria de morte natural, que ocorreria por
volta dos quinze anos. Por isso a maioria nunca chega nessa idade, mas comete
suicídio antes. Se bem que não se trata exatamente de um suicídio no sentido
real da palavra, pois seria muito deselegante haver filas nas bocas dos vulcões
para que as pessoas se jogassem. Seria um convite para a morte. Eles se colocam
em situações extremamente favoráveis o que, diga–se de passagem, é muito
fácil. Basta caminhar na rua a céu aberto sem proteção alguma que isso já seria
convite suficiente.
Da chuva ácida, eles se protegem lambuzando a pele com uma essência de
sangue. Por outro lado, a chuva de sangue é muito nutritiva para os órgãos
internos e você pode bebê–la à vontade. Mas não pense que os habitantes são
vampiros, pois vampiros estão muito fora de moda hoje em dia. A comida
preferida deles é pizza e sorvete de gelo, que são importados do palácio da
princesa.
A profissão da princesa é preparar as pizzas e os sorvetes utilizando a neve e o
gelo dos arredores. No final do dia, quando termina o serviço, ela lança sua
ratinha albina pela janela e a rata arrasta consigo dezenas de caixas, que são
levadas para a cidade. O caso da ratinha é especial, pois ela é imortal não
importa onde esteja, portanto ela pode circular por aí. Mas ela só sai para fazer
as entregas de comida, pois gosta de estar sempre ao lado da princesa Ratinha de
Sangue.
Aliás, eu ainda não falei o nome da ratinha, então vou pensar em um agora:
Sorvetinha. Nome criativo, não? Foi a princesa quem deu.
No País Vermelho eles falam uma língua muito estranha. É uma espécie de
chiado estridente que a princesa aprendeu com Sorvetinha. O nome da língua é
“pst”; aquele som que você faz quando chama alguém.
A princesa não vai ao banheiro, porque seria muito ultrajante. Digamos que ela
elimina todo o leite que absorve pela manhã no momento da menstruação. Ela
menstrua toda a semana. Quando vem mais de cinco litros de uma vez, ela
costuma ficar a semana inteira menstruada, sem interrupção. Mas como nos
intervalos de sua profissão ela não tem nada para fazer a não ser olhar a
paisagem pela janela, pelo menos essa é uma distração a mais.
Mas falemos dos habitantes da cidade. Como é a aparência deles?
189
Juliana Duarte
A maioria são mulheres. Digamos, 90%. Isso porque mulheres são mais belas
que homens, então é óbvio que em uma cidade perfeita haveria mais mulheres.
A principal tarefa dos 10% restantes de homens é a reprodução.
Mas como eles se reproduzem? A reprodução só pode ocorrer quando há a
chuva de sangue. Sabe quando as plantas lançam os seus esporos para germinar?
Então. Os homens lançam vários esporos por aí, principalmente no interior dos
caixões e na terra. Quando há a chuva, os esporos se espalham e as mulheres
engravidam. Como as pessoas morrem muito rápido, é necessário que novas
pessoas nasçam o tempo todo para manter o equilíbrio populacional e por isso
as mulheres ficam freqüentemente grávidas.
A gravidez costuma ser muito rápida e dura apenas cerca de uma semana. Logo
as mulheres colocam um ovo pela boca, põem dentro de um caixão e o lacram,
indicando que há um bebê em desenvolvimento ali e aquele caixão não poderá
ser usado como moradia. Dentro de um mês ocorre o desenvolvimento
completo e as crianças despertam com seus 12 anos. Lembre–se que há uma
probabilidade 90% maior de nascer uma menina.
Todos possuem os cabelos vermelhos como fogo. Ninguém tem cabelos
brancos; só a princesa, porque ela mora no ambiente de gelo e lá só nascem
pessoas com cabelos brancos porque o clima assim o exige. Os olhos dos
habitantes não são vermelhos como os da princesa e sim laranjas ou amarelos.
Alguns nascem com uma doença rara que os deixam com sardas no rosto e no
pescoço e com olhos amarelos esverdeados.
O animal de estimação mais popular por lá são as cobras: os seres que habitam
os vulcões. Você pode escolher o seu bichinho de estimação entre os seguintes
tipos: negro e com olhos amarelos; vermelho sem olhos ou uma espécie rara que
possui um olho de cada cor. No palácio de gelo dizem que existe uma cobra
branca como a neve e que ela é o ser mais perigoso desse país. A morte mais
nobre do mundo é ser destruído pelo veneno desse ser mortal. Outros dizem
que a cobra não é uma cobra e sim um coala albino. Seria ainda mais honroso
morrer devorado por um coala. E todos também concordam que esse coala
provavelmente é fêmea, pois ninguém jamais permitiria que um ser masculino se
aproximasse de sua princesa pura.
Você certamente já notou que a princesa é bastante popular no País Vermelho.
Ela é uma lenda – pois nem homens e nem mulheres ousam se aproximar de lá
para não macular o local – e a respeitam e a divinizam, quase como uma deusa.
Afinal, ela é a deusa que leva até eles o seu alimento. Sorvetinha também é
muito respeitada por onde passa.
Suponho que isso já seja o suficiente como introdução. Que tal começarmos
com nossa história de uma vez? Já nem sei que história eu vou inventar daí.
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Velevi
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Juliana Duarte
– Então que morram! Não quero saber. Eu já cansei dessa vida. Desse trabalho
escravo! Eu trabalho feito o cão e só eles ficam com a farra. Assim não dá. A
partir de agora eu declaro a minha aposentadoria.
– E o que pretende fazer daqui em diante?
– Eu vou cuidar mais de mim. Vou incrementar a minha aparência e inventar
alguma ocupação que seja de meu agrado. Ah, já sei! Eu vou me dedicar à arte.
Afinal, nem só de pão vive o homem. Em vez de ser uma cozinheira eu serei
artista. Acabo de decidir a minha profissão, pois também tenho esse direito. Sou
uma princesa e eu que mando aqui. Quero poder mandar ao menos em mim.
– Bravo, Ratinha de Sangue! – comemorou a rata – Você tem todo o meu apoio
na sua escolha. Pode contar comigo.
– Obrigada, Sorvetinha. Você é uma grande amiga.
A partir desse dia a princesa decidiu parar de preparar as comidas de neve. Ela
passou a se dedicar à realização de esculturas de gelo. Mas ela logo viu que para
o seu corpo fraco a realização de esculturas era um trabalho muito penoso.
Começou a desenhar nas paredes de gelo do palácio com seu sangue menstrual.
Ela encheu alguns baldes e agora tinha tinta suficiente para um longo tempo.
Um mês se passou. Até que um dia ela ouviu uma coisa que nunca tinha ouvido
antes: uma batida na porta de seu castelo.
– Mas que impertinência! – ela levantou–se, limpando o dedo de sangue na
barra de seu vestido branco e transparente – Quem ousa me importunar? Quem
se atreve a interromper os afazeres da princesa desse castelo?
Ela resolveu atender à porta, pois estava curiosa para saber quem seria. Levou
cerca de meia hora para chegar até lá, pois era difícil descer todas as escadas da
torre e caminhar. Ao chegar até o imenso portão congelado tentou abri–lo com
toda a força que foi capaz de reunir, mas o portão estava emperrado.
O portão começou a derreter. O castelo de gelo inteiro derreteu e virou água. A
princesa estava em choque! Quem ousara fazer isso com seu precioso castelo?
Ela olhou para frente e viu uma menina com a mesma idade e estatura que ela,
de longos cabelos vermelhos e olhos amarelos. Ela segurava em uma das mãos
uma grande tocha. Certamente era uma das habitantes da cidade, mas a princesa
se surpreendeu ao perceber que ela estava magra como um palito. Ela ajoelhou–
se diante da princesa albina:
– Ó, sagrada princesa da neve! Venho em nome de todo o meu povo clamar–lhe
pela salvação. Todos os nossos habitantes estão morrendo por inanição. Já
perdemos 80% da população. Os homens já foram extintos e achamos que é
uma questão de tempo até que as mulheres restantes desapareçam também. Nós
estávamos preocupadas com a nossa princesa, imaginando o que teria
acontecido, pois já não recebemos as suas generosas oferendas de alimentos...
192
Velevi
– Mentirosa! – gritou a princesa, irada – Você só está atrás de comida! Não está
nem aí para mim, tanto é que acabou de queimar o meu palácio. Se algum de
vocês se preocupasse comigo não teriam me isolado aqui e sim me convidado
para a festa.
– Festa? Que festa? Eu só queimei o palácio porque a porta parecia emperrada...
– A festa de chuva de sangue! Eu também quero participar. Por que nunca me
convidaram, suas invejosas? Aposto que estavam com inveja da minha beleza e
da minha imponência. Tanto é que você destruiu o meu palácio de propósito
com essa sua desculpa esfarrapada, maldita!
Dessa vez a menina de cabelos de fogo se ofendeu. Ela levantou–se:
– Você chama a nossa vida desgraçada de festa? Enquanto você sempre teve
tudo do bom e do melhor?
– Sua mal agradecida! – gritou a princesa, num chiado cada vez mais estridente –
Eu que alimentei a sua preciosa barriga todo santo dia e você ainda me vem
com essa?
– E o que aconteceu de repente para deixar de nos enviar nossa comida? Pelo
jeito falta de neve não foi. Estou vendo que há neve em excesso aqui. Enquanto
em nosso país estamos atrás do menor floco...! Que absurdo! Você come tudo
isso sozinha?
– Mas que insulto! Que pergunta mais ultrajante! Eu não como neve como
vocês, seus seres inferiores! Eu bebo leite, pois sou uma princesa e apenas
mereço o melhor. Eu apenas decidi mudar de profissão e em vez de ser uma
cozinheira virei uma artista. E você acabou de destruir todas as minhas obras
maravilhosas.
– E por causa dos seus caprichos você matou mais da metade da nossa
população! – falou a menina, horrorizada.
– Eu colocaria essa frase de outra forma. Diria que vocês só não morreram até
agora por causa da minha generosidade. Eu apenas deixei que se virassem
sozinhos a partir daqui. Vocês precisam aprender a ser independentes.
– Se é assim, eu tenho uma proposta. Já que quer tanto ir para a “festa”, vamos
trocar de lugar. O meu povo viverá a partir de agora no País Branco, onde há
alimento suficiente para todos. Você construirá um castelo no País Vermelho.
– Para mim parece bom o suficiente. Vamos, Sorvetinha. Hora de fazer as
malas.
– Mas assim, de repente? – perguntou a ratinha, surpresa.
– Não interessa – retrucou a princesa – Apenas obedeça. Eu mando e você
obedece. Acho que preciso mesmo de novos ares. Então vamos embora daqui.
Essa terra agora está contaminada, pois pessoas indesejadas pisaram nela.
E a princesa saiu de lá arrebitando o nariz, sem nem se despedir da menina
palito.
193
Juliana Duarte
Ela levou muito tempo para chegar até o País Vermelho, pois não estava mais
acostumada a andar. Quando chegou lá, aquele local já estava deserto, pois a
menina, nesse meio tempo, tinha voltado ao país e chamado todas para morar
no País Branco. Naquele momento, todas elas desfrutavam de generosas
refeições de neve.
Enquanto isso, Ratinha de Sangue e Sorvetinha chegaram ao País Vermelho.
– Nos velhos tempos eu costumava vir aqui para trazer comida para todos,
então conheço bem essa terra – falou a ratinha – mas é a primeira vez que a vejo
tão deserta. É quase assustador.
– Então a festa acabou? – perguntou a princesa, desapontada.
– Que nada. Está só começando. Aí vem uma tempestade de chuva de sangue e
gases tóxicos.
– Oba!
– Você não tem máscaras de gás ou proteção alguma e vai morrer. É isso
mesmo o que você quer?
– Depois de uma vida trancada num quartinho minúsculo acho que preciso de
um pouco de perigo e adrenalina. Faz bem ao coração.
– Você é quem sabe. Tem certeza de que não prefere tirar umas férias na praia?
– O que é praia? – perguntou a princesa, enojada – Sol? Mar? Nem morta!
Prefiro morrer a pisar num lugar mundano e nojento como esse.
A chuva de sangue começou a cair.
– I’m singing in the rain...! – cantou a princesa, enquanto dançava.
– Cuidado, princesa! A sua preciosa e perfeita pele irá derreter!
– Oh, não! Eu posso até morrer, mas jamais quero estragar a minha beleza.
– Ali, princesa! – a ratinha apontou – Um freezer!
As duas entraram lá dentro. Como a princesa era bem pequenininha, coube
direitinho.
– Não quero ficar aqui para sempre. Esse quarto é ainda menor do que o meu lá
no palácio. Se bem que o clima aqui me parece agradável.
– Você que resolveu se mudar, então assuma as conseqüências.
– Mas eu não sabia que ia ser chato assim. Achei que estava indo para uma festa.
Que festa é essa que arruína a aparência dos convidados? A beleza deve vir
sempre em primeiro lugar. E depois a diversão.
– E a vida?
– Em último. Que importa a vida? Que lixo.
– Você ainda tem uma vida – observou a ratinha – o que vai fazer com o que
resta dela?
– Vou arrumar uma morte elegante que não estrague o meu penteado. Não é
essa a diversão das pessoas por aqui?
– Verdade. Mas achei que você fosse imortal.
194
Velevi
– Eu sou imortal apenas no País Branco. Agora não passo de uma mortal
comum e devo agir rápido. Não posso envelhecer antes de morrer. Preciso me
matar logo enquanto sou jovem e bela. Só assim eu virarei uma lenda.
– E quem vai lembrar dessa lenda? – perguntou a ratinha.
– Você. Porque é imortal, não importa onde pise.
– Assim é a minha maldição. Então está bem. Lembrarei de você. Como
pretende se matar?
– Vou pensar nas minhas opções – refletiu a princesa – a chuva de sangue não
funciona, pois estragaria minha pele. As lavas de um vulcão seriam uma tragédia
completa. Um raio me destruiria ainda mais.
– Você pode ser picada por uma cobra.
– Boa idéia!
– Não, acho que não vai funcionar. Provavelmente os habitantes do País
Vermelho levaram os seus bichos de estimação consigo. Agora que eles não
possuem mais chuva ácida para matá–los, quando tiverem vontade de morrer,
tornou–se ainda mais urgente a necessidade de possuir um método de eutanásia
particular.
– Droga. Quais são minhas outras opções?
– Pena que não aprendi a matar pessoas, senão eu te matava...
– Sua inútil.
– Ah, já sei – lembrou a ratinha – Gases tóxicos! É tiro e queda. Mas os gases
estão lá fora e está chovendo. O que vou fazer com seu corpo depois?
– Quero descansar num caixão de gelo para conservar o meu corpo.
– Não há caixões de gelo aqui, princesa.
– E o que me diz desse quarto?
– Até que é uma boa idéia. Depois de te matar eu posso te devolver para o
freezer.
– Tudo certo, então! Se é assim, já vou ficar aqui dentro. Traga–me o gás.
A ratinha saiu de lá e logo retornou com uma máscara de gás.
– Inverti a função original desse equipamento. Sou formada em química,
engenharia e mais um monte de coisas. Basta colocar a máscara no rosto.
A princesa colocou a máscara. Em poucos segundos, já não conseguia mais
respirar. Assustada, a princesa retirou–a imediatamente.
– Sorvetinha... há alguma coisa errada. Essa coisa não me deixa respirar.
– Não está errado. É assim mesmo que funciona. Você vai se sufocar e dessa
forma todos os órgãos do seu corpo irão parar um a um. Seu coração irá parar
de bater, seu cérebro pára de funcionar, essas coisas.
– Então isso é a morte? – perguntou a princesa, assustada – Eu não quero que
seja assim. Não quero parar de respirar. Não quero sentir dor! Só quero morrer
e pronto...
195
Juliana Duarte
– Acho que você não tem muita escolha na sua situação. Vai ter que ser assim.
– O que vai acontecer quando eu morrer?
– Você vai desaparecer.
A princesa ficou em choque.
– Mas eu não quero desaparecer. Não quero sumir desse mundo.
– Então por que queria tanto se matar?
– Eu não quero sumir – confessou a princesa – mas eu também quero ser jovem
e bela para sempre...
– Isso não será mais possível. Uma vez que abandonou o País Branco você
perdeu a maldição de sua imortalidade. Agora você irá envelhecer e morrer.
Com a velhice virá a feiúra e com a morte virá a dor. E o final de tudo será o
desaparecimento completo.
– Não! – gritou a princesa, em desespero – Eu não quero isso para mim! Por
que a realidade tem que ser tão terrível? Por que ninguém nunca me contou
nada? Eu não sabia!
– Você nunca soube de nada, princesa. Sempre viveu trancada em seu palácio,
alheia a tudo que acontecia no mundo. Você nunca soube nada sobre a vida, a
morte ou a dor. Por isso você achava que a morte poderia ser algo interessante e
que essa chuva ácida se parecia com uma grande festa.
– Eu perdi. Perdi tudo. Perdi o meu querido país e a minha imortalidade. Eu
estava entediada e queria muito mais. Mas agora perdi até o que eu já possuía.
Quem disse que a imortalidade é uma maldição? Por que você a chama assim?
– Eu não queria viver para sempre. Nunca quis. Para mim isso é um castigo. As
coisas precisam mudar. Por isso sempre acompanhei a mudança dos tempos
com tristeza, pois eu via tudo ao meu redor mudar com muita beleza e só eu era
imutável e vazia.
– Você acha que a mudança é desejável? Até mesmo a juventude converter–se
em velhice? A beleza em feiúra? A saúde na doença? A vida na morte? O prazer
na dor?
– Até mesmo essas coisas são necessárias. Você sabe disso, pois experimentou o
sentimento de tédio da imutabilidade absoluta enquanto estava trancada em seu
palácio.
– Ah, que fatalidade! Mas agora que a perdi, desejo a imortalidade que antes
possuía. Percebo o valor dela; o quanto é preciosa. Por favor, vamos trocar. Eu
te dou a minha mortalidade. Em troca, entrega–me o mais precioso presente
desse mundo.
– Eu aceito – falou a ratinha.
E as duas trocaram de lugar. A ratinha usou a máscara de gás e se matou. A
princesa, com corpo de ratinha, saiu do freezer e partiu para o mundo.
196
Velevi
Por muitas décadas ela explorou os mais diversos lugares: andou por todo o País
Vermelho, conheceu novos mundos, mas de uma coisa tinha certeza: não
desejava retornar ao País Branco, pois sentiria saudades e lhe doeria o coração.
Ela ouviu dizer que agora a rainha coala albina reinava por lá e ficou feliz em
saber que não era uma daquelas meninas nojentas e metidas de cabelos de fogo.
Ela resolveu não se relacionar com ninguém nos longos anos que viveu, pois se
perdesse essa pessoa depois, iria sofrer. E assim ela vivia: morrendo de medo.
Um dia ela chegou à praia. E lá sofreu, porque lembrou de sua melhor amiga.
Deitou–se numa pedra sobre a areia e chorou. Agora ela entendia como a
imortalidade era triste e vazia. Ela queria que tudo aquilo terminasse de uma vez,
pois a agonia que sentia era insuportável. Mas se terminasse assim, de repente,
doeria também.
Um rato cinzento que passava a notou por ali:
– O que houve, rata? Por que está tão triste?
– Eu estou triste porque sou imortal. Antes eu era uma bela princesa de um
palácio de gelo. Hoje em dia não desejo mais nada: nem beleza, nem juventude,
nem coisa alguma. Só quero a morte.
– Que coisa triste para se dizer – falou o rato.
A ratinha percebeu que era a primeira vez que falava com um ser masculino na
vida, depois de todos esses anos.
– Você sabe como posso recuperar minha mortalidade? Eu só conheço a técnica
de passar a imortalidade para outros, mas não desejo passar o meu fardo
adiante.
Um caranguejo que passava por ali escutou a conversa:
– Um ser imortal! Que raro hoje em dia. Já conheci muitos no passado.
Confesso que eu mesmo já fui um deles, mas hoje felizmente não sou mais. Para
livrar–se da maldição, basta dividir–se em dois. Se você criar outra metade de
você, a partir desse momento as duas metades serão mortais.
– Outra metade de mim?
A ratinha viu alguma coisa por trás da pedra: era um caranguejo fêmea com um
monte de filhotinhos caranguejos. Foi então que ela entendeu como quebrar a
maldição.
A ratinha olhou para o ratinho cinzento e sorriu, pela primeira vez na vida.
A partir daí, a ex–princesa Ratinha resolveu se dividir em muitas partes: em dois,
em três, em quatro. Ela e o seu companheiro rato cinzento criaram muitas
metades pequenininhas, branquinhas e cinzentas. Todas elas mortais. E a
Ratinha de Sangue tornou–se a Ratinha de Leite.
Agora a ratinha não era mais imortal e não estava com pressa para morrer.
Afinal, tinha pela frente uma missão a que deveria dedicar a vida. Em sua busca
197
Juliana Duarte
Quem ganhou?
Eu também estava surpresa por aquela história louca ter terminado com um
final feliz. E não havia consenso para decidir quem havia vencido.
– A chinesa ganhou – falou Jéssica – afinal, ela era a princesa. Foi ela quem se
transformou em rato e permaneceu até o final.
– A finlandesa aceitou ceder a imortalidade por vontade própria – lembrou
Gabriel.
– Eu não sabia que essas competições eram tão incríveis! – falou Tábata –
Quero vir amanhã de novo.
– E, caso não se lembre, o realismo também conta – acrescentou Gabriel – as
imagens da finlandesa foram mais bem feitas.
– A chinesa também foi incrível – falou Jéssica – A vitória tem que ser dela!
Os levis gritavam o nome das duas e parecia que muito em breve ia começar
uma discussão. A finlandesa aproximou–se do apresentador e pediu o
microfone, que ele entregou a ela imediatamente e de bom grado.
– Parabéns, Chanjuan. A vitória é sua.
Todos ficaram pasmos com esse pronunciamento. A chinesa também ficou
bastante surpresa. Ia argumentar alguma coisa, mas a finlandesa não deixou.
– Eu sei reconhecer quando perco. Por favor, aceite isso. Agradeço por todos
que me apoiaram. Foi uma mostra muito divertida. Então espero que entendam
que todos somos vencedores.
– E viva a Rosamond! Nobre e sincera!
E os fãs da finlandesa começaram a se manifestar a favor dela, apoiando–a por
ter reconhecido sua derrota.
– A chinesa vai enfrentar o africano – falou Peter – eu não acredito.
Até ali, todos tinham certeza de que a última competição aconteceria entre ele e
a finlandesa.
– A apresentação de hoje foi excelente – falou Jéssica.
– Apesar do final feliz – lembrou Peter – mas tudo bem.
– Eu sei exatamente os finais que você gosta – falou Jéssica – com muito sangue
e ossos voando. Assim como a mostra do brasileiro e da chinesa.
198
Velevi
A Mostra Final
Fui trabalhar naquela sexta, mas passei o dia todo desejando que a noite
chegasse logo. Pedi licença para sair do trabalho mais cedo no fim da tarde,
morrendo de vergonha, e fui até o local do evento. Lá encontramos as irmãs,
pois havíamos contado a elas que poderiam entrar se estivessem acompanhadas
por nós.
– Vocês perderam uma das melhores apresentações ontem – falou Peter – e
tudo por causa desse povo exagerado.
Todos mostravam as carteiras de identidade na entrada e barravam os menores
de idade. Justo na última competição! Mas considerando a dupla que ia
competir, concordei que talvez fosse bom mesmo manterem as crianças longe.
199
Juliana Duarte
Não tivemos muita escolha de cadeiras para sentar, pois foi difícil encontrar
vagas. Aquilo estava um formigueiro. Mas a maior surpresa foi quando vimos
chegar todos os velevis! Era a primeira vez que víamos todos juntos. Os
organizadores já tinham até preparado um local para que eles sentassem para
assistir.
Assim que eles se aproximaram, os repórteres os cercaram. Ninguém ia perder a
oportunidade de tirar uma foto de todos juntos. Havia muitos fãs com máquinas
fotográficas também. No começo só permitiam fotos do pessoal oficial do
evento, mas como ninguém obedecia àquela regra, acabaram liberando.
Os repórteres queriam tirar fotos da finlandesa e do africano juntos e pediam
para que os dois ficassem no centro. Esses dois pareciam se respeitar bastante.
Os velevis se sentaram e os seguranças mantiveram–se próximos do local.
O africano sentou numa cadeira da ponta, para manter a máxima distância de
todos. O brasileiro conversava animadamente com o moçambicano. A sueca
observava o ambiente ao redor com frieza, quase como se desprezasse todos ali
presentes. A russa estava com a mesma cara indiferente.
E aconteceu algo que me surpreendeu: a chinesa levantou–se e falou alguma
coisa para o africano. Ele confirmou com a cabeça. Depois disso, ela voltou a
sentar–se.
Já se aproximava das seis horas. A chinesa e o africano dirigiram–se à área
central. Naquele dia a chinesa estava toda de rosa. Por alguma razão, aquilo não
me surpreendeu.
Os torcedores da chinesa gritavam o nome dela, mas as pessoas não sabiam
direito como agir em relação ao africano. A relação dele com os levis era zero.
Todos ficavam um pouco nervosos com a presença dele; alguma coisa entre a
admiração e o medo. Era realmente assustador que uma pessoa possuísse aquele
grau de realismo com uma levi.
– Sejam bem–vindos à competição final para decidir o campeão entre os velevis:
China e África do Sul! Vamos recepcionar a nossa amável velevi chinesa:
Chanjuan! E também o famoso velevi sul–africano: Sobhuza! Gostariam de
dizer algumas palavras?
Claro que a chinesa ia falar.
– Boa noite a todos! Espero que apreciem a nossa mostra, pois hoje darei o meu
melhor. Esperem muitas cenas quentes nessa noite.
Cenas quentes? Pelo jeito a chinesa pegaria pesado.
Ela ia devolver o microfone para o apresentador, mas o africano aproximou–se
dela e estendeu a mão. Completamente surpresa, a chinesa entregou o
microfone a ele.
O meu coração acelerou. O pessoal gritou.
200
Velevi
Os gritos ainda permaneceram por pelo menos meio minuto. Se aquilo não
parasse, o africano não conseguiria dizer nada, mesmo com o microfone na
mão. Um povo começou a gritar para que todos calassem a boca e era só isso
que se ouvia por todos os lados, tanto em português quanto em inglês.
Subitamente, o local ficou em um silêncio mortal.
Eu quase podia escutar as batidas do meu coração. O africano finalmente
levantou o microfone para falar:
– Boa noite.
Mas ninguém deixou que ele continuasse, pois os gritos recomeçaram no
momento seguinte, ainda mais altos que antes.
A voz dele era bem grave. Eu ainda não tinha imaginado que voz ele poderia ter,
mas confesso que escutar aquela voz vindo dele me surpreendeu muito.
Mais uma vez, o local permaneceu em silêncio completo. Era perturbador. O
que ele tinha de tão importante para dizer? Ele levantou o microfone outra vez,
quando percebeu que o silêncio era suficiente para fazer–se ouvir:
– Técnica se adquire com treino. Já a imaginação é algo extremamente raro. A
arte de um levi é dar o nascimento às criações e torná–las vivas. Respirá–las e
tornar–se você mesmo a criatura e o criador. Não esqueçam disso.
Ele devolveu o microfone ao apresentador. Provavelmente ninguém esperava
que o africano fosse pegar o microfone e falar. Mas naquele dia eu ainda não
sabia o que o discurso dele significava.
A Criação da Musa
Criar é existir.
A minha respiração é minha criação. Você inventa mundos a cada segundo. O
seu cérebro não pára de pensar, nem mesmo enquanto dorme. A noite é o
momento de namorar o surrealismo. Todos os mundos são tão reais quanto
aquilo que se chama realidade se você possui o poder de entregar a eles a vida.
Os animais não falam. Eles apenas fazem arte. O pássaro vive pela arte da
canção. Qual a sua arte? Há a criação e o criador? São apenas palavras. As
palavras desconectam as pessoas das coisas e elas não mais as compreendem.
Você é Deus e possui o poder mais cobiçado: a capacidade de criar mundos e
torná–los vivos. Existe a arte de costurar uma boneca de pano. Eis a técnica.
Mas por que ela ainda está morta? Por que ainda é apenas uma boneca e não um
ser dançante? Para torná–la dançante a imaginação é necessária. A imaginação e
a técnica dão o nascimento à criação e ela se torna completa. Para tornar–se um
Deus completo é preciso descobrir o segredo da vida. Desvendar a maneira de
201
Juliana Duarte
tornar as suas imaginações seres viventes que respiram. Você precisa ser a sua
própria criação. Penetrá–la e fazer–se uma com ela.
A porta está aberta. Você é o seu anfitrião e seu convidado. Abra você mesmo a
porta e entre. Nesse momento criatura e criador se cruzam e se tornam um. O
mundo sem criações é um lugar vazio e apagado. Você acende uma lâmpada e
tudo que enxerga são assombrações e fantasmas.
O seu mundo até agora tem sido uma folha de papel em branco. Como deixou
isso acontecer? Eu enlouqueci no dia que descobri. Mas você precisa
experimentar essa loucura para saber do que falo. Nem todas as loucuras são
descartáveis. Você precisa possuir o mínimo de insanidade para estar vivo. O
mínimo de loucura para ser um criador. Todos os criadores são loucos, por
possuírem a ousadia de manchar o branco perfeito da folha com muitas cores,
sem medo de errar. Sem medo de seus próprios fantasmas.
É bom conversar com fantasmas de vez em quando para ter contato com o
outro mundo. Mas em vez de permitir que te assombrem até o fim da vida, que
tal assombrá–los um pouco e experimentar fazer–se fantasma? Quando ocorre o
contato com outros mundos você encontra a linha que conecta todos eles. Essa
conexão ocorre de forma tão natural como uma respiração. Você não cria um
mundo. Você o encontra. Aquele mundo que você pensa ter criado sempre
existiu. Você apenas realizou a ligação e conectou todas as partes.
É como fazer uma música. Todas as notas já existiam. Você não criou a música
e sim conectou todas as partes que estavam perdidas. A música já existia dentro
de você. Quando ocorre a reunião das partes, você também precisa conectar a si
mesmo com elas. Se você penetra na sua obra, cede à sua criação o seu coração
e ela se torna viva e pulsante.
Se sua criação está morta ela deve ser descartada. Enquanto não conseguir
escutar as batidas do coração, a sua boneca não passa de um cadáver. Não
queira ser o pai de um morto–vivo. Você pode fazer muito mais que isso.
Talvez você pense que é impossível criar uma vida através da imaginação. Mas a
sua mente pulsa. A partir da vida você possui o poder de gerar uma outra.
Conecte o passado, o presente e o futuro e se torne o próprio tempo. Torne–se
você mesmo um grão de areia da ampulheta que roda eternamente e gira sem
cessar; eis o segredo da eternidade.
Mas você ainda não sabe aquilo que deseja: a criação, a eternidade, a beleza, a
música. Há muitas coisas para querer e haverá o tempo da pulsação. Quando ela
começar você fará a sua escolha. Somente assim será possível a compreensão da
harmonia de todas as partes.
Você é a lagarta que acaba de nascer. O ovo se rompeu. A lagarta deseja fazer–
se borboleta e voar pelos céus para realizar a conexão sagrada e ela mesma
tornar–se mundo.
202
Velevi
Era uma vez uma borboleta cor–de–rosa com asas em formato de coração.
Possuía muitos sonhos e essa era a sua força para existir. Mas ela ainda não sabia
qual deles era verdadeiro. A sua busca era pelo sonho real. Dentre tantos, ela era
incapaz de resgatar o ouro perdido na lama. Ela amava a vida. Ansiava tornar–se
uma lenda.
A sua paixão era voar e suas asas a tornavam livre. Explorava todos os cantos e
espaços possíveis. Se não havia mais espaços, ela os criava e os coloria de rosa.
Foi assim que um dia surgiu o mundo cor–de–rosa.
O rosa era a cor de sua maior paixão. Possui a delicadeza e pureza do branco e
ao mesmo tempo a intensidade e a força do vermelho. A borboleta derramava
baldes de tinta branca e rosa no seu mundo e aquilo era extremamente belo aos
seus olhos.
E eis que nasceu o céu cor–de–rosa com nuvens de algodão–doce.
A borboleta com asas de coração gostava muito de comer algodão–doce. Como
ela sempre voava pelos céus, resolveu espalhar várias nuvens doces por lá.
Quando sentia fome, beliscava um floquinho e podia continuar a existir com
muita graça e beleza.
A terra macia e as árvores eram cor–de–rosa. A borboleta desejava olhar para
todos os lados e apenas enxergar a sua cor preferida. Rosa claro, rosa escuro,
rosa maravilha. Tudo era magia e assim era a sua vida e sua criação: derramando
mais baldes de tinta, criando novas formas redondas e espiraladas, enchendo o
mundo de cor, beleza e poesia.
A borboleta cantava em deleite:
203
Juliana Duarte
Eis que a borboleta avistou um unicórnio transparente e desceu das nuvens para
o solo macio. O corpo da criatura refletia o ambiente ao seu redor, tal qual um
espelho. Ao pisar no mundo cor–de–rosa, sua pele mostrava todas as belezas
róseas de algodão. Dizem que o Unicórnio Espelhado era parente do Unicórnio
Rosa Invisível.
UNICÓRNIO: É belo o mundo que criaste. Por que ele não te satisfaz?
UNICÓRNIO: Aquilo que te falta são os olhos. Não é desejável vagar para
sempre.
BORBOLETA: Sou aquela capaz de ver o futuro, mas não de olhar para o
passado. Algo precioso para mim há muito tempo foi perdido na estrada: a
memória.
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Velevi
As palavras proibidas
Assassinaste impiedosamente o teu tesouro mais brilhante
Qual é a cor do teu segredo?
Por que o pintas de rosa?
Do que tens medo? Do que te envergonhas?
Vergonha!
De enxergar a cor do passado
E descobrir que ela é negra e horrível
Tal qual o piche que arrancou–te a pata
O peso da verdade esmaga o mais poderoso dos gigantes
BORBOLETA: Pois criarei uma lei. A minha verdade possuirá a mentira mais
verdadeira sobre essa terra.
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206
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O Espanto
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Juliana Duarte
– Era apenas o meu rosto. Você quem inferiu que o resto fosse eu – a chinesa
deu um sorriso malicioso – quer descobrir se o resto era verdadeiro?
O pessoal se manifestou. O africano a fitava com uma expressão de quem não
acreditava no que tinha acabado de escutar. Parecia ter se sentido ofendido pela
pergunta.
Ele lançou a ela um olhar incrédulo, como se tivesse perdido o respeito por ela e
saiu de lá, atravessando o corredor. Não demorou muito para que ele fosse
cercado por vários levis. Alguns seguranças correram até lá para afastar as
pessoas.
“Que seguranças chatos!” pensei. Será que eu possuía algum desejo malicioso e
sádico de ver os velevis serem abordados pelos fãs?
A própria chinesa foi até o local em que o africano estava agora.
– Você que rompeu a conexão. Pelas regras, isso significa que eu ganhei, mas
você é quem sabe.
– Não me importo. Ganhe, se quiser.
E o africano foi embora do evento, sob os olhares espantados de todos. Em
seguida, houve muitos gritos e comemorações dos fãs da chinesa:
– Chanjuan é a campeã!
– Ela venceu! Derrotou todos os velevis!
– Chanjuan é a melhor! A melhor do mundo!
A chinesa estava contente em ter ganhado, mas não parecia estar desfrutando
totalmente da vitória. Se aquilo foi mesmo um truque para desconcentrar o
africano, nem mesmo ela esperava que fosse funcionar tão bem.
– Que interessante! – falou Peter, empolgado.
– Parece que o africano não gostou muito – observou Tábata.
– Aposto que ele gostou – falou Afonso.
– Eu espero que ainda exista algum homem nesse mundo que não seja tão
carnívoro como vocês – retrucou Jéssica – e que tenha alguma coisa na cabeça.
– Eu sou carnívoro? – Peter riu – Nossa, como você é engraçada, Jéssica! Gostei
da sua analogia. Bem criativa.
Mas o Peter ficou meio desapontado ao checar a internet quando voltamos.
– Não diz nada no site oficial sobre os eventos de amanhã. Inacreditável!
– Tem algum comentário sobre a mostra de hoje? – perguntou Jéssica.
– Muitos – falou Peter – mas acho que você não iria gostar de lê–los. A
propósito, divulgaram o nome do hotel dos velevis na internet.
Nós nos debruçamos para ver.
– Agora eles se ferraram – o Peter parecia muito satisfeito com a situação.
– Mas talvez alguns deles continuem no hotel.
– Quem sabe, se eles quiserem acordar toda manhã com uma criatura do lado da
cama – falou Jean – essas pessoas não se dão conta do ridículo. Em vez de fazer
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Velevi
essas besteiras, esses que se dizem “fãs” deveriam aprimorar o treinamento com
suas levis se realmente desejam ter algum contato com eles no futuro.
– Mas eles fazem isso somente para tentar espiar a tela da mente deles, é claro –
falou Peter.
– Eu sei o que eles querem espiar – falou Jéssica, friamente.
Naquele sábado até a Tábata nos acompanhou. A novidade do dia foi novas
bancas de lentes alternativas.
– Vejam só que fantástico! – Peter nos chamou – Olhem só esse jogo de RPG
que o nosso criou! Tem um de lutas também e um de corrida de carros que...
– O Peter virou um fanático pelo velevi brasileiro – observou Tábata.
– Isso ele já é faz tempo – falou Jéssica.
Tábata estava impressionada ao assistir às leals, pois era a primeira vez que via.
– Eu não acredito que você está olhando as leals do australiano – falou Jean.
Como estávamos apenas nós dois, falei com o Jean:
– Essa daqui é incrível! Mostra a Via Láctea. Não quer ver?
– Não, obrigado – respondeu ele, secamente.
– E que tal as leals do americano?
– Eu não quero ver praia.
– Então você é como a Ratinha de Sangue, que não gosta do mar. Eu adoro
praia!
– Você nunca esteve em uma – observou Jean – então como você adora?
– Já estive em várias nas últimas semanas e foi uma experiência incrível.
– Você acha mesmo que essas coisas podem substituir a realidade?
– Um dia eu vou comprar uma leal.
– Quantos anos de salário você vai guardar para comprar isso? – caçoou Jean.
– E se eu ganhar na loteria?
Jean riu. Como deveria ser bom ser um velevi...
Pela tarde houve competições de amadores. Como era uma modalidade livre
organizada na hora pelos próprios desafiantes – e não pelos organizadores do
evento – qualquer pessoa podia entrar e participar a qualquer momento.
Aquilo se pareceu com uma competição que nós mesmos organizamos um dia
no pátio do prédio, em que eu criei um aspirador de pó. Era tudo improvisado e
entrava quem queria. O Peter e o Afonso não perderam a oportunidade para
participar da bagunça. Havia alguns oponentes muito fortes. E teve até alguém
que criou cenário!
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Aquela senhora não parecia ser brasileira. Percebi que ela tinha um pouco de
sotaque.
– Olá – alguém chegou na sala, saindo do interior de um dos quartos – temos
visitas?
– Essa é minha filha. Ela estava morando com os avós na Europa enquanto
morávamos aqui. Como vêem, o português dela ainda não é muito bom.
– Eu tento – sorriu ela.
Ninguém conseguiu dizer mais nada.
Seria uma alucinação? Uma ilusão de ótica? Uma imagem da minha tela da
mente? Mas ela estava lá: a filha da nossa vizinha. Uma moça com longos
cabelos loiros e olhos castanhos. Era Rosamond.
Nós olhávamos para ela completamente pasmos e boquiabertos. Eu quase
deixei a xícara cair no chão. Apressei–me para recolocá–la na mesa antes que
aquilo acontecesse.
Ouvi um som de algo se quebrando. Peter tinha deixado cair a xícara dele.
– Desculpe! – Peter apressou–se em dizer e abaixou–se para recolher os cacos
no mesmo instante.
– Pode deixar – Rosamond foi até lá e abaixou–se também – não se preocupe.
Ela sorriu para Peter e recolheu os cacos da xícara na mão. Ele era incapaz de
tirar os olhos dela; e nós também. Rosamond saiu por um momento,
provavelmente para jogar fora os cacos, e no segundo seguinte já estava de
volta. Finalmente Peter conseguiu falar:
– Rosamond.
– Hein? Vocês já se conhecem? – perguntou a senhora, surpresa – De onde?
– Você me conhece? – perguntou Rosamond, curiosa.
– Claro – falou Peter, quase gaguejando – você é uma velevi.
– Que alegria! – Rosamond deu um grande sorriso – Então você também gosta
de usar levis?
– Ah, agora entendi – falou a senhora – eu não sabia que até aqui no Brasil tinha
gente que se interessava por lentes. E ainda por cima que a conhecessem.
– O torneio mundial está acontecendo aqui em Brasília, mãe. Lembra que te
contei? Por isso eu vim para cá antes. Estávamos com alguns problemas no
hotel e a senhora chegou na hora certa para que eu me mudasse para cá. Todos
vocês gostam de levis?
– Nós assistimos todas as mostras de vocês – falou Jéssica.
– Que bom! – disse Rosamond – Espero que tenham gostado.
– Foi incrível! – disse Peter – E a sua apresentação de quinta–feira foi uma das
melhores.
Rosamond sorriu outra vez.
– Conversem à vontade. Se precisarem de alguma coisa, é só me chamar.
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Eu desconfiava que houvesse alguma parte terrível no tal processo. Uma espécie
de abismo que era necessário cruzar para acessar os dois mundos. Será que
machucava?
– Você parece se dar muito bem com os levis – comentou Jéssica.
– Eles são gentis e queridos e alguns deles se esforçam muito. Eu desejo que
essas pessoas que se esforçam atinjam seus objetivos.
“O que não é o meu caso”, pensei, desapontada. Eu só sabia pensar na minha
maçã e nunca conseguiria evoluir.
– Eu gostaria de pedir uma coisa. Queria que guardassem segredo que estou
morando aqui, por enquanto. Pelo menos por mais uma semana, até o evento
terminar.
– Não vamos contar – falou Jéssica – não se preocupe.
De repente a Tábata falou alguma coisa em inglês. Tive a impressão de que
havia um termo mal colocado ali no meio, mas deu para entender:
– O que achou do final da última competição?
– Bastante exótico – falou a finlandesa.
A Tábata deveria ter seguido o meu exemplo e ficado quieta. Não achei que a
finlandesa estivesse com vontade de fazer quaisquer comentários envolvendo os
demais velevis. Queria preservar a privacidade deles. Mas o Peter aproveitou
para perguntar:
– O que achou do nosso velevi?
– Ele é muito divertido – a finlandesa sorriu – e as mostras dele foram ótimas.
– Há alguma chance de vocês se enfrentarem essa semana? – perguntou Peter,
esperançoso.
– Quem sabe. Com certeza seria legal.
Será que era melhor parar com o questionário antes que ela nos cortasse? Se
bem que até ali ela parecia estar gostando da conversa. Mas antes que alguém
falasse qualquer coisa, a mãe da finlandesa apareceu na sala:
– O jantar está pronto, Rosa. Vocês gostariam de jantar aqui?
Peter já ia dizer algo que se parecia muito com um “claro que sim”, mas Jéssica
interrompeu–o imediatamente.
– Muito obrigada, mas já está tarde – Jéssica levantou–se – acho melhor irmos.
Houve mais alguns floreios e despedidas até que Jéssica conseguisse empurrar
Peter para fora. Todos nós também saímos de lá. Depois que a porta se fechou,
parecia que eu tinha saído de uma espécie de transe. Nós retornamos ao
segundo andar.
– Isso realmente aconteceu, não é? – perguntou Peter, para se certificar.
– E você ficou com uma cara de trouxa o tempo todo – falou Jéssica – Tábata,
não percebeu que ela estava evitando comentar sobre os outros velevis?
– Eu só perguntei porque estava curiosa.
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Velevi
– Que tal visitá–la todo dia e fazer amizade com ela? – sugeriu Peter – Temos
uma semana para conseguir fazer isso. Mas acho que só com essa conversa já
fiquei satisfeito. Ao menos tive a oportunidade de conversar com uma velevi!
– Várias pessoas do evento conversaram com velevis.
– Sim, mas a nossa conversa foi muito diferente. Quase uma entrevista
particular.
– Eu não fazia a menor idéia de que a filha do casal de gringos fosse uma velevi
– falou Tábata – aliás, nem sabia que eles tinham filha.
Aquela noite me deixou muito pensativa. Eu não conseguia parar de pensar
naquela moça de cabelos compridos e sorriso gentil, respondendo as nossas
perguntas e tentando nos deixar à vontade. Ela já devia ter alguma experiência
para lidar com fãs.
Sim. Era isso que eu era: apenas mais uma fã, como qualquer um dos milhares
de fãs que a finlandesa tinha. Nunca seríamos amigos de uma velevi. Ela apenas
tinha sido gentil. Não tinha interesse em fazer amizades, muito menos com um
fã, para perturbá–la. Ela só queria ficar trancada no quarto usando sua levi. E
mesmo que ela quisesse ter um amigo, devia ter muitas opções melhores que
nós para selecionar.
E eu fui dormir com esse monte de pensamentos estranhos na cabeça. Naquele
final de dia eu já não achava tão incrível assim ter falado com a finlandesa.
Talvez eu até estivesse um pouco triste em confirmar que uma pessoa como ela
realmente existia. Comecei a desconfiar que tivesse um pouco de inveja dela.
Talvez fosse inevitável.
Então simplesmente aceitei isso com naturalidade, da mesma forma que eu
aceitava todas as outras coisas.
Os Anfitriões
Quando nos encontramos com o Afonso para ir ao evento, ele chegou para
falar conosco com uma expressão de quem tinha visto um fantasma.
– Eu vi! Juro que não foi um sonho!
– Quem? – perguntou Tábata, com muita naturalidade – A finlandesa?
Ele fez uma cara tão engraçada que nós começamos a rir. O Peter e a Jéssica
explicaram a ele o que tinha acontecido na noite anterior.
– Mas que sorte! Não acredito que eu não estava junto.
Mas pelo menos o Afonso ainda teria o gostinho de ver mais expressões
surpresas e contou aquilo imediatamente para os gêmeos e para as irmãs antes
que o impedíssemos.
215
Juliana Duarte
– Seria coincidência demais para ser verdade – falou Genaro – quem levaria um
vaso de flores para os vizinhos do andar de cima que retornaram de viagem?
– Eu – falou Tábata – porque sou uma vizinha educada e gentil.
– Ah, bom – falou Genaro – se foi você, eu acredito.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Tábata, secamente.
– Que você é mesmo uma boa vizinha. Muito atenciosa. Dessa vez ganhou um
bom prêmio pelo seu excesso de generosidade.
A finlandesa nos pedira na noite anterior para guardar segredo e na manhã
seguinte o Afonso já tinha espalhado para quatro pessoas. Se continuasse assim,
iríamos perder a finlandesa. Se bem que o pessoal do prédio acabaria
descobrindo cedo ou tarde.
Quem apareceu no domingo foram a indiana e a japonesa, para a felicidade das
irmãs, que eram fãs delas. As velevis assistiram com interesse a competição
entre o indiano e o colombiano, que era o evento mais esperado do dia. Mesmo
no final ninguém chegou a um consenso de quem seria o campeão e os dois
concordaram com um empate.
A velevi indiana aceitou enfrentar uma adolescente sul–africana que era muito
boa. Talvez os velevis observassem a tela da mente do adversário antes de
aceitar um duelo, pois até ali eu só tinha visto desafiantes de alto nível. Ou
apenas os mais fortes tinham coragem para solicitar uma disputa como aquela.
– Amanhã é véspera de Natal – lembrou Peter – aposto que muitos veteranos
estarão no evento.
A nossa cidade já estava em clima de Natal há muito tempo, com pinheiros,
enfeites e neve falsa para todos os lados. Até que eu gostava dessa época do
ano. Era diferente.
Novamente, estavam todos muito animados quando chegamos ao prédio.
– Oh – disse Peter, de repente – esqueci a minha carteira.
– E você só foi perceber isso agora? – perguntou Jéssica, sem acreditar – Onde
você esqueceu? No evento?
– Ontem à noite na casa da finlandesa.
– Você fez de propósito!
– Eu fiz – admitiu Peter – é uma bela desculpa para voltarmos lá, não acha?
– Vamos subir lá em dois segundos, falar com a mãe dela e depois descer,
entendeu?
– Ótimo – falou Afonso – Vamos todos juntos!
– Nem pensar! – Jéssica cortou na hora – Vamos chegar em bando na casa da
finlandesa para incomodar a essa hora? Ontem até tínhamos um motivo, mas
hoje é só uma carteira! Se fizermos isso mais vezes, ela vai perceber que só
vamos lá para encher o saco.
216
Velevi
No final todos se convenceram e cada um voltou para a sua casa. Mas quando
eu ia entrar em casa, a Jéssica me chamou:
– Você pode vir junto, Fran. Quer vir também, Jean?
– Prefiro não ir só para fazer número – falou Jean – divirtam–se.
E ele fechou a porta do nosso apartamento.
“Que mal educado!” pensei, aborrecida. Ele não precisava ser mal educado
assim até com a Jéssica. Mas aceitei acompanhar a Jéssica e o Peter até o 303.
A Jéssica tocou a campainha. Quem atendeu foi a própria Rosamond.
– Olá! Por favor, entrem.
– Nós só viemos buscar... – começou Jéssica.
“Não fale, Jéssica!”
Logo quando ela ia nos convidar para entrar...
– Eu sei. Mas podem entrar, se quiserem.
Ela pediu para que nos sentássemos no sofá.
– Eu vou apresentá–los a uma pessoa. Um minuto, sim?
E ela voltou para dentro. Nós apenas nos entreolhamos sem dizer nada. Mas
quando ela retornou, eu levei um susto. Ao lado da velevi finlandesa estava uma
garota de cabelos longos e negros, com olhos puxados e sorriso simpático. Era a
Chanjuan.
Será que as duas estavam se enfrentando num duelo e nós atrapalhamos? E por
que a finlandesa fez questão de mostrar a chinesa para nós? Talvez quisesse ver
a nossa cara de espanto ao olhar para ela. Devia ser divertido presenciar a nossa
reação.
– Seus amigos? – perguntou a chinesa, observando–nos com curiosidade.
– São nossos simpáticos vizinhos. Eles também são usuários de levis. Assistiram
todas as nossas mostras.
– Que máximo! O que acharam? Vocês gostaram?
– Nós adoramos! – falou Peter imediatamente, assim que saiu de seu transe.
– Querem saber o que estou fazendo aqui?
Claro que queríamos. Mas eu não imaginava que ela iria dizer e muito menos
fazer aquela pergunta estranha.
– Estávamos com alguns problemas no hotel. Pelo jeito a segurança não
funcionava por lá. E como esse prédio fica no fim do mundo, ninguém vai nos
encontrar... sem querer ofender, é claro.
– Sem ofensa – comentou Peter, achando graça – concordo com você.
– E como a Rosamond gentilmente me convidou para vir, eu aceitei. Eu nem
sabia que você tinha um apartamento por aqui. Você é bem prevenida.
– É dos meus pais – explicou Rosamond – se você não for muito exigente, acho
que vai servir.
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Velevi
– Dessa vez foi de verdade, eu juro. Esqueci completamente. Mas você não
pode me culpar.
A Tábata estava paralisada. Ela reconheceu a moça que assistiu à competição de
sexta–feira.
– Ah, sim – falou Jéssica, percebendo o olhar de Tábata – essa é a Margarita.
Será a sua hóspede. Ela pode ficar no seu apartamento por cinco dias?
– Como? – perguntou Tábata, sem entender nada.
– Vamos ver como eu explico isso...
– Deixa que eu explico – prontificou–se Peter – nós encontramos a chinesa no
apartamento da finlandesa. Ela gostou do nosso prédio e chamou mais três
velevis para se hospedarem aqui. A sueca está na casa da velha louca, que é a
avó da finlandesa, o africano está na casa do satanista e a russa ficará na sua.
Interessante, não?
A Tábata devia estar pensando que parte daquilo não era piada.
– Mas que loucura é essa? Me explique uma parte de cada vez. A chinesa está no
apartamento da finlandesa?
– E hoje descobrimos que ela não gira muito bem da cabeça. Acho que já
desconfiávamos disso depois de sexta, mas hoje confirmamos.
– A velha louca é a avó da finlandesa? E o satanista vai hospedar logo o
africano?
– E você será a encarregada de hospedar a russa.
A russa continuava quieta, com os olhos baixos.
– Por mim tudo bem – falou Tábata – mas se alguém estiver morrendo e
depender do meu inglês, irá para o buraco.
– Ela não fala nada mesmo – falou Jéssica – mas se alguém estiver morrendo é
só bater na minha porta.
O que a russa deveria estar achando de tudo isso? Se bem que ela não entendia
nada do que dizíamos. Tábata tentou convidá–la a entrar. A russa deu alguns
passos a frente, ainda carregando a mala e, sem levantar os olhos, entrou no
apartamento.
– Boa sorte – desejou Peter, contente – e uma boa noite para vocês!
Depois que Tábata fechou a porta, Peter ainda comentou:
– Puxa, só ela vai ficar com a diversão.
– Há cinco velevis no nosso prédio – lembrou Jéssica – e você ainda assim não
está satisfeito?
– Eu estou satisfeitíssimo! Agora iremos fazer muitos amigos e aprender
técnicas maravilhosas em primeira mão.
– É melhor você não se entusiasmar demais.
Naquela noite eu tinha muitas coisas interessantes para contar ao Jean.
– Mas que demora! Ficaram para jantar na finlandesa hoje?
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Um Natal Imaginário
A primeira coisa que eu fiz naquela noite foi tentar observar a tela da mente de
um deles, mas parecia que os rumores eram verdadeiros: eles davam um jeito de
colocar uma barreira e ninguém poderia espiar.
Aquela segunda–feira era véspera de Natal. Naquela semana eu não precisaria
trabalhar e a maioria dos outros também não, pois tínhamos conseguido tirar
férias.
– Você deixou a russa sozinha lá? – perguntou Jéssica – Ela não quis vir hoje?
– Parece que não – respondeu Tábata.
Contamos as novidades para o pessoal. Presenciamos uma cena bem engraçada.
– A velha louca? O satanista?! – era só o que o Afonso dizia – Vocês não
tinham nenhuma idéia melhor para um anfitrião?
– É Natal, gente! – falou Peter – Feliz Natal!
– Tomara que tenha algo diferente nessa droga de evento – falou Jean – não
agüento mais a mesma coisa todos os dias.
Havia uma banca nova, com leals de quase todos os velevis. Eram lentes que
faziam referência ao Natal. As mais populares foram as da sueca – com neve,
gelo e pinheiros – e também uma fábrica de brinquedos que o brasileiro fez para
as crianças, onde era possível inventar seu próprio brinquedo. As crianças se
reuniam para observar quando algum comprador provava aquela leal. Aquela era
a banca mais visitada do dia.
– E pelo jeito, nada de lentes do africano – observou Gabriel.
– Bem, agora você pode subir até o quinto andar, bater no apartamento do
satanista e pedir para ele te mostrar algumas leals – sugeriu Genaro – que tal?
O africano, sem saber, havia recebido o guarda–costas mais poderoso, o que
faria com que todos se mantivessem bem longe dele.
Quem apareceu no evento foram dois velevis completamente inesperados: o
egípcio e o australiano. O egípcio aceitou enfrentar uma alemã. Naquele dia
houve essa única mostra entre um velevi e um levi, mas todos já ficaram
suficientemente satisfeitos e aplaudiram com entusiasmo quando o duelo
terminou. Era um presente de Natal excelente.
222
Velevi
– O egípcio é incrível! – falou Genaro – Ele só não chegou às finais porque teve
o azar de duelar contra o africano.
– A Chanjuan se saiu muito bem duelando contra ele – lembrou Afonso.
– A chinesa usou um truque sujo – justificou Gabriel – se não fosse isso, é
óbvio que o africano teria ganhado. Ninguém ganha dele. Portanto, é natural o
egípcio ter perdido. Aposto que ele ganharia da chinesa.
Desconfiei que os gêmeos fossem defender o egípcio a qualquer custo.
– Ei, pessoal – interrompeu Peter – que acham de nos reunirmos para
comemorar o Natal? Vocês já têm algum compromisso? Vão para a casa de
parentes?
– Nós vamos para a casa dos nossos tios – falou Cíntia.
– E eu acho que a ceia será na casa do meu avô – falou Genaro.
– Bom, então, feliz Natal! – falou Peter – Amanhã quero presentes! Estejam de
volta para irmos bem cedo ao evento.
Os gêmeos e as irmãs se despediram e subiram para o terceiro andar.
– E vocês? – perguntou Peter, ansioso – Que acham de comemorarmos lá em
casa?
Eu e o Jean gostamos da idéia. O Afonso também estava animado.
– Eu estou cansada depois de andar tanto – reclamou Tábata – acho que vou
dormir.
– Você não vai comemorar o Natal porque está com sono? – perguntou Peter,
sem acreditar – Nem pensar! Não vamos deixar.
– Me deixa dormir um pouco e depois vocês me chamam.
E a Tábata entrou no apartamento.
– Ah, sim – lembrou–se Peter – minha carteira.
– Você e essa história outra vez? – perguntou Jéssica, sem paciência.
– Tem meus documentos lá – justificou–se Peter – e cinqüenta centavos.
– Hoje você pegará essa carteira de qualquer jeito assim que chegarmos, ouviu
bem? Fran, quer ir junto? Se bem que dessa vez só falarei com ela da porta.
Dessa vez até o Jean aceitou ir, pois não queria perder nada.
– E por que até você está subindo junto? – perguntou Jéssica, aborrecida.
– O meu apartamento fica no quarto andar, oras – justificou–se Afonso.
– Mas aposto que você não se incomodaria em dar uma parada rápida no
terceiro – observou Peter.
– Até agora eu fui o único que fiquei de fora. Quero ver alguma coisa também.
– Será muito útil termos você conosco na ceia de Natal – lembrou Jéssica –
precisamos de alguém para cozinhar para nós. Outro dia eu preparei macarrão
para vocês, mas no Natal exigimos algo especial.
– Pode deixar – garantiu Afonso – contanto que tenhamos os ingredientes. Que
tal convidar os velevis para comemorar conosco?
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Juliana Duarte
– Até parece. Aposto que eles vão passar a noite de hoje criando coisas muito
mais interessantes do que uma festa de Natal.
Jéssica tocou a campainha do 303.
– Desculpe incomodar de novo, mas esquecemos de pegar a carteira ontem.
Nem precisamos entrar. Só...
Nós jurávamos que a finlandesa ia nos convidar para entrar mesmo assim. Mas
ela já estava segurando a carteira e apenas colocou–a na mão da Jéssica.
– Obrigada – falou Jéssica, um pouco surpresa – nós já vamos...
– Apareçam às dez horas no 504. Tragam a Margarita e a amiga de vocês.
Após dizer isso, Rosamond deu um sorriso e fechou a porta.
Nós descemos a escada em silêncio até retornarmos ao segundo andar. Ainda
levamos algum tempo para processar a informação. O Afonso estava tão
perturbado que em vez de subir para o apartamento dele, desceu conosco outra
vez.
– É impressão minha – observou Peter – ou a finlandesa acabou de nos
convidar para ir ao apartamento do satanista?
– Ela disse 504? – perguntou Afonso, apavorado – Então eu escutei direito?
– Foi o que eu ouvi – confirmou Jéssica.
Em meia hora iríamos participar de algum ritual macabro e perigoso e vender a
nossa alma ao demônio. E logo no Natal! Eu não tinha sorte mesmo. De todos
os apartamentos do prédio, por que ela escolheu logo esse? Bem, Deus
precisaria me perdoar. Eu não ia perder aquela oportunidade. Será que estar na
presença de velevis valia um sacrifício tão grande? Batemos na porta da casa da
Tábata.
– Por que me acordaram? Nem são dez horas ainda! Voltem às onze.
– Mudança de planos – informou Peter.
– O que é agora? – perguntou Tábata, sem paciência – Vocês visitaram a
finlandesa? Conseguiu pegar a sua carteira?
Peter mostrou a carteira em sua mão.
– E fomos convidados para ir até a casa do satanista daqui a meia hora.
– O que disse? Está bêbado?
– Estou completamente sóbrio. Quem sabe o satanista tenha algumas latinhas
de cerveja gelada para fazermos com ele um brinde à Satã?
– Você quer calar a boca? – perguntou Jéssica, aborrecida.
– E você também foi convidada, Tábata – falou Peter – Os apartamentos da
cobertura são grandes. Acho que tem até escada para o terraço. Será que ele faz
alguns rituais lá em cima? Sacrifica bodes ao luar?
– Que bobagem – falou Jean – ele deve ser uma pessoa normal.
– Acho que você é o único que acredita nisso por aqui – observou Afonso.
224
Velevi
– Isso porque você nunca ouviu os gritos e barulhos que cortam o silêncio
gélido da madrugada! – clamou Peter, dramaticamente – Os gritos dos bezerros
e o toque das gotas de sangue no soalho ao terem suas gargantas
impiedosamente cortadas!
– Peter, menos, por favor – solicitou Jéssica.
Não demorou muito para que as dez horas da noite chegassem. Quando isso
aconteceu, Tábata chamou a russa. Ela apenas nos seguia sem dizer uma
palavra. Parecia apenas mais um acessório ali, que não faria a menor diferença.
Então era assim que as pessoas me viam? Mas havia uma diferença significativa
entre nós: ela era uma velevi. Tinha razões muito superiores às minhas para
manter o silêncio.
Chegamos ao quinto andar. Estávamos diante de uma porta de madeira com o
número mais assustador do mundo: 504.
Jéssica tocou a campainha.
O meu coração estava quase saindo do corpo e eu suava frio. Pelo jeito
estávamos mais nervosos por causa do satanista do que por causa dos velevis.
A porta se abriu. Mas quem atendeu foi...
– Bem–vindos, convidados! Por favor, entrem. Sintam–se à vontade.
Era o Félix.
Mas o que o velevi brasileiro estava fazendo no apartamento do satanista?
Resolvi olhar para a cara do Peter para ver a reação dele. Tanto Peter quanto
Afonso estavam completamente pasmos. O Peter, particularmente, era quase
fanático pelo nosso velevi.
– Oi, Margarita. Vamos, pessoal, entrem. Convidados não podem ficar na porta.
Passar por aquela porta fez meu coração acelerar.
– Os outros já estão lá dentro – explicou Félix ao nos conduzir ao interior do
apartamento – o anfitrião não pôde atender a porta, pois está ocupado com os
preparativos.
Eu gelei. O anfitrião estava ocupado com os “preparativos”?
Em seguida, apareceram a chinesa e a finlandesa, que nos cumprimentaram.
Elas deviam se dar muito bem com o brasileiro para tê–lo convidado naquele
dia. A sueca apareceu por ali e já foi dizendo:
– Eu não vou ajudar a cozinhar nada.
E foi sentar sozinha num canto, ignorando a todos.
– Alguém sabe cozinhar? – perguntou Rosamond.
Então era para isso que ela tinha nos chamado? Para cozinhar para eles?
– Eu sei – prontificou–se Afonso.
– Ele faz faculdade de gastronomia – acrescentou Peter.
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Velevi
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– É verdade que você quase cortou a garganta de um levi que invadiu o seu
quarto de hotel, com uma faca de cozinha? – Tábata perguntou para a sueca, no
seu inglês improvisado.
A Tábata sempre conseguia fazer as piores perguntas possíveis.
– Que absurdo – falou Emelie – eu não vou responder a essa pergunta.
Eu já esperava uma resposta do tipo. Vindo dela, até que tinha sido bem
educada.
– O que acharam das mostras? – perguntou Félix – Qual gostaram mais?
Os velevis olhavam para nós. Eu estava ficando nervosa. Percebi que os outros
também estavam. Uma coisa era comentarmos animadamente entre nós as
partes que mais tínhamos gostado de cada apresentação. Outra coisa bem
diferente era todos aqueles velevis olhando para nós esperando por uma
resposta.
– Honestamente, eu achei as suas as melhores – confessou Peter – sou um
grande fã seu.
– Obrigado – falou Félix, bastante contente – mostras são muito legais. Eu me
divirto com elas.
– Eu gostei da sua disputa com o americano – Jéssica dirigiu–se a Rosamond.
– A de vocês duas foi uma das melhores! – lembrou Tábata, referindo–se à
apresentação da chinesa e da finlandesa; embora ela só tivesse assistido duas – A
da ratinha albina.
– Você e o Félix deviam se enfrentar – Peter tomou coragem para dar essa
sugestão a Rosamond mais uma vez.
– Isso seria ótimo – falou Félix – mas o que acham de um de vocês enfrentar
um de nós?
Eu gelei. Quem ali teria coragem para enfrentar um deles? Desconfiei que o
Peter tivesse muita vontade de desafiar o nosso, mas talvez ainda não tivesse
confiança em suas habilidades o suficiente para tanto. E, para meu horror, ouvi
falarem meu nome:
– A Fran sabe fazer algo incrível – Jean falou, mas dessa vez em português – ela
ganhou quinto lugar na mostra dos amadores na competição de imagem mais
realista. Querem ver?
– Claro! – falou Félix, curioso.
Eu queria matar o Jean! Eu não estava acreditando que ele tinha...!
Os outros queriam saber o que o Jean tinha falado. Félix traduziu. Os demais
velevis também ficaram curiosos para ver o que eu teria para mostrar.
Comecei a suar frio. Nunca que eu teria coragem de mostrar uma maçã para os
velevis! Provavelmente estariam esperando algo extraordinário, mas qualquer
um deles conseguiria fazer uma maçã umas cem vezes mais realista que a minha,
em um segundo.
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Eu me orgulhava da minha maçã, mas ela era boa apenas considerando meu
nível. Eu teria vergonha de mostrá–la para especialistas, que a observariam de
todos os ângulos e seriam capazes de enxergar com clareza todos os erros e
falhas.
Todos estavam olhando para mim! Senti meu rosto corar. Para me livrar dos
olhares, resolvi formar logo a tal da maçã na minha tela da mente. Pensei em
cada detalhe: o formato, a cor, o cheiro, as pequenas falhas na casca, o cabo e
tudo o que fui capaz de lembrar, quase como se eu tivesse estudado com afinco
todos os dias apenas para realizar aquela prova. Finalmente, apaguei–a da mente
e abri os olhos. Depois de tanto esforço, eu até senti meu rosto suar de calor
quando retornei.
Achei minha maçã boa o suficiente. Eles deveriam entender que eu era apenas
uma amadora, então não teria problema. Todos tinham observado minha maçã.
Percebi que alguns velevis me olhavam com uma expressão quase surpresa.
– Muito bom.
Quem disse aquilo foi... o africano! Eu tinha sido elogiada pelo africano! Eu não
podia acreditar. A pessoa que era capaz de produzir as imagens mais perfeitas
havia dito que minha maçã era muito boa.
– Mostre–nos mais – pediu Félix, interessado.
– Acho que não há mais – o Jean respondeu por mim – a Fran escolheu apenas
aperfeiçoar essa única imagem. Digamos que ela focou todo o treinamento dela
aí.
– Entendo – falou Félix – já ouvi falar de pessoas que fazem isso. É bem
impressionante.
– Você acha? – perguntou Jean.
– Claro. Alguém que escolhe aperfeiçoar–se numa única forma faz um grande
sacrifício. Opta por abandonar todos os mundos perfeitos que poderia criar e
foca o seu talento para aperfeiçoar um tipo muito específico de técnica. Não sei
se eu seria capaz de fazer isso. Afinal, não é exatamente divertido o processo, e
sim árduo e demorado. Você precisa sacrificar a diversão também. Acho que
não serviria para mim.
Mas não era nada disso! Eu não escolhi fazer sacrifício nenhum. Apenas resolvi
me focar só na maçã porque era preguiçosa demais para pensar em outras
coisas.
– Existem muitos tipos diferentes de levis – explicou a finlandesa – é difícil
dizer quem é melhor que o outro. Cada um escolhe uma área específica, pois as
lentes permitem um campo muito vasto. No caso do foco numa única imagem,
alguns fazem isso quando desejam gravar uma cena importante para elas. Algo
especial.
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Pois é, uma maçã não era exatamente algo especial. Era só ir até a minha
geladeira que eu encontraria uma.
– Você usa a mesma palavra para os dois? – perguntou Tábata – levi é o nome
das lentes e dos usuários?
– Também chamamos de levis os usuários das lentes virgens, pois no fundo não
deve haver diferença entre o usuário e sua criação. Você deve se tornar a própria
lente. Já a formação de lentes alternativas é um método que utilizamos para
trancar a cena que formamos lá dentro. É como romper o lacre de uma fita.
Você não pode mais gravar em cima. Já as levis podem ser reutilizadas a
qualquer hora, enquanto você não rompe o lacre. Mas só alguém que seja capaz
de penetrar em sua tela da mente é capaz de rompê–lo.
Eu mesma lembrava que já tinha me confundido um monte com todos aqueles
termos. Principalmente por causa das diferenças entre o português e o inglês. O
nome das levis em inglês era viles: “virgin lenses”. Já as leals eram as alles:
“alternative lenses”. Velevi era vevile: “veteran of the virgin lenses”.
Mas era melhor deixar para lá. Inglês era muito complexo para a minha cabeça.
– Há outros termos – lembrou Peter – quando você muda o seu foco de
percepção e penetra na tela da mente pela primeira vez, chama–se glamour. A
catarse é quando se atinge o poder de criação no ponto máximo e se estabiliza o
glamour. E uma vez que você possui livre habilidade de manipulação, pode
formar as egrégoras, ou as imagens ultra–realistas.
Alguns velevis se entreolharam.
– Não é exatamente assim – falou Rosamond – o termo egrégora não existe no
contexto que você mencionou. A egrégora vai além do ultra–realismo. Existe
algum perigo se você for longe demais. É preciso conhecer os seus limites.
– Há limite para a criação?
E mais uma vez eu testemunhava como os velevis e os levis viviam em
universos completamente separados.
– Essa conversa está muito séria – Félix riu – hoje vocês estão conseguindo
chegar exatamente nos assuntos delicados. Portanto, eu sugiro uma mudança
forçada de assunto.
– Na ocasião apropriada retomaremos o assunto – sugeriu Rosamond.
A ocasião apropriada seria quando não estivéssemos presentes.
– Qual o uso real das lentes? – perguntou Jéssica – Com certeza não é só um
brinquedo de criar imagens e histórias.
– Viu o que eu falei? – perguntou a sueca – Isso é o que os levis pensam sobre
as lentes. E você ainda os defende, Chanjuan?
– Não estou defendendo. Existem os usos mais diversos. Alguns são divertidos
e inocentes. Outros são técnicos, perigosos, comerciais...
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ela permanecia sempre em sua tela da mente. E se ela estivesse em sua tela
naquele instante, enquanto comia?
– Quando será a hora dos presentes? – perguntou Félix – O que querem ganhar
de Natal? Vejamos... o céu? Um passeio de montanha–russa?
– Não há nada que você possa me dar – falou a chinesa – Já tenho todos os
presentes do mundo.
– Desse jeito o Papai Noel vai se aposentar. Ele tem doze pessoas a menos para
presentear esse ano.
– Vamos falar de coisas mais alegres – sugeriu Rosamond – Vocês deviam ver o
lado positivo, ao menos hoje.
Embora falassem em tom de piada, eu quase sentia como se eles não gostassem
da habilidade que possuíam.
– O lado positivo é que, embora não possamos mais ganhar presentes, ao
menos podemos dá–los – lembrou Félix – nossos convidados receberão
presentes especiais.
– Gostei da idéia – falou Chanjuan – então cada um escolhe um presente. E
podem escolher também um Papai Noel.
Poderíamos até mesmo escolher de qual dos velevis desejávamos receber
alguma imagem ou acontecimento fantástico! Em que lugar eu gostaria de estar
na noite de Natal?
Eu já sabia quem o Peter ia escolher.
– Então me mostre alguma coisa interessante – falou Peter.
– O que deseja ver? – perguntou Félix.
– Tenho uma sugestão melhor – falou Chanjuan – em vez de todos verem as
imagens de todos, seria mais apropriado cada um conversar em particular com
um de nós. E nada de espiar a imagem dos outros. Eu irei bloquear o primeiro
que tentar.
Seria uma “mostra particular” com um velevi. Como a sala era grande, daria
para cada dupla sentar num canto e conversar reservadamente para dar os
detalhes. A Jéssica escolheu a chinesa e o Jean escolheu a finlandesa. A Tábata
aguardaria até que uma das duas terminasse e o Afonso esperaria o Félix. Mas eu
queria alguém diferente.
Decidi que ficaria com a russa. Antes eu tinha muito medo dela e de suas
imagens macabras. Mas agora eu estava curiosa. Assim que terminamos de
comer, nos reunimos cada um com um velevi. Sentei–me com a russa num
canto. Fiquei um pouco tensa. Ela me observava com aqueles olhos
melancólicos.
“Mostre–me seu passado”, senti vontade de dizer. Mas não tive coragem. Fiquei
curiosa sobre isso desde que a sueca mencionou algo que tinha acontecido com
a russa.
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contou que os deuses jogavam fora seus restos de mundo? Eles se misturam e
deles nascem os seres fabulosos, dos restos de neve e arco–íris quebrados!”.
Mas eu estava lá; eu podia vê–la. Então toda aquela graça me pertencia? Ou era
eu a própria beleza? Como eu desejava sentar–me naquele banco. Se eu tivesse
esse poder, lá permaneceria até o fim e todos os segundos da minha vida seriam
tão graciosos como belas noites de Natal. O Natal dos seres abençoados, pois
eu, em minha pequenez e insignificância, jamais o mereceria.
Eu, uma poeirinha esmagada, em meio a um desfile de majestosas beldades. Mas
a efemeridade ainda me matava. Ela me arrancava pedaços e me crucificava.
Eles foram mais piedosos com Jesus Cristo. Porque eles só ligam para as coisas
grandes e não para as pequenas. Eu não teria glória ou mesmo sofrimento. O
destino das coisas pequenas era o vazio e o esquecimento. Por favor, me
crucifiquem! Nem mesmo a cruz será o meu destino porque ninguém levanta os
olhos diante de grãos de areia. Eles apenas os expulsam com petelecos. “Eu
tenho sede de gigantes”. As mãos da fantasia esmagam os seres apagados. Eu
ainda não sabia brilhar.
Por que as coisas não eram diferentes? Eu queria moldá–las de acordo com
minha vontade. Desejava tocar aquela neve, com elas fazer bolas de neve
perfeitas e construir meu querido mundo mágico, onde os seres sem luz
aprendiam o segredo das cores.
Queria pegar uma estrela para mim e inserir o brilho de uma delas num pote de
vidro. Eu lacraria o pote. “Seja só minha”. E a estrela jamais me abandonaria.
Eu construía as minhas próprias sensações com cuidado e leveza. Aquilo era
mais importante que a minha curta existência. A minha existência não era
sagrada. Eu queria tornar–me sagrada e uma com a neve. Mas eu não era neve.
Era uma outra existência que manchava a paisagem perfeita.
Eu não tinha um balde de tinta para me pintar de luzes luminosas. Não possuía
uma borracha para apagar a vergonha da minha face. Então ao menos eu tinha
um consolo: de que ainda possuía olhos. Somente através deles eu era capaz de
violar o proibido.
Aquela solidão que eu sentia ao mesmo tempo me matava e me revivia. Eu
estava na cidade das pessoas sem olhos, sem nome e sem face; das pessoas
invisíveis. Estava sozinha lá e era somente dessa maneira que eu existia.
Por que a cidade estava vazia? Inevitavelmente eu descobri a razão: a beleza doía
demais. Ela era efêmera e por isso machucava. Ao fazer–se eterna, era como
uma facada. Dar eternidade à beleza seria como tirar o brilho da bola de vidro.
Ela era apenas uma bola sem graça agora.
Então por que eu me sentia tão triste? Por que as sensações mais especiais
também são as mais terríveis? Havia algum tipo de tristeza mórbida no
maravilhoso. E o maravilhoso não era capaz de existir sem o seu próprio
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– Não vai passar – falei, apavorada – estou com medo... meu coração está
batendo muito rápido.
– Ah, não – Félix ficou preocupado – já passou do ponto. Não dá mais para
reverter agora. Eu não acredito.
Ele levantou–se no mesmo instante e correu para chamar as outras duas. A
finlandesa já tinha terminado a cena de Jean há poucos segundos, mas a chinesa
teve que interromper. Ele sussurrou alguma coisa para elas. Quando eles se
aproximaram, eu consegui escutar alguma coisa.
– Ela tentou penetrar na tela da mente da Margarita.
– Mas ela conseguiu voltar, não é? – perguntou Rosamond, preocupada.
Aquelas frases soltas começaram a não fazer sentido.
– Por que permitiu que ela fosse tão longe, Margarita?
– Eu não esperava que isso fosse acontecer.
E então eu não vi mais nada por alguns segundos. Eu ouvia algumas vozes lá
fora e parecia que estavam me mudando de lugar. Quando dei por mim, estava
deitada numa cama. As vozes continuavam.
– Você está bem? – perguntou Rosamond.
– Um pouco melhor, eu acho.
– Ainda está sentindo seu coração bater rápido? – perguntou Chanjuan.
Confirmei com a cabeça ao notar aquilo, surpresa. Não era normal. Eu estava
nervosa demais. Estava com medo de morrer.
– Isso não vai parar – falou Rosamond, preocupada – vá chamar o Sobhuza,
rápido. Ele deve saber o que fazer.
A chinesa saiu do quarto, correndo às pressas.
– Fran – era a Jéssica – como você está?
– Não sei... está meio estranho.
A minha voz saía muito fraca e confusa. No instante seguinte, a chinesa entrou
novamente no quarto, acompanhada do africano. Ele aproximou–se:
– Feche os olhos.
Eu obedeci.
– Escolha um ponto fixo e foque a atenção nele – ele instruiu.
Eu escolhi um ponto diante dos olhos.
– Respire com calma. Conte até três na inspiração e também na expiração. Faça
com que tenham o mesmo ritmo. Não apresse.
E eu contava.
– Aumente para quatro a contagem.
Aos poucos eu sentia que me acalmava.
– E agora para cinco.
O meu coração já estava batendo um pouco mais devagar.
– Torne a sua respiração cada vez mais leve, até que quase desapareça.
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você seja capaz de penetrar na sua tela da mente. O seu corpo está expressando
esse desejo desde o começo.
Era inacreditável.
– Agora me diga – prosseguiu o africano, como se escolhesse bem as palavras –
nunca aconteceu nada fora do comum com suas imagens? Em algum momento
você já sentiu que elas estavam reais demais?
– Já aconteceram algumas coincidências estranhas. Uma vez eu estava no ônibus
e fiquei com fome – eu tentava me recordar – encontrei uma maçã na bolsa. Foi
muita sorte, porque não costumo levar frutas comigo.
Ou será que era apenas um fato ridículo? Por que eu tinha contado aquilo?
– Você tem certeza de que as coisas aconteceram exatamente dessa maneira? –
perguntou o africano.
Senti uma sensação terrível. Alguma lembrança desconfortável do passado
ligou–se ao presente.
– Jean... foi você quem colocou a maçã na minha bolsa?
– Eu não! Eu nem mexo nas suas coisas.
– Liga para o pai e para a mãe agora. Pergunte se foram eles que fizeram isso.
O Jean achou muito estranho o pedido, mas pegou o celular e ligou para a nossa
casa. E, realmente, eles não tinham feito.
– Agora me lembrei. Tenho certeza absoluta de que nunca guardei fruta
nenhuma. Estou sentindo uma sensação ruim – confessei, ficando nervosa –
porque agora sei exatamente o que aconteceu...
Mas eu não consegui continuar. Lágrimas caíram dos meus olhos antes que eu
pudesse contê–las. Eu não podia acreditar que eu estava chorando na frente de
todo mundo! Que humilhação. Mas o que mais me perturbava era a sensação
horrível que eu sentia. Aquele resgate repentino da memória, que surgira como
um rasgo; como um remendo. Como se uma agulha se enfiasse no meu cérebro
para costurar uma lembrança que não deveria estar ali.
Eu não soube explicar o que era aquela expressão dos velevis, mas eles me
fitavam de uma maneira muito estranha.
– Você não faz idéia do que fez – falou o africano – isso é um tabu. Não se fala
nisso. É proibido. Você não poderia ter falado em voz alta, mas a culpa foi
minha. Fui eu que te mandei falar.
– Eu não estou entendendo nada – confessou Jéssica.
– É melhor que não entendam – falou Rosamond – vocês estarão mais seguros
sem saber disso. Vamos evitar contatos entre nós e levis daqui para frente.
Passamos por muitas coisas. Não queremos que ninguém de fora se envolva.
– Ah – falou Félix, de repente – já é meia–noite. Feliz Natal.
– Natal estranho esse – comentou Rosamond – Você... como é o seu nome
mesmo?
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– Fran.
– Eu gostaria de conversar com você em particular. Não prometo dizer muita
coisa; só dar alguns conselhos para a sua segurança. Mas isso só poderá ser feito
outro dia.
Depois que saímos de lá, ninguém falou mais nada. Apenas desejaram feliz
Natal um ao outro. Deram boa noite e cada um retornou ao seu apartamento.
Quando voltamos para casa, o Jean não falou uma palavra comigo. Aquilo tudo
era perturbador. Eu pensava que aquela noite iria terminar com muita alegria,
mas não foi o que aconteceu.
Sem querer, por mero conformismo, eu descobri uma coisa proibida. Um
segredo que os velevis escondiam a sete chaves.
Será que quanto mais se avançava, ocorriam efeitos mais fortes? Eu não sabia
como se fazia para penetrar na tela da mente. Aquela sensação tinha sido
horrível demais. A finlandesa falara uma vez que era uma sensação maravilhosa
e ao mesmo tempo assustadora. Mas eu não vi nada de maravilhoso.
Se o africano não estivesse lá para me fazer voltar... poderia ter acontecido
alguma coisa grave e irreversível.
Os Flautistas
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Juliana Duarte
O satanista me pareceu uma pessoa normal, mas... por que ainda assim eu
desconfiava que havia algo diferente nele?
A banca das leals natalinas ainda estava lá, mas eu já tinha experimentado cenas
de Natal demais para ter coragem de ver. Queria que todo aquele clima festivo
terminasse logo. Esperava que nenhum pinheiro gigante viesse me assombrar
nos meus pesadelos.
Assistimos a algumas palestras, mas eu nem prestei atenção. Naquele dia quem
apareceu no evento, para a nossa completa surpresa, foi a sueca. Ela mesma não
havia criticado o evento e todos os levis?
No final do dia ela aceitou enfrentar uma moça brasileira. Percebi que a
competição foi um pouco “violenta”. Certamente a sueca estava irritada com
alguma coisa. Ainda bem que ela não havia ficado até o final no dia anterior e
não presenciou minha desgraça.
Naquela noite, quando voltamos para casa, alguém apertou a campainha do
nosso apartamento. Era a finlandesa.
– Está ocupada? Será que podia vir ao meu apartamento para conversar?
Nós duas fomos até lá. A chinesa já nos esperava, sentada no sofá.
Acho que só consegui falar com elas na noite anterior por causa da febre e do
medo. Mas naquela ocasião eu estava completamente lúcida e consciente do
meu nervosismo.
– O uso das levis é perigoso para quem experimenta reações – começou
Rosamond.
– Você viu como havia pessoas habilidosas e esforçadas nos torneios dos
amadores – falou Chanjuan – Aquele indiano que eu enfrentei era muito bom.
Mas ele ainda é controlado em sua imaginação e tem medo de perder o corpo.
– Eu também tenho medo – confessei – então por que eu sou diferente dele?
– Digamos que você dê flautas para cinco crianças que nunca tocaram nada na
vida – falou Rosamond – Você explica todas as regras. Diante das mesmas
condições, as cinco tocam de maneiras diferentes. Uma toca melhor que outra,
porque elas possuem habilidades inatas diferentes.
– Vamos supor que a criança A toque bem naquele dia e a criança B toque mal –
falou Chanjuan – mas a criança A resolveu parar de tocar flauta e a criança B
continuou. Quem vai tocar melhor? A criança B, é claro. É o mesmo caso ao
comparar você e o indiano. Você é a criança A e possui uma inclinação nata. O
indiano se esforçou e por isso foi mais longe. Quando a sua mente viu a
liberdade diante dela, entrou em êxtase. Mas o seu corpo entrou em estado de
alerta vermelho. Quando você resolve confiar na sua mente e penetrar, o seu
corpo começa a adquirir confiança também e a ceder.
– Pessoas sem a inclinação não podem se tornar velevis? – perguntei.
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Velevi
– Elas não desejam se tornar. No seu caso, a sua mente vai atravessar uma faca
na sua carne e no seu raciocínio. É todo esse choque dos três que gera aquela
reação que você experimentou ontem. É como uma guerra acontecendo dentro
de você. A mente deseja ganhar essa guerra.
Não sei de onde, mas me veio à mente uma pergunta esquisita. Aquilo estava
me incomodando há muito tempo. Na verdade, foi a primeira coisa que me
incomodou, desde meu primeiro contato com as levis:
– Por que só existem lentes para o olho esquerdo?
Será que eu finalmente obteria essa resposta? Percebi que elas demoraram
demais para me responder. Talvez eu tivesse feito uma pergunta que não devia.
– É melhor você não escutar sobre isso agora – falou Rosamond – faça sua
decisão.
– Não vou me tornar uma velevi da noite para o dia. Tenho me esforçado todo
esse tempo até agora e nada. Talvez não tanto quanto eu deveria, mas...
– Você tem se esforçado com sua maçã – corrigiu Rosamond – e já percebeu o
poder assombroso que possui com essa única imagem. Há quanto tempo você
usa a sua levi?
– Uns seis meses.
– Seis meses? – perguntou Chanjuan, sem acreditar – E você já conseguiu
uma...? Bem, se for pensar que você passou os seis meses inteiros apenas
pensando numa maçã, talvez não seja tão surpreendente assim. Por que tomou
essa decisão?
– Não sei.
“Preguiça” pensei. Mas eu não precisava entrar em detalhes.
– Mas agora você precisa tomar uma decisão mais importante – falou
Rosamond – ou você escolhe penetrar na sua tela da mente e treinar nessa
direção de modo sério ou pára de usar levis. Se ficar no meio termo entre um e
outro para sempre, você vai sofrer. Vai sentir mais efeitos daqui para frente e só
vai ficar pior.
– Existe algum efeito colateral se eu parar de usar?
– Eu mesma sinto algumas coisas se fico mais de 24 horas sem usar a levi. Você
deve sentir algumas reações, mas só no começo. Depois a sua mente vai
esquecer. Basta ocupá–la com outras coisas. Mas é melhor não ter nenhuma levi
por perto para fazê–la lembrar.
Era que nem drogas!
– Quanto tempo leva para completar o processo?
– Depende da pessoa – falou Rosamond – Tem gente que consegue muito
rápido. A maioria de nós levou pelo menos um ano, mas...
– Eu levei nove meses – falou Chanjuan – meu treino foi intenso. Eu não fazia
mais nada. O Sobhuza, por exemplo, levou três.
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– Já. No meu país. Ela não suportou e se viu obrigada a abandonar a levi. O
raro não é ter os sintomas e sim chegar até o final. Não ache que só por ter o
potencial as coisas foram fáceis; pelo contrário. Para os outros, você deve ter
visto como o caminho é leve e divertido. Você viu todos no evento.
– Mas em compensação eles não podem ir muito longe.
– Você não entendeu. A única diferença é a dor. Só isso que faz ir mais longe.
Se nós fôssemos imortais, acha que haveria a mesma paixão de viver? A vida só
é importante porque acaba. As pessoas só amam as coisas que terminam. Pense
num jogo de vídeo–game. Não seria chato se fosse fácil passar de todas as fases?
Se não houvesse inimigos você iria se entediar e deixar o jogo de lado. É o
mesmo caso das lentes. Qualquer levi pode se tornar um veterano, mas ninguém
sente essa urgência tão forte quanto os que enfrentam reações, pois eles sofrem
na pele. É como um corpo doente que clama pela cura. As pessoas com
sintomas se tornam velevis porque necessitam.
A reação que o africano enfrentou foi a mais violenta. Ele devia ter passado por
muitas coisas para ter aquela urgência em completar o processo.
– O fato de todos os velevis terem enfrentado sintomas não é uma regra. É
apenas lógico. Eles precisavam fazer aquilo parar. No seu caso a situação ainda
está controlável e talvez ainda possa reverter. Não é fácil largar a levi depois,
uma vez que se vá longe demais. O seu cérebro vai precisar dessa “droga”.
– Então a levi vai fazer mal para o meu corpo?
– Viver também faz mal – falou a russa – vai acabar matando você um dia. Você
deve escolher algo de útil para fazer com sua mente e com seu corpo, enquanto
ainda os tem. Resta decidir quais atividades não são uma perda de tempo.
– O que você considera uma atividade útil?
– A criação. Se você está vivo, precisa criar. É como comer e dormir. Durante a
noite a mente reúne pedaços e cria mundos fantásticos nos sonhos. Esse é seu
alimento. Para manter o corpo vivo é necessário dar a ele comida e sono. Para
manter a mente viva é preciso dar a ela a criação. Você não pode matar a sua
mente. Ela é a coisa mais preciosa que você possui. A imaginação é o tesouro
mais precioso do mundo.
Os velevis possuíam uma maneira muito particular e profunda de ver as coisas.
– E depois que você cria um mundo? O que acontece?
– Você se torna o próprio mundo.
Tudo parecia maravilhoso. Mas então, onde estava o perigo?
– Por que o corpo deseja uma coisa e a mente outra?
– Porque eles ainda não estão conectados – explicou a russa – você precisa
conectar.
– Então você me recomenda ir adiante?
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– Eu não recomendo nada. Eu te falei sobre a parte desejável do uso das levis,
que é a tremenda capacidade criadora que você adquire. Nesse momento, o
mundo é seu.
– Então eu me tornarei Deus?
– O que é Deus?
– Eu não sei – eu mesma me surpreendi com minha resposta. Então eu rezava
todas as noites para quem?
– Você quer criar um céu ou um inferno para você? – perguntou a russa – Ou
um pouco dos dois, para que o tédio não fique insuportável? Você deve ter uma
vaga idéia do peso de ser um velevi. Você será disputada e sua vida não terá
mais paz. E não é só o dinheiro. Existe algo muito mais complexo e é aí que os
velevis estão divididos. Se essa notícia chegar aos ouvidos das pessoas erradas,
será a maior merda da história da humanidade. Se isso acontecer, um velevi seria
a última coisa que você desejaria ser.
Opa! Um palavrão? Eu não esperava isso da russa.
– Está preparada a sacrificar tudo? Isso não é nenhuma brincadeira.
Quando eu saí do quarto, a Tábata perguntou se eu estava bem e eu disse que
sim; mas isso foi tudo. Quando cheguei em casa, o Jean dirigiu–se a mim:
– Onde você estava?
– Na casa da Tábata.
– Ah, sim. Falando com sua amiga velevi. Aposto que também já foi conversar
com a finlandesa.
Eu não gostei do tom que ele usou.
– O que é isso agora? Por que está falando assim comigo?
– Você é especial – prosseguiu ele, sem nem olhar para mim – e merece
tratamento especial. Os velevis veneram a sua maçã. Por que não mostra a eles
mais vezes?
– Pare com isso, Jean! – falei, irritada – Que droga! Eu não sou especial. Se quer
saber, a russa me falou que qualquer pessoa pode se tornar um velevi.
– Mas você possui o “potencial” – lembrou Jean – portanto, você é diferente.
– Eu sei que você está com inveja, mas não precisa me tratar desse jeito.
Nesse momento, ele deu um soco forte numa porta. Eu levei um susto enorme.
– Eu não estou com inveja! – gritou ele – Que morram todos esses malditos
velevis! Não quero saber. Também não vou mais para esse evento idiota.
E ele se trancou no quarto. O Jean era orgulhoso e teimoso.
Aquilo tudo era um inferno. Eu nem precisava criar um inferno para mim. Eu já
estava nele.
Pizza!
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monstruosidades fantásticas? Ao olhar para aquele meu coelho sem graça e sem
sal, duvidei muito que eu fosse capaz de chegar longe.
Comecei a formar vários pratos de comida diferentes na minha tela da mente.
Agora sim estava mais divertido. Mas aquilo só ia me inspirar a fazer um
lanchinho noturno. Como eu estava com preguiça de levantar da cama, resolvi
voltar a pensar na maçã.
“Vamos lá, minha amiga maçã. Me deixe entrar em você”. Por meia hora tentei
fazer aquilo, mas as tentativas eram inúteis. Eu só sentia meu corpo suar, pelos
esforços desperdiçados. Senti minha testa e meus olhos doerem.
Por um momento eu senti meus olhos girarem, mas... não aconteceu nada. No
final, passei a noite em claro. Eu estava totalmente quebrada pela manhã. Estava
com náuseas.
– O que você tem, filha? – perguntou minha mãe, preocupada, quando entrei na
cozinha para tomar o café da manhã – Você está pálida.
– Não estou me sentindo bem...
– Acho que você está com um pouco de febre – ela colocou a mão na minha
testa – Está sentindo mais alguma coisa?
– Estou enjoada.
– Quer que eu faça um chá?
Eu fiz que sim e sentei na cadeira. Quando o Jean chegou à cozinha ele também
notou que eu não estava normal.
– A sua irmã está um pouco enjoada – explicou a minha mãe – depois vá se
deitar de novo para descansar, ouviu bem, Fran? Você está com insônia?
– Não consegui dormir – confessei – mas não posso deitar. Preciso ir ao
evento...
– Nada disso – falou a minha mãe – hoje você vai ficar em casa.
– Mas é o penúltimo dia!
– E daí? Esse tal evento é mais importante que a sua saúde? Por acaso você quer
desmaiar lá? Você foi quase todos os dias, por um mês, nesse lugar. Acho que já
chega. Você faz idéia de quantas passagens de ônibus já gastou até agora? E
ainda fica comendo fora de casa.
Eram argumentos suficientes. Resolvi ceder e ficar em casa até melhorar. Só à
noite eu me senti melhor. Era impressionante como aquela coisinha de nada
tinha me derrubado. Tive que suportar um enjôo bem chato ao longo do dia.
Perdi o penúltimo dia do evento. Estava desapontada. Umas nove horas, quem
veio fazer uma visita foram o Peter e a Jéssica.
– Já está melhor? – perguntou Jéssica.
Agora eu estava ótima. E muito curiosa para escutar as novidades.
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– A disputa com o moçambicano foi incrível! – contou Peter – Bem, não é para
menos. Afinal, foi ele o adversário do nosso no primeiro dia das competições,
que ajudou a preparar aquele espetáculo.
Eles também comentaram sobre as palestras, competições dos amadores e
novas leals. Era mesmo uma pena eu ter perdido.
– Falando em velevis, nós encontramos a chinesa na entrada do prédio, assim
que voltamos do evento – contou Peter – Ela convidou todo mundo para uma
festa de despedida que farão no 504 hoje à noite.
– Despedida? – perguntou Jean – Que eu saiba o evento só acaba amanhã. E
eles disseram que preferiam evitar contato conosco daqui para frente.
– Calma, calma! – riu Peter – Ela disse que a noite de amanhã será reservada só
para as conversas sérias entre eles. Então decidiram antecipar o dia de festa e
bagunça para hoje. Como eles só se reunirão para se divertir, ela disse que
quanto mais gente melhor.
Ou seja, novamente nossa presença seria a desculpa perfeita para que eles
evitassem tocar nos assuntos sérios. Mas eu não me importaria muito de ser
usada para isso.
– Ela disse que estarão presentes todos os velevis! – revelou Peter – Pelo jeito
eles gostaram do isolamento seguro do nosso prédio. Aqui ninguém irá
incomodá–los. Teremos uma noite extraordinária!
– Doze velevis, mais dez de nós, mais o satanista... vinte e três pessoas! – falou
Jean – Não vai caber tudo isso naquele apartamento. Eu sei que os
apartamentos da cobertura são maiores, mas ainda assim...
– O quinto andar dá acesso ao terraço. O terraço é enorme! Vai até sobrar
espaço. E a festa irá acontecer lá em cima. Aliás, eu já recebi uma encomenda de
muitas pizzas. Eles que vão pagar, é claro. Já as encomendei e daqui a pouco
vou buscá–las. Hoje eu faço questão de trabalhar.
O Peter retornou com as pizzas quase dez horas. Era pizza que não acabava
mais! Depois de passar o dia sem mal poder comer, era hora de compensar.
Chamamos todos os outros. A russa subiu conosco, já que estava hospedada na
casa da Tábata. E lá fomos nós, subindo as escadas animadamente, com aquele
monte de pizzas na mão. E rindo das duas irmãs, que estavam morrendo de
medo do satanista.
Eu jamais imaginaria que aconteceriam tantas coisas chocantes e maravilhosas e
que eu recordaria daquela noite como uma das melhores da minha vida.
Segunda Parte
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Ele ficava ainda mais aterrorizante com aquelas facas na mão. Mas, felizmente,
ele apenas usou–as para cortas as fatias de algumas pizzas.
– Como vamos comer? – perguntou a chinesa – Onde estão os pratos?
– Que prato o quê – falou Félix – vamos comer do jeitinho brasileiro: na mão.
Todos começaram a se servir. Pelo jeito, aquele monte de pizzas ia acabar
rapidinho.
– Eu ouvi um boato engraçado sobre ontem – falou Félix – me contaram que o
Daimon deu um soco na cara de um brasileiro! Eu queria ter visto.
– Eu vi! – falou Chanjuan – Foi bem engraçado mesmo.
– Verdade – concordou Rosamond – mas depois ele levou um soco também.
– E os dois caíram na porrada? – Félix riu – Uau! Por que eu sempre falto nos
melhores dias?
– Vocês gostam de se divertir às minhas custas – comentou o australiano – eu
bati porque ele mereceu.
– Assim como o repórter que também mereceu, é claro! O que esse daí fez? –
perguntou Félix, curioso.
– Ah, é muito comprido para contar – reclamou Chanjuan – mas foi uma briga
entre os levis e os compradores das leals do Sobhuza.
– Entendi – falou Félix – as suas leals são bem populares, hã?
Mas o africano nem estava prestando atenção. Estava concentrado.
– Eu não acredito – falou Chanjuan, levantando–se – é um viciado mesmo.
Nem quando fazemos uma festa para nos divertirmos ele pára de criar? Eu vou
colocar uma pizza debaixo do nariz dele para que ele desperte.
Ela foi até lá e fez isso, mas ele não demonstrou a menor reação.
– Sãs as drogas – comentou Félix.
– Mas agora ele vai despertar – falou a chinesa, determinada.
Chanjuan colocou–se por trás dele e abraçou–o pelas costas. Houve algumas
exclamações entusiasmadas de alguns velevis quando ela fez isso. O susto do
africano foi tão grande que foi até engraçado. Alguns começaram a rir. Mas ele
não gostou.
– Quando você começa a mentalizar, não tem quem te acorde – justificou a
chinesa.
– Lá vem você de novo com suas idiotices – comentou a sueca.
– Aposto que você também está louca para abraçar o Sobhuza – falou a chinesa.
– Como ousa falar uma coisa dessas? – perguntou a sueca, indignada – E na
frente dele, ainda por cima.
Mas o africano ignorou as duas e... acendeu um cigarro!
– Você fuma?! – perguntou a finlandesa, chocada.
A sueca também ficou espantada.
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– Eu não acredito que você não entendeu a minha indireta! – a chinesa fingiu
estar chocada – então você não sabe por que o rosa é a cor só das mulheres?
– Você já explicou. Porque Deus disse...
– Deus não ia perder seu tempo precioso falando com uma mulher. A
verdadeira explicação é outra. Você não a conhece, pois é muito inocente. Vou
dar uma dica: as mulheres guardam seu rosa num lugar bem escondido, embaixo
da saia. Por isso desde a antigüidade o rosa é tido como a cor feminina
universal. Oh! Eu acabei de revelar um dos grandes segredos das mulheres! Que
descuidada eu sou. Mas eu não tenho culpa, porque os homens são lerdos
demais. Não se preocupe que nós temos muitos outros segredos que eu não vou
contar. Tem certeza de que ainda quer um pouco do meu rosa?
– Eu fiquei com medo de você agora, Chanjuan – confessou Félix – acho
melhor guardar os seus outros segredos, pois já experimentei minha dose de
medo por essa noite.
– Pois eu conheço noites muito mais assustadoras.
Aquela chinesa... ela também me assustava algumas vezes.
Sinceramente, nem eu sabia que “tinha a cor rosa”. Mas eu não teria coragem de
descobrir se era verdade. O meu constrangimento ainda era maior que a
curiosidade.
– Eu vou contar um mito grego muito interessante – prosseguiu a chinesa – um
dia Zeus e sua esposa Hera discutiam sobre quem teria mais prazer no sexo: o
homem ou a mulher. Para resolver a questão, eles chamaram o sábio adivinho
Tirésias, que por sete anos havia se transformado numa mulher. E Tirésias
respondeu assim: "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove
e o homem com uma".
Eu estava aprendendo várias coisas naquela noite.
– Há controvérsias – falou Félix.
– E você ousa contestar uma sabedoria milenar?
– Acabei de lembrar outra mostra da sua sabedoria: quando você e a Rosamond
se enfrentaram. O discurso inicial foi bastante profundo.
– Ah, sim – falou a chinesa, orgulhosa – o meu discurso sobre a beleza. Eu sei
que tenho razão.
Desconfiei que um debate ainda mais perigoso estivesse para começar.
– Qual parte? – perguntou o australiano – Eu soube do que você disse e não
concordei com aquilo.
– Você não concorda com nada – retrucou a chinesa – só quer ser do contra.
Você deveria ser uma cenoura obediente e concordar com a princesa.
– A beleza é relativa ou absoluta? – perguntou o brasileiro, divertindo–se com a
conversa – Eu acho que é relativa. O padrão de beleza muda através dos
tempos.
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– Claro que não – falou a chinesa – porque se tornaria uma coisa comum e não
teria mais graça. Tem graça porque é diferente. O albinismo, os cabelos ruivos...
essas coisas fascinam exatamente por serem raras.
– Sua nazista – Félix riu.
– Ah, é assim, é? Bem, acho que podemos resolver a questão da Segunda
Guerra Mundial aqui mesmo. Pena que não há alemães. Mas há um americano!
Chika, mate o Jesse para se vingar por ele ter tocado a bomba atômica no seu
país!
– Mas por que sempre me metem no meio? – perguntou o americano,
impressionado – Eu toquei uma bomba atômica? Com que base você afirma
isso?
– Tem razão. Você tem olhos azuis, então você estava do lado dos nazistas!
– Eu mereço.
– E aqui também temos um egípcio para nos revelar o segredo da imortalidade
dos faraós! – lembrou Chanjuan – Thutmose, nos conte a verdade por trás do
assassinato do faraó Tutankhamon!
– Sei lá – falou o egípcio – eu nem sabia que ele tinha sido assassinado.
– Mas como não?! – perguntou a chinesa, fingindo espanto – É assim que
pretende honrar a história do seu país? Eu ouvi dizer que o mataram quando ele
tinha 19 anos, mas não sei se estou por dentro de todas as fofocas. Será que foi
gangrena quando ele quebrou a perna? Assassinato é mais legal. Ele era tão
novinho quando morreu, não é? Que bonitinho!
– Se já sabia por que me perguntou?
– Para ter um especialista para me confirmar, oras. Mas já vi que você é uma
decepção. Ah, deve ser tão legal andar de camelo! Você deve se divertir bastante
por lá. Que inveja. Tem pirâmides, camelos, ouro...
– Quem anda de camelo são os turistas.
– E depois você me conta as respostas das perguntas que os deuses irão me
fazer quando eu morrer. Eu ainda posso obter a salvação se eu treinar, não
acham? O meu coração com certeza é mais leve que uma pluma. E mil vezes
mais apaixonado.
– Você nem precisa beber para falar mais besteiras do que todos aqui juntos –
comentou a sueca – a sua mãe bebeu muita aguardente quando estava grávida?
– É mesmo! – Félix até levantou–se – A bebida! Hoje temos bastante álcool de
todos os tipos. Vamos lá buscar, Nícolas?
Ele passou perto de nós de novo. Era azar demais.
– Nossos convidados estão muito tímidos hoje – observou Chanjuan, com um
sorriso simpático – podem falar o que quiserem. Nós não mordemos. Ou
melhor, talvez haja algumas exceções, não é, Daimon?
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– Opa! – Félix deu um sorriso – Estou perdendo alguma coisa? Droga! Eu não
disse que sempre perco as melhores partes?
– Não há nada para ser perdido – falou o egípcio, tranqüilamente – é só a
Chanjuan. O que mais você esperaria?
– Como assim, sou só eu? – perguntou Chanjuan, aborrecida – Se fizer outro
comentário grosseiro, olha que eu faço mesmo algo com você. Acha que eu não
tenho coragem?
– Sinceramente, eu acho que você tem – falou o egípcio – então agora vamos
todos fazer as pazes e sentar para beber.
– Ih, ele tá fugindo! – comentou Rosamond, satisfeita.
– Também quero uma! – a chinesa pegou imediatamente uma lata das mãos de
Félix, abriu–a e tomou um grande gole – Vamos fazer disputa de quem bebe
mais?
– Eu topo! – falou Félix – E aqui estão algumas para vocês. Quais vocês
querem? Vinho? Cerveja? Licor?
– Pode ser cerveja mesmo – falou Jéssica – vocês também?
Nós concordamos. Eu estava com um pouco de medo de ver o que aconteceria
depois que a chinesa bebesse.
– Então cerveja para todo mundo! – comemorou Félix – Depois misturamos
com vinho.
O satanista quem estava segurando a maioria das latinhas de cerveja. Ele
entregou uma para cada. Eu peguei a minha com as mãos trêmulas. Ele
entregou latas até para as irmãs, que estavam brancas de pavor.
Dessa vez a chinesa notou claramente qual era a razão do nosso desconforto.
– Agora eu entendi! – comentou Chanjuan, triunfante – Vocês estão com medo
do satanista!
Eu não podia acreditar que ela teve coragem de dizer aquilo na frente dele. Os
outros velevis não entenderam nada, mas a maioria ali encarou o fato com muita
naturalidade. Afinal, vindo da chinesa parecia até bastante normal.
– Mas ele é um satanista bonzinho – Chanjuan segurou no braço dele – Por
isso, não se preocupem. Ah, eu quero mais uma lata. Você vai beber cerveja
também?
– Eu não bebo – falou o satanista.
– Que comovente! Você é um exemplo para nós!
O satanista baixou os olhos e pareceu um pouco sem jeito, dando um sorriso.
– Viram como ele é bonzinho? – falou a chinesa, sorrindo também.
Nós estávamos pasmos.
– Ah, sim – falou o satanista, voltando a si – Alguém precisa de mais alguma
coisa? Se precisarem eu posso ir lá embaixo buscar.
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Como era gentil e prestativo! Ele me parecia tão simpático e... tímido! Onde ele
estava escondendo os seus terríveis poderes sobrenaturais?
– Estamos bem, obrigada – sorriu Rosamond – sente–se conosco também.
– Saúde! – falou Félix, batendo uma latinha com o moçambicano – E viva a
bebida! Vamos fazer um brinde.
– Ótima idéia – falou Rosamond – Alguma sugestão?
– Muitas – falou Chanjuan, imediatamente.
– Eu sugiro que você não dê sugestão nenhuma – falou a sueca, secamente.
– Agora sim que eu vou dar – teimou Chanjuan.
– Como foi que você falou naquele dia, Félix? – perguntou o moçambicano –
Naquele seu discurso emocionante do primeiro dia?
– Então vamos brindar à efemeridade da criação!
– E ao álcool! – prosseguiu a chinesa, pronta a abrir sua terceira lata – Um
brinde às pirâmides de Gizé! À Tutankhamon! Salvem as baleias! Salvem as
gaivotas brancas!
– Precisamos brindar também a Schopenhauer, que nos proporcionou uma
discussão intelectual no dia de hoje – lembrou Félix – Um brinde aos cabelos
pretos!
– Eu não vou brindar a Schopenhauer – falou Chanjuan.
– Que seja – o australiano interrompeu – Brindem a qualquer coisa. Eu quero
beber de uma vez!
– Pois eu já estou bebendo há muito tempo – falou Chanjuan – Então
brindemos à minha presença, pois é graças à minha sinceridade que o planeta
gira. Heil Chanjuan!
As três primeiras latas já tinham descido bem.
E brindamos uns com os outros, embora nem todos tenham feito isso.
– Pelo menos você bebe – a chinesa falou ao africano – se morrer de fome, ao
menos a cerveja te sustenta. Sabia que se você beber sem comer nada vai ficar
bêbado mais depressa que todo mundo? Eu quero ver isso.
– Ninguém ficará mais bêbado que você – observou a sueca – porque as suas
observações sóbrias já possuem o nível de cinco latas de cerveja. Com essas três
que você tomou, já está com o nível de oito.
– E viva a matemática! Sieg Heil 88! – exclamou a chinesa – Tive uma idéia.
Vamos falar de línguas. Eu quero ouvir o idioma de vocês. Que tal falarmos
algumas frases em nossa língua natal? Vamos fazer a competição da frase mais
bonita?
– Mas que competição ridícula – comentou a sueca.
– Eu achei genial – falou Félix.
– Isso porque você é um imbecil – falou a sueca – ninguém em sã consciência
concordaria com as idéias dela.
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– Puxa, obrigado.
– Vamos lá, Thutmose – pediu a chinesa, enquanto bebia mais – Fale algo em
egípcio aí para nós!
– Egípcio? – perguntou ele, sem entender – Eu falo árabe.
O moçambicano quase cuspiu a cerveja depois de ouvir aquilo. Desatou a rir.
– Egípcio! – exclamou o moçambicano, achando aquilo o máximo – Cara, isso
foi lindo. Chanjuan, você me mata de rir.
– Mas até o Juvane está rindo da minha cara agora? E eu sei lá os idiomas de
vocês. Como eu ia saber que se falava árabe no Egito? Que eu saiba se fala árabe
em países como a Arábia Saudita.
– Há algumas diferenças de pronúncia – explicou o egípcio – o nosso árabe é
mais... leve.
– Hmm... fiquei interessada agora. Então fale algo bem elegante para eu escutar.
– Por quê? Você não ia entender mesmo.
– É só você traduzir depois, esperto.
– Isso dá muito trabalho – falou o egípcio, bebendo mais.
– Como vocês são preguiçosos – reclamou Chanjuan – Payal, fale um pouco de
indiano para eu ouvir.
– É hindi – corrigiu ela – e não indiano.
O moçambicano estava se matando de rir.
– Você acha engraçado, é? – perguntou a chinesa – Então fale um pouco de
moçambicano para nós.
Dessa vez Félix acompanhou–o nos risos. E nós também.
– Português – Félix aproveitou para corrigir, quando conseguiu parar de rir.
– Mas português se fala no Brasil! – protestou Chanjuan.
– Nossa, mas que sabedoria profunda a sua – falou o moçambicano – então que
tal falar um pouco de “chinês” para nós?
– É mandarim, seu ignorante. E depois você ainda ri de mim?
– Eu falei de propósito – justificou–se o moçambicano – eu sei que é mandarim.
– Pessoas espertas não têm graça nenhuma.
– Por isso você se acha tão engraçada – observou a sueca.
– Russo deve ser o máximo – lembrou–se Chanjuan – A–há! Dessa vez eu sei
que acertei.
Mas pelo jeito, fazer a russa falar seria um sacrifício além das nossas forças,
então a chinesa preferiu nem tentar.
– E você? – a chinesa perguntou ao africano – Que língua fala? Aposto que é
sul–africanês. Acertei?
Foi nesse momento que eu vi uma coisa incrível. O africano riu.
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– Agora é hora de misturar! – anunciou Félix – Vou abrir uma garrafa de vinho.
– Isso!
E os dois fizeram um brinde. Era assustador. Eu só acreditava porque estava
vendo.
– Que tal fazermos uma competição de levis agora? – sugeriu Félix – Vamos ver
quem consegue deixar uma imagem de um cavalo branco focada por dez
segundos?
– Por que um cavalo branco? – perguntou a finlandesa.
– O cavalo branco de Napoleão! – clamou Félix.
E todos deram altas risadas. Eu também ri. Eu já tinha bebido duas latas e para
mim foi o suficiente. Não ia conseguir beber mais. Já foi o bastante para me
deixar meio zonza. Quem diria que os sérios e respeitáveis velevis bebessem
tanto! Então eles ainda possuíam interesse pelos prazeres do mundo real.
– OK, eu vou começar – avisou Félix – Quem quer competir contra o meu
poderoso e magnífico cavalo branco de Napólix?
– Napólix?
– Félix mais Napoleão, oras. Você precisa ser muito inteligente para fazer a
conexão.
– Eu te desafio – pronunciou–se Chanjuan; ninguém ficou muito surpreso com
isso – Você irá lutar contra a minha reencarnação da gaivota branca. E serão
todos oponentes brancos e nazistas!
E os dois realmente começaram a duelar em suas telas da mente. Claro que
nenhum de nós perdeu essa. Foi sensacional. E eu vi uma coisa ainda mais
espantosa: a finlandesa fez uma conexão e enfrentou–os também. Uma
competição de três velevis! Era a primeira vez que eu via isso. E quanto
domínio que eles tinham, mesmo bêbados!
– Eu sou a Ratinha de Sangue e irei esmagá–los com a minha pistola
menstruada! – gritava a personagem da chinesa.
Os três, para o nosso deleite, usavam vários personagens que tínhamos visto nas
mostras. A finlandesa usou o seu ursinho preto do país do arco–íris. O Félix fez
surgir seu cachorro viciado em jogos de atropelamento de velhinhos e a chinesa
imaginou sua assustadora princesa coelha de olhos rosados e bocarra cheia de
dentes afiados.
Eu sabia que o Peter deveria estar maravilhado. Ele sempre sonhou em ver uma
competição entre a finlandesa e o brasileiro e agora finalmente realizava seu
sonho. E ainda com a chinesa junto! Era perfeito.
Por fim, em algum momento eles se cansaram, mataram todo mundo e
retornaram. A mostra foi recebida com aplausos. Nós fomos os que mais
aplaudiram. Para os velevis, aquilo já deveria ser algo tão comum que alguns
nem deviam ter olhado.
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– Viu? – falou a chinesa – Você não morreu por ficar trinta segundos sem a sua
preciosa levi. E ainda ganhou uma nova. Essa sua já devia estar podre de tão
velha.
– Vamos aumentar a música, pessoal! – sugeriu Félix, abrindo mais uma latinha.
Era melhor ele não fazer isso, pois eu não duvidava que o síndico chegasse lá
para expulsar os doze velevis, o satanista e todo mundo!
Mas no final todos ficaram com preguiça de descer para aumentar a música e
continuaram por lá mesmo, bebendo – o satanista só bebia refrigerante.
– Pena que no evento não teve nenhuma banca de leers – falou Chanjuan –
certamente seria a banca mais visitada.
– E como teria? – perguntou Félix – os compradores não iriam querer ser
assistidos enquanto provavam essas lentes.
– Aposto que seria divertido.
Eu já tinha ouvido o Peter falar sobre isso. Esse era um tipo de lente alternativa
tão famosa que tinha até um nome próprio: “leer”, ou “lente erótica”. Era uma
das leals mais requisitadas. Dentro dela havia um cenário particularmente
inspirador e uma mulher – ou muitas mulheres – para que o comprador
utilizasse como preferisse. A maior parte dessas lentes era feita sob encomenda,
para dar ao consumidor exatamente o que ele desejava. Havia leers com homens
também, mas as com mulheres eram mais populares.
– Eu ouvi dizer que as leers do Sobhuza são muito procuradas – observou
Chanjuan – e não só pelo realismo. Eu tenho muita curiosidade de ver o que
você coloca lá dentro: os teus fetiches com cenários e tipos de mulher...
– As leals são feitas para o comprador – respondeu o africano – eu correspondo
aos desejos do público e não aos meus.
– Você não me convence dizendo isso – falou Chanjuan – aposto que você se
baseia no seu gosto pessoal para saber o que os homens desejam. Eu mesma sei
exatamente o que eles querem e por isso as minhas leers também são populares.
E como sou mulher, tenho um conhecimento perfeito sobre o corpo feminino.
Portanto, as minhas musas são feitas de forma bastante fiel, incluindo detalhes
minuciosos que passariam despercebidos por um fabricante masculino.
Mas logo o assunto desviou–se ligeiramente:
– Agora vamos falar sobre religiões! – sugeriu Chanjuan.
Aquele certamente seria um assunto perigoso de se discutir estando bêbado.
– Boa idéia – falou Rosamond – Payal, você é hindu? Fiquei curiosa agora.
– Eu sou jaina – respondeu a indiana.
– Sério? Nem sei o que é isso – falou a chinesa – qual o nome da sua religião?
– Jainismo.
– Ah, é aquela religião da não–violência do Gandhi? – perguntou a finlandesa,
interessada.
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– O Gandhi era hindu, mas teve bastante contato com os princípios jainas.
– Então é por causa da religião que você não bebe? – perguntou a chinesa – Eu
não gosto muito dessas proibições dogmáticas sem explicação.
– A não–violência é o motivo central para a maioria dos princípios – falou a
indiana – mas devemos fazer o que é natural para nós.
– O natural para mim é beber – falou a chinesa – essa não é aquela religião em
que as pessoas tapam a boca com panos para não matar insetos e cometem
suicídio por inanição?
– O muhapatti é usado somente por alguns monges e é bastante simbólico –
explicou a indiana – e o Sanlekhana não é suicídio. Suicídio é resultado de
paixões e esse é um voto com equanimidade realizado somente em casos de
idade avançada ou doença.
– Se a pessoa se mata, isso se chama suicídio, oras – falou a chinesa – não
importa como é feito. As mulheres podem atingir a iluminação na sua religião?
– Na seita Digambar é dito que as mulheres precisam renascer como homens
para alcançar a libertação.
– Isso já era esperado – falou Chanjuan – afinal, mulheres são estúpidas demais
para atingir o nirvana. Também se usa a suástica como símbolo? Eu já vi umas
suásticas nessas religiões orientais.
– No jainismo ela representa os quatro reinos: humano, animal, seres infernais e
seres celestiais.
– Eu só acredito nos animais – falou a chinesa – Aliás, já ouvi falar de indianos
que se casaram com cobras e com árvores! Legal, né? E é verdade que os
indianos assassinam fetos femininos? Você paga baratinho por um aborto e não
precisa pagar o dote do casamento depois! É um bom negócio.
– Nós estamos falando de religião, Chanjuan – falou Rosamond.
– Parece que essa é uma prática universal, independente de religião – falou
Chanjuan.
– Como se na China não fizessem isso... – murmurou a sueca.
– Mas vocês têm razão – prosseguiu a chinesa – As mulheres precisam morrer
mesmo, já que não têm função nenhuma a não ser poluir o mundo com mais
bebês. É assim mesmo que funciona: alguns nascem para mandar e outros para
obedecer. Os párias nascem para recolher fezes humanas. E há os que nascem
somente para morrer. Você é casada?
– Sim – respondeu a indiana – e tenho dois filhos.
– Aposto que seus pais arranjaram o casamento – falou Chanjuan – e que seu
marido é pelo menos uns trinta anos mais velho que você.
A indiana pareceu um pouco ofendida com o tom da chinesa. Ela estava
realmente sendo inconveniente com aquelas observações. Mas a indiana
disfarçou e disse apenas:
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outro lado da viga. Eu estava muito perto agora e finalmente espiei; a minha
surpresa não poderia ser maior.
Quem estava ali eram duas pessoas: o africano e a chinesa.
Eles estavam se beijando.
Fiquei mais nervosa do que nunca. Aquilo era... surreal demais para estar
acontecendo.
Os dois estavam de pé. A chinesa estava encostada na viga e o africano apoiava
uma das mãos na parede enquanto a beijava. A outra mão estava no rosto dela.
Eu levei um grande susto quando a mão do africano, que a tocava no rosto,
desceu um pouco mais. Quando ele fez isso a chinesa afastou a mão dele. Os
dois pararam de se beijar e apenas fitaram um ao outro em completo silêncio.
A chinesa segurou a mão do africano e a colocou sobre o próprio peito. Ela
moveu a mão dele. Em seguida, ela permitiu que ele colocasse a mão por dentro
de sua camisa. Eu estava suando de nervosismo quando vi isso.
Os primeiros botões da camisa da chinesa foram abertos. A mão do africano
não estava apenas por dentro da camisa, mas também dentro do sutiã. Eu gelei
quando vi que a mão dele agora estava por baixo da saia dela.
Ela colocou os braços em volta do pescoço dele e logo eles já estavam se
beijando de novo. Mas a mão dele ainda a tocava na coxa e fazia subir a saia.
A calcinha dela abaixou–se um pouco. A saia ainda estava abaixada, mas a mão
dele... eu preferi não imaginar onde estava.
A chinesa também reagiu e colocou a mão dentro das calças dele. O meu
coração quase parou quando ela fez isso. Ela ainda brincou assim por um
momento, mas eu desconfiava que em breve a brincadeira se tornaria mais
violenta. Ela abriu o botão das calças dele; baixou o zíper.
Eles estavam muito próximos. A chinesa levantou o pescoço, fechou os olhos e
os seus lábios se separaram levemente. Ele a beijava no pescoço.
Quando ela baixou o zíper das calças dele, não tive mais coragem de olhar.
Enquanto era com ela não havia problemas, mas com ele... era muito diferente.
Com as pernas ainda trêmulas, resolvi caminhar para bem longe dali. Ainda
assim, caminhei devagar. Seria uma desgraça se eu fosse notada. Eu nem queria
sonhar que eles descobrissem que eu os havia espiado... e por tanto tempo. Eu
devo ter ficado uns três ou quatro minutos parada lá. Resolvi sair do terraço.
Eu sempre via a chinesa implicar com o africano, mas ele não parecia dar a
mínima para ela. Afinal, ele não ficara indignado com o que ela disse no evento?
“Quer descobrir se o resto era verdadeiro?” Naquela madrugada ele iria
descobrir.
A chinesa não havia defendido a noite toda sua teoria da beleza albina? Aquela
garota era incompreensível. Será que no fundo ela falava aquilo apenas para ver
se ele se incomodava?
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O Africano e a Chinesa
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Mas pelo jeito eles só tinham se beijado mesmo. Se tivesse acontecido algo mais,
eu tinha certeza de que a Tábata saberia e nos contaria tudo, com detalhes. Ela
seria do tipo que espiaria do início ao fim, sem vergonha nenhuma.
Quando chegamos ao evento, os doze velevis já estavam lá. Como era o último
dia, eu sabia que todos iriam aparecer. Eles conversavam uns com os outros da
maneira de sempre, sussurrando entre si enquanto assistiam à palestra da manhã.
O brasileiro e a finlandesa conversavam normalmente. Mas eu queria saber
sobre a chinesa e o africano.
Fiquei surpresa quando vi que cada um sentou exatamente na ponta oposta, o
mais longe possível um do outro. É claro que aquilo não era uma coincidência.
Os dois estavam extremamente sérios. Até o africano estava mais sério do que o
normal. Já a chinesa, sempre tão animada... era raro vê–la com aquela expressão.
Eu tinha certeza de que os outros velevis tinham notado. A finlandesa tentou
falar com a chinesa, mas ela cortou o assunto na hora, deu uma resposta breve e
virou o rosto.
Eu não conseguia adivinhar o motivo de eles estarem assim, mortalmente sérios.
Não era nem constrangimento. Eles se evitavam como se odiassem um ao
outro.
Quando a palestra acabou, havia diversas bancas de leals; mais do que qualquer
outro dia. Acabamos nos espalhando por lá, pois cada um queria olhar uma
banca diferente. Combinamos de nos encontrar na hora do almoço no mesmo
restaurante de sempre.
Os velevis também se separaram. Alguns anotavam encomendas de
compradores, mas a maioria conversava com os levis. Percebi o momento em
que a chinesa e o africano se afastaram e foram para um canto reservado. Os
dois estavam de pé, um pouco distantes um do outro, apoiados numa espécie de
bancada. Eles não se olhavam.
Aproximei–me um pouco mais, com cuidado, para não perder nenhuma
palavra. Será que era certo o que eu estava fazendo? Mas não importava. Eu
tinha feito algo muito pior na madrugada anterior. Perto do que eu vira, aquilo
não era quase nada.
O silêncio durou um tempo considerável.
– Confesso que sempre tive a fantasia de fazer sexo com você – começou a
chinesa – mas eu jamais imaginaria que fosse acontecer. Achei que você só
ligava para as levis.
– Eu estava muito bem com a minha levi até você quebrá–la – retrucou o
africano – se você me proíbe de usar a minha droga, preciso de outra para
substituir.
A chinesa sentiu–se muito ofendida.
273
Juliana Duarte
– Os homens são todos animais mesmo. Quando ficam com sede de carne,
nada mais importa. Você não estava nem aí se ia me machucar.
– Eu não sei como funciona o corpo de uma mulher. Não sabia que era tão
delicado.
– A questão não é essa. Você tinha que me obedecer quando te mandei parar.
Sabe o que fez? Você praticamente me estuprou.
– Que exagero.
– Caso não saiba, esse é o termo que se usa para uma situação como essa –
prosseguiu a chinesa – e da metade para o final, foi isso que aconteceu.
– Não podemos deixar essa conversa para depois? Minha cabeça está doendo.
A chinesa fitou–o seriamente.
– Eu já pedi desculpas ontem – falou o africano – O que mais você quer que eu
faça?
– Eu quero que você morra!
E a chinesa saiu de lá.
Ela caminhou no meio do pavilhão, mas o africano foi atrás. Ele caminhava
rápido para alcançá–la e conseguiu segurá–la pelo braço. A reação dela foi
impressionante.
Ela virou–se imediatamente. A expressão dela não era apenas de raiva; era uma
fúria descontrolada. No mesmo segundo em que se virou, a chinesa deu um tapa
muito forte na cara dele. Depois disso, ela correu de lá e foi embora do evento.
Ela fez aquilo na frente de todo mundo. Uma boa parte dos presentes
testemunhou a cena, incluindo até mesmo alguns velevis.
O africano estava paralisado. A finlandesa foi até lá. Ela levou o africano até um
local reservado só ao pessoal da organização, então dessa vez eu não poderia
segui–los. Se a finlandesa já soubesse de tudo, provavelmente o africano iria
ouvir umas boas.
Às três horas da tarde haveria uma palestra. Eu esperava que fosse algo muito
bom, pois tinha escutado sobre isso há muito tempo. Os velevis sentaram–se
novamente nas cadeiras, mas a chinesa não estava lá. O africano estava, mas não
conversava com ninguém.
Voltei a minha atenção ao palco. Todos estavam ansiosos. Algo importante
estava para acontecer.
Quem apareceu lá em cima foram dois velhinhos. Um tinha a pele negra. O
outro tinha uma feição oriental. Algo me dizia que nenhum dos dois era
brasileiro. E eles eram bem velhinhos mesmo. Quantos anos teriam? Oitenta?
Noventa? Ambos tinham cabelos muito brancos.
Os velevis não paravam de cochichar entre si.
Seriam levis muito habilidosos? Tentei espiar a tela da mente deles, mas não
consegui.
274
Velevi
Percebi que o velhinho oriental voltou os olhos para mim, mas desviou–os no
segundo seguinte. Levei um susto. Foi impressão minha ou ele notou que eu
estava tentando espiar a tela da mente dele?
O velhinho negro começou a falar no microfone:
– Boa tarde. É uma preciosa oportunidade para nós estar aqui hoje. Embora eu
não saiba o que estejam fazendo aqui. Provavelmente vocês também não sabem.
E eu? O que será que estou fazendo?
Aquele discurso já iniciara de uma maneira bem estranha. Agora sim eu estava
curiosa para saber o que viria. O inglês dele... me parecia que o sotaque tinha
alguma semelhança com o do africano.
– Tenho uma história para contar – prosseguiu o palestrante – talvez vocês
tenham algum interesse nela. Por isso, sugiro que observem com atenção.
Ele afastou–se do microfone e baixou os olhos. O outro também agiu de forma
semelhante. Eles queriam que visualizássemos suas mentalizações. Seria uma
história? Eu gostava de histórias. Aquela provavelmente não seria uma
competição, mas uma mostra.
Fechei os olhos.
275
Juliana Duarte
É muito difícil que as pessoas compreendam umas às outras. Cada um acha que
só o seu pensamento é o correto e todos os outros estão errados. Que
desconfortável!
As pessoas desejam se convencer de algumas verdades. Elas agarram as lógicas
que as colocam no topo do mundo.
O mundo só existe através dos seus olhos. A maneira que você vê o mundo é
aquilo que ele é. Não é uma mentira. No momento em que você enxerga um
patinho de borracha você o cria para si. O meu patinho de borracha não é o
mesmo que o seu.
Então eu te digo: cada pessoa possui sua própria lente e a minha é diferente da
sua. Mas eu pergunto: essas lentes podem ser conectadas?
O mundo é uma Torre de Babel. As pessoas falam diversas línguas e ninguém se
compreende. Agora mesmo estou falando para as paredes. Não que eu tenha
algo contra paredes. Até que eu as considero boas ouvintes. Muitas vezes elas
me auxiliam na reverberação do som para que eu ouça melhor a minha própria
voz.
Você tem a sua própria lente e não deseja se conectar ao mundo. Se outro olho
espiar pelo buraco da fechadura, o maravilhoso se profana. Os “outros” não são
capazes de compreender o mundo de cores e aromas de morango. As lentes
deles enxergam pêssegos e melancias. É impossível passar a eles a emoção
indescritível de caminhar pelo mundo de morango. A experiência dos terceiros
sempre será incompleta.
“Não vou mostrar meu mundo a ignorantes. Desejo guardá–lo só para mim”.
E você o tranca na sua caixinha de segredos e mistérios jamais desvendados.
Aquele mundo é forte demais e muito perigoso. Se outros olhos o
contemplassem, seriam imediatamente fuzilados sob o peso da força, porque
eles não o compreendem.
A sua capacidade é extraordinária. Confie nela e poderá ocorrer o despertar. Os
gênios sempre são incompreendidos. Nesse momento há muitos gênios ao
redor do mundo, deitados em suas camas e trancados nos seus quartos escuros.
Eles não desejam mostrar o céu aos ignorantes, porque eles não o merecem.
“Esse céu será só meu” E assim se faz. Você o tranca e jamais o liberta. Morre
com ele sem ofertar–lhe o sonho do último vôo – ou nem mesmo do primeiro.
Por que você é assim, tão especial? O senhor dos sonhos engaiolados.
“Eis o mundo que criei para mim. Por me pertencer, jamais será violado”.
Permanecerá virgem e puro para sempre? Sem jamais ser visto pelos olhos
profanados? Somente os seus olhos são superiores para fitar o sagrado.
Olha a bela donzela na janela. Tamanha perfeição jamais deve ser maculada.
Trancar a donzela para sempre num caixão de vidro. Congelar a sua graça a fim
de que se faça eterna. Eis sua fantasia. O monstro cresce em ti. Você deseja que
276
Velevi
ela permaneça uma criança para sempre? Tímida e pequenininha. Tão inocente...
e tão ignorante. Mas como é doce! Deveriam ir as crianças para a Terra do
Nunca? Crescer é assustador.
A donzela quer criar asas e voar. Não pode permanecer virgem para sempre,
trancada em sua caixa de brinquedos. Você quer guardá–la, negando–lhe as asas.
A criação necessita dos cuidados atenciosos de uma mãe. Só depois que a mãe
cuida do bebê, ela pode entregar–lhe ao universo, para que crie livre os seus
doces e carrosséis. Não seria triste uma mãe reter o filho para sempre? Como
veio de sua barriga, ela o julga como propriedade sua. Você faz nascer a sua
criação. Você a pariu. Por que teme entregá–la? Sente medo que as pessoas
cruéis corrompam o seu filho precioso?
Como posso ter o controle quando ele criar asas?
O criador sente sua criação de maneira mais forte e poderosa do que nenhum
outro. Ela está pulsante e vive em ti. Se desejar que os outros provem a genuína
doçura do morango, deve possuir a capacidade de se conectar. Essa força será
monstruosa. A conexão é uma arte. Você é teimoso. Conecte–se ao mundo. Só
assim a sua obra se tornará forte. Eis o segredo da força. Eis, pois, o segredo da
criação.
Diz–se que aquele capaz de compreender a si mesmo compreende o universo
inteiro. São aquelas coisas herméticas das quais falam os senhores ocultos com
seus ocultismos: o microcosmo é reflexo do macrocosmo e vice–versa. Mas por
que os vidros da janela ainda estão fechados? Por que você teme o sol e a
chuva? Treme diante dos ventos e tempestades e se esconde debaixo da cama,
como uma criança envelhecida.
“Não quero ver o mundo lá fora; o terrível mundo. Devo apenas existir. Eu e
mim mesmo. Eis minha escolha única, pois não tenho outra”.
Existe apenas um ser vivo no mundo: você.
Como se sentiria se fosse o único? Seria um pouco solitário? Mas já está solitário
há muito tempo, independente do que acontece lá fora. Você não possui
interesse nas coisas de fora. Por que você tem tanto ciúme? O seu orgulho é
inabalável. Eis a arte de existir pela metade. Algumas coisas não importam de
verdade; só de mentira.
Era uma vez um garoto ingênuo que desejava criar. Ele era uma criança. Você
ainda se lembra o que é isso? É a criatura que cria a dança!
Você vive no mundo frio dos adultos e já esqueceu. A criança é aquele ser puro
que nasce com idéias virgens sem influências do mundo.
Nietzsche apresenta as três metamorfoses do espírito: o camelo, que carrega o
peso dos valores, deve converter–se em leão para destruí–los. E o leão deve
alcançar a pureza da criança para a criação.
277
Juliana Duarte
Você precisa tornar–se criança para criar, mas não pode ser criança para sempre
ou seus mundos serão eternamente imaturos e quebradiços. Essa é apenas a
primeira etapa: a idéia pura. O menino a desejava.
– Onde está a idéia?
Ele a tinha perdido. Ela estava em algum lugar de seu cérebro. Todas as suas
idéias sempre estiveram lá. Basta procurar bem.
– Eu achei uma idéia coelho.
Você conhece a Alice. Aquela menininha burra.
Ela sonhava demais, mas esqueceu de sonhar acordada. Ela só sonhava
dormindo. Por isso eu digo que ela é burra. Mas o coelho branco era
interessante. Ele tinha um relógio e corria para não chegar atrasado. É tarde! É
tarde!
Mas por que já é tão tarde assim? Ah, olha a hora! Que está fazendo aí de pernas
cruzadas? Hora de criar. E se você for um bom criador, tampouco necessitará
ser escravo do relógio, pois irá construir seu próprio tempo.
Mas o nosso coelho branco não gosta de relógios e sim de cenouras. Digamos
que ele não nega sua natureza de coelho. O menino resolveu fazer uma criação
de coelhos, mas ele começou com um só. Ele tinha uma plantação de cenouras.
O coelho comeu as cenouras e ficou forte. Ele dava pulos altos. Você nem
precisaria dar asas ao coelho, pois ele sabia pular sozinho. Era só o coelho e a
cenoura que existiam. O coelho precisa da cenoura para sobreviver. Você não
pode ter um coelho sozinho se não quiser matá–lo de fome.
Mas logo o coelho precisará de uma companheira coelha e de um monte de
filhinhos. Quanto mais coelhos, mais cenouras você precisa. E lá estavam os
trinta coelhinhos, pulando e dançando. Os caracóis começaram a se aproximar.
Eles gostavam de comer alface e você deu a eles. E logo os bebês caracóis
deliciavam–se com a refeição verde e suculenta.
Viu só como a vida é simples? Basta dar comida e fazer do jeito certo que eles se
multiplicam. Com a criação também é assim. Basta pegar o ritmo e deixar as
coisas acontecerem. Mas por que aquele monte de seres estranhos estão
pulando?
– Os meus coelhos são estranhos.
O menino morava numa fazenda e adorava criar bichos. Tudo o que precisava
era dar de comer a eles, que ofertavam muita coisa em troca: leite, ovos, carne,
pele e pêlo. Mas ele não estava satisfeito e queria mais. Não se satisfazia com
pouco. Ele não gostava das coisas prontas que o mundo lhe oferecia.
Ambicionava ser o criador de tudo. Então ele decidiu começar a criar idéias.
Percebeu que isso era muito mais interessante do que criar coelhos. Quem deu a
vida ao coelho foi a mãe coelho. Mas quem daria vida à idéia coelho seria ele.
Portanto, seria uma criação inteiramente sua, virgem e pura.
278
Velevi
Mas e o que ele faria com aquele monte de idéias depois? Ele não queria ser um
mero contador de histórias, pois aquilo lhe parecia muito pouco. Você deve
lembrar que nosso protagonista não se satisfaz facilmente. Está disposto a ir até
a galáxia mais distante e inacessível para buscar a verdade, se necessário.
Ele queria tornar as histórias reais e dar vida a elas. Mas como se dá vida a uma
idéia? Você precisa se apaixonar e transar com ela. Fazer amor? Não, você não
faz amor. Na verdade, é preciso uma dose forte de ódio para gerar uma criança.
O ódio é uma das coisas mais lindas do mundo. No dia em que conseguir
enxergar a beleza do ódio, irá entender milhares de coisas de uma vez só e a
verdade cairá aos seus pés como um baú chegando dos céus.
A vida se origina através do prazer e da dor do sexo. Portanto, seria bastante
lógico concluir que é através da transa que as criações se tornam vivas. Mas é
claro que você não entendeu a minha metáfora, então eu vou ter que traduzir,
menino lerdo, antes que você saia pelas ruas nu, gritando com uma cenoura na
mão:
“É tarde, coelho branco! Sou eu quem dará a cenoura para a minha Alice!”
Sim, você pode fazer isso em último caso, num dia em que sua imaginação
estiver meio sonolenta... pode ser que te inspire. Uma inspiração elegante como
essa sempre é bem–vinda. Ora, suas criações são mentais. Portanto, o que falta é
dar o corpo. Mas onde se arranja um corpo para o pensamento? Você irá virar
um ladrão de cadáveres?
O desafio será ainda mais fabuloso. Você precisa ofertar o seu próprio corpo
em troca. Imagine que você realiza um ritual para vender a sua alma ao
demônio. O corpo é um receptáculo. O demônio seria o seu bebê. E qual seria
exatamente o nosso ritual?
Ele se chama: Ritual da Fusão Divina. Você irá fundir–se com sua criação;
criador e criatura se tornarão um. Seria como ofertar o próprio corpo para a
morada de um parasita extremamente conveniente. O parasita alimenta–se da
sua imaginação; é esse seu pão. Em troca, ele te oferta o nirvana.
Mas como o menino vive no campo, ele achou o nome desse ritual muito
complexo e criou outro. Ele se chama: Ritual do Ovo e da Galinha. Percebeu a
genialidade desse nome?
Quem veio primeiro? O ovo ou a galinha? Esse é o maior enigma do universo!
No dia em que você encontrar uma resposta para ele, descobrirá o segredo da
criação e o mundo explodirá. Ora, junto ao segredo da criação é recebido o da
destruição. Ambos estão unidos como a gema e a clara de um ovo mexido.
Existe a criatura e o criador. Um cria o outro: a criatura só existe porque há o
criador, correto? Mas o que você não percebeu é que o criador também só existe
porque há a criatura! Afinal, se a criatura não existisse, o criador não seria mais
um criador e sim uma outra coisa – você poderia chamá–lo de homem comedor
279
Juliana Duarte
de ovos – pois ele não teria nada para criar. Portanto, ser criador não faria
sentido.
O mesmo ocorre com o ovo e a galinha, oras! A Galinha é “O Criador” e o
Ovo é sua criação. Mas é só pela existência do ovo que há a galinha e vice–
versa. Portanto, a galinha também é uma criatura criada pelo criador ovo. Eu já
ouvi gente dizendo que o ovo veio antes da galinha. Essas pessoas são as
mesmas que dizem que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança –
transforme o homem num ovo e Deus numa galinha e terá sua explicação – Mas
eu não vou discutir com essas pessoas, porque se elas concordassem comigo eu
iria deixar de rir e precisaria arranjar briga com o coelho da Páscoa.
Mais coelhos em nossa história, hã? O coelho da Páscoa é mesmo um gênio! Ele
não liga para relógios ou para cenouras e sim para ovos. É mesmo um criador
nato.
Mas a criança da nossa história estava cansada de criar coelhos, porcos e
galinhas. Então resolveu ir para o terreiro e fazer o tal ritual.
A melhor época para começar é aquela em que ocorre a lua de mel do sol e da
lua – pois você já sabe que é a transa que dá a vida – Mas como eclipses são
muito raros, você pode escolher o namoro do sol e da chuva ou um arco–íris.
Mas por que se importar com o que acontece do lado de fora? Você pode criar
o seu próprio céu, o sol, o arco–íris e seu eclipse. Portanto, esqueça o relógio.
Mova o ponteiro para a hora que desejar, pois sempre é hora de criar. Lanchar
também é bom a qualquer hora. Principalmente comer pão com ovo e beber o
leite de uma mãe.
A sua imaginação será o seu alimento.
Então vamos ao terreiro descobrir o que precisamos para iniciar o ritual.
A atmosfera deverá preencher–se com a melodia das batidas do coração. A
dança e a música são ingredientes especiais para a refeição. Induzem ao êxtase e
ao frio na espinha. A dose do susto deve estar em todas as cores e sabores,
como um saco de balas sortidas.
Vamos dar uma espiada no mestre do ritual. Eis o menino. Você enxerga seu
chapéu colorido? Cores sempre são estonteantes. E os sapatos! Sapatos de cor
mostarda e bico fino. Ele bate o seu tambor e já não se contém de ansiedade.
Antes o menino pensou em ser muitas coisas: um palhaço, um dançarino
ou um músico, mas desistiu, pois as julgou profissões perigosas. Ele não
desconfiava do grande perigo em que estava se metendo ao escolher ser um
criador de idéias.
Ele estava lá criando e um dia morreu.
Mas por que ele morreu, você pergunta? Um criador não deveria ser imortal?
Ah, você sabia? Já ouviu falar? Existe um segredo para a imortalidade, mas ele é
muito perigoso e ninguém fala nele. Mas eu já matei o protagonista da história
280
Velevi
assim tão cedo! Pelo jeito a maior criação dele foi a própria morte; o que não é
pouca coisa.
Dessa vez o nosso personagem será uma mulher. Uma mãe, para ser mais exato.
E se eu te disser que essa mãe escolheu reunir para si um exército de
pensadores? Eis o único exército necessário para revolucionar o mundo.
Você já ouviu dizer que “nós vivemos no melhor dos mundos possíveis”?
Voltaire não entendeu a piada de Leibniz e seu Cândido teve que contentar–se
em recolher pedregulhos de ouro. Mas o que você faria com esses pedregulhos
inúteis quando ao seu redor já existe um universo tão emocionante, repleto de
manchas artísticas para você brincar de rir e chorar?
Na verdade não é uma piada. Eu falo sério. Nada precisa ser mudado. A
natureza já é perfeita. O fato de existir o nascimento e a morte, o prazer e a dor,
de comermos uns aos outros e depois retornarmos a terra. O equilíbrio entre o
belo e o horrível é a perfeição. Portanto, o mundo já é perfeito e não precisa ser
alterado no menor grau.
O que nos falta é captar essa perfeição. Ainda não conhecemos todas as leis que
regem o universo. A ciência desvenda devagar, passo a passo, como quem
saboreia um doce. Mas eu sei que você é impaciente e deseja conhecer a verdade
antes de desaparecer.
O que ninguém sabe é que existem algumas leis extremamente terríveis. Oh, elas
são maravilhosas! Mas nós conhecemos bem o preço do maravilhoso.
No dia em que você escolhe a bênção para si, arrasta consigo a maldição.
Quanto mais delicioso o bolo, o preço será maior. Portanto, você já deve
imaginar o alto preço de desvendar uma das leis mais secretas do universo. Você
aceitaria pagar esse preço?
Eu conheço muitas pessoas que entregariam a vida em troca de desvendar uma
dessas leis. Mas eu pergunto: você entregaria sua sanidade?
Apesar de vivermos no melhor dos mundos possíveis, você ainda está
insatisfeito. O problema está em você e não no mundo. Você nem mesmo sabe
como funcionam as leis do próprio mundo em que vive. Tampouco conhece
seu cérebro. Quando você não conhece o sistema completo, aponta erros onde
eles não existem.
Conhece–te a ti mesmo? Qual dos seus “eus” deseja conhecer? Que tal travar
uma guerra entre as diferentes porções de você? Ou quem sabe uma dança?
Uma guerra dançante. Você gosta? Isso te dá prazer? Que tal provar uma
segunda fatia do seu bolo de aniversário? Pois os outros não merecem sequer a
primeira. O bolo inteiro deve ser seu, criador. Você é aquele que cria o mundo
de merengue e o devora.
281
Juliana Duarte
As pessoas estão cegas e irão entender as coisas de forma errada. Ainda não é
tempo de entender. Eles olharão para a verdade e verão o ouro. Porque é só o
ouro que eles querem. E então se derramará o sangue.
Isso não é uma profecia. A lógica apenas alerta que tempos difíceis virão, assim
como vieram antes. Os tempos fáceis são inocentes demais e não me servem.
Mas dessa vez tudo será diferente, pois eles sabem coisas demais. Eles possuem
poder. Possuir poder é perigoso. Mas se não fosse perigoso não seria divertido.
O caos gosta de acontecer nas horas certas. Então hoje falaremos sobre a
criação da guerra.
A guerra é tentadora, pois temos sede de carne e sangue nessa realidade pacata.
O estouro da guerra é bom para fazer o nosso coração disparar.
Por outro lado, há quem considere a vida preciosa e a reivindique para si. Há
alguns que acham que a vida é só sua, mas eu digo: a vida é da terra. Você é um
ser da terra e precisa atender ao desejo dela e apenas a ela servir. Você é um
guerreiro da terra.
Mas ela comanda apenas os corpos sem mente. Se possuir uma imaginação,
você é o senhor dos exércitos e terá o direito de construir a sua própria guerra.
Você não é mais um escravo da terra e sim o senhor da vida.
Pouco me importa a batalha da carne. Desejo ouvir os rumores da guerra das
idéias.
Conhece o preço de uma idéia fantástica? Você se assombraria se eu dissesse.
Chegará o tempo em que pouco importará os assuntos da carne e esse será o
fardo mais difícil de carregar. Quanto mais liberdade uma idéia entrega, maior é
a gaiola.
Oh! Eis que a mulher, mãe e criadora, fez sua profecia. Ela vaga pelas
montanhas, trajada em seu longo manto rosado, pregando os seus sermões e
assim ela clama:
E assim disse a mãe profeta do leste; a mãe da criação do sol nascente áureo.
Vejo o sol vermelho.
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A mãe profeta do oeste vaga com uma bengala, trajando seu manto rubro; o
sangue de seus dedos arrancados secou e tornou–se cor de areia. Tocou a terra e
fez–se uma com ela. “Arranquei a minha pele e a ofertei para agasalhar o
mundo”.
Caminha entre os fantasmas das madrugadas de lua velha. Ai, que a lua já se
escondeu, pois ouviu os rumores da guerra – quanto medo possui! – Os trotes
dos cavalos esmagam a terra.
A mãe do oeste é cruel. Clama pela terra e pelo ouro. Caça o ouro enquanto
caminha com seus pés descalços e sempre cobra o preço certo. Anda de mãos
dadas com seu tio, que usa uma cartola bem grande e lhe diz: “Eu sou o teu
empresário e tenho sede da terra”.
A mãe do norte usa um manto negro, pois carrega o peso da vitória. Ela deixa
passos pesados na neve e já parece cansada. Mas a sua imaginação não conhece
limites.
283
Juliana Duarte
A madame do norte é leve nas palavras, pois possui o fardo da neve. Ela
contempla a evolução da arte, pois foi a única capaz de sorrir.
A mãe do sul veste o manto esverdeado. Ela caminha pelas florestas e diz:
Eis o mundo
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Parabéns a você
Onde está o seu bolo?
O coelhinho comeu?
Ele abriu seus presentes
Encontrou uma lenda
Roubou o seu roteiro
Riscou uma linha
Ele escreveu nela:
Mate o ator maldito
Nesse palco engraçado
Eu sou o seu boneco
E o ventríloquo cai
E se torna uma farsa
Essas são as quatro mães que comemoram o aniversário de seu único filho: o
menino do campo criador de mundos. Ele sorri em seu terreiro e dá início ao
ritual do nascimento da criação, pois ele é um guerreiro nato.
O menino apaga as velas do seu bolo, mas não as conta, pois aquilo não
interessa. Que importa a idade da terra? Sua imaginação é mil vezes mais antiga
e poderosa. O menino campestre come a sua fatia do bolo de aniversário. O
bolo é de chocolate. Há muitos balões coloridos e enfeites e ele está muito
satisfeito, pois aquela idéia foi sua. Ele sorri para as suas quatro mães, que
sempre são muito atenciosas.
Cada mãe engravidou de uma parte e depois as costurou:
A mãe do leste engravidou da cabeça do menino; aquela que possui a idéia.
A mãe do oeste engravidou do tronco; aquele que é carne.
A mãe do norte engravidou das pernas; aquelas que deixam pegadas na neve e
marcam sua história.
A mãe do sul engravidou dos braços e disse: agarra a idéia coelho e lhe dá um
abraço forte.
E assim o menino criou os animais da fazenda. Mas um dia ele decidiu dedicar–
se ao famoso ritual. Afinal, poderia ser divertido. E então, com suas próprias
forças, ele engravidou de um coelho e deu nascimento a ele, sob uma salva de
palmas de suas orgulhosas mães, que agora eram avós. O menino subiu na torre
mais alta e levantou o coelho nos braços, anunciando ao mundo:
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Eu posso!
286
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Vevelevis
287
Juliana Duarte
Mas, para a decepção de todos, eles informaram que não ocorreriam mais
mostras a partir dali. Eu não estava surpresa com isso, já que aqueles dois não
pareciam interessados em competições. Apenas tinham mostrado a nós uma
história – muito estranha, por sinal.
Os velevis e os vevelevis ainda conversaram por um longo tempo. Parecia coisa
séria. Eu não vi nenhum deles dar um sorriso, naquele tempo todo.
No resto do dia, assistimos mais mostras de leals e competições de amadores. O
Peter e o Afonso estavam tão empolgados que corriam por todos os lados em
busca de adversários. Tudo terminou com uma palestra dos organizadores. Mas
as últimas palavras foram do nosso velevi, recebido ao palco com uma salva de
palmas. Ele estava bem animado. Conseguiu deixar todos alegres e com muitas
saudades.
– Jamais deixem de confiar em suas imaginações. Esse é o tesouro mais precioso
que possuem. Então, não lancem as pérolas aos porcos.
Discurso estranho. Estava terminado o evento mundial de levis.
E agora, como seria minha vida?
No dia seguinte, todos os velevis partiriam e cada um retornaria ao seu país. E
então, toda a magia terminaria. Senti o feitiço ser encerrado quando meu relógio
marcou nove horas da noite. Tive esperanças de que algo extraordinário
aconteceria no fim. Mas para a minha decepção, o evento terminou de maneira
bem comportada e previsível.
Eu sabia o motivo de não ter acontecido nada demais: eles escolheram que a
diversão ocorreria somente na noite passada. A sexta–feira seria o dia das
conversas sérias. Eu notei o clima de seriedade dos velevis do início ao fim do
evento, principalmente depois da conversa com os vevelevis. Eles tinham
evitado competições com amadores naquele dia e pareciam muito preocupados
com alguma coisa.
Pegamos o ônibus para voltar para casa.
– Que tal fazermos uma festa para comemorar? – sugeriu Afonso.
– Ótima idéia! – falou Peter – Quanto mais festa melhor. Mas como estou sem
grana, a festa de hoje vai ter que ser com miojo. A não ser que nosso respeitável
chef nos prepare alguns quitutes deliciosos.
– Pode deixar que eu preparo – prontificou–se Afonso.
Eu não me sentia disposta para comemorar nada. Afinal, o que haveria para
comemorar? A festa aconteceria no 201. O Jean avisou que iríamos passar em
casa primeiro e dali uns quinze minutos estaríamos lá. Entramos no nosso
apartamento.
– Você vai ficar com essa cara até quando? – perguntou Jean, incomodado.
– Que cara?
– Essa cara de morta. Aconteceu alguma coisa? Você ainda está mal?
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alto preço. Mas isso não envolve exatamente dinheiro, ou ao menos não
diretamente. É ainda mais forte.
Queriam me seqüestrar também? Provavelmente não. Acho que nem eu ia
querer.
– Digamos que essa nossa habilidade seria muito útil para uma guerra. O poder
de produzir leals nos transforma em máquinas de fazer dinheiro. Esse outro
poder, nos transformaria em máquinas de matar.
Aquilo não soava como uma piada, mas... por que era tão absurdo? Eu, que não
era nem mesmo capaz de imaginar um coelho direito na minha tela da mente,
seria uma máquina de matar? Eu só não ri porque estava nervosa demais.
Coelho... guerra. Agora a mostra dos vevelevis já fazia mais sentido.
– O mundo ainda não sabe sobre isso e estamos tentando esconder a qualquer
custo, mas já começaram a vazar informações e não dá mais para segurar. Agora
as pessoas erradas já sabem e estamos numa situação extremamente delicada.
– Quais são as pessoas erradas?
– Líderes de governo, por exemplo. E eles ficaram sabendo pelos nossos
“patrocinadores”. Eu vou explicar. Mas, por favor, não mencione isso para
ninguém. Eu nem poderia estar falando isso para você...
– Não se preocupe. Juro que não vou dizer nada.
Ela baixou a voz:
– Diziam que estávamos escondidos por causa das leals. Mas o principal motivo
é outro. Esse evento foi apenas um pretexto. Os poucos patrocinadores que
sabem sobre a situação, nos obrigaram a vir para localizar velevis em potencial.
Então todo aquele evento tinha sido uma farsa?
– A nossa intenção não era localizar mais velevis para entregá–los ao governo e
sim para alertá–los do perigo. Os patrocinadores nos deram um mês para
encontrá–los. Encontrando–os ou não, no dia seguinte que o evento terminasse
seríamos obrigados cada um a retornar ao seu país e sermos entregues ao
governo imediatamente.
– Então todos vocês irão retornar amanhã e...! – eu não podia acreditar.
– É exatamente isso que nós doze iremos discutir essa noite. Claro que não
podemos retornar e aceitar tudo. Eu não tenho a intenção de matar ninguém.
Ao menos isso é verdade quanto a mim. Hoje a noite iremos descobrir o que os
demais pensam sobre isso.
– Mas quais países querem fazer a guerra? E por que motivo?
– O motivo somos nós. Os países envolvidos seriam aqueles dos quais vieram
cada velevi. Alianças poderiam ocorrer. Isso pode acabar numa confusão
descontrolada com efeitos desastrosos, apenas por causa de doze pessoas. Por
isso precisamos tomar a decisão certa agora, pois não poderemos voltar atrás se
fizermos alguma besteira ou cometermos um erro estúpido.
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O Debate
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Juliana Duarte
– Deixe que ela fique e vamos começar a reunião – falou Chanjuan – Ou você
ainda tem mais alguma reclamação a fazer?
– Agora você fica se fazendo de séria...
– Eu sei ser séria quando devo. Diferente de você que só sabe criticar os outros
e nunca contribui para nada.
– Você só sabe contribuir para seduzir os ingênuos com os seus feitiços, sua
bruxa – retrucou Emelie – e depois fazer cena no meio do evento como se fosse
muito superior.
A chinesa fitava a sueca com muita irritação, mas ficou quieta. O africano nem
olhou naquela direção.
– Isso não é problema seu – falou a chinesa – Por que não se manda daqui em
vez de ficar expulsando os outros?
– Calma – falou a finlandesa – precisamos de todos aqui. Isso é sério.
As duas ficaram quietas.
– Sabe o quão longe se pode ir com as materializações? – Rosamond perguntou
para mim – Teoricamente, seria possível fazer qualquer coisa. As realidades
criadas pelas lentes não são falsas. E as materializações nos permitem interferir
diretamente com nossas criações no mundo real e não somente na imaginação.
Então era isso que eles chamavam de materialização.
– Começamos a pensar que talvez o processo que tenha dado existência ao
“mundo real” tenha sido o mesmo. É como se nosso olho fosse uma lente
natural, que criasse novas realidades o tempo todo. Você já ouviu falar que o
mundo só existe porque existem olhos para vê–lo? Se não houvesse olhos, o
mundo desapareceria instantaneamente. Ou talvez possamos colocar isso de
outra forma: se não houvesse nenhum ser vivo com percepção para captar o
mundo, não faria a menor diferença se as coisas existissem ou não.
Aquilo estava ficando cada vez mais complicado.
– Segundo a Teoria das Lentes, a existência do mundo seria resultado da
conexão de todos os olhos dos seres vivos; uma junção das mentes, do corpo e
de todos os sentidos. Da mesma forma que é possível realizar a conexão no
momento das mostras. O mundo seria a conexão de todos os olhos da
humanidade. Não existe somente um mundo chamado de “mundo real”. O que
existe são múltiplas realidades paralelas criadas pela nossa mente. Não existe
uma Rosamond sentada aqui. O que existe são muitas Rosamonds: a que você
vê, a que eu vejo e a que os outros vêem. Todas elas são diferentes
interpretações de cada uma das mentes.
Eu era burra demais para acompanhar aquela discussão. Ou talvez não fosse
louca o suficiente para acompanhar o nível da maluquice.
– Não há existência isolada. Se não houvesse a luz, não haveria formação de
imagem e a capacidade da visão não faria sentido. As cores não possuem
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existência real e são percebidas de forma diferente por cada ser vivo. Nós
podemos enxergar uma flor vermelha e a abelha a enxergar negra. A flor só foi
criada no momento em que surgiram olhos para vê–la. Duas flores nasceram:
uma vermelha e uma negra, onde antes não havia flor nenhuma. A realidade
seria definida como interpretações.
Aonde ela queria chegar com aquele discurso esquisito?
– Se todos os seres vivos fossem cegos, haveria somente sons, formas, cheiros e
sabores. Para se formar o fenômeno “cor” é necessário a existência de um
objeto que tenha uma cor e também de um olho para vê–lo. Se não há um
desses dois, falar em cores não faz sentido. Imagine todos os seres vivos cegos e
surdos. Sem o aparelho auditivo, o fenômeno som não teria razão de ser. Se
nenhum ser desse mundo tivesse os cinco sentidos, o mundo deixaria de existir,
pois não haveria aparelho algum para captá–lo. Se não há a chave ou se não há a
fechadura, não é possível que a porta se abra e se complete o processo que
chamamos de “existência”. Descartes disse: “Penso, logo existo”, mas se não
existe o objeto de pensamento, você vai pensar no quê? Pensar não seria a
condição suficiente de existência, a não ser que você pense em si mesmo! Mas
você só existe porque todo o resto existe. Então eu poderia dizer: “Penso, logo
tu existes” ou “Tu pensas, logo eu existo”. Um cria o outro.
Eu já tinha ouvido aquela frase em algum lugar. Talvez numa aula de história há
uns cinco ou seis anos.
– Somos, ao mesmo tempo, deuses e criações, pois criamos a realidade ao nosso
redor e somos criados pelos outros. As mentalizações das levis são reais. O
mundo real seria a criação de uma levi chamada olho humano. E a
“coincidência” de todos vermos um mundo tão parecido funciona como a
visualização. O mundo das levis e o mundo real ainda estão separados. As
materializações são a conexão entre os dois mundos. Se alguém adquirir livre
controle sobre ela, você faz idéia do que pode acontecer?
O meu primeiro pensamento foi que seria algo muito divertido. Já pensou se
todas aquelas maravilhas que os doze criaram em suas mostras pudessem ser
trazidas ao mundo real? Em vez de nos levar para dentro de suas criações, os
velevis levariam as criações a nós. Seria ainda mais realista que uma leal.
– Imagine um livre poder de manipulação de todos os mundos e realidades
possíveis, incluindo a si mesmo e a outros seres vivos.
E se dois velevis tentassem alterar a realidade ao mesmo tempo? Que confusão!
A Rosamond poderia se transformar num ursinho preto do país do arco–íris e
voltar ao normal quando desejasse? Ou ela poderia transformar uma pessoa
num bolo de aniversário? Agora eu estava assustada.
Os eventos de levis do futuro seriam mostras de materializações? Poderiam
acontecer num campo aberto em que os dois adversários se transformariam em
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– Uma vez você me perguntou por que não existiam lentes de olho direito e
agora eu vou te dizer. Na verdade elas existem, mas foram proibidas pelos
fabricantes. Você só pode colocar uma lente num olho por vez, para não perder
a conexão com esse mundo. Se você colocasse duas lentes ao mesmo tempo,
perderia qualquer contato com o mundo real e desapareceria, vivendo somente
no mundo das lentes. Você ficaria trancada lá para sempre. Seria como morrer.
Ou viver eternamente lá dentro. Depende de como você interpretar.
Então eu morreria se colocasse lentes nos dois olhos? Eu lembrava que uma vez
tinha colocado a levi do olho esquerdo no olho direito. Será que também daria
certo usar duas lentes esquerdas? Provavelmente não ou qualquer pessoa
poderia fazer aquilo.
– Claro que o seu corpo não desapareceria – explicou Rosamond – imaginamos
que você entre numa espécie de coma. Eu já ouvi boatos estranhos sobre um
hospital em Cape Town que possui pacientes em coma por essa razão. As lentes
começaram lá e acho que antes não havia restrições de lentes de olho direito até
descobrirem que essas coisas estavam acontecendo. Então eles proibiram. Você
sabe algo sobre isso, Sobhuza?
– Sim, é verdade. Eu mesmo já fui internado lá uma vez.
– Mas você não colocou lentes nos dois olhos, colocou? – perguntou
Rosamond.
– Coloquei.
– Mas...! – a finlandesa estava tão surpresa quanto todos os outros – Como foi
que você saiu?
– Não dá para sair sozinho. Uma pessoa me tirou, mas a muito custo. Isso
demorou para ser feito. Mas depois dessa experiência, a minha habilidade com
as levis cresceu de uma maneira impressionante.
– Quem foi que te tirou? – perguntou Rosamond, desconfiada.
– O meu tio–avô. Ele é um dos fabricantes, que vocês viram no evento.
Ao que parecia, aquilo era novidade para todos. Por essa razão ele teve contato
com as lentes tão cedo. Afinal, um parente dele era um dos fabricantes.
– Então você já deve ter conversado com ele muitas vezes – falou Rosamond –
deve saber de muita coisa que não sabemos.
– É possível – falou o africano – mas não sei tanto assim. Os próprios
fabricantes não conhecem todas as possibilidades. Eles estão em processo de
pesquisa e têm mais utilidade para o governo como pesquisadores do que como
armas de guerra. Claro que o trabalho deles para o governo é só uma farsa. Eles
possuem projetos de pesquisas independentes e não vão divulgar qualquer coisa
que descobrirem. Mas eu me pergunto se é seguro falar isso para vocês. Não sei
se todos aqui são de confiança.
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Desconfiei que o debate da noite fosse começar agora. Até ali, havia sido apenas
uma introdução para que eu me inteirasse sobre a situação.
– Pouquíssimos sabem sobre as materializações – falou a finlandesa –
infelizmente alguns dos poucos que sabem são exatamente quem não devia. Eu
diria que o “menino já mostrou seu coelho ao mundo”, lá de cima da montanha.
Quem viu quer roubar o coelho. E querem aprisionar o menino e obrigá–lo a
produzir centenas de coelhos para eles.
– Nós não podemos voltar cada um para o seu país amanhã – falou o egípcio –
seria uma decisão muito imprudente e precipitada.
– Mesmo se não quisermos, eles irão nos obrigar a voltar – falou o americano –
é capaz de virem até o Brasil para nos arrastar de volta à força. Eles fingem que
nos dão liberdade, mas isso é só enquanto fingimos que somos obedientes. E
que bem faria continuarmos aqui? É muito mais prudente fazermos o jogo deles
e planejarmos alguma coisa às escondidas. Podemos nos comunicar pela
internet.
– Isso não vai dar certo – falou a finlandesa – iriam descobrir com facilidade.
Você acha mesmo que eles vão nos deixar fazer o que bem entendermos
quando retornarmos? Podem até nos trancar, se for necessário. Precisamos
tomar uma decisão séria agora. Em primeiro lugar, quero ter certeza de que
todos aqui são completamente contra essa... guerra iminente, ou seja lá o que for
resultar disso.
– Ninguém falou em guerra ainda – falou a sueca – não entendo a insistência
nisso. É só uma suposição de vocês. O governo quer apenas que trabalhemos
para eles.
– Acha mesmo que é algum tipo de trabalho nobre como ajudar os pobres ou
reduzir os gases do efeito estufa? – perguntou a chinesa – Você só pode estar
brincando.
Lembrei da mostra da chinesa e do brasileiro em que eles matavam o presidente
de uma maneira particularmente estúpida. Com certeza eles não perderiam a
oportunidade de utilizar as mostras para jogar algumas indiretas bem debaixo do
nariz dos organizadores.
Mas bastava que um dos velevis tivesse algum... prazer mórbido de matar, que
todo o plano deles iria por água abaixo. Afinal, quem não gosta de dinheiro,
fama e poder? Os velevis já possuíam os três. Eram produtores de leals – se é
que alguma parte daquele dinheiro ia realmente para eles –, tinham muita fama
entre todos os fanáticos por levis do mundo e o poder de suas criações era
impressionante. Mas quando você experimenta o gosto, deseja ainda mais. Era
possível que eles não se importassem em serem usados se ganhassem algo com
isso.
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Agora que eu já conhecia bem a chinesa, não duvidava que ela fosse fazer isso,
mesmo sendo tão tarde. Ela saiu do apartamento e bateu na porta da bailarina.
Alguns minutos depois, retornou.
– Ela concorda em hospedar algumas de nós. O pai dela vai ficar fora por mais
duas semanas. Ela até ficou contente com nosso pedido.
Ela apenas vivia lá trancada, sozinha. Deveria ser uma oportunidade única ter
outras meninas para conversar e fazer companhia, mesmo sendo completas
desconhecidas. Realmente, a chinesa conseguia tudo o que queria. Ela devia
fazer pedidos como aquele com a cara mais meiga e inocente do mundo.
– Pelo jeito já decidiram tudo sozinhas – observou o americano – e vocês têm
certeza de que esse prédio é seguro? Já é a segunda vez que viemos para cá e
alguns até estão hospedados aqui. Não vai ser muito difícil que “adivinhem”
onde estamos.
– Eu e a Rosamond viemos escondidas – falou a chinesa – não comunicamos
para qual hotel os outros se mudariam. O pessoal do evento nos dá liberdade
para irmos onde quisermos e não precisamos dar satisfações.
– O pessoal que não sabe sobre as materializações, você quer dizer – corrigiu o
americano – acha que os sujeitos que sabem iam nos deixar andar por aí? Pelo
que eu saiba, há parentes da Rosamond no prédio. Se descobrirem, esse será um
dos primeiros lugares que vão nos procurar.
– Temos que arriscar – falou a finlandesa – só precisamos de mais alguns dias
para tomar uma decisão. Se percebermos que está perigoso aqui, trocamos de
lugar.
– Nós tivemos um mês para discutir esse assunto! – interrompeu a sueca – não
sabemos o que fazer porque vocês evitaram a conversa esse tempo todo, por
medo.
– O que querem divulgar exatamente? – perguntou o americano – Que haverá
uma guerra? Seria algo particularmente estúpido. Desse jeito vocês mesmos vão
incentivar e dar essa idéia a eles. Precisam tomar muito cuidado com o que vão
dizer. Pretende comentar sobre as materializações, por acaso?
– Acho que vai ser inevitável – falou a finlandesa.
– Vocês esqueceram de uma coisa – observou a russa – do impacto que essa
revelação trará. Não se trata apenas de imaginação. Esse poder é grande demais
e muito perigoso. Muitas pessoas irão odiá–lo. Muitos não desejam que as coisas
sejam mudadas, ainda mais quando o poder não está nas mãos deles. Não são
poucos os que desejarão que esse poder não exista. Na melhor das hipóteses,
em vez de ocorrer uma guerra para destruir o mundo por nossa causa, irão
proibir o uso das levis e assassinar nós doze em segredo, fazendo com que a
humanidade esqueça nos anos seguintes que essa habilidade existiu.
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– Mas isso não poderia acontecer – falou a japonesa – muita gente sabe da nossa
existência e não iriam ignorar se desaparecêssemos. As pessoas se revoltariam.
Elas iam saber que nós não derretemos e nem estamos nos escondendo.
– De que iria adiantar uma revolta depois que já tivessem nos matado? –
perguntou o australiano – que se revoltem antes. Depois que estivermos mortos
isso não fará a menor diferença.
Tomei coragem para falar de novo, num breve momento de silêncio.
– Vamos gerar uma reação forte – eu garanti – vamos mobilizar muita gente.
– Nós contamos com vocês – falou a finlandesa – mas lembre–se que será
perigoso.
Que responsabilidade! Parecia até coisa de filme: “O destino da humanidade
está nas minhas mãos”! Aquela tarefa me fazia morrer de medo. Se
descobrissem quem andava espalhando as informações, poderíamos nos dar
muito mal.
– Preciso te pedir outra coisa – falou a finlandesa – não divulgue essas
informações, nem mesmo para os seus amigos. Conte a eles somente o
necessário. E em hipótese alguma mencione as materializações. Não conte a eles
que estaremos escondidos aqui. Eu sei que eles vão desconfiar, mas não
importa.
Provavelmente ninguém teria coragem de espiar o apartamento do satanista para
matar a curiosidade. Pelo menos os vizinhos nunca iriam até o assombroso
quinto andar.
– Acho que o satanista e a bailarina irão cuidar do nosso sustento, então não
precisa se ocupar dessa parte – falou a chinesa – comprar comida e coisas assim.
Claro que vamos pagar, já que não queremos abusar da paciência dos nossos
generosos anfitriões.
O satanista era um anfitrião generosíssimo. Eles nem tinham perguntado se ele
aceitaria aquilo. Mas do jeito que ele era, claro que aceitaria.
– Que perda de tempo – comentou o africano – como se isso fosse dar certo.
Todos olharam para ele.
– O que nos sugere fazer então? Quero ouvir a sua idéia genial – falou a chinesa,
com desdém.
– Não estou com nenhuma idéia genial no momento – falou o africano –
considerando nossas opções, seria melhor retornarmos.
– Ah, sim, para você está ótimo! – zombou a chinesa – Você tem o seu tio–avô,
um fabricante protegido pelo governo, para te defender. Ninguém vai encostar
um dedo em você, mas a nossa situação é bem diferente. Os meus
“patrocinadores” na China não são nem um pouco piedosos.
– Você não está nem um pouco ciente da minha situação para afirmar um
absurdo desses.
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está acontecendo, você não é muito melhor que ele. Você critica o governo, mas
qual a sua nobre contribuição para a humanidade?
– Você está me irritando – falou o australiano – você e esse seu discurso
pseudo-democrático. Faça o que quiser. Vá à igreja aos domingos, dê esmola
para os pobres e pão aos patos e sinta–se no direito de criticar o governo sem
peso na consciência. Que eu saiba a sua ocupação é exatamente a mesma que a
minha e a mesma de todos aqui. Você vê algo de nobre nisso? Pretende salvar o
mundo com sua levi?
– Eu não pretendo salvar o mundo – falou o africano – mas mesmo que
quisesse, não poderia fazer isso sozinho. Pessoas e governos são necessários. Eu
não gosto do seu tom. Você disse que não quer ser um cãozinho do governo?
Pois você já é, ou não teria aceitado vir nesse evento, mesmo sendo obrigado.
Você se acha muito independente e dono da sua vida para fazer o que bem
entende? Então pense na sua situação antes de falar besteira.
O australiano se irritou. Eu sabia que ele não ia deixar aquilo passar de graça.
– Se for para dar esse discurso estúpido é melhor ficar quieto! – gritou o
australiano – Seu preto bastardo! Por que não vai ser escravo e toma seu lugar?
Todos levaram um grande susto. Eu não podia acreditar no que tinha acabado
de ouvir. O africano levantou–se imediatamente e foi até o local em que o
australiano estava. Segurou–o pela camisa.
– Cuidado com a língua, seu ignorante filho da mãe.
Aquele ódio silencioso... Perto daquela pessoa ameaçadora ali de pé, usando um
tom controlado, até o australiano, que tinha a fama de já ter batido em muitas
pessoas, não parecia muito assustador. O africano devia ser muito mais forte
que ele, e aquela fúria que ainda não explodira me dava muito mais medo. Eu
nem queria imaginar como ele ficaria num momento em que se irritasse de
verdade. E se ele usasse a levi?
Percebi que até a chinesa estava com medo dele agora. Provavelmente ela nunca
tinha visto – e ninguém ali parecia ter visto tampouco – o africano expressar
qualquer traço de irritação. O máximo que ele já tinha demonstrado foram
aborrecimentos leves, mas... aquilo ali era muito diferente. Ele estava
extremamente sério. Aquele olhar profundo, que me fascinara desde a primeira
vez que eu o vira, me dava a impressão de que ele seria capaz de matar alguém
se fosse colocado no limite da fúria.
Se fosse uma situação normal, o australiano teria dado imediatamente um soco
na cara de alguém que se atrevesse a segurá–lo e dizer aquelas coisas. Mas
naquela ocasião ele resolveu não agir por impulso e pensou duas vezes.
Por fim, o africano largou–o. Ainda fitou o australiano por alguns segundos e
depois voltou ao seu lugar, sentando–se novamente. Ninguém fez nenhum
comentário por um longo tempo. Era a primeira vez que eu presenciava um
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Isso será por tempo indeterminado. Não poderemos sair e você terá que
comprar comida também, mas nós pagaremos. Tudo bem?
– Claro – falou o satanista. Como as coisas eram simples para ele... nem
precisaram explicar nada e ele já tinha aceitado – podem ficar o tempo que
desejarem.
– Pode ser perigoso – acrescentou a chinesa – pode ser que um dia apareçam
uns gringos atrás de nós querendo derrubar a sua porta. Mas você é segurança e
irá segurar a barra enquanto os rapazes escapam, não é?
– Sem problemas. Não me importo em defender os malvados se eles são gentis.
– Nós não somos malvados! – protestou a chinesa – eles que são. Mas obrigada
por dizer que somos gentis.
– Mesmo assim vou ficar do lado de vocês, independente do que tenham feito.
Vocês são divertidos, então não podem morrer ainda.
A lógica dele era um pouco assustadora, mas eu não deveria esperar menos do
satanista.
– Muito gentil da sua parte – sorriu Chanjuan – o mundo precisa de mais
cavalheiros como você. E eu sei que sou uma das pessoas que contribuem para
que o mundo seja mais divertido, não acham, pessoal?
– Você contribui para que o mundo seja mais digno de pena – eu sabia que a
sueca não ia deixar passar o comentário.
– Fico satisfeita com isso. Pelo jeito minha presença nunca passa em branco. Eu
sempre sou marcante de uma forma ou de outra.
“Diferente de mim”, pensei.
Mas será que agora, como informante, eu faria alguma diferença pela primeira
vez? Era nisso que eu queria acreditar. Mas era tão importante assim fazer
diferença?
Quando retornei para o meu apartamento e não encontrei o Jean, lembrei–me
que eles estavam no 201. Resolvi bater lá para ver se eu ainda pegava o fim da
festa. Mas claro que a minha intenção não era ir para festa nenhuma. O evento
recém tinha terminado e muitas coisas iriam acontecer. Aquilo era demais para a
minha vida pacata. Pelo jeito eu não a teria de volta tão cedo como eu
suspeitava. Mas será que eu queria mesmo tê–la de volta?
– Oi, Fran! – falou Jéssica – Já descansou? Mas não se preocupe que ainda tem
comida.
– Senta aí – convidou Peter – O Afonso é mesmo um chef. Ave, mestre! Eu te
venero.
– Sinto–me lisonjeado.
Parecia que eles já tinham bebido umas. Ai, ai... será que era mesmo a ocasião
certa para tocar num assunto sério como aquele? Eu iria acabar com a festa de
todo mundo.
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Percebi que o Jean me observava com curiosidade. Ele era o único que sabia
para onde eu tinha ido. Eu estava tão nervosa que já previ o que aconteceria. Eu
ia passar a noite inteira lá sem conseguir falar nada.
– E então, pessoal? – falou Peter – O que vamos fazer agora com o fim do
evento? Que tal voltarmos à nossa antiga profissão de detetives e investigar
nossos vizinhos interessantes? Ou quem sabe alguém ainda tope um LARP?
“Investigar nossos vizinhos interessantes?”
Seria terrível se aquilo acontecesse.
– Por acaso você pretende largar a levi, Peter? – perguntou Afonso.
– Claro que não. Mas acho que com o fim do evento a minha empolgação irá
diminuir um pouco e terei bastante tempo livre para brincar de outra coisa que
não seja olhar para minha tela da mente ou entregar pizzas. Por isso preciso de
outra profissão de meio–período. Alguma sugestão?
– O que acha de ser informante dos velevis? – sugeri.
Foi a ocasião perfeita para falar. Algumas vezes eu sabia ser esperta. Peter riu.
– Por que eles precisariam de informantes? Para administrar a grana? Para
ajudá–los a fugir dos seqüestradores que querem que eles criem verdinhas
mágicas?
– Quase – falei – para ajudá–los a fugir dos seqüestradores que querem obrigá–
los a fazer algum trabalho suspeito para o governo. Por isso eles ficarão exilados
no Brasil. Eles precisam de informantes para comunicar ao mundo o que está
acontecendo e fazer pressão no governo dos países deles. Pode ser que se
intimidem e desistam da idéia de arrastá–los de volta. Eu sou uma das
informantes. Querem me ajudar na minha tarefa?
Silêncio.
– Hein? – perguntou Peter, confuso – Isso é uma brincadeira, não é?
– Não. Fui convidada a participar da reunião e eles me contaram. Não é verdade
que eu estava lá, Jean? A Rosamond foi lá em casa.
– Foi – respondeu Jean, completamente pasmo – e ela também disse para você
não contar aos outros que esteve lá, não?
– Fui autorizada a contar porque vocês também vão me ajudar, mas não posso
dizer tudo. Só eu poderei ter contato direto com eles.
Tive que explicar com calma desde o começo. Eu não dei detalhes. Contei sobre
o perigo que os velevis corriam, mas não deixei muito clara a razão e,
obviamente, nem mencionei sobre as materializações.
– Vai ser perigoso – achei melhor deixar claro – querem mesmo continuar?
– Claro! – falou Peter, com os olhos brilhando – É fantástico!
Alguns estavam maravilhados com a notícia de que a nova diversão seria servir
de informantes para os velevis. A possibilidade de correr perigo também os
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tinham voltado aos seus países no dia seguinte, talvez já começassem a reagir.
Seria uma corrida louca contra o relógio.
Eu não imaginava.
Eu não sabia.
Eu não queria.
Aquele seria o prelúdio da minha desgraça. Mas no fundo eu pedi por isso. Uma
parte de mim desejava. Será que a Fran não é assim tão boba?
Eu imaginava.
Eu sabia.
Eu queria.
Ratinha de Sangue... por que o teu mundo cor–de–rosa é impiedosamente
vermelho?
FIM DO LIVRO 2
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LIVRO 3
Primeira Parte
Os Informantes
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Velevi
Levis
À Imaginação
Chanjuan
Em nome de todos os velevis
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– Por favor, livre–se deles para nós. Destrua–os e não deixe que reste o menor
rastro. Coloque os resquícios numa lixeira bem longe daqui.
Eu teria que destruir todos os celulares dos velevis? Aqueles aparelhos
novinhos, modernos e bem conservados? Desconfiei que eu teria que fazer
muitas coisas estranhas dali para frente. Resolvi ir até o pátio de trás do prédio e
me ocupar da minha tarefa.
Mas antes... não teria problema se eu desse uma olhada neles, não é?
Resolvi descobrir de quem era cada um. O cor–de–rosa eu já sabia.
O celular da Chanjuan tinha letrinhas esquisitas. Era um dos aparelhos mais
bonitinhos.
O da japonesa era bem moderno, cheio de coisinhas penduradas.
O da finlandesa era coberto por um tigrinho de pelúcia. Tirei–o de dentro da
capinha para dar uma olhada.
Tinha adesivos de elefantinhos no da indiana, que também estava cheio de
caracteres incompreensíveis.
O celular da russa era negro e nele havia um adesivo de um trevo de quatro
folhas. Aquilo foi muito curioso.
O da sueca era o mais sem graça. Era certinho demais e estava impecável.
Agora era hora de espiar os celulares dos rapazes. Obviamente, os mais
desinteressantes. As meninas eram mais criativas.
O primeiro que peguei parecia em árabe. Só podia ser o celular do egípcio.
Dessa vez encontrei dois em português. O moçambicano tinha escrito o nome.
O brasileiro tinha colocado um apelido esquisito: “Mosca Decapitada”. E aquilo
lá seria coisa de se escrever num celular? E a mensagem de abertura era: “Vou
devorar a sua cabeça às 15:55”. Sinceramente, para mim isso não fez o menor
sentido.
Os três celulares restantes estavam em inglês. E agora? Que desafio!
O americano escreveu o nome, então ficou fácil identificar. A lista de contatos
dele não acabava mais. Bem, agora todos eles seriam perdidos.
Achei um joguinho de corrida bem interessante no celular do australiano e
fiquei jogando por alguns minutos. Como era legal! Será que eu tinha feito
muitos pontos?
O que eu estava fazendo? Eu deveria estar destruindo os celulares e não
brincando com eles! Deixei de lado o celular do australiano e observei o último.
Os nomes da lista eram particularmente esquisitos, embora alguns parecessem
nomes ingleses. Resolvi checar a caixa de mensagens. Algumas estavam numa
língua estranha, mas outras estavam em inglês. Resolvi ler essas.
Abri a mensagem mais recente, enviada há apenas uma hora! Provavelmente
nem ele tinha lido ainda – e nem leria mais – Eu estava com sorte. Estava
escrito o seguinte:
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“Não esqueça de pegar o avião das sete horas. Esteja aqui antes do fim do dia.
Cuidado para não desviar do trajeto. Caso desvie, ficaremos sabendo”.
Senti um pouco de medo por não ter destruído os celulares ainda. Era perigoso.
Joguei o celular do africano no chão, mas ele ficou intacto. Como era resistente!
Precisei lançar na parede algumas vezes até que se quebrasse. Será que eu estava
fazendo barulho demais? Nem eram sete horas ainda e era um sábado. Eu devia
estar incomodando os vizinhos. Fazer o que, né. Comecei a lançar todos eles no
chão, na parede, pisar em cima e qualquer outra coisa que minha inspiração
mandasse. Até que foi um belo espetáculo; belíssimo, eu diria. Foi divertido
fazer aquilo. Era ótimo para descontar o estresse.
Resolvi que eu guardaria a capinha do tigrinho de pelúcia da finlandesa, porque
era uma graça. Reuni cada pedaço dos celulares e guardei na sacola. Peguei um
ônibus, fui para bem longe e joguei todos eles no lixo. Lá estavam os modernos
e caros aparelhos reduzidos a pedaços. Até que fui bem sucedida em minha
primeira missão.
Retornei para o prédio. Agora era hora de nos reunirmos e darmos
prosseguimento à segunda missão. Eu já estava me sentindo uma super agente
secreta!
Acordei o Jean.
– Que horas são? – perguntou ele, com voz rouca.
– Sete e meia. Hora de trabalhar, senhor informante. Já peguei a mensagem com
os velevis. Estou esperando você lá na sala.
Aproveitei enquanto ele se arrumava para comer algumas bolachas, já que não
deu tempo de tomar café da manhã. Preparei leite com Nescau e lembrei da
menina chamada Menina e do cachorro chamado Cachorro, da chinesa e do
brasileiro, que adoravam tomar leite com Nescau pela manhã.
Se aquelas imaginações geniais sumissem, seria um desperdício irreparável para
o mundo. Era melhor darmos um jeito naquela situação o quanto antes.
Eu e o Jean tocamos a campainha do 201. A Jéssica atendeu. Quando chegamos
à sala, encontramos o Peter no computador e o Afonso ao lado.
– Ave! – cumprimentou Peter – Finalmente chegaram os informantes classe alta!
Estávamos esperando–os ansiosamente.
– Desde quando eu sou classe alta? – perguntou Jean.
– O irmão da informante classe alta também é classe alta, oras.
– Até agora não encontramos muita coisa – falou Afonso – o povo só está
comentando sobre os vevelevis e aquela última mostra. Foi incrível mesmo.
– Ah, e também estão cheios de teorias! – riu Peter – Alguns acham que é um
anúncio do fim do mundo!
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Eu não tinha certeza de que aquela teoria fosse tão absurda assim.
– A Fran recebeu a mensagem – falou o Jean.
– A mensagem dos velevis? – perguntou Peter, admirado – Quero ver!
Desdobrei o papel e entreguei a eles. Peter segurou a folha. Afonso e Jéssica
leram junto com ele.
– Genial – falou Peter – eles vão adorar isso. Ontem à noite mandei um e–mail
para o dono de um dos sites mais famosos de levis. Também contatei um cara
brasileiro que tem outro site importante. Aliás, como falei, precisamos criar nicks
para nós. Mesmo sendo assunto sério não há problema em se divertir um
pouco. E Jean, você precisará ficar nas sombras, porque é irmão de alguém
muito importante e ninguém pode descobrir.
Eu? Importante? E olha que eu não tinha feito nada ainda. Bem, eu tinha
destruído doze celulares e trazido até eles uma folha de papel. Até que eu era
uma pessoa útil.
– Meu nick será Remela de Olho – informou Peter – afinal, estamos falando de
lentes. Ficarei conhecido como o venerável Sir Remela.
– Peter, faça o favor de ser menos nojento – falou Jéssica – e invente um nick
digno.
– Tá bom, foi brincadeira. O nick da Fran será... já sei! Ratinha! Em homenagem
à nossa querida Chanjuan, que gentilmente escreveu a mensagem. Contaremos
aos outros sobre a lendária Ratinha que possui a honra de ter contato direto
com os velevis, mas ninguém jamais saberá nada sobre a sua identidade.
Ratinha... eu? A Ratinha de Sangue? A princesa mais linda do mundo? Puxa!
– Posso ser A Bola, para honrar a apresentação mais genial de todas. Ou quem
sabe eu possa ser o Coelho e o Afonso a Cenoura? O Deus Dourado e o Deus
Prateado? A Costureira e o Pão de Alface? Nossa, está difícil! Bem, então serei
A Bola. E você, Afonso?
– Acho que quero ser o Coelho.
– Que tal ser a Galinha? – sugeriu Peter.
– OK, tanto faz! – falou Jean – Só comecem de uma vez. O tempo está
correndo.
Eu e o Jean não tivemos muitas funções naquele dia, já que não tínhamos
computador. O Peter e o Afonso espalharam as mensagens e dedicaram o dia
inteiro a essa tarefa. Eles contataram os gêmeos e as irmãs, que também fizeram
o mesmo. No final do dia voltamos para saber como andavam as coisas.
– Um monte de gente já está sabendo – falou Peter – Bastou contatar todos os
donos dos sites mais importantes de levis e divulgar.
– Mas eles acreditaram mesmo? – perguntou Jean.
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Velevi
– Acho que a maioria acreditou. Tem gente que diz que é bogus, mas o que posso
fazer? Eles querem que eu mande uma foto de um fio de cabelo da chinesa
junto?
– Você podia tirar uma foto da folha em que ela escreveu – sugeriu Jéssica.
– Será que é seguro fazer isso? – perguntou Jean.
– Contanto que você não tire uma foto da folha com a imagem do nosso prédio
no fundo... – falou Afonso.
Eles tiraram uma foto do papel, em cima de uma mesa branca.
– Vamos ver agora se os senhores São Tomé ainda duvidam de nós – falou
Peter, satisfeito.
Naquela noite avisei ao Jean que iria dormir na casa dos nossos avós. Eu
pretendia fazer isso, mas a minha intenção era ter a liberdade de subir para o
quinto andar. Apertei a campainha do apartamento da bailarina. Ela me atendeu
com o mesmo sorriso simpático.
– Ah... não sei o seu nome.
Afinal, já era a segunda visita. Não saber o nome dela era embaraçoso.
– Diana.
Estranho como as coisas estavam se desvendando nos últimos tempos. Antes a
velha louca era só a velha louca... mas agora era a avó da finlandesa. O satanista
era só o satanista e a bailarina era só a pobre bailarina chorona. Mas agora o
satanista tinha um nome: Nícolas. E a bailarina era a Diana. Aquilo tudo era
mágico.
As meninas me disseram que tinham marcado uma nova reunião na segunda–
feira e eu deveria aparecer no apartamento do satanista às dez da noite.
Infelizmente eu não poderia comemorar o ano novo com meus amigos. Há
poucas semanas, a oportunidade de ao menos olhar um velevi de longe era
extraordinária. Mas naquele momento, a idéia de passar o ano novo com eles
não me parecia tão incrível assim.
A Dança da Bailarina
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Velevi
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Juliana Duarte
– Então o que pretendem fazer com suas levis se não for melhorar o mundo? –
perguntou a japonesa.
– Eu não sou tão nobre como você – falou o africano – penso primeiro em mim
mesmo antes de pensar no mundo.
– Todos são assim – falou a chinesa – afinal, você consegue se aterrorizar mais
com a morte de outra pessoa do que com sua própria morte? A não ser que
você queira dar uma de herói idiota e se matar para salvar a vida de alguém. Sabe
por que as pessoas ajudam os outros? Porque ao se ocuparem dos problemas
dos outros elas esquecem seus próprios problemas. Ver outras pessoas sofrendo
é desconfortável, então você precisa dar um jeito nisso para conseguir dormir à
noite. Ou você resolve a situação ou foge e finge que nada está acontecendo.
Basta fechar os olhos e criar um mundo cor–de–rosa para esquecer. O mundo
seria menos desagradável sem esses falsos humildes estúpidos, hipócritas e
desgraçados. Não é nada pessoal, Chika. Eu só estava pensando alto.
No entanto, a japonesa pareceu ofendida.
– Se todos só se preocupassem consigo mesmos a vida seria impossível.
– Naturalmente – comentou o australiano – por isso inventaram o capitalismo.
É o sistema perfeito. Se aproveita exatamente da sinceridade humana. Ser
egoísta é um dos atributos mais marcantes do ser humano. Se não o tivéssemos
seríamos outra coisa, mas não humanos. Você deseja negar a sua natureza?
– Que absurdo – falou a japonesa – há muitas pessoas que ajudam os outros
com sinceridade. Eu acredito no ser humano.
– Eu falo sério – falou o australiano – coisas como ódio, inveja e egoísmo são
naturais e não devem ser negados.
– Mas há também o outro lado – lembrou a japonesa – amor, compaixão...
– Há muitos lados. Todos eles são interessantes.
– É verdade que não podemos criar um mundo perfeito, porque, como a
Margarita disse, cada um tem sua própria visão do que seria a perfeição. Mas
ainda assim poderíamos torná–lo melhor. Em certas coisas as pessoas
concordam umas com as outras. Por exemplo: que é melhor a paz do que a
guerra.
– Paz é entediante – falou o australiano – na guerra há mais emoções.
– Claro – falou a chinesa – é bom morrer um pouco de vez em quando para
variar. Se fosse só vida, vida... seria muito chato.
– Idiotas – falou a japonesa – vocês podem gostar de ver a guerra ou a violência
num filme, mas duvido que queiram ser assaltados ou que uma guerra estoure
no país de vocês e o caos se instale na sua porta. O seu desejo na vida real é
diferente do seu gosto na arte.
– Nem sempre essa fronteira é tão definida assim – falou a chinesa – por isso,
além do horror, também sentimos um pouco de prazer na desgraça.
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Juliana Duarte
– Vejo que você está louca para morrer – falou o africano – quer que eu te
mate?
– Não vou te dar esse gostinho – falou a chinesa – eu sei que você me prefere
viva. A não ser que você seja um necrófilo.
– Ê, seus mórbidos, amantes de sangue e cadáveres! – comentou Félix –
Estamos no ano novo! Vamos falar de coisas felizes! Quais seus sonhos e
expectativas para esse ano maravilhoso e colorido, cheio de vida e esperança,
que está por vir? Que tal irmos ao terraço ver os fogos de artifício?
– E a fome no mundo? – perguntou a japonesa de repente – Duvido que
alguém aqui se manifeste a favor. Suponho que ao menos quanto a isso haja
consenso.
– A solução para a fome seria tocar uma bola de fogo nos Estados Unidos –
falou Chanjuan.
– Faça isso que eu arremessarei de volta para a China – falou o americano.
– A culpa pela alta de preços dos alimentos é do Jesse e do Félix que usam
milho e cana–de–açúcar para biocombustíveis – falou a chinesa.
– A culpa é sua que está comendo mais carne! – riu Félix – Pô, pessoal! Será que
não podemos esquecer a fome no mundo pelo menos no ano novo?
– Claro! – a chinesa deu um grande sorriso – Falando nisso, eu estou com fome.
Vamos comer alguma coisa?
Mas, apesar das brincadeiras, eu notei que quanto mais se aproximava da virada
do ano, eles ficavam mais sérios. Provavelmente nenhum deles esperava algo de
bom para aquele novo ano.
Era impossível para alguém como eu entender aquelas pessoas. Os vevelevis
estavam certos: vivíamos numa Torre de Babel, onde ninguém entendia
ninguém. Eu apenas estava ali, morrendo de medo. Essas eram as duas certezas
da minha vida: a minha existência e o meu medo. O medo era o que me fazia
sentir viva.
Não houve monstros, fantasmas ou criações malucas naquela noite. Houve
apenas doze rostos assustados, temendo que o ponteiro marcasse a meia–noite.
Em silêncio; era como todos estavam, quase como se pronunciar uma única
palavra fosse um pecado. Era proibido quebrar o silêncio sagrado.
Alguns foram ao terraço para ver meia dúzia de fogos de artifício, lá longe.
Outros permaneceram no apartamento, um longe do outro, ocupando–se de
seus próprios fantasmas.
Resolvi ir ao terraço. Num canto encontrei uma cena incomum: a finlandesa
conversava com uma moça numa cadeira de rodas. A bailarina estava de olhos
fechados, com um grande sorriso no rosto.
– Fiz a ela uma leal para dançar – falou Rosamond.
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Velevi
Senti uma sensação estranha quando ouvi isso. Foi um misto de emoção e
saudade.
Eu ainda me recordava dos choros sem esperança. O choro da moça que tinha
perdido seus sonhos junto com suas pernas, porque jamais poderia dançar de
novo. Mas lá estava ela... dançando! Aquilo era maravilhoso.
– Ela é a única pessoa feliz – falou Rosamond – então o mundo ainda tem
esperanças.
Eu estava triste e feliz. Não consegui decidir por um deles. Mas acho que a
tristeza foi um pouco maior. Naquele momento desejei estar comemorando o
ano novo com os meus amigos e não ali com aqueles velevis desconsolados,
tristes e perdidos.
Eu entendia o meu pequeno mundo, mas aquela era uma realidade grande
demais. Desejei não existir naquele lugar. Mas aquela ainda não era a hora de
desaparecer. Aquele ano novo não tinha nada de feliz. Nunca teve.
Quando você pensa em ano novo, inventa algumas fantasias inocentes: festas,
sorrisos, surpresas, saudades, esperanças. Alguma melancolia assim. Então você
cria imagens que te parecem graciosas: luzes, cores, estrelas, horizontes.
Qualquer forma que lhe venha à mente lhe parece bom, porque te faz feliz. E
você é tão fraco que a única coisa que sabe fazer é se agarrar desesperadamente
a essa felicidade, antes que a perca. Você precisa dela, porque é tudo o que tem.
E por que eles não tinham mais nada? Por que só eu tinha e eles não?
Porque eu sou a pessoa mais egoísta e cruel do mundo.
Pois tive inveja do sorriso da bailarina naquela noite.
Desejei arrancar aquela felicidade dela, por ser o sentimento mais puro. Me
incomodava saber que ao meu lado existia uma pureza que não era minha.
Naquela noite descobri o meu desejo mais secreto: ser uma bailarina que
possuía pernas que não sabiam dançar. Ela ficou por anos chorando e, de
repente, em seus sonhos, encontrou as pernas dançantes. Aquela foi a alegria
mais preciosa.
Eu amo a bailarina e odeio a mim mesma. Nunca fui capaz de imaginar mundos.
Mundos são grandes e eu sou pequena. Por isso me escondo debaixo do
travesseiro durante a noite: porque esse mundo me enche de medo.
Só a bailarina é capaz de dançar enquanto o temporal desaba. Só ela será capaz
de bailar no anúncio do fim.
Um dia uma bailarina apareceu nos meus sonhos. Não consegui descobrir se era
sonho ou pesadelo. E mistérios não desejam ser desvendados.
Eu inventei um sentimento novo para mim naquela madrugada: era a alegria–
tristeza. Conhece esse sentimento? É o único que é completo. Ele dá a vida e te
mata ao mesmo tempo. E o maior desejo do ser humano é morrer enquanto
nasce ou nascer enquanto morre.
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Velevi
Deus comeu o doce e não deixou nada para mim. Eu não sei nada sobre essas
coisas grandes: deuses, mundos, fantasias... Eu não sou a pessoa que cria. Sou
aquela que assiste e bate palmas, com minhas mãos pequenas. Eu não entendo
e, ainda assim, bato palmas, porque aquelas pessoas são sábias.
Nunca desejei a sabedoria. É um peso grande demais ser sábio. Ser ignorante é
mais confortável e não dói.
Antes não doía. Por que está começando a doer de repente? Será que a
ignorância está indo embora? Não, não vá! Não me deixe assim, sozinha, para
sofrer.
Quando você é sábio, aprende a dançar, mas eu sou preguiçosa demais para
mover os pés. Eu venerarei o Deus Preguiça, o Deus Sono e o Deus Doce de
Leite; porque esses são os meus deuses.
Meus pés nunca calçaram sapatilhas. Nunca calçaram nada. Então você diz: que
pés puros! Mas são pés vazios e estúpidos. Pés animais de carne que nunca
souberam qual é o gosto da água salgada do mar. A minha ignorância é minha
musa e eu a venero.
O ano novo nasceu de dentro do ovo de chocolate do coelho da Páscoa. O
coelho já não gosta de comer cenouras e sim ovos de chocolate. O chocolate é
mais doce. E você prefere o doce ao sagrado.
Mas não quero mais pensar em ovos ou bailarinas. Essas são coisas superiores.
Deus é o assunto mais mundano e o chocolate é o mais sagrado. Eu rezo para
Deus porque sou mundana. Eu como chocolate porque sou humana. Minha
humanidade cobiçada. Escolhi a natureza do animalzinho que se arrasta e come
o pó. Pois as coisas da mente são para os gigantes. E a criaturinha é esmagada
pelo peso dos cérebros.
Não quero mais pensar, por favor. Desejo somente o sono.
Deitei na minha cama agora. Não esqueça de tirar os meus sapatos. Eu não
quero correr o risco de dançar sem querer de madrugada. Odeio sapatos. Posso
odiar alguma coisa? Eu ainda não vou amar nada, porque ninguém me ensinou
como se faz. Eu achei que soubesse, mas foi só uma brincadeira.
Você aceita um chocolate? Eu aceito. Porque eu não tenho escolha.
Hmm... que delícia...!
O Coelho e o Ladrão
Queridos levis
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Juliana Duarte
Beijinhos
Chanjuan
Novamente, teve gente que achou que era bogus, mas outros alegavam que
aquela seria uma mensagem típica que a Chanjuan escreveria.
Era terça–feira, dia 1º. Aqueles quatro dias foram suficientes para muitas
divulgações. Havia uma pessoa na internet conhecida como Ladrão. Diziam que
ele era um levi muito habilidoso e era um dos que mais ajudava a divulgar as
mensagens dos velevis. Naquele dia o Afonso chegou com uma notícia:
– Descobri quem é o Ladrão! É o cara que enfrentou o Félix no torneio de
veteranos do campeonato nacional e ficou em segundo lugar. O nome dele é
Estéfano. Ele ficou em quarto no campeonato dos amadores do mundial,
acredita?
O Ladrão e o Coelho estavam se tornando os informantes mais populares. Eles
tinham combinado um encontro com todos os levis brasilienses. Todos iriam,
até a Tábata. Eu seria a única que permaneceria no prédio. Afinal, a Ratinha
jamais poderia ser exposta. Senti–me como uma princesa delicada trancada num
castelo. Só que eu não estava na torre mais alta. Naquela torre estavam os
“deuses” que a Ratinha de Sangue protegia. Embora eu soubesse que uma
ratinha tão inútil como eu não tivesse forças para proteger ninguém.
Na quarta–feira pela manhã, antes de saírem para o encontro, a Jéssica sugeriu
que eu ficasse no apartamento deles usando o computador para checar as
notícias. Enquanto eu estava sozinha, depois das minhas tentativas frustradas de
usar aquele computador complicado, comecei a pensar na segunda mensagem
da chinesa.
“Imaginem o mundo perfeito”.
Para que criar mais coisas se Deus já tinha feito tudo perfeito? Bastava viver e
desfrutar das criações já prontas: olhar as paisagens lindas, comer as comidas
boas... não havia mais nada a ser criado. O mundo não precisava de mais deuses.
Será que Deus existia mesmo? Eu lembrava da teoria que a finlandesa me
explicara, que dizia que nós éramos ao mesmo tempo deuses e criações. Mas
será que fazia mesmo diferença aquelas coisas? Estávamos vivos e isso era tudo.
Os velevis diziam que vivíamos para criar. Antes eu achava que eles teriam as
respostas para todos os mistérios. Sentia que eles estavam muito acima de meros
seres humanos. Mas na madrugada de ano novo pareciam apenas sozinhos,
assustados e perdidos; quase inconsoláveis.
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Velevi
Será que para mim um mundo perfeito seria tornar–me uma velevi? Possuir livre
poder de criação e obter tudo o que eu queria num piscar de olhos. Seria
divertido um mundo assim?
Alguém bateu na porta. Eram batidas fortes e decididas. A campainha também
tocava. Quem estava tão desesperado assim? Eu levantei–me e atendi.
Era o Peter, completamente branco de pavor. Alguma coisa muito grave tinha
acontecido. Ele parecia ter corrido no caminho.
– Pegaram o Afonso e o Estéfano.
Eu não acreditei quando ouvi.
– Vieram atrás do egípcio – o Peter estava tremendo – estavam atrás do Coelho
e do Ladrão para obrigá–los a dar informações. Os levis gritavam: “Avisem a
Ratinha!” Eu fugi e corri o máximo que pude. Nunca corri tanto na vida.
Peter sentou–se no sofá e colocou a cabeça entre as mãos. Estava respirando
muito rápido, mas eu sabia que aquele suor era mais pelo nervosismo do que
pelo calor.
Eu estava apavorada. Aquilo aconteceu depressa demais! De repente. Mas não
havia outra maneira de as coisas acontecerem. Não haveria aviso algum. Seria
apenas uma surpresa e a explosão repentina. O terror que entrava sem bater na
porta.
Tinham descoberto sobre o encontro. Ficaram sabendo que os dois informantes
mais famosos estavam entre eles. É claro que alguém havia lido as conversas na
internet. Encontro dos levis brasilienses! Agora essa idéia me parecia tão
estúpida. Era óbvio que iriam pegá–los. Mas por que, antes de aquilo acontecer,
a idéia pareceu tão genial?
– Onde foi o encontro? – perguntei, com urgência.
– Perto do Congresso Nacional. Mas para onde levaram os dois, eu não sei.
Disseram que só iam liberá–los quando o egípcio aparecesse lá. Mas pelo jeito,
nesse meio tempo eles vão tentar obter informações dos dois... não quero nem
pensar como.
Aquilo era uma tragédia. Era um pesadelo. Não podia estar acontecendo de
verdade. Não era mais um show de levis. Agora era o mundo real: um show de
horrores.
– Não saia daqui. Eu vou comunicar os velevis urgentemente.
– Por favor, faça isso rápido – o Peter mal conseguia falar de tanto nervosismo
– se vocês demorarem...
Não precisei ouvir o resto da frase. Saí do apartamento e subi as escadas, em
disparada. Toquei a campainha do apartamento do satanista uma, duas, três,
quatro vezes seguidas. Ele mesmo atendeu.
– Preciso falar com os velevis urgentemente!
Ele me deixou entrar. Logo os seis velevis apareceram na sala.
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Juliana Duarte
– Capturaram um amigo meu e outro levi. Estão atrás do egípcio. Não vão
liberá–los até que ele apareça no Congresso Nacional.
Os velevis me fitaram com uma expressão de choque.
– Eu falei para não os envolverem nisso! – falou o africano – Esse era um
assunto para nós resolvermos. Vocês sabiam que isso ia acontecer.
– Não tem jeito – falou o egípcio – vou ter que ir até lá.
– Vai se entregar, seu idiota? – perguntou o australiano.
– Acha que me sinto bem sabendo que duas pessoas estão prestes a serem
torturadas por minha causa?
– Não interessa como você se sente – retrucou o australiano.
– Se fosse apenas a minha pele em jogo, eu arriscava tudo.
– Você vai ficar aqui, calado. Se for até lá significa que os levis fracassaram.
– Os seus escudos humanos são pessoas que sentem dor e podem morrer. Se eu
não fizer nada, não seria muito diferente de aceitar matar a mando do governo.
– Então você quer se sacrificar por todos? – perguntou o africano – Uma
atitude nobre, mas sugiro que não aja por impulso. Eu não vou ficar no seu
caminho se você decidir ir, mas não faça nada estúpido para não se arrepender
depois.
– Ao menos quando eu chegar ao Cairo, façam o favor de não incitar os levis
egípcios a me defenderem. Eles vão se arriscar inutilmente. Não há o que ser
feito.
A campainha tocou. Todos os velevis imediatamente se calaram.
– Abram a porta. Somos nós.
Era a voz da Rosamond. Eu estava aliviada. Que susto! Ainda assim, pediram
para que o satanista abrisse a porta para se certificar. Estavam todas as seis ali.
Elas entraram.
– Vocês estão nos atrapalhando! – reclamou a chinesa – Estamos tentando
treinar. Precisamos nos concentrar. Então poderiam fazer o favor de ficar
quietos por um minuto?
– Estão atrás do Thutmose – falou Félix – Capturaram dois levis e só vão soltá–
los quando ele aparecer no Congresso Nacional.
Aquela notícia pegou todas de surpresa. Elas nos fitavam com espanto.
– Você não está pensando em ir lá, está? – perguntou a chinesa.
– Eu vou – respondeu o egípcio – e depois dessa, tentem não envolver mais os
outros daqui para frente. Deixem os levis em paz.
– Eles querem ajudar – falou a finlandesa – precisamos confiar um no outro.
– Esse seu discurso não me convence – falou o egípcio – o que você acabou de
dizer foi: “Já que eles querem, deixem que se matem por nós”. Você sabe que
foi culpa nossa ter anunciado. Agora precisamos assumir a responsabilidade. Foi
a pior coisa essa divulgação.
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Velevi
– Eu também acho que foi uma grande bobagem – falou o africano – vamos
acabar com isso e cada um volta para o seu país, como deveria ser desde o
começo.
– Não! – falou a chinesa, horrorizada – Que loucura! Eu não vou voltar nem
morta!
– Mesmo que dez pessoas aceitem se matar por sua causa? – perguntou o
egípcio – Menos que isso já seria motivo suficiente para você reconsiderar o que
acabou de dizer.
– Vocês pretendem deixá–lo ir? – perguntou o australiano – Se um de nós for
embora, tudo acaba.
– Eu não tenho mais tempo a perder! – o egípcio elevou a voz de repente – Saia
da minha frente.
Eu me assustei. Ele estava muito sério. Fiquei ainda mais espantada quando vi o
australiano obedecê–lo e dar passagem a ele. O egípcio saiu pela porta.
Será que ele sabia chegar sozinho até o Congresso Nacional? O evento não
tinha sido muito longe de lá. Ele só não poderia demorar demais para encontrar.
– Isso só aconteceu por causa da divulgação precipitada de vocês – falou o
africano.
– Eu não me dei conta que isso poderia acontecer – confessou a finlandesa.
– Não se deu conta? Você só pode estar brincando.
– Eu sabia que seria perigoso que eles se envolvessem, mas eu não tinha
pensado numa situação como essa.
– É por isso que as pessoas pensam antes de tomar uma decisão importante –
falou o africano – diferente de vocês que simplesmente decidiram tudo de uma
hora para a outra. Principalmente você, Chanjuan. Você sempre é a primeira a
se fazer de super–heroína e decidir tudo em cinco segundos, fingindo que não
dá a mínima.
Era a primeira vez que eu via o africano chamar a chinesa pelo nome. Ela
também pareceu surpresa quando ele se dirigiu a ela.
– Como se você tivesse contribuído muito com idéias – retrucou Chanjuan – até
parece que você se preocupa com os levis.
– Se algo assim acontecer de novo, eu não duvido que muitos aqui tomem a
mesma decisão do Thutmose – falou o americano – Hoje ficou clara a falha do
envolvimento dos levis. Eles são fracos demais para nos defenderem. Sequer são
capazes de defender a si mesmos.
– Então você acha que eles são um peso para nós? – perguntou a finlandesa.
– Eu acho que você não tem o direito de brincar com a vida e a segurança de
quem não tem nada a ver com o assunto. E não venha com essa de que eles
concordaram em ajudar. Depois da mensagem dramática da Chanjuan, qualquer
um concordaria. Eles querem ser heróis e estão dispostos a se matar por isso.
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Velevi
Aquele dia terminou num silêncio perturbador. Todos estavam chocados para
falar qualquer coisa. Por fim, a Tábata chorou no ombro da Jéssica. Achei que
talvez fosse um exagero chorar, mas... será que, além das cenas tensas que ela
presenciou e do terror da espera por Afonso, também foi por causa do egípcio?
Ela tinha dito que ficara com ele num tom muito casual, mas talvez ela gostasse
dele de verdade. Eu sabia muito pouco sobre as pessoas; e principalmente sobre
meus amigos.
A Velha Louca
Levis
Um de nós foi capturado. Thutmose pediu para que os levis egípcios não se
arrisquem, pois é perigoso.
Pedimos para que tenham muito cuidado agora e não se exponham.
À Imaginação
Chanjuan
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Velevi
espiar para ver se eu enxergava alguma coisa. Daquela distância não deveria ser
tão difícil.
– Mas que atrevida! Essa menina está tentando espiar a minha tela da mente.
Eu levei um susto. Ela era como os velevis, que sentiam quando alguém estava
tentando observar! O meu rosto ficou vermelho.
– Você é muito ousada. Mas eu gosto de pessoas assim. Coragem é o que falta
hoje em dia. Claro que a maioria só possui petulância para xeretar a vida dos
outros, mas isso é diferente. Em troca da sua coragem, vou te mostrar uma
coisa.
Então em vez de ser xingada eu ganharia um prêmio? Que sorte!
Fechei os olhos. Concentrei–me para mergulhar.
Era um campo infinito, repleto de flores coloridas e belíssimas. A graciosidade
repousava na simplicidade. Soprava uma brisa fresca e aquele clima estava
agradável. Talvez um dia eu pudesse criar um mundo assim para mim. O lugar
ao qual eu pertencia.
Será que eu deveria criar o meu próprio quebra–cabeça? Um lugar para encaixar
a mim mesma. Até eu esquecia a minha própria presença, calada e apagada. Mas
a velhinha notou. Ela me viu lá e criou um mundo só para mim. Como eu a
amava. Como ela era piedosa. Foi então que tudo mudou.
Não havia mais campo florido. Um vendaval varreu as flores e todas elas foram
sugadas pelos céus em meio a um furacão. Havia um redemoinho colorido. A
chuva iniciou–se quando o céu tornou–se negro. As flores foram derramadas e
caíam como setas assassinas. Elas matavam a terra e a envenenavam.
Eu sentia que aqueles velhinhos eram cheios de profecias. Eles eram capazes de
realizar uma conexão entre a vida e a morte, o passado e o presente. Sabiam
coisas que os outros desconheciam. Sentiam o mundo de uma maneira
diferente. Era como uma grande força. Ninguém mais seria capaz de
compreender essa força que dominava o tempo. Quando você domina o tempo,
se torna senhor do universo. Aquela calma, a sabedoria, o silencioso punho
divino. Eles estavam mais perto de Deus do que nenhum outro.
O velho campo de flores se tornou uma praia tranqüila e pacífica. Avistei uma
senhora recolhendo pedrinhas. Com elas, formava um desenho na areia. Era o
desenho de uma flor, que a onda do mar veio buscar. A onda cobriu a flor e ela
desapareceu na terra molhada. Aquela praia, que eu jamais enxerguei com meus
olhos em vida, era bela. Era simples e havia som de gaivotas. Por que aquilo
acalmava tanto? Eu também desejava reunir as minhas próprias pedrinhas e
formar a minha arte naquela terra.
Tudo desapareceu. Foi um pouco triste. Queria ficar na praia um pouco mais.
– Aposto que gosta de praias – observou a velhinha.
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Juliana Duarte
“Adivinhou!” pensei, impressionada. Mas como ela conseguia fazer tudo aquilo
mesmo sem ser uma velevi? Para mim foi suficientemente realista.
– Lindo, vó! – falou Rosamond.
– Já ouviram falar numa pessoa engraçada? Ele se chama “O Tolo”.
Ela levantou–se lentamente e retirou um baralho de uma gaveta. Pegou uma das
cartas e mostrou a nós. Nela havia a figura de um homem numa praia
carregando um saco nas costas. Ele estava acompanhado por um cachorro.
– O tolo continua carregando o saco pesado até o fim da vida – falou a velhinha
– ele está cansado, mas teima em continuar a carregar o mesmo saco cheio de
pedras. Por que ele faz essa bobagem? Ele pode se poupar de uma boa dor nas
costas se largar o saco. Pode aproveitar aquelas pedras velhas e deixar uma arte
para trás antes de prosseguir a caminhada.
– Que arte? – perguntou a sueca, interessada.
– Talvez possa contar a história da sua vida, caso não tenha uma idéia melhor.
– Onde ele conseguiu esse saco pesado? – perguntou a japonesa – Como
acumulou tantas pedras?
– As pedras são muito brilhantes e bonitas, por isso ele as recolhe o tempo todo
por onde passa. Mas quando você fica velho a sua visão começa a funcionar
bem melhor que antes, sabiam? Então ele vê, à luz do sol, que aquelas pedras
brilhantes eram apenas pedregulhos como quaisquer outros. Nesse momento ele
deve tomar a decisão de largá–las por lá, antes que seu reumatismo piore.
– Onde ele está indo? – perguntou Rosamond.
– Depois de caminhar tanto, merece um banho de mar. E pedras podem
atrapalhar bastante na hora de nadar. Eu não gostaria de nadar com um saco
amarrado nas costas.
– Ele não sente saudade do campo de flores? – perguntou a chinesa.
– É só outro pedregulho pesado! – falou a velhinha – Que graça teria ficar
parado no campo, como uma estátua, para ser admirado? Não, não. Se você
deseja tomar um banho de mar tranqüilo, não quer ser incomodado. Não
precisa de ninguém olhando. Que olhem para as pedras deixadas para trás. Você
deixou a beleza das flores lá e se livrou dela. Mas não falemos de flores agora.
Falemos dos pedregulhos que vocês estão carregando. Pela cara de vocês,
parece que seus reumatismos são piores que os meus.
Esperta. Esperta demais. Sinceramente, eu me senti uma burra perto dela.
– Está pesado? – perguntou a velhinha – por que não se livram disso logo?
– Alguém seria atingido pela pedra – respondeu Rosamond.
– Então continuam carregando o fardo do mundo inteiro nas costas. Acabaram
por se tornar bons carregadores de pedras. Não sei se há algum futuro na
profissão de vocês. Vou contar outra história. Dessa vez será a história do meu
nome.
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– Claro que será. Por que desejam se livrar de algo tão agradável como a culpa?
– Acho que me assusto só de pensar no que posso fazer. Mas até agora não
fizemos nada, por medo.
– Quando a confusão começar de verdade você vai se livrar dele também –
falou a velhinha – mas não se preocupe em livrar–se de algo delicioso assim, tão
cedo. O medo também proporciona boas risadas. Então aproveite enquanto o
possui. Depois que não mais o possuir, vai desejar não tê–lo perdido.
Aquilo soava como outra profecia.
– Você gosta do caos? – perguntou a sueca.
– Ele não te agrada?
– Não gosto quando não tenho controle sobre ele.
– Mas então não seria caos – falou a velhinha – seria como enrolar um novelo
de lã todo bagunçado que seu gatinho insiste em desfiar. O caos é livre. Não
possui senhor e é indomável. Eis seu encanto.
– Isso é perigoso – falou Rosamond – não desejo que aconteça. Preciso usar
minha levi para impedir.
– Você não pode ter o controle de tudo, sabia? Se contiver a fúria da natureza
por muito tempo, um dia ela explodirá. Você ainda tem seus dois olhos. Então
ainda pode assistir ao espetáculo.
Ela falava num tom como se a situação lhe agradasse. Ela queria que
acontecesse; não se importava que explodisse a guerra, contanto que as armas
fossem belas e elegantes: pedras de flores. Mas ela já possuía seu mundo
perfeito. Eu não teria para onde fugir.
Aquela senhora não teria mais conselhos para dar. Já dera o conselho das
pedras, mas aquilo foi pesado demais para carregar. Quando nos despedimos e
ela nos deu um último sorriso, eu percebi: aquela velhinha não era apenas louca.
Ela era cruel.
A Evolução do Mundo
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Eles estavam atrás dos levis, para descobrir minha localização. Mas podiam
descobrir muito mais que isso.
– Parece que dessa vez estão atrás do nosso – falou Peter.
Do Félix! Mas não importava de quem estavam atrás. Naquele momento todos
corriam perigo.
– Preciso falar urgentemente com as irmãs. Não esperem por mim!
E eu subi as escadas correndo, no mesmo instante, sem nem olhar para trás.
Claro que as irmãs eram só uma desculpa para justificar o fato de eu estar
subindo as escadas em vez de descer. Mas não fazia a menor diferença.
Meu coração estava quase cometendo suicídio, de tão rápido que saltava. Eu
estava suando e tremendo tanto que minhas pernas tropeçavam ao subir os
lances de escadas.
Finalmente cheguei ao quinto andar. Apertei a campainha dos dois
apartamentos. Quando o satanista e a bailarina abriram a porta, mandei chamar
todo mundo. Como não poderíamos ficar conversando no corredor, pedi para
que todas as meninas entrassem no apartamento do satanista. Eu não queria
colocar a bailarina em risco.
– Eu não posso entrar lá! Estou de pijamas! – reclamou a chinesa.
Todas elas estavam de pijamas. A chinesa vestia uma camisola curtíssima e
decotada, alegando que estava morrendo de calor.
– Eles estão no prédio! Entrem rápido! Vocês não podem ficar no corredor!
Ao ouvirem isso, as seis entraram imediatamente no apartamento do satanista e
trancaram a porta. Reunimos todos na sala.
– Estão atrás de um amigo meu para obter informações minhas, mas eles
podem checar todos os apartamentos. Estão atrás do brasileiro.
– Estava demorando – falou Félix – Já estava estranhando que, estando no meu
país, tivessem atrasado tanto para me procurar. Posso servir de isca antes que
subam aqui.
Não tinha jeito de fugir. Claro que iam perceber onze pessoas descendo as
escadas.
– Ah, mais um mártir – falou o australiano – fique aqui.
– Não torne a situação ainda pior – falou o africano – deixe que ele faça como
quer.
Ninguém queria que o brasileiro fosse, mas seria ainda pior se todos
começassem a protestar. Os levis do prédio também corriam risco. O
australiano não insistiu. O brasileiro dirigiu–se até a porta. Mas antes que ele
saísse, Rosamond foi até lá e abraçou–o.
Era meio triste que se separassem assim, de repente. E eu não deixava de
pensar, até mesmo numa situação séria como aquela: todos tinham namorados;
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