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Iniciar esse livro com essa pergunta pode parecer um absurdo. Eventualmente pode-se ter a impressão que a
disciplina sobre a qual tudo o que será escrito a partir daqui (a história do direito) necessite de uma justificativa
para sua existência, uma desculpa para ser estudada. Que tipo de conhecimento precisa justificar -se antes de
ser estudado? A importância de um determinado ramo do saber não deve se impor por si só, sem que haja a
necessidade de maiores explicações?

Em parte essa pergunta é absurda e em parte não é.

É absurda, de um lado, porque a história do direito não deveria justificar -se como disciplina (como a filosofia do
direito ou a sociologia do direto, por exemplo, também não necessitam). Ela é dotada de uma especificidade
dentro desse saber maior - que é o saber jurídico - que des-vela aquilo que no fenômeno jurídico antes estava
encoberto (velado), como também formula perguntas (e também fornece algumas respostas) que são próprias
das suas estratégias teóricas de abordagem. A ênfase que damos na formulação de novas perguntas é
deliberadamente maior que no oferecimento de respostas, pois um saber tanto é mais instigante quanto mais
tenha capacidade de formular questões novas, às vezes inusitadas e surpreendentes, diante de uma realidade
que às vezes é sempre batida por um mesmo tipo de olhar. A história do direito, sem dúvida alguma, tem um
olhar muito próprio, muito específico e também muito penetrante, que não se confunde com o olhar filosófico,
sociológico ou com o olhar das disciplinas dogmát icas - embora com elas (e também com outras disciplinas) se
cruze constantemente.

Deve-se desde logo dizer ainda que a história do direito também é uma abordagem teórica que se localiza
dentro dos limites da disciplina da  (enquanto saber geral que é cultivado de modo "científico" a partir
do século XIX, mas que tem suas raízes no grego Heródoto). Não se pode fazer história do direito sem prestar
atenção nas contribuições, nas pesquisas, nas abordagens e nas metodologias específicas que os historiad ores
"gerais" utilizam - às vezes com um refinamento exemplar - dentro das suas subáreas específicas. Afinal, se o
direito está presente na sociedade e se ele é histórico, não se pode desprender sua análise no passado da
análise da própria sociedade onde ele se insere e onde ele dialoga com a política, com a cultura, com a
economia, com a sociedade, etc..

Mas aquela pergunta (pra quê história do direito?), se assenta, em parte, em premissas que nada têm de
absurdo. Em primeiro lugar porque todas as discipli nas - de modo explícito ou não - têm seus estatutos e
credenciais "científicos" vinculados com vicissitudes que são eminentemente históricas e, portanto, ligadas a
uma provisoriedade e a uma "mundanidade". Não há nenhuma razão supra-histórica que, de um modo
metafísico, imponha um determinado ramo do saber como o "privilegiado" em um espaço e em um tempo.
Nenhum saber se impõe por si mesmo, pois, afinal, os saberes também fazem parte do jogo de forças que
compõe o mundo histórico em que vivemos. Isso vale p ara as ciências em geral e para o conhecimento jurídico
em particular. Ninguém melhor do que o próprio historiador pode perceber como o privilégio que em
determinada época se dá a uma dada abordagem ou a uma determinada "ciência" (ou a um ramo seu) é ligad o
a práticas, a lutas, a interesses, e, enfim, a fatores eminentemente históricos (portanto mundanamente
provisórios) que nada têm a ver com a imposição "em si" de alguma idéia intrinsecamente ligada à essência
dessa "ciência". Isso implicaria em ver atuan do na história algo que está fora dessa mesma história. Por isso,
fazer a pergunta "por quê história do direito" é de certo modo entrar no palco histórico das vicissitudes que
elegem privilégios e preferências ao mesmo tempo em que definem exclusões e desp rezos nos ramos do saber.

Em segundo lugar aquela pergunta não é de todo despropositada porque que os juristas em geral - e os juristas
brasileiros em particular - realmente não estão acostumados a olhar para o fenômeno jurídico como algo a ser
compreendido em perspectiva temporal. O passado não é visto como algo que tenha tanto a ensinar ao
presente, ao menos ao presente jurídico. O senso comum dos juristas (fala -se evidentemente de uma maneira
generalizadora) gosta de pensar que o direito atual, o direito moderno, é o ápice de todas as elaborações
jurídicas de todas as civilizações precedentes, já que é a única ungida com a água benta da "racionalidade". O
direito moderno freqüentemente é visto como o resultado final de uma evolução histórica onde tudo aqu ilo que
era bom no passado vai sendo sabiamente assimilado e decantado, de modo a transformar o nosso direito
vigente na mais sofisticada e elaborada maneira de abordar o fenômeno jurídico.

E, geralmente, quando se fala de algo bom no passado, pensa-se no direito romano e nos seus respectivos
institutos jurídicos que tanto legaram ao nosso direito moderno (especialmente ao direito privado moderno).
Geralmente, porém, pensa-se no direito romano como algo que contém em si mesmo um núcleo precioso, de
juridicidade "pura", e que poderia ser aplicada diretamente (ou após algumas poucas mediações) na nossa
realidade moderna. Evidentemente que esse modo de observar o direito romano (muito difundido o Brasil)
ignora o modo como ele foi filtrado e recepcionado pelo direito moderno, a ponto de muitas vezes transformá -lo
e diluí-lo nesse mesmo direito moderno. Como diz Paolo Cappellini, não se deve olhar a relação do direito
romano com o direito moderno somente em termos de uma forçada   , mas sobretudo deve-se olhá-
la nas cesuras, nas rupturas e nas mudanças de rota, pois, afinal, os juristas europeus olhavam em direção à
antiguidade, mas com olhos de µmodernos'[1]. E se assim o fizermos - isto é, " o direito romano -
certamente ele se apresentará com maior riqueza, com uma instigante força crítica e relativizadora (o que só se
pode fazer, todavia, a partir da análise das características da sociedade roma na que acolhe o seu magnífico
direito), e não será somente um saber passado que só serve para ser observado na medida em que se pode ser
espelhado e refletido nos institutos jurídicos vigentes, buscando justificar, dessa forma nem sempre
convincente, a sua atual existência. De fato, infelizmente o direito romano (que é uma disciplina
importantíssima na formação do jurista, e que desafortunadamente vem sendo crescentemente desvalorizada
na formação dos jovens bacharéis) é muitas vezes ensinado como se fosse um complemento ao estudo do
direito privado vigente, uma espécie de demonstração de como o direito atual, afinal de contas, soube
aproveitar muito bem o velho legado latino.

Dessa forma, se excetuarmos esse aproveitamento duvidoso que se faz do direito romano, pouca coisa sobra
de todo o passado histórico no trabalho intelectual que fazem os juristas na compreensão do direito.
Geralmente a idade média é solenemente desprezada como o "período negro" da história do ocidente - e que
nada tem a nos ensinar de útil - e toda a conflitualidade que caracteriza a modernidade desde seus primórdios
é vista como um processo raso e tranqüilo em que a razão vai se impondo até chegar placidamente na
sofisticação da elaboração jurídica moderna. E isso pra não falar do modo como se ignoram as especificidades
da história brasileira (iniciada por um processo de conquista e de exploração, pela eliminação dos índios e pela
mancha da escravidão, que deixou mais sinais nas nossas instituições e em nosso direito do que se pode
inicialmente suspeitar) na compreensão do direito.

Certamente existem razões históricas para isso (que o presente trabalho, todavia, não tem a intenção de
enfrentar). De todo modo, esse cenário demonstra como é necessário perquirir as razões da presença ou da
ausência da história do direito como saber no ensino jurídico. Mas convém desde logo avançar na direção da
complexidade que um questionamento sobre a história do direito pode suscitar.

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Em geral, a µhistória do direito' é tomada como um conjunto de saberes com uma compleição bem definida e
definível, como algo dado, como algo que talvez nem mereça uma discussão sob um crivo teórico -
metodológico. Enfim, pode-se pensar que quando falamos de História do Direito já sabemos do que se trata.

De fato, o nosso senso comum teórico[2] costuma definir rapidamente o que significa esta disciplina da
seguinte forma: se não for uma ciência, um saber (no sentido de "a disciplina da história do direito", ou "a
história do direito ensina que...") certamente que ela vai significar o #$ deste saber, que é precisamente o
passado jurídico. Ou, em outros termos: neste segundo sentido, a história do direito seria o conjunto de
eventos e fatos que compõe o passado jurídico da humanidade, reconstituídos através de procedimentos
controlados (se não mesmo objetivos), hauridos do ramo das ciências humanas (em verdade teoricamente
muito tumultuoso) que é a "ciência da história". A história do direito seria assim definida rápida e
tranqüilamente, pois parece haver pouco a ser discutido ante a certeza de que a história do direito é, por um
lado, o ramo do conhecimento que se ocupa do passado jurídico, e, por outro, ela é, afinal, o conjunto dos
eventos que compõe este passado.

Uma reflexão mais detida, todavia, demonstraria que as coisas não se passam bem assim. Um filósofo
"idealista" diria que os fatos e eventos não têm uma m aterialidade exterior ao pensamento, mas que existem
somente idéias destes fatos. Tudo o que temos, para esta forma de analisar o mundo, não passaria de um
conjunto de concepções mentais. A partir deste tipo de reflexão, poderíamos então dizer que o passado do
direito (entendido como o conjunto de eventos concretos e materiais) não existe; o que existem são somente
idéias ou representações sobre eles. A história do direito, assim, não existiria; haveria apenas elaborações
subjetivas sobre o passado do direi to, tornadas possíveis através da consciência.

Por outro lado, se pensarmos no conceito de história do direito como saber (e não como objeto deste saber), e
se o saber histórico, como dito acima, fosse "o conjunto de fatos" do passado humano, haveria ainda outra
possibilidade teórica - sem precisar sermos necessariamente idealistas - que consistiria simplesmente em
duvidar dos critérios tradicionais de escolha dos "fatos" que compõem o saber histórico jurídico. Sim, pois se o
saber histórico é a recolha de alguns eventos do passado humano, e, afinal de contas, a cada minuto ocorrem
simultaneamente milhões de fatos de ordem e natureza variadas, devemos perguntar que critérios justificam a
escolha de alguns eventos para ingressarem na galeria da história, e não de outros. Quais os meios de julgar
que alguns fatos são "históricos" (ou ao menos dignos de registro histórico) e outros não?

Se não nos contentarmos com a fácil resposta (que será adiante analisada) de que são dignos de registro os
"grandes" eventos, nomes e datas (no caso da história do direito, os grandes eventos legislativos e as grandes
escolas jurídicas), percebemos que a resposta ao questionamento do significado da história do direito fica ainda
mais difícil. E tudo isto para não falarmos na poss ibilidade de simplesmente proscrever os fatos da ciência da
história (que seriam, nas palavras de Fernand Braudel, uma mera "agitação de superfície (...) de oscilações
breves, rápidas e nervosas"[3]), substituindo-os, como fizeram Lucien Febvre e Marc Bloch (como também, a
rigor, boa parte da historiografia francesa educada pela Escola dos "Annales"[4]) pelas análises estruturais de
longa duração, onde os eventos perdem importância e dignidade. Afinal, para esta importante corrente de
historiografia francesa, o nível factual é o mais pobre dentro da análise histórica, deven do ser privilegiadas as
visões problematizantes em termos de conjuntura e estrutura.
Até aqui se pode notar como aquela conclusão trivial de que a história do direito seria, afinal, a simples
"reconstituição dos fatos jurídicos do passado" pode ser severamente questionada e duvidada por vários
ângulos. Uma definição ou explicação rápida da história do direito se torna, como se pode ver, algo
tremendamente problemático: afinal, não há um único caminho para o conhecimento histórico (como não pode
haver um único caminho para o saber).

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Tudo isso demonstra que pensar História do Direito implica necessariamente em uma série de interações
teórico-metodológicas que a primeira interpretação ingênua passa por cima. Não há aproximação a um objeto
do saber sem o uso de um instrumental teórico -metodológico. Michel Löwy[5] faz a esse respeito uma metáfora
interessante: comparar a atividade de um cientista com a atividade de um pintor. O  , que tem diante de
si uma paisagem a ser retratada, seria o  , que também tem o seu objeto (a sua paisagem) a
considerar. A %&para o pintor seria, pois, o correspondente do #$para o cientista. Mas fundamental
para o cientista é também um belvedere, um #', de onde ele possa vislumbrar a paisagem de um
modo mais inspirador (quiçá mais abrangente) para retratar em seu quadro. Não é possível pintar um quadro
de uma paisagem sem que o pintor se coloque em uma determinada altura e em uma perspectiva, que
constituirão o observatório de onde a paisagem será retratada. Pois bem: esse #' corresponde à
 do cientista, pois sem um determinado ponto de observação (com uma altura e perspectiva dadas) o seu
objeto não poderá ser alcançado. Não existe ciência sem uma estratégia teórica que busque alcançá-lo. Assim
como para o pintor existem vários observatórios possíveis (e é justo pensar que em alguns desses
observatórios a paisagem se mostrará mais do que em outros), para o cientista existem diversas teorias
possíveis, que levarão a diferentes níveis de desvelamento de seu objeto [6].

Se o cientista (pintor), diante de seu objeto (paisagem), necessita de uma teoria (observatório) sem o qual seu
trabalho não pode se desenvolver, há que se colocar logicamente a conclusão de que a escolha da teoria irá
implicar não só na escolha de um determinado caminho, mas também no atingimento de um resultado diverso.

Por isso, ao pensar a história do direito devemos antes de tudo colocar a questão teórico -metodológica dessa
disciplina. Como qualquer ramo do saber, não se pode fazer história do direito sem disciplina teórica, sem um
questionamento de fundamentos e de métodos. Nesse mesmo sentido Hespanha sentia que "&
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Se assim não fazemos a apropriação teórica será intuitiva, logo irrefletida e, portanto, prenhe de conseqüências
teóricas e práticas indesejadas. Organizar os instrumentos teóricos da História do Direito significa portanto
capacitar todo aquele que ingressa nos limites dessa disciplina com algum instrumental que de algum modo
permita um melhor manejo com esse saber específico. Pietro Costa, com razão, adverte que   ( 
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Diante desta situação, de fato parece-nos que uma das primeiras tarefas é justamente rediscutir os
pressupostos teóricos e metodológicos desta disciplina, de modo a capacitá -la a enfrentar discussões históricas
relevantes, alterando o foco onde tradicionalmente os holofotes teóricos se dirigem. Afinal, nas palavras de
Hespanha, a "   % $ +  & & &%  &   
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Desde logo convém esclarecer que método e teoria não são a mesma coisa. A metodologia na História do
Direito, ou a metodologia na ciência de um modo geral, diz respeito aos passos a serem dados pelo cientista no
processo de constituição do seu saber. Metodologia dentro da história, assim, pode ser exemplificada com o
modo de selecionar as fontes, o modo de abordá-las e lê-las, o modo de classificá-las e organizá-las e, enfim, a
partir de tudo isso, o modo de descrevê-las. A metodologia é uma espécie de passo a passo, é o caminho que
se faz para ter um resultado de conhecimento. Já a teoria é a chave conceitual, a ferramenta que o teórico
utiliza para tratar determinado tema na ciência em geral (e na História ou Direito em particular).

É certo que essa distinção é um tanto artificial porque não se pode operar uma metodologia sem o uso de uma
certa teoria, como também não se pode manejar uma teoria sem o uso de uma certa metodologia. Há que se
perceber que na prática o manejar teórico e o manejar metodológico se confundem um pouco - embora
permaneçam sendo conceitualmente diferentes.

Dada essa diferenciação, esclarece-se desde logo que esse livro dará um privilégio à teoria, mais do que à
metodologia. A intenção é formular um discurso que contribua mais para a reflexão e compreensão teórica que
à operacionalização metodológica (embora, como se disse, às vezes isso possa se confundir até mesmo nos
argumentos que possamos desfiar mais adiante).
Finalmente, quanto a esse particular uma outra observação é obrigatória: a discussão pura e simples de teoria
e de metodologia, quando for completamente desvinculada dos propósitos do ramo do saber em questão (no
nosso caso, da história do direito), pode se tornar uma discussão até certo ponto estéril . Afinal, tanto a teoria
quanto a metodologia servem para operacionalizar um saber que não deve se esgotar nem na teoria e nem na
metodologia. O que se pretende, enfim, é que seja feita uma história do direito bem informada (ou ao menos
autoconsciente) nos seus limites teórico-metodológicos. Todavia, de outro lado, não podemos perder de vista o
fato de que a abordagem do saber específico (no caso, a µhistória do direito') não pode ser separada da
discussão teórica e metodológica que a envolve, senão de modo fictício. A diferença entre o µobjeto' do saber e
o modo como ele é apreendido é uma distinção retórica, eis que o modo como se apreende o objeto constitui,
em certa medida, esse mesmo objeto. Abordar o objeto é em certo sentido construir esse objeto. Noutras
palavras, discutir história do direito é, em cada passo e a cada momento, discutir também seus limites e
possibilidades do ponto de vista teórico e metodológico.

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Feitas todas essas ressalvas e tomadas todas as precauções, pode-se agora anunciar o caminho escolhido
nesse pequeno livro para guiar o leitor nessa problematização teórica da história. Esclarece -se desde logo que
não se fará uma "história da história" (pr ojeto tão amplo quanto infactível), mas sim um recorte muito limitado
e demarcado. Deixaremos de lado uma certa "trajetória" que habitualmente se faz, que começa na antiguidade
com Heródoto (c. 485 - c. 424 a.c.) - considerado o "pai da história", passa po r Tucídides (c. 460 - c. 400 a.c.),
Políbio (c. 200 - c. 125 a. c.), Tito Lívio (59 a.c. - 17 d.c.) e Tácito (c. 58 - c. 120 d.c.), passa pela Idade Média
de Gregório de Tours (530-594), de Joaquim de Fiori (1132-1202), percorre as eras do Renascimento e da
Ilustração de C. Salutati (1330-1406), L. Bruni (c. 1370-1444), Maquiavel (1469-1527), G. Vico (1668-1744),
Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), Rousseau (1712-1778) e Bonnot de Mably (1709-1785), até
chegar ao µpensamento histórico da Revolução Francesa', como Condorcet (1743- 1794), Destut de Tracy
(1754-1836), Augustin Thierry (1795-1856), François Guizot (1787-1874) e Thiers (1797-1877)[10].
Certamente essa é uma trajetória importante na compreensão de como foram se conformando os modos de se
fazer história e constituíram antecedentes fundamentais daquilo que, depois, viria a ser colocado dentro da
"ciência da história". Embora a reflexão sobre o significado da história, sobretudo nos autores anteriores ao
século XIX, seja muitas vezes bastante diversa daquela que se conformou a partir dali, todas essas referências
são importantes para alguém que busca uma compreensão completa da constituição da história como ramo do
saber. Todavia, esse caminho não será trilhado aqui. Opta-se, apenas, por um recorte que toma como ponto de
partida o momento em que se começou, justamente, a acreditar que se estava fazendo "ciência" da história, ou
seja, a partir do mo mento em que voltar ao passado deixava de ser, no discurso dos historiadores, algo que
fosse a busca do "exemplo" dos antepassados e passava a ser a "descrição objetiva", com enquadramento
científico, do que já aconteceu. Esse é um momento em que o estudo do passado efetivamente se
profissionaliza, passa a ocupar um lugar de dignidade em universidades, passa a revestir -se (como se verá a
seguir), junto com outras jovens ciências sociais, de uma aura "científica" capaz de atingir uma "verdade" do
mesmo modo como o faziam as já estabelecidas "ciências naturais". É também o momento em que se começa a
refletir como nunca sobre o próprio ato de fazer história - ou seja, começa a existir um discurso teórico e
metodológico sobre a disciplina. Estamos já, enfim, no século XIX, período cujas características epistêmicas
serão justamente chamadas de "Era da História"[11].

Dentro desse terreno, optamos por abordar em primeiro lugar o "positivismo" no conhecimento histórico
(sobretudo aquele oitocentista, e cientes, antes de tudo, que o próprio termo "positivismo" pode aqui dar
margens a controvérsias). Trata-se daquilo que também é conhecido por "história tradicional" ou "história
rankeana" (em alusão ao maior epígono dessa "escola", o alemão Leopold von Ranke), e que deve, ao nosso
juízo, constituir o primeiro passo desse nosso percurso não só por constituir a primeira formulação "científica"
da história (nos moldes em que o sé culo XIX definiu a "ciência"), numa tentativa efetiva de buscar
"objetividade" e dignidade teórica ao estudo do passado, mas também por ser a forma de encarar a disciplina
da história que impregnou de modo radical a cultura no Brasil e, de modo particular, impregnou a visão que os
juristas tinham (e têm) da história. Voltar a atenção a esse modo particular de se conceber a história é,
portanto, de certo modo, um acerto de contas com nossa própria consciência geral e, precisamente está aí a
maior justificati va para que neles enfoquemos nossa atenção.

A seguir nos ocuparemos das duas "escolas" historiográficas que, no consenso de praticamente todos os
estudiosos, constituem aquelas que maiores marcas deixaram no trabalho acadêmico dos historiadores ao
longo do século XX: em primeiro lugar a "Escola de annales", ou escola francesa, e em segundo lugar o
marxismo, ou materialismo histórico. É certo que enquanto a primeira foi um movimento acadêmico e
puramente historiográfico, o segundo foi algo mais amplo, que invadiu os campos de discussão filosófica,
econômica e, sobretudo, política. Ambas, todavia, trouxeram um cabedal de questões ao historiador que não
pode, de nenhum modo, ser hoje descartado. No que diz respeito ao marxismo, embora seja um tanto artificial
"separá-lo" em diversas "contribuições" disciplinares (pois não se entende que o marxismo seja "cindível", pois
dessa forma essa abordagem perde um tanto sua força argumentativa), o que se tentará fazer aqui é centrar o
foco, ciente do risco de reducionismo s, sobre a contribuição que essa corrente trouxe para a história (o núcleo
daquilo que ficou conhecido como "materialismo histórico"), pois mesmo qualquer olhar ideologicamente
desapaixonado deverá reconhecer, se tiver uma pitada de honestidade intelectual, que essa abordagem em
muito enriqueceu o olhar que a disciplina histórica pode dar ao passado.

Finalmente, outras duas abordagens (já não tão consensuais entre os historiadores, mas, ao nosso ver,
extremamente ricas de desdobramentos para a história, e em particular para a história do direito) serão
também discutidas: trata-se de algumas das contribuições específicas para o conhecimento histórico que nos
foram dadas pelos filósofos Walter Benjamin e Michel Foucault. Não se trata de nenhuma nova "interpret ação"
do pensamento desses autores e nem mesmo de uma µsíntese' de suas reflexões (o que seria demasiadamente
pretensioso), mas pura e simplesmente um recorte de algumas questões (que entendemos sejam relevantes)
que são, a nosso ver, centrais para aqueles que se ocupam de olhar para o passado humano (incluídos, pois,
aqueles que olham para o passado do direito humano). Àqueles que acusarem essas específicas abordagens de
serem "excessivamente filosóficas" para o campo dos historiadores, eu responderia de a ntemão que a história
será tanto mais capacitada metodologicamente quanto mais capaz for de dialogar com outras ciências sociais e
com a filosofia (contribuições essas que, aliás, estão contidas nos programas da "escola de Annales" e da
historiografia marxista). E aqueles que acusarem essas abordagens de uma certa "arbitrariedade", eu posso me
render, dando a mão à palmatória, obtemperando, porém, que toda construção teórica carrega consigo, em
certa medida, algo de arbitrário e de pessoal.

[1] CAPPELLINI, Paolo. Dal diritto romano al diritto moderno, "in" SCHIAVONE, Aldo (a cura di). ?& 
': um profilo storico. Torino: Einaudi, 2003, págs. 454 e segs. Nessa perspectiva que enquadra
historicamente o direito romano, veja-se também SCHIAVONE, Aldo (a cura di). /      
% & . Torino: Giappichelli, 1994.

[2] FONSECA, Ricardo Marcelo. A história no direito e a verdade no processo: o argumento de Michel Foucault,
"in" 01 . '     '. Curitiba, Gênesis editora, número 17, julho/setembro, ano
2000, págs. 570/583.

[3] BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história, págs. 112/119,   BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. 2
3. S/l: Publicações Europa América, s/d, pág. 131.

[4] Exemplar nessa tentativa de fazer uma história que tem um "horror ao evento" que culmine numa "história
sem homens" é o texto-manifesto de LE ROY LADURIE, E. /- . Paris: Gallimard, 1973.

[5] LÖWY, Michael. 2 '    4     5     : marxismo e positivismo na
teoria do conhecimento. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.

[6] O uso dessa metáfora evidentemente não faz com que desconsideremos toda a essencial postura teórica do
paradigma hermenêutico segundo o qual a operação cognitiva deve superar o dualismo sujeito-objeto (próprio
do paradigma epistêmico) em direção a uma relação sujeito-sujeito, ou, dito de outro modo, à evidência
segundo a qual o ato de conhecer não é apenas debruçar-se sobre um objeto que se coloca em uma natureza
inerte, pronto para ser colhido por um sujeito altivo, dominador e racional, mas sim uma operação onde que se
dá no mundo da linguagem, onde a interpretação e criação do saber têm um papel central. Vide a propósito
VATTIMO, Gianni. 6 -  " : Il significato dell'ermeneutica per la filosofia. Roma/Bari: Laterza,
1994 e também LUDWIG, Celso. Gadamer: a racionalidade hermenêutica - contraponto à modernidade "in"
FONSECA, Ricardo Marcelo (org). +  & : diálogos com o direito. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2005, págs. 145 e segs.

[7] HESPANHA. António M. 2  . Lisboa: livros horizonte, 1978, pág. 16.

[8] COSTA, Pietro.


: semantica del potere politico nella repubblica medieval e (110-1433). Milano:
Giuffrè, 2002, p. 7. (Ristampa). "Se la ricerca storica vuole essere un vero e proprio atto di intellezione, essa
deve servirsi di un linguaggio (anzi di linguaggi) aggiornati e rigorosi, di procedimenti controlabili, dove il µsenso
comune' cede il posto all'esercizio della ragione critica: la ricerca storica   alla teoria nel metodo e nel
risultato, così come la teoria diventa reale nella riflessione storicamente fondata".

[9] HESPANHA, António M. 2  págs. 16/17.

[10] Vide FONTANA, Josep. 3: análise do passado e projeto social. Trad. Luiz Roncari. Bauru: EDUSC,
1998, págs. 15/115.

[11] FOUCAULT, Michel. 2 '   . Trad. Selma Tannus Muchail. 6ª. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1992, págs. 231 e segs. 

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