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BEBIDA À LUZ DOS REFORMADORES

A questão da bebida é tratada no primeiro catecismo cristão de que se tem registro, a Didaquê,
do primeiro século. Ali, fica claro o uso livre do vinho, seja na eucaristia ou no consumo
cotidiano dos irmãos. De fato, havia até mesmo uma instrução determinando a existência de
um reserva da bebida da comunidade para os profetas visitantes. Clemente de Alexandria (que
viveu aproximadamente entre os anos 150 e 215 da Era Cristã) julgava absolutamente justo ao
homem consumir a bebida para o seu relaxamento e defendeu fortemente a presença
obrigatória do vinho na Ceia do Senhor. O fim do Império Romano, no século 5, fez surgir o
modelo econômico feudal, no qual os mosteiros, abadias e outras estruturas religiosas
passaram a produzir os seus víveres – e o vinho era item fundamental, não apenas na dieta,
mas para as celebrações religiosas. A cerveja também era produzida e largamente consumida
pelos religiosos. Tanto, que a Igreja relacionou diversos santos à produção do álcool, como
São Adriano e São Armando – padroeiros dos cervejeiros e dos donos de taverna – e São
Martinho e São Vicente, considerados protetores do vinho e dos vinicultores.

A Reforma Protestante é marcada pelo retorno às Escrituras, mas também pelo esforço dos
reformadores em romper com as tradições católicas o quanto fosse possível, estabelecendo
uma distância não apenas teológica, mas também cultural. Contudo, a visão dos reformadores
quanto ao consumo da bebida não recebeu novo escrutínio, ao contrário: eles doutrinaram a
Igreja a receber a bebida como uma bênção de Deus e a usufruir dela com moderação, não se
deixando dominar por ela. *Lutero consumia vinho e era conhecido como um grande bebedor
de cerveja, produzida por sua esposa, Catharina. Já João Calvino recebia como parte de seu
salário anual da Igreja Reformada suíça sete tonéis de vinho. Até os principais tratados de fé
escritos nesse período – como a Confissão belga, o Catecistmo de Heidelberg e a Confissão
de Westminster – faziam clara menção ao uso do vinho.*

E também os puritanos, sempre tão associados a um padrão frugal e conservador de


comportamento, não dispensavam uma caneca. O navio Mayflower, que os trouxe ao novo
mundo, carregava mais cerveja do que água – quase 30 mil da bebida. E, ao desembarcarem,
em Plymouth Rock, terra que no futuro pertenceria aos Estados Unidos da América, não
construíram em primeiro lugar uma vila ou uma capela, e sim, uma cervejaria. Increase Mather,
clérigo renomado, presidente da Universidade de Harvard e protagonista dos célebres
julgamentos relacionados a bruxaria em Salem, resume o ponto de vista dos puritanos sobre o
tema em seu sermão Ai dos bêbados, de 1673: “A bebida é em si uma criação pura e boa de
Deus, e deve ser recebida com gratidão, mas o abuso de bebida é de Satanás; o vinho é de
Deus, mas o bêbado é do diabo.”

O movimento metodista nas Ilhas Britânicas marca o início da mudança da visão da igreja em
relação ao consumo do álcool. O célebre evangelista John Wesley, no século 18, foi um dos
primeiros a se insurgir contra os excessos de bebida entre os crentes, e também pioneiro na
articulação de um movimento de proibição do seu uso. Em seus sermões, Wesley reprovava o
uso não-medicinal de bebidas destiladas, como conhaque e uísque, e dizia que muitos
destiladores que vendiam seus produtos indiscriminadamente não eram nada mais do que
“envenenadores e assassinos amaldiçoados por Deus”. Novamente, o contexto histórico-
cultural não deve ser ignorado. À época, com o advento da Revolução Industrial, as cidades
não ofereciam infraestrutura suficiente para atender às demandas da população que afluía do
campo para trabalhar nas fábricas. Faltava água potável e as bebidas destiladas e fermentadas
eram largamente usadas. O ambiente de miséria, somado à embriaguez endêmica, resultou em
um grave problema social.

O movimento de temperança surge, em princípio, como reação da Igreja ao sério problema de


saúde pública provocado pelo alcoolismo nos Estados Unidos. A maioria dos estudiosos
concorda que o marco zero foi a publicação, em 1805, de um folheto de autoria do médico
Benjamin Rush tratando dos males do álcool. Pela primeira vez, foi introduzida a noção de vício
potencial inerente ao consumo de bebidas destiladas e o autor prescreve a abstinência como
única cura. Rush, presbiteriano, foi um dos signatários da Declaração de Independência
americana e fundador da Sociedade Bíblica da Filadélfia. A relevância do autor explica o
impacto que a sua obra recebeu na sociedade.

O arcebispo episcopal William Mikler, do Apostolado para as Nações, com sede nos Estados
Unidos e igrejas em todo o mundo, incluindo o Brasil – país que visita com regularidade –,
lembra que este não era um movimento apenas religioso. “Envolvia uma grande disputa por
espaço político e, aos poucos, sob o entulho do farisaísmo, foi tomando conta da Igreja,
chegando ao ponto de banir o vinho da Ceia do Senhor, o que vai diretamente contra a um
mandamento de Cristo.” O resultado, explica, foi a defesa do proibicionismo como política de
Estado, um dos motivos da Lei Seca – emenda à Constituição americana que proibiu a venda
e o consumo de álcool no país. O tiro acabou saindo pela culatra, aumentando o consumo no
país e estimulando as destilarias clandestinas, a exploração ilegal da indústria de bebida e o
crime organizado.

Para Mikler, a questão do alcoolismo, naturalmente, merece a atenção da Igreja, mas o grande
erro do movimento de temperança foi construir uma teologia apontando a bebida como algo
inerentemente mau, justificando, assim, a retirada do vinho da Ceia. “Isto foi uma dupla ofensa:
A Deus, que deu o vinho ao homem, e a Jesus, que escolheu este elemento para a Ceia.” Mais
tarde, quando o metodista Thomas Welsh desenvolveu um processo de tratamento do caldo
prensado da uva capaz de conservar a bebida sem promover a fermentação alcoólica – o
chamado mosto –, deu-se a substituição do vinho na comunhão.

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