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aprendiz de cozinheiro

a invasão
dos food trucks
Febre nos Estados Unidos, os restaurantes
sobre rodas começam a ganhar
espaço (e fãs) nas ruas brasileiras
Natália Spinacé

c om a experiência que tem de


cozinha, a peruana Marisabel
Woodman, de 26 anos, poderia
abrir um restaurante francês chiquér-
rimo ou um bar com menu degusta-
opção. Até o começo do ano 2000, os
food trucks ainda carregavam o estigma
de comida barata, de baixa qualidade.
Isso mudou com a crise econômica de
2008, que levou muitos restaurantes a
ção a preços exorbitantes. Casada com fechar suas portas. Sem opção, alguns
um brasileiro, Marisabel morou dois chefs investiram na velha modalidade
na moda
anos em Paris. Lá, estudou gastrono- despojada de fazer comida. a chef marisabel
mia e trabalhou num restaurante com Neste ano, mesmo sem crise, a febre Woodman (de
três estrelas do guia Michelin. Quando chegou ao Brasil. Só em São Paulo, mais lenço vermelho)
voltou ao Brasil, foi cozinhar com Alex de 300 empreendedores pediram autori- em seu food truck.
a alta gastronomia
Atala nos restaurantes D.O.M. e Dalva zação para estacionar seus food trucks. é levada à rua
e Dito. Tem um belo currículo, portan- O sucesso se repete em outros Estados.
to. Quando resolveu abrir seu negócio, Segundo o site Food Truck nas Ruas, que
Marisabel declinou da ideia de criar ajuda a localizar os carrinhos, há opções
um espaço gastronômico requintado. no Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande
Optou por cozinhar na rua. Comprou do Sul, Bahia, Brasília e Minas Gerais. cheirando a peixe frito. Os ingredien-
um caminhão e o transformou num O principal atrativo para proprietários tes para fazer os pratos costumam vir
restaurante móvel, um food truck, bati- é o preço. Incluindo o valor do veículo, pré-preparados de uma cozinha fora
zado por ela de La Peruana. Foi lá, entre cozinha e montagem, um food truck do caminhão. Marisabel deixa o peixe
cotoveladas e trombadas, dividindo o custa cerca de R$ 250 mil – mais barato cortado em saquinhos, com a quan-
espaço de 10 metros quadrados com ela que abrir um restaurante. As refeições tidade certa. Os molhos usados para
e mais três ajudantes, que aprendi a fazer saem, em média, por R$ 20. De olho temperar o peixe também já estão
um ceviche clássico – e descobri como é nesse mercado, muitos chefs tentam se todos prontos, assim como o purê de
a vida numa cozinha sobre rodas. adaptar às cozinhas apertadas. Será que batata-doce que acompanha o prato.
A ideia de Marisabel não é nova. O eu conseguiria fazer o mesmo? “O segredo é colocar o sal na medida
primeiro food truck surgiu em 1872, na Cozinhar num caminhão não é fá- certa e mexer bem, para o peixe pegar
cidade de Providence, nos Estados Uni- cil. O espaço apertado me fez esbarrar todos os gostos”, diz. Parecia fácil. Pus
dos. O dono, Walter Scott, vendia tortas nos colegas da cozinha o tempo todo. o peixe no prato e salguei. Adicionei o
e sanduíches para trabalhadores de fá- O calor da chapa e do fogão invade o coentro e a pimenta, mexi bem. Co-
bricas. Os operários precisavam de co- espaço pequeno – assim como a gor- loquei os outros ingredientes e mexi
mida barata e rápida – e os sanduíches dura que evapora das carnes e frituras. de novo. Marisabel provou, para ver
vendidos em carrinhos eram uma boa Mesmo usando uma touca, saí de lá se eu havia acertado. Exagerei no sal.

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Ceviche
“Não tem problema, é só colocar mais La peruana lida com as oscilações de humor do
limão”, disse. Enquanto me ensinava a público. Assim que terminei de fazer o
fazer ceviche, os clientes começaram a ceviche, saí correndo da cozinha. Estar
aparecer. “Gosto de ver a cara do clien- lá fora é bem mais confortável.
te, de conversar com ele”, diz Marisa- 130 g de peixe branco (robalo ou corvina) A rotina que me pareceu infernal
bel. O que para ela é motivo de alegria, 1/4 de pimenta-dedo-de-moça picada não incomoda outros estreantes na
para mim foi motivo de angústia. Não 1/4 de cebola roxa picada gastronomia. Para ter um food truck
vi nenhuma fila organizada. Normal- 2 colheres de sopa de caldo de peixe de sucesso, não é preciso ter formação
mente, as pessoas ficam amontoadas 4 limões-taiti espremidos sofisticada como Marisabel. Fui conhe-
na frente do balcão, olhando o que Sal e coentro a gosto cer a cozinha do Le Camion, que serve
você faz. Alguns continuam na fren- risotos e hambúrgueres em São Paulo.
te do balcão mesmo depois de pedir Corte o peixe em cubos de Doni Nascimento, de 44 anos, é o dono.
e atrapalham a fila. Outros se afastam 2 centímetros. Numa tigela, tempere Tinha uma carreira de mais de 20 anos
demais do food truck e obrigam o co- com sal, coentro e pimenta-dedo- na publicidade, quando mudou de pro-
zinheiro a berrar várias vezes o mesmo de-moça. Mexa bem. Adicione a fissão. Fez cursos profissionalizantes de
cebola roxa e os limões espremidos.
nome (leia as dicas de etiqueta na pró- Mexa bem. Adicione o caldo de gastronomia, estagiou em alguns res-
xima página). Espaço à parte, a princi- peixe até acertar a acidez do limão. taurantes e resolveu montar o próprio
pal diferença entre cozinhar num food Sirva com alface-americana e negócio. Apostou no food truck – e
truck e numa cozinha comum é esse rodelas de batata-doce cozida acertou. “Tenho eventos praticamente
contato direto com os clientes. Num todos os dias”, diz.
restaurante, quem lida com as exigên- Os restaurantes móveis não podem
cias e ansiedades dos clientes são os estacionar em qualquer lugar. Para pa-
garçons e gerentes. Num food truck rar na rua, é preciso uma autorização
não existe essa barreira. O cozinheiro da prefeitura. Ela normalmente é con-
faz tudo: ouve pedidos, lava louça e cedida para um ponto fixo – algo que s

Fotos: Letícia Moreira/ÉPOCA 15 de setembro de 2014 I época I 89

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aprendiz de cozinheiro
Risoto de
camarão
com tomate
seco e rúcula
Le camion
200 g de arroz arbóreo pré-cozido
2 camarões médios
40 g de tomate seco
20 g de rúcula
50 g de parmesão ralado
2 conchas de caldo de legumes
1/2 concha de caldo de camarão
Numa frigideira, coloque um
fio de óleo e os camarões
para dourar. Adicione uma
pitada de sal, retire e reserve.
Adicione o arroz arbóreo
e uma concha do caldo de
legumes aquecido. Em seguida,
adicione meia concha do caldo
de camarão aquecido. Mexa
durante um minuto. Adicione
oportunidade o tomate seco e a rúcula.
o publicitário doni Desligue o fogo e acrescente o
nascimento (de parmesão. Misture até derreter.
azul) na cozinha
do Le camion. Coloque num prato e ponha
o food truck virou os dois camarões por cima
opção de carreira

não faz sentido para os food trucks,


cujo objetivo principal é estar cada
As regras de etiqueta trabalho, esse compartimento precisa
ser esvaziado. O gás é fornecido por
hora num lugar. A solução para esse Dicas para clientes de primeira dois botijões embaixo da bancada de
impasse são os food parks, galpões que viagem nos food trucks trabalho – com um sistema para evitar
servem como estacionamento para vá- vazamentos. Depois de conhecer as ins-
Não fure fIla
rios caminhões de comida. Cada dia, o Elas não costumam ser talações, pus a touca e lavei as mãos. Fui
food truck para num deles, assim per- organizadas, mas existem. seguindo as instruções de Nascimen-
corre a cidade. Ou se instala em dife- Fique atento e não queira to. Dessa vez, não errei. Pelo menos, o
rentes eventos. “A graça é estar cada dar uma de esperto cliente não reclamou.
hora num lugar”, diz Nascimento. Mesmo com o calor, as trombadas, e
Nascimento me mostrou a estrutu- SaIa do balcão eventuais fregueses antipáticos, a experi-
ra que permite o funcionamento do Depois de fazer seu pedido, ência de estar dentro de dois food trucks
Le Camion. A cozinha segue o padrão espere ao lado. Ficar no por algumas horas foi divertida e útil,
balcão só tumultua.
da maioria dos food trucks: na parte mesmo para uma cozinheira amadora.
da frente, logo abaixo do balcão onde Não Se dIStaNcIe Aprendi a deixar alimentos pré-prontos
os clientes fazem os pedidos, ficam as Deixar o cozinheiro berrando e a só dar o acabamento na hora, uma
geladeiras. Na parte de trás, a pia, uma seu nome várias vezes boa dica para quem não tem tempo para
chapa, um fogão industrial e uma frita- não é educado – e cozinhar. Também passei a valorizar mi-
deira. Normalmente, eles também têm sua comida esfria nha cozinha. Costumava achar minha
um gerador. Em cima do food truck fica pia pequena. Quando voltei para casa,
teNha pacIêNcIa
uma caixa-d’água, que pode ter de 80 Perguntar a cada dois ela me pareceu enorme. Se, em alguns
até 300 litros. A água suja que sai da pia minutos se seu prato já centímetros de pia, consegui fazer um
vai para outro compartimento e fica está pronto é chato e risoto e um ceviche, não há nada que
armazenada. Ao fim de cada jornada de atrapalha o cozinheiro não possa fazer na minha cozinha. u

90 I época I 15 de setembro de 2014 Fotos: Letícia Moreira/ÉPOCA

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