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Chomsky, Noam.

Linguagem e Mente, 1998

Curso
Curso: Aprendizagem Ativa

Gramática
Prof. Eloisa Pilati

e
Aprendizagem Ativa

Profª. Eloisa Pilati

Digite seu texto


Pilati,
Pilati, Eloisa.
Eloisa. Linguística, Gramática
LINGUÍSTICA, Gramáticae eAprendizagem
AprendizagemAtiva. 2017
Ativa, 2017
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Capítulo 2

Construindo a Abordagem do Aprendizado


Linguístico Ativo – pressupostos teóricos

Como visto no Capítulo 1, uma abordagem é um conjunto


sistemático de práticas de ensino, baseadas numa teoria particular
sobre o próprio conceito de língua e sobre o ensino de línguas.
Uma abordagem está sempre relacionada a princípios gerais sobre
o conceito de língua. Tendo em mente o objetivo de organizar o
arcabouço teórico da Abordagem da Aprendizagem Linguística Ativa,
apresentarei a seguir respostas para as seguintes questões:

a. O que é língua?

b. Quais as propriedades básicas das línguas humanas?

c. Quais os objetivos do ensino de língua portuguesa na Educação


Básica?

O que é língua?

Nesta seção, apresento, de forma mais sistemática, os concei-


tos de língua e de gramática sob o enfoque da Teoria Gerativa. Para
os gerativistas, as línguas fazem parte da dotação genética dos
seres humanos. Todos os seres humanos já nascem predispostos
a aprender uma língua, salvo casos em que se manifeste alguma

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

patologia. Essa “predisposição” ou “dotação genética” faz com


que crianças, na mais tenra idade, já tenham dispositivos mentais
preparados para aprender qualquer língua de forma natural.
Não é recente nas pesquisas linguísticas o pressuposto segun-
do o qual as línguas são faculdades mentais dos seres humanos.
Ferdinand Saussure, tido como o pai da linguística moderna, já
considerava que as línguas eram dotações humanas. Porém, sua
atenção estava mais voltada ao fato de as línguas serem “obje-
tos sociais”, dos quais os falantes individuais tinham apenas um
domínio parcial, o que ficou conhecido nos estudos linguísticos
como a dicotomia entre “língua” e “fala”.
Na década de 50, o linguista Noam Chomsky passou a investi-
gar, de maneira mais sistemática, as propriedades desses sistemas
linguísticos, dando atenção especial ao estudo do conhecimento
linguístico internalizado de cada falante, com o intuito de des-
crever e explicar a capacidade específica da espécie para dominar
qualquer língua, a Faculdade da Linguagem.
Nas palavras de Noam Chomsky,

O cérebro incorpora “órgãos especializados”, com-


putacionalmente especializados para solucionar
tipos específicos de problemas, com grande faci-
lidade. O crescimento e desenvolvimento desses
órgãos especializados – o que é às vezes chamado
de aprendizagem – é o resultado de processos
internamente dirigidos e efeitos ambientais que
desencadeiam e modelam o desenvolvimento. O
órgão da linguagem é um desses componentes do
cérebro humano.
Na terminologia convencional, adaptada do uso mais
primitivo, o órgão da linguagem é a faculdade da
linguagem (FL); a teoria do estado inicial da FL, uma
expressão dos genes, é a Gramática Universal (GU);
as teorias de estados atingidos são as gramáticas

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

particulares; os estados propriamente ditos são as lín-


guas internas, “línguas” resumidamente. (CHOMSKY,
2006: 77, tradução minha)

Podemos explicar, mais detalhadamente, a citação acima da


seguinte forma: entre os componentes da mente humana, há um
“órgão” ou um “módulo” específico para a linguagem: a Facul-
dade da Linguagem. Os mecanismos que compõem a Faculdade
da Linguagem são geneticamente determinados e fazem parte,
portanto, da dotação biológica dos seres humanos. Por possuírem
essa Faculdade da Linguagem, os seres humanos são dotados de
uma Gramática Universal, que é o estado inicial de sua língua.
Esse estado inicial irá se modificar, devido ao efeito deflagrador
e modelador da experiência, bem como devido aos processos de
amadurecimento internamente determinados, e irá se estabilizar
num determinado momento.
Segundo Chomsky (2011: 269), o crescimento e o desenvolvi-
mento linguístico no indivíduo envolvem, pelo menos, três fatores:

(1) os dados externos;

(2) um dom genético que converte os dados da experiência e


orienta o curso geral de desenvolvimento; e

(3) princípios de âmbito mais geral, incluindo as leis da natureza.


Por possuir uma Faculdade da Linguagem, uma habilidade lin-
guística inata, cada falante é capaz de internalizar um processo
gerador que produz uma infinita variedade de expressões hie-
rarquicamente estruturadas, as quais são interpretadas em duas
interfaces: a do sistema sensório-motor (SM) e a do sistema
conceptual-intencional (CI; sistemas de pensamento e plane-
jamento de ação). Cada expressão linguística é um objeto que
consiste em duas coleções de informações: fonética e semântica.
Por causa da interpretação nessas duas interfaces, as línguas
humanas possuem som e significado.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

A Faculdade da Linguagem contém “um sistema recursivo


de geração de uma variedade infinita de enunciados dotados de
significado”, daí o termo “Gramática Gerativa”1. Ou, como visto
acima, esse sistema consiste também num “processo gerador que
produz uma infinita variedade de expressões hierarquicamente
estruturadas”.
Para explicar as semelhanças e as diferenças que as línguas
humanas apresentam, Chomsky defende que as línguas humanas
obedecem a princípios e parâmetros. Os princípios, presentes no
estado inicial da Faculdade da Linguagem, ou seja, na Gramática
Universal, são os elementos compartilhados por todas as línguas e
são inatos. Os parâmetros, por sua vez, são adquiridos via seleção,
por meio do contato dos seres humanos com os dados prove-
nientes da língua de sua comunidade, e são, portanto, variáveis.
Em resumo, uma língua é o resultado da união de fatores ge-
néticos, uma predisposição característica da espécie, e de fatores
do meio ambiente, ou seja, os dados a que a criança é exposta
durante a infância.
O esquema abaixo sistematiza os conceitos vistos até o
momento:

Gramática Universal (estado inicial da Faculdade da Linguagem)


+
Dados (linguísticos) do ambiente
=
Língua (gramática particular)

1 Ao usar o termo “recursivo”, Chomsky se refere à propriedade das línguas humanas de


formar um número ilimitado de expressões, pelo uso reiterado das regras de combinação do
número finito de elementos que as constituem. Um exemplo de recursividade pode ser visto
no seguinte encadeamento de sentenças: Luca fez um gol. Alexandre disse que Luca fez um
gol. Bruna não sabe se é verdade que Alexandre disse que Luca fez um gol. Belinha disse que
Bruna não sabe se é verdade que Alexandre disse que Luca fez um gol. Em síntese, podemos
formar sentenças maiores infinitamente, apenas acrescentando novos termos.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

A fim de detalhar um pouco mais como os gerativistas en-


tendem os sistemas linguísticos, vejamos as explicações de Lucia
Lobato (2015: 38-39):

Nas línguas, diferentes sistemas coexistem (fonoló-


gico, morfológico, lexical, sintático), estabelecendo
diferentes níveis de estrutura para os enunciados,
e em cada nível as unidades são analisáveis em
unidades menores, havendo unidades e níveis sem
interpretação semântica, e que têm o objetivo de
levar à construção das formas, e outras unidades e
níveis com interpretação semântica.

No funcionamento desses sistemas, cada língua faz


uso de meios finitos, mas os processos combinató-
rios permitem o uso ilimitado desses recursos. Por
exemplo, com as palavras (que são limitadas num
dado momento para um dado falante) e com as
construções da sintaxe (que são em número limitado
na língua), os falantes fazem combinações que são
potencialmente ilimitadas em extensão, porque as
combinações têm a propriedade da recursividade.

Assim é que, dado um substantivo, como livro, po-


demos fazer incidir sobre ele um atributo, como em
livro azul, e sobre o sintagma resultante podemos
fazer incidir outro atributo, como em livro azul do
Henrique, e esse novo sintagma poderá ainda receber
outro atributo, como em livro azul do Henrique que ele
ganhou de presente, e assim por diante.

No intuito de argumentar a favor da Faculdade da Linguagem,


apresento a seguir um exemplo de como é complexa a natureza dos
dados a que a criança tem acesso durante o processo de aquisição
linguística é complexa.
Suponhamos, por exemplo, que uma criança esteja apren-
dendo como funciona a negação em português e tenha contato

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

com os dados a seguir. Suponhamos também que a Faculdade


da Linguagem não exista e que a criança tenha de “aprender” as
regras da língua usando habilidades mentais gerais, tais como a
analogia:

Situação 1
a. O amigo deu o brinquedo.
b. O amigo não deu o brinquedo.

Analisando sentenças como as da Situação 1 acima, a criança


poderia inferir que, para fazer uma negação em português, seria
necessário que se colocasse o vocábulo não depois da primeira
palavra da oração, tal como ocorre em (b). Estamos pressupondo
que a criança vá fazer uma analogia, mas que domine o conceito de
“palavra”. Hipoteticamente, a regra que a criança formularia seria:

Regra I: Para fazer uma negação, coloque a palavra não depois da


primeira palavra de uma sequência de palavras.

No entanto, o que pensaria a criança ao se deparar com uma


oração como O amigo do João deu o brinquedo e, a partir dela, queira
fazer uma sentença negativa?

Situação 2
O amigo do João deu o brinquedo.

No caso do contexto na Situação 2, a criança teria de, no mí-


nimo, identificar o conceito de “constituinte” para acertar como
se faz a negação em português, pois, caso recorresse à Regra I,
a oração produzida seria: *O amigo não do João deu o brinquedo.
Sabemos que as crianças, ao aprenderem português, jamais co-
metem esse tipo de engano.
Diante da Situação 2, a criança formula a seguinte regra:

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Regra II: Para uma oração com negação, coloque o termo não depois
do primeiro constituinte.

Vamos considerar, então, que a criança tenha entendido o que


são os constituintes de uma sentença e se depare com a Situação 3.

Situação 3
O amigo do João que está dodói quer dar o brinquedo.

Caso a criança aplicasse a regra II, teríamos a oração:


*O amigo do João não que está dodói quer dar o brinquedo.

Sabemos que crianças não cometem esses enganos quando


estão no processo de aquisição de sua língua. E sabemos tam-
bém que não é necessário estudar formalmente português nem
mesmo ser alfabetizado para não se construir uma oração como
a reproduzida acima.
Se as crianças não usam a analogia como forma de aprender o
funcionamento sintático de suas línguas, o que as guia no processo
natural de aquisição? Se ninguém ensina às crianças conceitos
como palavras, constituintes, relativização e negação, como elas
desenvolvem tal conhecimento e já os usam com perfeição desde
a mais tenra idade?
A resposta para essas questões decorre de que o conhecimen-
to gramatical de uma língua, apesar de ser algo extremamente
complexo, se desenvolve nas crianças no mundo inteiro porque
elas possuem um aparato mental inato, denominado Faculdade da
Linguagem, que irá guiar a aquisição linguística de forma rápida,
perfeita e natural.
Em suma, o que se pretende evidenciar com os exemplos
acima é que as crianças, sem terem passado por qualquer ensino
formal, parecem manejar conceitos gramaticais como sujeito, es-

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

trutura de constituintes, negação, entre muitos outros. Por sermos


dotados de conhecimentos linguísticos inatos, somos guiados por
nossa Faculdade da Linguagem para “filtrar” os dados externos
e “construir” nossa língua. Por sermos dotados de conhecimen-
tos linguísticos inatos, somos guiados por nossa Faculdade da
Linguagem para “filtrar” os dados externos e “construir” nossa
língua, o que nos leva a retomar as palavras de Chomsky: Por pos-
suir uma Faculdade da Linguagem, uma habilidade linguística inata,
cada falante é capaz de internalizar um processo gerador que produz
uma infinita variedade de expressões.
Vejamos, a seguir, uma breve exposição de dados reais de
fala em que o complexo conhecimento linguístico das crianças é
evidenciado:

A. Conhecimento morfológico

Vários estudos linguísticos nos mostram que a formação de


palavras no diminutivo pode indicar grau, pequena dimensão, mas
também pode ser usada para indicar alguma avaliação do falante
em relação a um dado objeto, ou simplesmente como uma forma
de demonstrar afetividade.
Sabendo inconscientemente da forma e dos usos do diminu-
tivo, uma criança de 5 anos cria a palavra “golfo” para se referir
a “golfinhos”.

Esses golfos não aparecem.

Essa oração foi proferida quando essa criança estava em um


passeio de barco, há horas e os seus pais haviam lhe prometido
que, durante o passeio, ela iria avistar “golfinhos”. Como eles
não apareciam e a criança já estava brava, ela não se refere aos
mamíferos como golfinhos, e, sim, como golfos.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

A palavra golfos criada pela criança revela vários aspectos do


seu conhecimento linguístico:

a) conhecimento do uso afetivo do diminutivo;

b) conhecimento do radical da palavra golfinhos /golf-/;

c) conhecimento da flexão de plural no português;

d) evidência da criatividade linguística da criança, que, usando


sua gramática inata, inventa uma palavra que nunca ouviu ante-
riormente.

Outro exemplo bastante comum, e que denota o amplo conhe-


cimento linguístico que as crianças detêm sobre sua língua, é a forma
como elas aprendem a flexionar verbos e a usar certas generalizações
linguísticas. Em português, verbos regulares terminados em -er, ao
serem flexionados na primeira pessoa do pretérito perfeito, apre-
sentam a flexão -i, que exprime tempo, modo, número e pessoa, tal
como em comi, bebi e vendi. A criança entende esse funcionamento
da língua e o aplica ao verbo fazer, que é conjugado como fazi.

Comer -> comi


Beber -> Bebi
Fazer -> Fazi

As generalizações, no caso da aquisição das formas flexio-


nadas, revelam como a mente das crianças seleciona muito bem
que tipo de informações devem ser usadas. Ao colocar a flexão
no verbo fazer, formando fazi, a criança usa com perfeição os
conhecimentos que possui sobre os morfemas do verbo fazer,
sobre o local e a função das desinências modo-temporais e
número-pessoais do português, além de utilizar com perfeição
os conceitos de temporalidade na língua.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

B. Conhecimento sintático e fonológico

O conhecimento sintático das crianças se evidencia de inú-


meras formas. Citarei apenas dois exemplos, mas qualquer pessoa
que conviva com crianças a partir de dois anos tem certamente
vários casos semelhantes para contar.

I.O caso do “Vi adulto”


Brasília tem muitos viadutos.

A criança ouve a palavra “viaduto”. Como não sabe que essa


é uma palavra do português, estabelece relação entre o vocábulo
“viaduto” com a expressão “ver adulto” e cria uma oração como:

Nessa cidade só tem vi adulto, não tem vi a criança.

II.O caso do “Seu patia”


A criança, neste caso, ouviu a mãe dizendo que daria “homeo-
patia” para o filho. A criança faz uma análise sintática imediata
do sintagma nominal, seguindo seus conhecimentos sobre a
organização do português: artigo, pronome possessivo e depois
substantivo (“o meu remédio, o meu patia, o seu patia”). Em suma,
a criança reconhece a estrutura do sintagma e gera outro sintag-
ma, em seguida.

Mãe, me dá o “seu patia”.

C. Conhecimento semântico

Pai, você que trabalha na Receita Federal, me ensina a fazer bolo.

O conceito de receita utilizado pela criança é o de “forma


de se preparar um tipo de comida”, e não como o conjunto de
tributos arrecadados pelo Estado.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Todos esses exemplos ilustram o saber inconsciente das


crianças e mostram que nosso cérebro, desde a infância, nos guia
a reconhecer e a utilizar valores e saberes linguísticos. Outro as-
pecto do conhecimento linguístico inato que se revela nos dados
acima é que seres humanos são capazes de produzir e interpretar
sentenças nunca antes vistas. Fazemos isso porque nossa Facul-
dade da Linguagem nos permite reconhecer, compreender e criar
sentenças bem formadas na nossa língua.

Propriedades básicas das línguas humanas

Nesta seção, mostraremos, com mais detalhes, o funciona-


mento do sistema linguístico sob a ótica gerativista. Como mencio-
nado na seção anterior, o sistema gerativo produz uma variedade
infinita de expressões hierarquicamente estruturadas e recursivas.
Esses conhecimentos serão fundamentais para que possamos
entender com mais profundidade o que é a gramática de uma
língua e por que uma língua não é uma lista de regras aleatórias.
Veremos também alguns conceitos fundamentais para nos auxiliar
na compreensão do funcionamento das línguas humanas.
Conforme já dito, uma língua é fruto do saber inconsciente
do falante, que consiste de princípios invariantes e de valores
estabelecidos por parâmetros de variação adquiridos por meio
da exposição aos dados linguísticos de uma dada comunidade.
Precisamos, então, reconhecer quais são as propriedades básicas
compartilhadas pelas línguas humanas. O conhecimento sobre
tais propriedades é muito importante para o professor de língua
portuguesa, pois é a partir do entendimento do conceito de gra-
mática como sistema regido por princípios específicos que podem
ser preparadas aulas que possibilitem ao aluno compreender o
que é o sistema linguístico gerativo.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Elementos básicos da formação da oração

Até o presente momento, argumentei de várias formas a


favor de um conhecimento linguístico inato, capaz de nos guiar
desde a infância na aquisição de uma língua. Para os pesquisadores
gerativistas, há as seguintes etapas na formação de uma oração,
contendo um predicado verbal:2

a. seleção do verbo;
b. seleção dos complementos verbais (quando houver);
c. seleção do sujeito (quando houver);
d. seleção dos adjuntos (quando houver).

Usaremos as famosas representações arbóreas gerativistas


para demonstrar como se dá a projeção dos elementos que for-
mam a oração “Ontem João viu a Maria”3:

I – Seleção do verbo
Verbo
g

Viu

II – Seleção dos complementos verbais

Verbo
ru
viu a Maria

2 Considerando que a presente obra pretende fazer uma “transposição didática” entre o conhe-
cimento científico e o conhecimento linguístico necessário para que os usuários da língua
compreendam processos sintáticos básicos, optei por não trazer discussões teóricas acerca
dos fenômenos analisados.
3 Para uma avaliação crítica do método tradicional de ensino dos termos da oração e uma
proposta centrada no “predicador”, recomendo a leitura do capítulo Termos da oração, de
Maria Eugênia Duarte (2007).

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

III – Seleção do sujeito (quando houver)

Sintagma Verbal
ru
João verbo
ru
viu a Maria

IV – Seleção dos adjuntos (quando houver)


SV
ru
Sintagma Adverbial Sintagma Verbal
Ontem ru
João verbo
ru
viu a Maria

Uma pergunta que constantemente ouço dos meus alunos –


futuros professores – em relação à representação arbórea é sobre
a necessidade ou a eficácia de levar tais representações para a
sala de aula na Educação Básica. Considero não ser importante
levar esse tipo de modelo de análise para os alunos nesse nível
de ensino, pois a preocupação com a correta representação da
árvore pode tirar o foco dos principais aspectos a serem estu-
dados quando se apresentam temas relacionados à formação
da oração, quais sejam: a importância do verbo como elemento
formador do predicado verbal e a importância de se perceber
que é a partir do verbo que se formam as orações, por meio das
seleções gramaticais.
Essas estruturas em que o verbo seleciona os argumentos, ou
seja, em que o verbo é o predicador na oração, são denominadas
pelas gramáticas tradicionais de orações com predicado verbal.
As seleções gramaticais dos verbos ocorrem em dois níveis: a) no

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

nível semântico e b) no nível categorial. Assim, um verbo seleciona


o número de argumentos (ou complementos) que irá entrar na
oração, bem como estipula a forma desses complementos (se é um
substantivo ou uma expressão formada por artigo + substantivo,
se é uma expressão iniciada por uma preposição ou se não vai
haver argumentos) e o significado desses argumentos.
Vejamos, a seguir, como são formadas as orações sob a ótica
do verbo como predicador na oração e como podemos usar nos-
so conhecimento linguístico para formar orações. O objetivo da
reflexão que iniciaremos a partir de agora será o de trazer à tona
nosso conhecimento linguístico e sistematizá-lo a fim de melhor
compreendê-lo4.
Pensemos em orações formadas com os seguintes verbos:

Chegar Amar Gostar

Infinitas orações podem ser formadas a partir desses ver-


bos. Todas as sentenças que falantes do português imaginarem
obedecerão a certos parâmetros, a depender do verbo escolhido.
Vejamos exemplos de orações formadas com cada um dos
verbos citados anteriormente para que possamos compreender
o processo de formação de orações:

Caso I – verbo chegar


Exemplos de orações gramaticais:
Ia) Eu cheguei atrasado ontem.
Ib) As cartas chegaram de manhã.

Exemplos de orações agramaticais:

4 Para o aprofundamento de questões relativas à formação da sentença, recomendo a leitura


da obra de Kato e Nascimento (Orgs.) A construção da sentença. A gramática do Português
falado no Brasil. Volume 2. São Paulo: Contexto, 2015.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Ic) *Eu cheguei a maçã.


Id) *De chegou.

A pergunta que devemos nos fazer é: como todos nós que


falamos português sabemos que as orações em (Ia) e (Ib) são
gramaticais e que as orações em (Ic) e (Id) são agramaticais? Sa-
bemos que nenhum falante de português, independentemente de
escolaridade ou de idade, irá produzir orações como (Ic) e (Id).
O verbo chegar, nas orações em (Ia) e (Ib), significa “atingir o
termo de uma trajetória, de um percurso de ida e/ou de vinda” e
tais sentenças são boas porque obedecem ao número de argumen-
tos do verbo, que é monoargumental, sendo preenchido por um
substantivo (As cartas) ou por um pronome (Eu). Vemos também
que os termos adjuntos “de manhã” e “ontem” contribuem para o
significado da oração, mas que não são selecionados pelo verbo.
As orações em (Ic) e (Id), por sua vez, não são boas porque
não obedecem ao número de argumentos do verbo chegar, que,
na acepção mencionada, só seleciona um argumento. Portanto,
Eu cheguei a maçã é uma oração agramatical. Já em (Id), o argu-
mento selecionado não apresenta nem o tipo semântico nem o
tipo sintático requisitado pelo verbo.
O mesmo tipo de raciocínio pode ser feito para orações com
outros tipos de verbo, tal como o verbo amar no Caso II:

Caso II – verbo amar


Exemplos de orações gramaticais:
IIa) Eu amo minha família.
IIb) Os adolescentes amam histórias de terror.

Exemplos de orações agramaticais:


IIc) *As cartas amam chocolate.
IId) *A menina ama bonecas ao João.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Caso III – verbo gostar


Exemplos de orações gramaticais:
IIIa) Eu gosto da minha família.
IIIb) Os adolescentes gostam de chocolate.

Exemplos de orações agramaticais:


IIIc) *Eu gosto minha família.
IIId) *Chocolate gosta adolescente.

Nos exemplos presentes nos contextos I, II e III acima, po-


demos perceber que, quando usamos os verbos da nossa língua,
sabemos quantos argumentos esse verbo vai selecionar: se um
argumento, para o verbo chegar, ou dois argumentos, para os ver-
bos amar ou gostar (ou até mesmo três argumentos, para o verbo
colocar). Sabemos, ainda, de que tipo semântico esses argumentos
devem ser: animados, inanimados, humanos, não humanos.
Ao mesmo tempo, sabemos que uma oração como *Chocolate
gosta adolescente não é gramatical na nossa língua por apresentar
problemas sintáticos (o verbo “gostar” seleciona argumentos in-
troduzidos pela preposição “de”) e também devido a problemas
de natureza semântica, relacionados com nosso conhecimento de
mundo. O verbo gostar, por ter sua referência relacionada a uma
experiência psicológica, seleciona como um de seus argumentos
elementos animados.
Outro conhecimento inato que temos sobre nossa língua e
que se revela na formação de qualquer oração é o conhecimento
sobre o tipo categorial que os argumentos verbais apresentarão.
No caso dos verbos amar e chegar, os argumentos serão sintagmas
nominais; no caso do complemento do verbo gostar, os argumentos
serão sintagmas preposicionados.
A tabela abaixo sistematiza, portanto, o que o nosso conhe-
cimento linguístico revela sobre a formação de orações:

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Formação 1 - Seleção do verbo


de orações
2 - Seleção dos argumentos: dependendo do tipo do verbo
Número de argumentos

- Tipo sintático

- Tipo semântico

3 - Seleção do sujeito

4 - Inserção de termos adjuntos

Considerando que são inatos os conhecimentos acerca da


formação de orações, podemos concluir que sabemos, inconscien-
temente, que verbos selecionam argumentos e vamos aprendendo,
cada vez mais, quais tipos de verbos selecionam quais argumentos,
assim como vamos ampliando nosso repertório lexical.
O estudo da formação de orações deve ocorrer nas aulas
de gramática não como algo que se refere ao que os alunos não
sabem, mas sim como algo que trata de um tema que os alunos já
sabem. Toda aula deve trazer à tona o conhecimento que os alunos
já dominam com perfeição, pois eles usam esse conhecimento ao
formar orações em sua língua, ainda que não tenham consciência
do quanto sabem. Cientes do conhecimento linguístico inato,
podemos partir do conhecimento linguístico que os alunos já
possuem para depois apresentar a eles alguns possíveis verbos
ou usos dos verbos que eles ainda não conheçam ou que sejam
específicos de uma certa variedade da língua.
O aluno sabe formar orações, mas não tem plena consciência
dos mecanismos que usa para tal fim. Trazer à tona e sistematizar
tais conhecimentos deveria ser um dos objetivos principais de
uma aula de gramática. Seguindo essa premissa, devemos mos-
trar para os alunos o quanto eles sabem e estimulá-los a tomar

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

consciência de todos os conhecimentos que possuem em relação


à formação de orações.

Língua organizada em constituintes com estrutura


hierárquica

Outra propriedade fundamental das línguas é sua organização


em constituintes, com estrutura hierárquica. Veremos como a
linguística moderna entende cada um desses conceitos de forma
separada: primeiro, veremos o que são os constituintes e, depois,
o que significa quando dizemos que eles se organizam de forma
hierárquica em uma oração.
Um constituinte pode ser compreendido como uma palavra
ou um grupo de palavras que funcionam como uma única unidade
dentro da oração. Muitas vezes podemos ser levados a pensar que
uma oração é somente um conjunto de palavras colocadas numa
dada ordem. No entanto, quando nos aprofundamos no estudo
das propriedades das orações, vemos que há mais organização
na oração do que podemos imaginar.
Analisemos a oração abaixo para entendermos como os
constituintes se comportam dentro de uma oração:

Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.

Intuitivamente, sabemos que essa oração pode ser dividida


em três partes: Noam Chomsky + fundou + os estudos gerativistas.
E podemos comprovar a existência dessas partes, as quais deno-
minamos constituintes. Isso é possível a partir de alguns testes
que nos revelam que as orações são, de fato, organizadas em
constituintes.
Vejamos alguns desses testes usados para evidenciar as es-
truturas de constituintes das línguas:

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

a. Pronominalização:
Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.
Ele fundou os
Ele os fundou. (variedade padrão do português)
Ele fundou eles. (variedade coloquial do português)

Como podemos ver pelos exemplos acima, um constituinte


pode ser substituído por um pronome (Chomsky = ele e Os estudos
gerativistas = eles ou os), a depender da variedade do português
que se considere. Ao mesmo tempo, um pronome não pode
substituir somente parte de um constituinte, como mostram os
exemplos abaixo:

Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.


*Ele Chomsky fundou eles gerativistas

Outros contextos em que podemos ver “a olho nu” como


funcionam as estruturas de constituintes das orações são os de
pergunta Qu-, tais como as apresentadas abaixo. Podemos notar
que cada pergunta e cada resposta correspondem a uma parte da
estrutura de constituintes em que a sentença se estrutura:

[[Noam Chomsky] [fundou [os estudos gerativistas]]].

b. Perguntas QU-
– O que Noam Chomsky fundou?
Os estudos gerativistas.

– Quem fundou os estudos gerativistas?


Noam Chomsky.

– O que aconteceu?
Noam Chomsky fundou os estudos gerativistas.

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Linguística, gramática e aprendizagem ativa

As orações clivadas do tipo “ser/é/foi... que” também nos


revelam que nossa gramática mental organiza a oração em cons-
tituintes:

c. Orações clivadas:
– Foi Noam Chomsky que fundou os estudos gerativistas.

As orações de topicalização, como a apresentada abaixo,


também permitem identificar os constituintes da oração.

d. Topicalização:
– Os estudos gerativistas, Noam Chomsky fundou.

Todos os falantes de português, independentemente de


escolaridade, sabem das possibilidades e impossibilidades combi-
natórias de sua língua. Isso porque, como já vimos anteriormente,
somos dotados de uma competência linguística inata.
Vejamos, agora, a questão da hierarquia dos constituintes –
mais uma das propriedades das línguas humanas. A melhor forma
de vermos como a hierarquia dos constituintes sintáticos funciona
é estudar a ambiguidade que tal hierarquia pode criar, devido às
possibilidades de ligação de um constituinte a um ou mais cons-
tituintes que o precedem. São exemplos de orações ambíguas:

a. João viu a menina com o binóculo.

b. Alugo apartamento com banheiro perto da UnB.

c. José entrou na sala de muletas.

Nas três sentenças apresentadas, a ambiguidade se dá devi-


do à dupla possibilidade de organização da sentença. O último
constituinte da oração – [com o binóculo], [perto da UnB], [de mule-

68
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

tas] – pode modificar potencialmente os dois constituintes que o


precedem e, por esse motivo, as orações podem apresentar mais
de um sentido. Vejamos a sistematização dessas possibilidades, a
seguir, às quais chamaremos de Contexto A e Contexto B:

Contexto A: modificação do constituinte mais próximo


a. João viu [a menina] [com o binóculo].

b. Alugo apartamento [com banheiro] [perto da UnB].

c. José entrou [na sala] [de muletas].

De acordo com o que mostram as setas, os constituintes [com


o binóculo], [perto da UnB] e [de muletas] modificam, respectivamen-
te, os constituintes formados por [a menina], [com banheiro], [na
sala]. Considerando essa primeira possibilidade de organização
hierárquica, os sentidos das orações seriam, respectivamente:

a. João viu [a menina] [com o binóculo]. = João viu a menina que


segurava o binóculo.

b. Alugo apartamento [com banheiro] [perto da UnB]. = Aparta-


mento com banheiro perto da UnB é alugado. (Essa situação é
impossível de acordo com o nosso conhecimento de mundo, mas
é a leitura que dá uma interpretação engraçada para a sentença.)

c. José entrou [na sala] [de muletas]. = A sala em que João entrou
é uma sala de muletas.

69
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

No entanto, caso a ordenação hierárquica seja outra, novas


interpretações serão possíveis. Vejamos:

Contexto B: modificação do verbo da oração

a. [João [viu [a menina]] [com o binóculo]].

b. [Alugo [apartamento [com banheiro] ] [perto da UnB]].

c. [José [entrou [na sala] [de muletas]].

Considerando essa segunda possibilidade de organização


hierárquica, os sentidos das orações seriam, respectivamente:

a. João viu a menina com o binóculo = Foi com o binóculo que


João viu a menina.

b. Alugo, perto da UnB, apartamento com banheiro = Pretendo


alugar apartamento com banheiro e que seja próximo à UnB.

c. José entrou na sala de muletas = João entrou na sala usando


muletas.

Em resumo, o que a análise das interpretações possíveis nos


Contextos A e B evidencia é que, apesar de, superficialmente, uma
oração parecer um grupo de palavras em ordem linear, há uma

70
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

arquitetura por trás da organização das orações. Entre os elemen-


tos que fazem parte dessa arquitetura estão os constituintes de
uma oração e a hierarquia estabelecida entre tais constituintes.
É interessante também observar a relação direta que existe
entre combinações de constituintes e mudanças de sentido.
Conforme visto acima, as possibilidades de relações entre os
constituintes são determinantes para a interpretação semântica
da sentença. O fato de os seres humanos possuírem todo esse
conhecimento sem ter consciência do quanto sabem e de como
usam tais conhecimentos só pode ser explicado por esse saber
gramatical inato denominado Faculdade da Linguagem.
Até agora vimos algumas propriedades das línguas humanas:
conhecimentos inatos para a formação de orações e língua como
uma estrutura organizada em constituintes ordenados hierarqui-
camente. Nas seções seguintes, veremos mais dois conceitos rele-
vantes para a compreensão dos sistemas linguísticos: a criatividade
e a variação linguística. Por fim, refletiremos sobre as diferenças
entre a fala e a escrita e discutiremos os objetivos do ensino de
língua na Educação Básica segundo as diretrizes oficiais.

Criatividade como propriedade da Faculdade da Linguagem

A criatividade, tal como concebida na Teoria Gerativa, sig-


nifica que os seres humanos são capazes de usar a língua de
modo criativo, no sentido de que, usando a estrutura da língua,
elementos finitos serão capazes de produzir sentenças novas infi-
nitamente, independentemente de estímulo prévio. A professora
Lucia Lobato (2015: 33-35) lista as seguintes propriedades como
relacionadas à criatividade linguística:

71
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

(i) Âmbito ilimitado de temas: os falantes não estão limitados a


falar sobre certos assuntos e são livres para expressar na língua
qualquer tipo de tema.

(ii) Âmbito ilimitado de situações: os falantes não estão limitados


a se comunicar na língua em certas situações, e sabem adequar
o uso da língua a novas situações de discurso.

(iii) Independência da referência em relação ao contexto prag-


mático: os falantes não estão limitados a falar do que existe ou
ocorre no momento presente, e são livres para falar do presente,
passado ou futuro, de objetos e eventos concretos ou abstratos,
e mesmo fictícios.

(iv) Independência em relação a estímulos: os falantes não estão


limitados a usar a língua sob o efeito de estímulos externos ou
estados emocionais internos e são livres para expressar mensa-
gens independentes desse tipo de controle.

(v) Âmbito ilimitado de combinações: a língua permite ao falante


fazer um número potencialmente infinito de combinações de
palavras para formar mensagens, daí ser potencialmente infinito
o número de mensagens, e não haver, para nenhuma língua, a
maior frase.

(vi) Paridade de pensamentos: a percepção da mensagem pelo


ouvinte cria na sua mente pensamentos similares aos do falante.

(vii) Liberdade de escolha de função social: o falante pode usar a


língua somente com função cognitiva (quando usa a língua como
suporte de seu pensamento e sem função social), mas pode tam-
bém usar a língua para diferentes funções sociais – função comu-
nicativa (para transmitir informação, seja de maneira altruísta ou
não), função lúdica (para brincar), função emotiva (para transmitir
emoções), função conativa (para influenciar o comportamento do
destinatário), função poética (para criar efeito artístico), função
fática (para manter o contato social, sem objetivo primordial de
transmitir informação) e função metalinguística (para falar da
própria língua).

72
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

As propriedades mencionadas por Lucia Lobato nos mos-


tram vários aspectos das línguas humanas. É relevante notar, por
exemplo, que conceber a língua como um sistema criativo nos
leva a evitar crenças de que as línguas humanas são aprendidas
por repetição, ou que os seres humanos dependerão, exclusiva-
mente, dos dados externos para desenvolverem suas habilidades
linguísticas.
Na verdade, o que ocorre é que, apesar de os dados externos
com que se tem contato durante a infância serem desordenados
e extremamente complexos, conseguimos adquirir uma língua
com perfeição em um curto período de tempo.

Língua como fenômeno inserido na sociedade

Desde o início desta obra, estamos argumentando sobre o


fato de o conhecimento linguístico ser fruto de uma capacidade
humana geneticamente determinada – a Faculdade da Linguagem.
Afirmamos também que uma língua é o resultado da interação
entre esse saber inato e os dados do ambiente. Considerando esse
entendimento sobre o que é o processo de aquisição linguística,
podemos entender que a variação é algo inerente ao processo
de aquisição.
Se cada ser humano tem experiências individuais durante
a aquisição de línguas, os dados a que as crianças são expostas
jamais serão exatamente iguais. A Faculdade da Linguagem é a
mesma para todos os seres humanos, mas a experiência é individu-
al. Sendo assim, os dados aos quais a criança tem acesso durante
o processo de aquisição podem até ser bastante parecidos, mas
nunca serão idênticos. Sob esse ponto de vista, a variação é algo
inerente às línguas humanas.

73
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Há também aspectos sociais que influenciam a variação, tais


como:

a. Fatores diatópicos
Fatores de variação que ocorrem devido a questões geográficas.

b. Fatores diafásicos
Fatores de variação que ocorrem devido às modalidades de ex-
pressão linguística, tais como a língua falada e a língua escrita.

c. Fatores diastráticos
Fatores de variação que ocorrem devido a diferenças sociais.

Scherre (2012) discute questões relacionadas ao preconceito


linguístico e mostra que esse tipo de preconceito não tem a ver,
diretamente, com as noções de certo e errado das gramáticas
normativas, mas com preconceitos relacionados a classes sociais.
Usando dados da expressão variável do imperativo (fale/diga/vá
versus fala/diz/vai) como argumentos que evidenciam o precon-
ceito linguístico no Brasil, a autora mostra que, se o preconceito
estivesse somente ligado aos preceitos normativos da gramática
tradicional, deveria haver igual julgamento preconceituoso dos
falantes em relação aos usos do imperativo.
As gramáticas tradicionais preconizam que, se o sujeito da
oração for o pronome “você”, as formas do imperativo devem ser:
fale-diga-vá. Contudo, o uso das formas fala-diz-vai (tal como em
Fala você em vez de Fale você, Diz você em vez de Diga você...) ocorre
de maneira ampla no português do Brasil, sem sofrer correção e
sem ser objeto de discriminação na sociedade. Devido ao fato de
esse uso do imperativo não ser característico de uma dada par-
cela da população, considerada de baixa renda e, às vezes, com
menos acesso à escolarização, ninguém considera essa variação
linguística “feia”, “deselegante” ou “inadequada”.

74
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Analisemos, a seguir, aspectos da concordância nominal. A


concordância nominal é um dos contextos em que o uso ou o
não uso de certas marcas é muito estigmatizado na sociedade
brasileira. Vejamos as diferenças entre as sentenças abaixo5:

Contexto I – Português padrão


a. As professoras estudiosas
b. ??As professora estudiosa

Dados como (Ib) são bastante estigmatizados em nossa so-


ciedade. Isso porque, de acordo com o que preconizam as gramá-
ticas, todos os elementos ligados ao núcleo do sintagma devem
apresentar as mesmas marcas de concordância, tal como em (Ia).
Expressões como (Ib) são, portanto, consideradas inadequadas
do ponto de vista da concordância.

Contexto II – Português coloquial


a. As professora estudiosa
b. As menina bonita
c. *A professora estudiosas
d. *A meninas bonita

No português coloquial, são perfeitamente possíveis sintag-


ma nominais como (IIa, b), em que somente o determinante da
oração – ou seja, o artigo – apresenta a marca de plural.
O que queremos salientar, em relação aos exemplos pre-
sentes no contexto II, é que (IIa) e (IIb) representam um as-
pecto do sistema linguístico do português coloquial, mas (IIc)
e (IId), por outro lado, são construções agramaticais dentro
dessa variedade.
Nos dados em análise, vemos que é possível marcar con-
cordância plural de todo o constituinte colocando a marca de
5 A comparação entre o português e o inglês foi inspirada em Scherre (2012).

75
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

plural apenas no artigo. No entanto, caso se coloque a marca de


plural somente no adjetivo à esquerda, tal como em *A professora
estudiosas, ou apenas no segundo elemento, como em *A meninas
bonita, tais expressões serão agramaticais dentro desse sistema.

Contexto III – Língua inglesa


a. The beautiful girls
As bonitas garotas
‘As garotas bonitas’

b. *Thes beautifuls teachers


c. *Thes beautiful teacher

Por fim, no contexto III, vemos o sistema do inglês, que difere


tanto do sistema apresentado em I como do sistema apresentado
em II. No inglês, como podemos observar em (IIIa), a marca de
concordância está no substantivo, mas não no artigo e nem no
adjetivo. Ou seja, o sistema linguístico da língua inglesa possui
suas próprias normas, as quais são diferentes das de outros sis-
temas. Não é razoável, portanto, que sistemas linguísticos sejam
julgados como mais ou menos elegantes, mais ou menos belos,
mais ou menos evoluídos uma vez que são apenas sistemas lin-
guísticos diferentes.
Para finalizar, vale ressaltar que promover a visão não pre-
conceituosa da variação linguística é um dos objetivos do ensino
de língua portuguesa, tal como proposto pelos PCNs (2000) e
pela BNCC (2017):

A variante padrão pode ser comparada com as outras


variantes em seus aspectos fonológicos, sintáticos,
semânticos. O mesmo pode ocorrer entre a língua
estrangeira moderna e a língua materna, a TV e o
cinema, os efeitos produzidos na Arte e a introdução
da Informática. Todas as manifestações podem convi-

76
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

ver entre si sem a necessidade de anulá-las. O aluno,


ao compreender a linguagem como interação social,
amplia o reconhecimento do outro e de si próprio,
aproximando-se cada vez mais do entendimento mú-
tuo. [...] O exame da complexidade das manifestações
evoca a superação preconceituosa das identidades e
provoca o respeito mútuo como meio de entender o
presente e construir o devir. (PCNs, 2000: 9)

No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de


fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos
a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da forma
de fala a utilizar, considerando as características
e condições do contexto de produção, ou seja, é
saber adequar os recursos expressivos, a variedade
de língua e o estilo às diferentes situações comu-
nicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que
fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de
expressão é pertinente em função de sua intenção
enunciativa dado o contexto e os interlocutores a
quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas
de adequação às circunstâncias de uso, de utilização
adequada da linguagem. (PCNs, 2000: 30)

Demonstrar atitude respeitosa diante de variedades


linguísticas, rejeitando preconceitos linguísticos.
(BNCC, 2017: 66)

Diferenças entre a língua falada e a língua escrita

A hipótese do inatismo nos sugere que os conhecimentos


linguísticos dos seres humanos vão se desenvolvendo natural-
mente no decorrer dos anos. Esse processo é natural para a fala
ou para a aquisição de uma língua de sinais, mas não o é para a
escrita, por exemplo.
A ideia de que as crianças adquirem uma língua sozinhas,
pela exposição aos dados, pode nos levar a fazer inferências in-

77
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

corretas em relação à escrita. A capacidade de usar uma língua,


seja oralmente ou por meio de sinais, é uma habilidade inata. A
escrita, por sua vez, é algo formalmente ensinado e não é inato. É
importante frisar essa diferença entre a fala e a escrita porque, se
a escrita não é algo inato, é algo que deve e pode ser aprendido.
Caso a hipótese do inatismo seja mal compreendida, pode-se
chegar a interpretações incorretas como esta: se a criança adquire
uma língua somente pela exposição aos dados, ela pode aprender
a escrever somente por meio da exposição a textos escritos. Essa
é uma inferência, no mínimo, exagerada.
Por serem fruto de uma capacidade inata, as línguas humanas
são adquiridas de forma natural e resultam na habilidade de se
comunicar pela fala. A escrita, apesar de ser uma forma de ex-
pressão que usa muitos recursos semelhantes aos da fala, é uma
habilidade que requer ensino, desenvolvimento de habilidades
específicas e aprendizado de certas técnicas.
Considerar que a fala é adquirida e a escrita é aprendida faz
toda a diferença no processo de ensino-aprendizagem. Essa distin-
ção precisa ser reiterada porque há outra crença muito difundida
em nossa sociedade: a de que aprenderemos a escrever simples-
mente escrevendo e lendo muito. E isso não é necessariamente
verdade.
É inegável que a leitura tem um papel fundamental para a
ampliação do vocabulário, o desenvolvimento do conhecimento
de mundo, a aquisição de novos itens lexicais e de novas formas
de expressão – o que se reflete, diretamente, na capacidade de
argumentação e no repertório geral do aluno. Também sabemos
que o hábito de escrever pode nos ajudar a testar formas de ex-
pressar nossas ideias, na desenvoltura com as palavras e nas mais
diversas situações de interação.

78
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Antes de encerramos esta seção, apresento os argumentos


usados por Lucia Lobato (2015: 25) para defender o ensino de
gramática na Educação Básica, a partir de uma metodologia em
que os conhecimentos gramaticais advindos da Faculdade da
Linguagem sejam usados como apoio para o ensino da escrita:

A primeira razão é o fato de ao texto e às atividades


discursivas em geral subjazer a mesma gramática
abstrata que subjaz às palavras, aos sintagmas, às
orações e às frases. Não pode ser diferente, pois, se
assim o fosse, a mente humana estaria operando de
modo antieconômico, com princípios de tipo dife-
rente para domínios diferentes do mesmo objeto. O
natural é considerar que, para o mesmo objeto, são
usados os mesmos princípios abstratos. No texto,
são usados princípios que extrapolam o limite da
sentença, mas, certamente, não são de natureza
diferente dos princípios do limite da sentença. A
diferença, a meu ver, está nas unidades com que a
gramática opera num e noutro domínio, e não na
natureza dos princípios.

Em segundo lugar, considero que não se deve aban-


donar totalmente o material gramatical porque a
explicitação dos mecanismos de que as línguas fazem
uso e de seu efeito semântico ajuda o aluno a ganhar
tempo no seu processo de domínio das técnicas do
texto e das atividades discursivas em geral. A escrita,
por exemplo, tem características muito peculiares, e
aceita estruturas complexas muito mais facilmente
do que a fala, por estar livre das limitações de me-
mória que caracterizam o discurso oral. Não vejo
como seria possível ter um ensino produtivo sem
explicitação de mecanismos estruturais.

79
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Objetivos do ensino de língua portuguesa na Educação Básica

Chegamos à pergunta final que uma abordagem deve respon-


der: qual o objetivo do ensino de gramática na Educação Básica?
Vejamos, a seguir, alguns dos objetivos do ensino de língua
portuguesa no Ensino Fundamental, segundo os PCNs (1998: 32-33):

• utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e


na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a
múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos
comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condições
de produção do discurso;

• utilizar a linguagem para estruturar a experiência e explicar


a realidade, operando sobre as representações construídas em
várias áreas do conhecimento:
- sabendo como proceder para ter acesso, compreender e fazer
uso de informações contidas nos textos, reconstruindo o modo
pelo qual se organizam em sistemas coerentes;
- sendo capaz de operar sobre o conteúdo representacional dos
textos, identificando aspectos relevantes, organizando notas,
elaborando roteiros, resumos, índices, esquemas etc.;
- aumentando e aprofundando seus esquemas cognitivos pela
ampliação do léxico e de suas respectivas redes semânticas;

• analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o pró-


prio, desenvolvendo a capacidade de avaliação dos textos:
- contrapondo sua interpretação da realidade a diferentes opiniões;
- inferindo as possíveis intenções do autor marcadas no texto;
- identificando referências intertextuais presentes no texto;
- percebendo os processos de convencimento utilizados para
atuar sobre o interlocutor/leitor;
- identificando e repensando juízos de valor tanto socioideológi-
cos (preconceituosos ou não) quanto histórico-culturais (inclusive
estéticos) associados à linguagem e à língua;
- reafirmando sua identidade pessoal e social;

• conhecer e valorizar as diferentes variedades do Português,


procurando combater o preconceito linguístico;

80
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

• reconhecer e valorizar a linguagem de seu grupo social como


instrumento adequado e eficiente na comunicação cotidiana,
na elaboração artística e mesmo nas interações com pessoas
de outros grupos sociais que se expressem por meio de outras
variedades;

• usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de


análise linguística para expandir sua capacidade de monitoração
das possibilidades de uso da linguagem, ampliando a capacidade
de análise crítica.

Segundo a BNCC (2017: 64), são competências específicas


do componente de língua portuguesa recomendadas para o final
do Ensino Fundamental:

1. Reconhecer a língua como meio de construção de identidades


de seus usuários e da comunidade a que pertencem.

2. Compreender a língua como fenômeno cultural, histórico,


social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso.

3. Demonstrar atitude respeitosa diante de variedades linguísti-


cas, rejeitando preconceitos linguísticos.

4. Valorizar a escrita como um bem cultural da humanidade.

5. Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo de


linguagem adequado à situação comunicativa, ao interlocutor e
ao gênero textual.

6. Analisar argumentos e opiniões manifestados em interações


sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se criticamen-
te em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos
humanos e ambientais.

7. Reconhecer o texto como lugar de manifestação de valores e


ideologias.

81
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

8. Selecionar textos e livros para leitura integral, de acordo com


objetivos e interesses pessoais (estudo, formação pessoal, entre-
tenimento, pesquisa, trabalho etc.).

9. Ler textos que circulam no contexto escolar e no meio social


com compreensão, autonomia, fluência e criticidade.

10. Valorizar a literatura e outras manifestações culturais como


formas de compreensão do mundo e de si mesmo.

Como se pode perceber, pela leitura dos objetivos educa-


cionais dos PCNs e da BNCC, as habilidades requeridas ao final
da Educação Básica são atividades complexas, em que, além das
atividades de leitura e produção de textos, o aluno deve estar
atento a questões linguísticas, sociais e discursivas.
Os conhecimentos linguísticos são a ferramenta fundamental
a ser utilizada para que os demais objetivos do ensino de língua
portuguesa sejam alcançados. A análise e a reflexão linguística
são atividades fundamentais para que os estudantes possam
“expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de
uso da linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica” ou
para “analisar argumentos e opiniões manifestados em interações
sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se criticamen-
te em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos
humanos e ambientais”.
Ainda nos Parâmetros Curriculares Nacionais, recolhemos
alguns dos objetivos gerais do ensino de língua portuguesa para
o Ensino Fundamental, no que se refere à gramática:

Na perspectiva de uma didática voltada para a pro-


dução e interpretação de textos, a atividade meta-
linguística deve ser instrumento de apoio para a
discussão dos aspectos da língua que o professor se-
leciona e ordena no curso do ensino-aprendizagem.

82
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Assim, não se justifica tratar o ensino gramatical


desarticulado das práticas de linguagem. É o caso,
por exemplo, da gramática que, ensinada de forma
descontextualizada, tornou-se emblemática de um
conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve
para ir bem na prova e passar de ano, uma prática
pedagógica que vai da metalíngua para a língua por
meio de exemplificação, exercícios de reconheci-
mento e memorização de terminologia. Em função
disso, discute-se se há ou não necessidade de ensinar
gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão
verdadeira é o que, para que e como ensiná-la.

Deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise


linguística, que a referência não pode ser a gramática
tradicional. A preocupação não é reconstruir com os
alunos o quadro descritivo constante dos manuais de
gramática escolar (por exemplo, o estudo ordenado
das classes de palavras com suas múltiplas subdi-
visões, a construção de paradigmas morfológicos,
como as conjugações verbais estudadas de um fô-
lego em todas as suas formas temporais e modais,
ou de pontos de gramática, como todas as regras
de concordância, com suas exceções reconhecidas).

O que deve ser ensinado não responde às imposições


de organização clássica de conteúdos na gramática
escolar, mas aos aspectos que precisam ser tema-
tizados em função das necessidades apresentadas
pelos alunos nas atividades de produção, leitura e
escuta de textos.

O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica


metodologia de definição, classificação e exercitação,
mas corresponde a uma prática que parte da reflexão
produzida pelos alunos mediante a utilização de uma
terminologia simples e se aproxima, progressivamente,
pela mediação do professor, do conhecimento gramatical
produzido. Isso implica, muitas vezes, chegar a resul-

83
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

tados diferentes daqueles obtidos pela gramática


tradicional, cuja descrição, em muitos aspectos,
não corresponde aos usos atuais da linguagem, o
que coloca a necessidade de busca de apoio em ou-
tros materiais e fontes. (PCNs, EF, 1998: 28) [Grifos
nossos]

A reflexão trazida pelos PCNs é extremamente pertinente. As


aulas de gramática têm de ir além da mera classificação e memo-
rização de conceitos. A crítica que se faz aos documentos é que
as diretrizes da mudança são apresentadas, mas não as formas
concretas de se operar essas mudanças. Todavia, a direção a ser
seguida está presente; temos de modificar o modo de ensinar.
Em resumo, a compreensão de professores e alunos acerca
das características de seu sistema mental e a apropriação pro-
gressiva e consciente do funcionamento desse sistema é de suma
importância para que os objetivos listados acima sejam atingidos.
Além disso, o conhecimento acerca do funcionamento da mente
humana em relação a uma de suas propriedades mais fantásti-
cas, a Faculdade da Linguagem, a qual nos distingue como seres
humanos, é algo de suma importância tanto para a educação em
língua portuguesa quanto como conhecimento científico relevante
capaz de dirimir preconceitos.

Considerações finais

Neste capítulo, vimos alguns conceitos importantes sobre


as línguas humanas, tais como: inatismo linguístico, Faculdade
da Linguagem, Gramática Universal, criatividade, entre outros.
Tais conceitos servirão como base para a elaboração de nossa
Metodologia do Aprendizado Linguístico Ativo.

84
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Sistematizamos abaixo alguns conceitos relevantes apresen-


tados neste capítulo.

DURANTE A
ANTES DA DEPOIS DA
ESCOLARIZAÇÃO
ESCOLARIZAÇÃO ESCOLARIZAÇÃO

Faculdade da linguagem Faculdade da linguagem Conhecimentos aprendi-


(GU) + dados do meio social (GU) + conhecimentos dos, com consciência, re-
= fala aprendidos = escrita flexão crítica, autonomia.
padrão

Conhecimento sobre:
Conhecimento conscien- - a natureza das línguas
Conhecimento inconsciente te de características da humanas;
de aspectos das línguas, variedade padrão, co- - características da lín-
como: fonologia, morfolo- nhecimentos sobre va- gua portuguesa;
gia, sintaxe... riação linguística, sobre - possibilidades de ex-
gêneros e tipos textuais, pressão.
organização das ideias,
estratégias de argumen- Leitura crítica
tação, texto e discurso... Reflexão critica
Escrita consciente

85
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Capítulo 3

princípios dA metodologia da
Aprendizagem Linguística Ativa

Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâ-


mico, interno ao indivíduo e dotado de propriedades que
explicam a característica criativa das línguas naturais,
vemos que o aluno, de qualquer série, já chega em sala
de aula com uma gramática adquirida, e com proprie-
dades tais que lhe permitem o uso criativo da língua. A
escola não vai, portanto, ensinar gramática ao aluno,
pois o aluno já chega com uma gramática adquirida. O
que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode
o aluno ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo,
como pode essa nova percepção do que seja gramática
levar à renovação do ensino de língua?

Lucia Maria Pinheiro Lobato, Linguística e Ensino de Línguas

Neste capítulo pretendo mostrar como conhecimentos atuais


sobre a aprendizagem, advindos de pesquisas neurocientíficas,
podem nos ser úteis para promover a tomada de consciência de
nosso conhecimento linguístico.
Como visto no capítulo anterior, temos um amplo conheci-
mento linguístico inato. Se partimos dessa hipótese, não iremos
olhar nossos alunos como tábulas rasas e não iremos “ensinar

87
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

português” para eles. Considerando tal premissa, iremos torná-los


mais conscientes de seu saber linguístico, das características das
variedades da língua e poderemos auxiliá-los no desenvolvimento
de suas habilidades de expressão oral e escrita.

Reflexões sobre o papel das aulas de gramática na Educação


Básica

No trecho apresentado como epígrafe no início deste capítu-


lo, Lucia Lobato (2015) nos propõe um importante questionamen-
to: “Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâmico,
interno ao indivíduo e dotado de propriedades que explicam a
característica criativa das línguas naturais, vemos que o aluno,
de qualquer série, já chega em sala de aula com uma gramática
adquirida e com propriedades tais que lhe permitem o uso criativo
da língua”. Considerando esse saber, a autora nos questiona: “O
que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode o aluno
ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo, como pode essa
percepção do que seja gramática levar à renovação do ensino de
língua?”.
Sobre o lugar da gramática na Educação Básica, os PCNs
(1997: 31) consideram o seguinte:

O ensino de Língua portuguesa, pelo que se pode


observar em suas práticas habituais, tende a tratar
essa fala da, e sobre a linguagem como se fosse um
conteúdo em si, não como um meio para melhorar
a qualidade da produção linguística. É o caso, por
exemplo, da gramática que, ensinada de forma
descontextualizada, tornou-se emblemática de um
conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve
para ir bem na prova e passar de ano — uma prática
pedagógica que vai da metalíngua para a língua por
meio de exemplificação, exercícios de reconheci-

88
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

mento e memorização de nomenclatura. Em função


disso, tem-se discutido se há ou não necessidade de
ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a
questão verdadeira é para que e como ensiná-la.

Se o objetivo principal do trabalho de análise e


reflexão sobre a língua é imprimir maior qualidade
ao uso da linguagem, as situações didáticas devem,
principalmente nos primeiros ciclos, centrar-se na
atividade epilinguística, na reflexão sobre a língua
em situações de produção e interpretação, como
caminho para tomar consciência e aprimorar o con-
trole sobre a própria produção linguística.

Como os PCNs afirmam, é necessária uma reformulação


no ensino de gramática. E essa reformulação tem de levar em
consideração a reflexão sobre a língua: “centrar-se na atividade
epilinguística, na reflexão sobre a língua em situações de pro-
dução e interpretação, como caminho para tomar consciência e
aprimorar o controle sobre a própria produção linguística”1.
Guerra Vicente e Pilati (2011) defendem a ideia de que uma
abordagem gerativista pode dar contribuições para as aulas de
gramática. As autoras argumentam que:

1 Carlos Franchi (1991: 36-37) apresenta a seguinte definição para o conceito de atividade
epilinguística:
“Chamamos de atividade epilinguística a essa prática que opera sobre a própria linguagem,
compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção canônicos
ou não, brinca com a linguagem, investe as formas linguísticas de novas significações. Não
se pode ainda falar de “gramática” no sentido de um sistema de noções descritivas, nem de
uma metalinguagem representativa como uma nomenclatura gramatical. Não se dão nomes
aos bois nem aos boiadeiros. O professor, sim, deve ter sempre em mente a sistematização
que lhe permite orientar e multiplicar essas atividades. [...] Por um lado, ela se liga à atividade
linguística, à produção e à compreensão do texto, na medida em que cria as condições para
o desenvolvimento sintático dos alunos: nem sempre se trata de “aprender” novas formas
de construção e transformação das expressões; muitas vezes se trata de tornar operacional e
ativo um sistema a que o aluno já teve acesso fora da escola, em suas atividades linguísticas
comuns. Mas por outro lado, essa atividade é que abre as portas para um trabalho inteligente
de sistematização gramatical”.

89
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

a gramática seja abordada em sala de aula a partir


do conhecimento linguístico prévio que o estudan-
te traz para a escola. Afastando-nos da ideia de
um ensino que privilegia a mera rotulação de ele-
mentos (contextualizados ou não) de uma oração,
aproximamo-nos do raciocínio de que “saber”, ao
invés de corresponder a “ser capaz de se lembrar e
repetir informações”, deve significar “ser capaz de
descobrir e usar informações” (BRANSFORD et al.,
2007: 5). A descoberta, nesse caso, nada mais é que
o resultado de se trazer à consciência informações
que o estudante já possui sobre a sua própria língua,
encorajando-o a verbalizar esse conhecimento –
portanto, apropriando-se dele –, a ponto de saber
manejá-lo e, ainda, tomá-lo como ponto de partida
para o aprendizado de estruturas próprias da língua
escrita, além da metalinguagem que o estudo da
gramática envolve – essas, sim, aprendidas na escola.
(VICENTE e PILATI, 2011: 8)

Para as autoras, o ponto de partida nas aulas de gramática


deve ser a reflexão sobre os conhecimentos que o aluno já tem
sobre a sua língua. Sendo assim, o professor deve partir das intui-
ções e dos conhecimentos de seus alunos sobre o funcionamento
de sua língua para trazer à consciência deles informações que já
possuem sobre a sua língua.
Considerando a natureza das línguas humanas, tal como
defendido nos capítulos anteriores, a tomada de consciência
do sistema linguístico só acontecerá plenamente quando o es-
tudante puder ver o funcionamento desse sistema. Para que o
aluno compreenda os processos que fazem o sistema linguístico
funcionar, ele deve passar por experiências que o levem a enxer-
gar o funcionamento do sistema linguístico, a compreender seu
funcionamento e a manipulá-lo de forma concreta.

90
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

As práticas docentes devem ir além da mera e abstrata meta-


linguagem e precisam evidenciar como conhecimentos gramaticais
podem ser usados na produção, na leitura, na interpretação e na
produção de textos. Este capítulo é destinado justamente a propor
uma metodologia que nos direcione na promoção dessa tomada de
consciência do sistema linguístico, sem desvincular essa tomada
de consciência dos contextos de leitura, produção de textos e das
situações de uso. Para argumentar a favor da necessidade de per-
cepção do sistema linguístico como um dos elementos cruciais nas
aulas de língua portuguesa, vou recorrer ao pensamento de Magda
Soares presente no texto Alfabetização e letramento: as múltiplas
facetas (2004). Nesse artigo, a autora explica a importância de se
reconhecer tanto a especificidade quanto a indissociabilidade dos con-
ceitos de “alfabetização” e “letramento”. A analogia que pretendo
estabelecer com o que propõe Magda Soares será entre o “estudo
da gramática” e “estudo da leitura e produção de textos”, tomados
como estudos específicos e também indissociáveis.
A autora argumenta que, nas últimas três décadas, houve
mudanças nos paradigmas teóricos no campo da alfabetização.
Em síntese, saiu-se de um paradigma behaviorista, dominante nos
anos de 1960 e 1970, em direção a um paradigma sociocultural,
a partir dos anos 80. A criança deixou de ser considerada depen-
dente de estímulos externos para aprender o sistema da escrita
– concepção presente nos métodos de alfabetização até então
em uso, hoje designados “tradicionais” – e passou a sujeito ativo.
Ao mesmo tempo em que houve essa mudança nos paradig-
mas, o processo de alfabetização passou a ser encarado como algo
de menor importância, frente às questões de letramento. Sem
negar a incontestável contribuição da mudança de paradigmas
na alfabetização, Soares afirma que tal transformação conduziu
a alguns equívocos e a falsas inferências:

91
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Em primeiro lugar, dirigindo-se o foco para o proces-


so de construção do sistema de escrita pela criança,
passou-se a subestimar a natureza do objeto de
conhecimento em construção, que é, fundamen-
talmente, um objeto linguístico constituído, quer
se considere o sistema alfabético quer o sistema
ortográfico, de relações convencionais e frequen-
temente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em
outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da
alfabetização, obscureceu-se sua faceta linguística –
fonética e fonológica. Em segundo lugar, derivou-se
da concepção construtivista da alfabetização uma
falsa inferência, a de que seria incompatível com o
paradigma conceitual psicogenético a proposta de
métodos de alfabetização.

Dissociar alfabetização e letramento é um equí-


voco porque, no quadro das atuais concepções
psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de
leitura e escrita, a entrada da criança (e também
do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre
simultaneamente por esses dois processos: pela
aquisição do sistema convencional de escrita – a
alfabetização – e pelo desenvolvimento. Não são
processos independentes, mas interdependentes,
e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se
no contexto de e por meio de práticas sociais de
leitura e de escrita, isto é, através de atividades
de letramento, e este, por sua vez, só se pode
desenvolver no contexto da e por meio da apren-
dizagem das relações fonema-grafema, isto é, em
dependência da alfabetização. A concepção “tra-
dicional” de alfabetização, traduzida nos métodos
analíticos ou sintéticos, tornava os dois processos
independentes, a alfabetização – a aquisição do
sistema convencional de escrita, o aprender a ler
como decodificação e a escrever como codificação
– precedendo o letramento – o desenvolvimento
de habilidades textuais de leitura e de escrita, o

92
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

convívio com tipos e gêneros variados de textos


e de portadores de textos, a compreensão das
funções da escrita. (SOARES, 2004: 14)

Em resumo, para a autora tanto a alfabetização, que privilegia


os aspectos linguísticos, quanto o letramento, que leva em consi-
deração os aspectos mais sociais da língua, são fundamentais para
o desenvolvimento dos alunos. São processos de natureza funda-
mentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e
competências específicos, que implicam formas de aprendizagem
diferenciadas e procedimentos diferenciados de ensino.
Fazendo agora um paralelo entre o ensino de gramática e
o de leitura e produção de textos, podemos afirmar que o mes-
mo tipo de “movimento” ocorreu nessa outra área do saber. No
ensino tradicional, inicialmente a aula de língua portuguesa era
confundida com aula de gramática. Ou seja, antes dos PCNs, por
exemplo, havia muito espaço para a gramática e pouco espaço
para a produção e interpretação de textos. Depois disso, devido
às críticas feitas à forma tradicional de se ensinar gramática e,
com a emergência das teorias sociointeracionistas, a leitura e
produção de gêneros textuais passaram a ser elementos centrais
das aulas de língua portuguesa e as reflexões gramaticais foram
para um segundo plano.
Desconsiderar as reflexões gramaticais inviabiliza um aspecto
crucial para o desenvolvimento da análise da produção textual,
que é a reflexão gramatical. É por meio do manejo das estruturas
gramaticais da língua que o produtor de textos irá expressar suas
ideias, organizar argumentações, escolher formas de expressar
pensamentos. Quando dispensamos as aulas de gramática, por
exemplo, perdemos a oportunidade de apresentar a nossos alu-
nos a ferramenta crucial para a leitura e produção autônomas e
críticas – a reflexão gramatical.

93
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Também devemos estar conscientes da necessidade de mo-


dificar a forma de se compreender o conceito de gramática e da
metodologia que se tem usado tradicionalmente, para que as
aulas de gramática levem nossos alunos a compreender o funcio-
namento do sistema linguístico.
Antes de passar para discussões propriamente metodoló-
gicas, gostaria de trazer à reflexão um aspecto que considero
de suma importância para a prática docente: a diferença entre o
ensinar e o aprender.

O método do ensino versus o método do aprendizado

Nesta seção farei uma caracterização sobre métodos que


se baseiam no “ensino” ou no “aprendizado”, de acordo com
Cagliari (2009). Em seguida, discuto de que forma tais definições
se aplicam às aulas tradicionais de gramática.
Cagliari (2009: 41) afirma que:

A educação não pode viver só do ensino, caso em


que o professor vem para a sala de aula e despeja
em seus alunos um longo discurso a respeito de um
determinado ponto, como também não pode viver
só da aprendizagem deixando os alunos descobrirem
tudo por si mesmo e livres para fazerem o que bem
entenderem. Deve haver equilíbrio entre os dois
tipos de atividade: o professor deve ensinar, caso
contrário, as escolas não precisariam existir, pois
cada um aprenderia por iniciativa própria. Por outro
lado, o professor não pode ser o dono da educação,
aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que
haja também uma grande participação do aprendiz,
porque, afinal de contas, é ele quem precisa aprender
e mostrar o que aprendeu, sobretudo, saber que
aprendeu.

94
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

No método voltado para o ensino, de acordo com Cagliari:

A situação inicial do aprendiz é interpretada como


um começo absoluto de tudo, o marco zero de uma
caminhada, uma página em branco onde se vai come-
çar a escrever sua vida escolar. No começo do ano,
o professor programa o que vai ensinar sem sequer
conhecer seus alunos, porque o que vai ensinar é um
começo absoluto que não precisa de pré-requisito,
é um ponto de partida considerado ideal para todos
os alunos, independente da maneira de ser ou de
saber de cada um. (2009: 44)

Outra observação relevante do autor refere-se ao conceito


de “aprender” sob a ótica da metodologia do ensino:

Dentro dessa concepção de ensino, aprender é


dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao
conteúdo seguinte. Para isso decorar é fundamental,
sobretudo decorar de modo a repetir um modelo
dado e que será cobrado como expectativa de res-
posta. (CAGLIARI, 2009: 46)

O autor ainda afirma que:

Nem sempre reproduzir um modelo garante a apren-


dizagem, embora garanta, sim, uma réplica de algo
que o aprendiz pode fazer sem saber exatamente o
que está acontecendo. (CAGLIARI, 2009: 46)

Cagliari também faz importantes ressalvas em relação ao


papel da memória no aprendizado. O autor afirma que a “me-
morização é fundamental no processo de aprendizagem, mas
não pode ser um truque” em que o memorizado revela apenas
um modelo aprendido. Ainda, segundo o autor, “no processo de
aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão,

95
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles conhecimentos


necessários para que ele tome as decisões corretas” (Cagliari,
2009: 47).
O autor usa exemplos para casos de repetição e da “memória
como truque” para contextos de alfabetização, mas é fácil imaginar
como isso acontece nas aulas de gramática. Numa aula tradicio-
nal, é respeitada a seguinte sequência didática: apresentação da
definição do conteúdo, depois aplicação do conceito aprendido
em frases ou em certos contextos gramaticais e realização de
atividades em frases descontextualizadas.
Considero que a fala de Cagliari reproduzida acima sintetiza
um importante ponto de vista, o que nos leva a tentar melhorar
a metodologia nas aulas de gramática e de língua portuguesa em
geral. Por vários motivos, damos muita importância a “ensinar”
nossos alunos. Nas aulas de gramática, é raro haver debates,
promoção de atividades criativas ou simulações do uso efetivo
da língua em situações variadas do dia a dia.
Outra variação da metodologia do ensino presente nas aulas
de gramática é a classificação dos elementos gramaticais vistos em
tirinhas. Ora, se um dos principais objetivos do estudo da língua
portuguesa na escola é que os estudantes saiam da Educação
Básica sabendo escrever um texto com ideias ordenadas, com co-
esão e coerência, por que nas aulas de gramática o conhecimento
gramatical é analisado em tirinhas? Por que o aluno é visto apenas
como um receptor, classificador e nomeador de conceitos, se o
objetivo da educação é que ele use tais conceitos com o objetivo
de escrever um texto? Enfim, por que os conhecimentos gramati-
cais não são usados para desenvolver os conhecimentos do aluno
num campo que ele ainda não domina, que é o da escrita?
Para finalizar, a última característica desse método que privi-
legia o ensino é a avaliação focada nos erros. Como nesse método

96
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

de ensino vale a repetição, o que conta na avaliação são os erros


dos alunos, e não os acertos. Vejamos a explicação de Cagliari:

Como o acerto é previsível dentro da perspectiva do


já dominado, são os erros que irão mostrar que o
aluno precisa parar e recuperar o que não dominou.
O problema desse método de ensino é a ênfase no
erro do aluno, não no que ele aprende. Isso é tão
ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização,
que elas não conseguem entender como a escola
pode ser tão injusta. O aluno escreve uma estória
de dez linhas e, só porque cometeu dez errinhos,
ganha nota cinco. E as outras coisas que ele escreveu
certo, as outras trezentos e oitenta letras que foram
escritas corretamente e o resto que fez, e fez bem,
não conta? (CAGLIARI, 2009: 50)

O autor conclui sua argumentação afirmando que esse


método de ensino pode ser considerado um bom método de
“adestramento”. Vale ressaltar que Cagliari afirma que pode ter
“carregado um pouco na tinta” em relação à forma como apre-
senta o método baseado no ensino. Pode até ser verdade, mas
apresentaremos excertos do seu texto por considerarmos que eles
ilustram bem certos estereótipos de aula. E conforme Cagliari, a
escola pode não ser tão rígida assim, mas com certeza não está
tão longe dessa realidade.
Vejamos agora a caracterização do método do “aprender”,
segundo Cagliari. O autor inicia sua apresentação fazendo duas
observações importantes sobre o método do aprender. Esse mé-
todo parte do pressuposto de que o aprendiz, como ser racional,
possui conhecimentos prévios. O aluno não é visto como uma
tábula rasa, como um ser que não sabe nada, muito pelo contrá-
rio: o aluno é considerado alguém que já sabe muito (no caso
específico da gramática, podemos incluir nesses conhecimentos

97
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

a competência linguística, advinda da Faculdade da Linguagem).


Outro ponto importante desse método é a ênfase dada à capaci-
dade de reflexão crítica, que é algo oposto ao condicionamento.
Observemos como o autor explana a expressão “entendi-
mento de algo”:

Entender é ter um conjunto de informações que


expliquem a natureza, a função e os usos do conhe-
cimento. Isso não se adquire linear nem automati-
camente, pelo simples fato de ter ouvido alguém
falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam
familiares e o texto claro e correto. Cada um reage de
maneira individual à construção do conhecimento,
cada um tem um caminho próprio, cada um atribui
valores próprios, muito individuais, aos elementos
do conhecimento que constrói no processo de apren-
dizagem. Tudo isso precisa ser levado em conta,
porque faz parte intrínseca da natureza humana e,
portanto, de cada indivíduo (CAGLIARI, 2009: 55)

Sobre o conceito de aprendizagem, Cagliari afirma:

A concepção de aprendizagem do método 2 [mé-


todo do aprendizado baseia-se nas decisões que
o aprendiz toma, levando em conta as explicações
adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se
aventure no mundo do saber e procure a maneira
correta de dar o passo seguinte, como consequên-
cia de tudo o que aprendeu até o momento. Aqui
está o grande segredo da aprendizagem: o aprendiz
não só aprende o ponto, mas aprende a aprender.
A verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno
generalizar o processo de tal maneira que a inter-
mediação do professor vai, aos poucos, cedendo
lugar a sua própria independência e competência
para buscar as explicações adequadas por si mesmo
e a construir seu próprio saber. Quanto mais cedo

98
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

o aprendiz chegar a essa autonomia, melhor será


para ele: aprenderá melhor, mais rapidamente, mais
dados. (CAGLIARI, 2009: 57)

Em relação ao papel do professor na avaliação, Cagliari argu-


menta que o professor deve assumir um papel de mediador e ajudar
os alunos a construir seus conhecimentos e a compreender onde
estão errando e por quê. Deve-se levar em conta o processo de
aprendizagem e a história de cada um dentro desse processo, para
que se possa comparar os pontos de partida e de chegada do aluno.
Como nosso objetivo é apresentar uma metodologia para o
ensino de língua portuguesa e como a obra de Cagliari trata da
alfabetização, nas seções seguintes, iremos nos aprofundar mais
nas questões relativas aos conhecimentos gramaticais.
Antes de passarmos à metodologia propriamente dita, é
necessário fazer uma ressalva sobre os métodos do ensino e do
aprendizado. O ponto que gostaria de defender é que não existe
uma única forma de fazer aprender, nem uma única técnica que
seja efetiva em todas as situações. O professor, consciente das
necessidades de seus alunos, deve ser capaz de avaliar as variáveis
da situação de ensino e decidir qual método será mais efetivo
para qual conteúdo, ou para qual turma. O importante é que o
professor tenha condições de pensar aulas mais efetivas e criativas
e que tenha um repertório de ações metodológicas mais vasto.
Como métodos que se baseiam no ensino são os mais comuns
na educação brasileira, parece mais interessante investigar com
mais profundidade uma metodologia do aprendizado

Princípios da Aprendizagem Linguística Ativa

Considerando o que vimos nas seções acima sobre os dois


métodos – o método do ensino e o método do aprendizado –, e

99
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

feitas as devidas ressalvas sobre o fato de que o professor deve


ter critérios para decidir os métodos e as técnicas a partir da ne-
cessidade de seus alunos, vejamos de que forma podemos ampliar
nossa forma de pensar o que é o processo de ensino-aprendizagem
para que possamos renovar o ensino de língua portuguesa.
Para ilustrar de que forma as questões metodológicas podem
ser desenvolvidas em sala de aula, proponho uma adaptação das
diretrizes apresentadas na obra de Bransford et al. (2000), para o
ensino de língua portuguesa2.
Segundo essa obra, para que ocorra a aprendizagem efeti-
va, é necessário que os estudantes tenham a oportunidade de
entender o sentido dos assuntos estudados. Os autores citam
o Prêmio Nobel Herbert Simon, que afirmou que o significado
de “saber” alterou-se: “em vez de ser capaz de lembrar e repetir
informações, a pessoa deve ser capaz de encontrá-las e usá-las”
(Bransford et al. 2007: 21).
No entanto, sabemos que, apesar dos avanços na educação,
ainda há entre nós a concepção segundo a qual o ato de aprender
está mais ligado à memória do que ao entendimento. No caso
específico do conhecimento gramatical, como muitos professo-
res não partem do princípio inatista e seguem as descrições das
gramáticas tradicionais, o comum é usar a definição de gramática
“como um conjunto de regras”. Quando se parte desse pressu-
posto, as aulas consistem basicamente na apresentação de regras
e em atividades de memorização.
Para podermos renovar o ensino de língua portuguesa e de
gramática, temos de dar mais ênfase ao estudo de métodos de
ensino. Devemos dar sentido às aprendizagens de nossos alunos,
2 A obra Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola (2000), organizada
por Bransford et al. é o resultado do trabalho de dois Comitês americanos, a Comissão de
Educação e Ciências Sociais e do Comportamento e do Conselho Nacional de Pesquisa dos
Estados Unidos. Aqui no Brasil, a obra foi traduzida e publicada pela editora Senac, em 2007.

100
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

usando como ponto de partida seu conhecimento linguístico táci-


to. Para tanto, é importante que nessas aulas os alunos realizem
tarefas ou enfrentem situações que mobilizem os conhecimentos
adquiridos, sejam capazes de usar diferentes técnicas e métodos,
saibam usar o vocabulário adequado na situação adequada, sai-
bam redigir dentro das normas e construir textos coerentes. A
pergunta que fica é: como promover a aprendizagem ativa nas
aulas de gramática?
Nas seções a seguir, farei uma apresentação dos princípios
da aprendizagem segundo Bransford et al. (2007) e, ao mesmo
tempo, vou propor formas de aplicar tais princípios ao ensino de
gramática.
Os três princípios que guiarão a metodologia são os seguintes:

I) Levar em consideração o conhecimento prévio do aluno;

II) Desenvolver o conhecimento profundo dos fenômenos estu-


dados;

III) Promover a aprendizagem ativa por meio do desenvolvimento


de habilidades metacognitivas.

Princípio I: Levar em consideração o conhecimento


prévio do aluno
Em relação ao primeiro princípio, é interessante verificar
que, na obra Bransford et al. (2007, encontram-se validados os
princípios da teoria gerativista em relação à dotação genética
para a aquisição de uma língua, como se vê no trecho a seguir:

Mesmo os recém-nascidos são aprendizes ativos,


que trazem certo ponto de vista para o ambiente
de aprendizagem. O mundo em que entram não é
uma confusão de ecos e burburinhos em que cada
estímulo é igualmente saliente. Em vez disso, o cé-

101
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

rebro de um recém-nascido dá prioridade a certos


tipos de informações: a língua, os conceitos básicos
referentes aos números; as propriedades físicas e o
movimento de objetos animados e inanimados. No
sentido mais geral, a visão contemporânea a respei-
to da aprendizagem é que as pessoas elaboram o
novo conceito e o entendimento com base no que
já sabem e naquilo em que acreditam. (BRANSFORD
et al., 2007: 27)

Os recém-nascidos já possuem conhecimentos sobre várias


áreas, tais como conhecimentos sobre adição e subtração, co-
nhecimentos básicos sobre física e sobre o funcionamento das
línguas humanas.
Em relação ao conhecimento linguístico, portanto, “levar
em consideração os conhecimentos prévios dos alunos” é uma
afirmação que deve ser interpretada em dois sentidos:

a) Em se tratando de conhecimento linguístico inato, o conheci-


mento prévio dos alunos é um conhecimento muito complexo e
profundo, pois, ao chegarem à Educação Básica, todos os alunos
já dominam sua língua com perfeição, portanto, já possuem um
conhecimento linguístico vasto. No entanto, os alunos não têm
consciência desse conhecimento linguístico e não têm critérios
objetivos para analisar o conhecimento que possuem nem para
avaliarem produções escritas. Considerando que o conhecimento
linguístico dos alunos é vasto, mas é inconsciente, é importante
promover o conhecimento linguístico explícito. Como os conceitos
de língua, gramática e variação linguística são muitas vezes ig-
norados ou interpretados pelas vias do senso comum, tal como
discutido no primeiro capítulo, o aluno pode ainda nutrir falsas
crenças sobre seu próprio conhecimento linguístico;

b) Quanto ao conhecimento linguístico pedagógico, o conheci-


mento sobre aspectos da gramática que o aluno já aprendeu em
outras séries, é necessário que o professor saiba quais conceitos
seus alunos já dominam para que possa auxiliá-los a desenvolver

102
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

ainda mais seus conhecimentos. Para mensurar esses conheci-


mentos, sugiro que se façam testes diagnósticos, para que sejam
avaliados conhecimentos prévios dos alunos. Como veremos a
seguir, saber de onde se está partindo também será importante
para que os próprios alunos possam avaliar seu progresso, ve-
rificar pontos em que não está havendo compreensão e tentar
solucionar suas dúvidas.

Considerando esse primeiro princípio e os comentários em


a) e b) acima, é importante mostrar aos alunos o funcionamento
da língua humana sob diferentes perspectivas para que eles pos-
sam compreender o próprio objeto de estudo e os objetivos das
aulas de português.
Em se tratando dos conhecimentos gramaticais, por exemplo,
se o aluno concebe a gramática como um conjunto de regras a
serem memorizadas, poderá tentar utilizar apenas a memorização
para compreender os novos conhecimentos linguísticos, em vez
da compreensão dos fenômenos, e isso poderá prejudicá-lo em
momentos de reflexão linguística e na própria transferência do
conhecimento.
Para que os alunos possam realmente compreender o funcio-
namento das gramáticas das línguas, todos os aspectos linguísticos
vistos nos Capítulos 1 e 2 podem ser transmitidos para os alunos,
sob a forma de diferentes atividades, para que eles desenvolvam
paulatinamente sua consciência linguística.

Princípio II: Desenvolver o conhecimento profundo


dos fenômenos estudados
Em relação ao desenvolvimento de um conhecimento profun-
do sobre qualquer assunto, o que as pesquisas neurocientíficas
têm descoberto é que não são capacidades gerais, tais como a
memória ou a inteligência, que diferenciam especialistas num

103
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

assunto dos principiantes. Nas palavras dos autores, “conheci-


mento utilizável não é o mesmo que uma simples lista de fatos
desconexos” (Bransford et al., 2007: 26).
As pessoas competentes num dado saber, “os especialistas”,
são aquelas que desenvolveram sensibilidade para compreender
os padrões de informações significativas, não acessíveis aos prin-
cipiantes, por exemplo. “Os conhecimentos de especialistas não
são simplesmente uma lista de fatos e fórmulas relevantes para o
seu campo de atuação; seu conhecimento se organiza na verdade
em torno de conceitos essenciais que orientam seu raciocínio”
(Bransford et al., 2007: 57).
Ainda de acordo com Bransford et al. (2007: 57):

A capacidade de planejar uma tarefa, de perceber


padrões, de gerar argumentos e explicações razoá-
veis, de fazer analogias com outros problemas está
mais intimamente entrelaçada com o conhecimento
do que se acreditava antes. Mas o conhecimento
de um grande conjunto de fatos desconexos não é
suficiente. Para desenvolver competências numa área
de investigação, os estudantes precisam ter oportu-
nidades de aprender e compreender. A compreensão
profunda do assunto transforma a informação factual
em conhecimento utilizável.

Considerando o conhecimento gramatical e o saber incons-


ciente de nossos alunos, como podemos levá-los à compreensão
profunda de seus conhecimentos gramaticais? A sugestão é que
os alunos aprendam a pensar sobre o assunto a ser aprendido tal
como especialistas fazem. Isso pode parecer algo muito difícil e
complicado para qualquer aprendiz, mas não é.
Em relação à gramática de qualquer língua, os especialistas
que estudam línguas sempre tentam identificar os seus padrões,

104
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

identificar a arquitetura invisível por trás do seu sistema. Sendo


assim, devemos ensinar nossos alunos a enxergar a língua de forma
semelhante à dos linguistas. A ideia básica é propiciar contextos
de aprendizagem para que os estudantes possam organizar seus
conhecimentos linguísticos de forma coerente.
Efetivamente como podemos levar os alunos a aprender de
modo ativo e a compreender os processos linguísticos envolvidos?
Para desenvolver uma competência numa área de investigação,
os estudantes precisam:

a) possuir uma base sólida de conhecimento factual;

b) entender os fatos e as ideias dentro do arcabouço conceitual


e organizar o conhecimento a fim de facilitar sua recuperação
e aplicação;

c) usar a metacognição, ou seja, os estudantes devem ser orienta-


dos para a ter o controle de sua própria aprendizagem por meio
da definição dos objetivos da aprendizagem e do monitoramento
do seu progresso em alcançá-los.

Para que os alunos possam “entender os fatos e as ideias no


contexto do arcabouço conceitual e organizar o conhecimento a
fim de facilitar sua recuperação e aplicação”, devemos elaborar
atividades que levem os alunos a:

a. Aprender a identificar padrões;

b. Desenvolver uma compreensão profunda do assunto;

c. Aprender quando, onde e por que usar tal conhecimento,


levando em conta as condições.

Como visto no Capítulo 2, os especialistas da linguagem,


os linguistas, partem do pressuposto de que as línguas humanas

105
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

possuem uma série de propriedades comuns, por serem o resul-


tado de uma habilidade linguística inata, típica da espécie. Além
do próprio conceito de gramática que se distancia do “conjunto
de regras”, ao analisarem as estruturas sintáticas de diferentes
línguas, os linguistas observam, dentre outros fatores, os seguin-
tes elementos:

1. Ordem de palavras: ordem básica da língua e alterações


possíveis na ordenação dos elementos sintáticos, composição
sintagmática da língua;

2. Seleção de argumentos: número de argumentos, tipo semântico


e tipo sintático dos argumentos;

3. Presença de elementos adjuntos na oração;

4. Concordância entre os termos da oração;

5. Efeitos de sentido decorrentes das diferentes combinações


possíveis.

Em outras palavras, em relação ao ensino de gramática, con-


sidero ser de fundamental importância que o estudante compre-
enda o funcionamento da gramática da sua língua, compreenda
minimamente os padrões básicos do sistema linguístico que
ele já domina inconscientemente para que possa usar de forma
consciente os padrões linguísticos da sua língua nas atividades
de leitura e produção de textos.
Dentro da metodologia que estamos propondo nesta obra,
damos a seguinte interpretação para os conceitos supracitados:

a. Aprender a identificar padrões


No caso do conhecimento sintático, os alunos aprenderão
a manipular os padrões básicos da língua portuguesa no que se

106
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

refere à ordem das palavras, às etapas de formação de orações, aos


critérios para a seleção de argumentos (relacionados à regência
verbal) e à concordância verbal. O domínio das estruturas básicas
que compõem o sistema gramatical da língua portuguesa também
auxilia os estudantes a se sensibilizarem para questões relativas a
escolhas lexicais, questões de propriedade vocabular e questões
de variação linguística.

b. Desenvolver uma compreensão profunda do assunto


Por meio do emprego de conceitos adequados acerca dos
fenômenos linguísticos e com o uso de uma metodologia que
valorize a reflexão, os alunos poderão entender o que está em
jogo na formação de uma oração e no uso dos recursos gramaticais
para a organização e expressão do pensamento.
Em relação à compreensão profunda do assunto, é importante
frisar que, dentro da metodologia proposta, os fatos linguísticos
são apresentados para os alunos num nível crescente de comple-
xidade. A ideia básica é a de que tratar vários temas de forma
superficial parece ser uma maneira inadequada de ajudar os estu-
dantes a desenvolver competências que garantam o aprendizado.
No ensino de gramática, é comum atestarmos a apresentação
de um conjunto de fatos de forma superficial. Basta nos lembrar-
mos do conjunto de regras apresentado nos capítulos anteriores,
quando tratamos do tema concordância verbal.
Sendo assim, apesar de o conhecimento gramatical ser uma
área em que vários pontos podem ser observados e analisados,
devemos optar por selecionar elementos mais gerais do funciona-
mento gramatical, para que o aprendizado dos temas estudados
seja efetivo.

107
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Também devemos fornecer muitos exemplos em que o mes-


mo conceito esteja presente para que o aluno possa ter uma base
sólida de conhecimento contextualizado.

c. Aprender quando, onde e por que usar um conhecimento,


levando em conta as condições existentes
Por meio da compreensão do funcionamento da formação de
sentenças em sua língua e dos processos gramaticais essenciais,
os alunos poderão usar seus conhecimentos gramaticais para a
elaboração de texto, leitura crítica, revisão e análise de textos.
Uma vez compreendida a importância da seleção argumental,
por exemplo, o aluno poderá avaliar os efeitos de sentido das
diferentes opções tomadas pelos usuários da língua.
Ao perceber a ordem básica da gramática do português, o
estudante poderá avaliar os resultados semânticos decorrentes
das diferentes mudanças nessa ordem. Ao visualizar a estrutura
sintagmática, compreenderão os contextos do uso da vírgula. Além
disso, os estudantes também terão maior consciência e controle
de suas próprias produções escritas, pois terão as ferramentas
para analisar seus textos.

Princípio III: Promover a aprendizagem ativa por meio do


desenvolvimento de habilidades metacognitivas
Para que ocorra a aprendizagem ativa, o aluno deve estar
envolvido no processo educativo e deve ser levado a compreender
o assunto estudado. Para que haja compreensão, é importante
aprender a identificar quando aprendem algo e quando precisam
de mais alguma informação. Esse aprendizado ativo requer que,
nas práticas de sala de aula, haja momentos para a criação do sen-
tido, para a autoavaliação e para a reflexão sobre o que funciona
e o que precisa ser melhorado no processo de aprendizagem.

108
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

Os alunos devem ter contato, nas aulas de gramática, com as


diferentes formas de expressão da modalidade escrita da língua
(os diferentes gêneros), não apenas como espectadores, mas
como protagonistas do processo de criação linguística e produ-
ção textual, para que possam testar seus conhecimentos, analisar
formas gramaticais, reconhecer novas formas e desenvolver suas
habilidades linguísticas.
Para que os alunos tenham contato com a diversidade das es-
truturas gramaticais, proponho que as reflexões gramaticais sejam
levadas para a sala de aula em níveis de complexidade crescente.
Nos primeiros níveis de contato com as estruturas gramaticais, é
interessante utilizar materiais concretos para que os alunos pos-
sam manipular os conceitos básicos, entender o funcionamento
da língua portuguesa, ter contato com as propriedades linguísticas
relevantes etc.
O material concreto promove a compreensão dos fenômenos
gramaticais e a aprendizagem ativa, despertando a consciência
acerca da estrutura sintática da língua e dos fenômenos gramati-
cais. Além disso, auxilia na identificação dos aspectos em que há
dificuldade de compreensão.
Entre os recursos didáticos disponíveis para promover a cons-
ciência linguística acerca dos conceitos básicos da organização
gramatical, sugiro a utilização dos seguintes:

- Materiais recicláveis (caixas de leite, bandejas de isopor, caixas


de papelão etc.): A ideia é que os estudantes utilizem o material
reciclável para representar as estruturas sintagmáticas, as seleções
argumentais e as relações entre os elementos da oração, a fim
de testar conceitos e avaliar, de forma consciente, os efeitos de
sentido decorrentes da seleção desses elementos.

- Tabelas sintáticas: recurso usado para promover o reconhe-


cimento das estruturas gramaticais, a observação das escolhas

109
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

lexicais, o processo de seleção argumental e os tipos de argu-


mentos selecionados.

- Práticas de produção de texto: em todas as oficinas, os alunos


são incentivados a organizarem suas reflexões e a exporem-nas
em pequenos textos escritos. Essa prática tem o objetivo de aliar
à consciência sintática o desenvolvimento de aspectos da escrita,
tais como a expressão e a organização do pensamento, a precisão
vocabular, o repertório lexical e as inúmeras possibilidades de
expressão linguística.

- Práticas de análise textual: a análise textual tem o objetivo de


discutir aspectos linguísticos e extralinguísticos envolvidos no
processo da escrita, para que os alunos se tornem cada vez mais
conscientes dos elementos implicados na organização textual.

- Práticas de revisão textual: a revisão de textos desempenha um


importante papel para o aprendizado ativo, porque é uma prática
que ensina os alunos a usarem os conhecimentos aprendidos nas
circunstâncias adequadas. A partir disso, os alunos aprendem
quando, onde e por que usar tal conhecimento.

Considerações finais

Nos capítulos anteriores, apresentei os fundamentos teóricos


para a construção da Abordagem do Aprendizado Linguístico Ativo,
que são basicamente os fundamentos básicos da hipótese inatista
sob a perspectiva da Teoria Gerativa. Usando tal teoria, respondi
às seguintes questões: O que é uma língua? Como se adquire
uma língua? Quais os objetivos do ensino de Língua portuguesa
na Educação Básica?
Apresentei também as concepções metodológicas a serem
adotadas para promover a compreensão dos fenômenos gramati-
cais. Parti das descobertas advindas das pesquisas da neurociência
sobre a aprendizagem e mostrei como tais princípios podem ser
adaptados ao ensino de gramática. A proposta do método parte

110
Linguística, gramática e aprendizagem ativa

da compreensão do funcionamento de nossa língua para promo-


ver a consciência e pretende levar os estudantes a desenvolver a
autonomia e o senso crítico em relação à compreensão da língua
e à produção textual.
No próximo capítulo, apresento atividades práticas elabora-
das sobre as bases previamente discutidas.

111
Lobato, Lucia. Linguística e ensino de línguas, 2014
15

Introdução

1. O QUE O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO O objetivo deste trabalho é refletir sobre a interface da linguística com a
BÁSICA DEVE SABER DE LINGUÍSTICA1 Educação Básica.
É ponto pacífico que um dos legados da linguística de grande utilida-
Lucia Maria Pinheiro Lobato de para o contexto escolar é a visão não-preconceituosa sobre línguas e
variedades de línguas. Esse foi um legado da linguística estrutural que se
consolidou com os desenvolvimentos subsequentes da linguística, sobre-
tudo a sociolinguística variacionista. Essa visão não-preconceituosa derivou
naturalmente da perspectiva da língua como estrutura, daí que o caráter
não-normativo da linguística se opôs frontalmente à atitude de preconceito
linguístico que existia até então. Exemplos de preconceito linguístico são
o conceito de língua primitiva (i.e., a ideia de que a povos de cultura dita
‘primitiva’ correspondem línguas igualmente ‘primitivas’), a valoração de
certas variedades de língua ou registros de língua em detrimento de outras
variedades e registros, e assim por diante. Acho que ninguém hoje contestaria
que o estudante que vai ser professor de ensino básico deve receber uma
formação que o torne isento de preconceitos ou, pelo menos, o sensibilize
contra preconceitos linguísticos e o norteie para saber como reagir diante
1  Palestra proferida em 13 de dezembro de 2003, em que a autora integrou a mesa-redonda de situações de variação dialetal dentro de sua sala de aula.
intitulada A Linguística e o Professor de Ensino Básico, realizada na 2ª Reunião Regional da Sociedade Mas não é sobre esse tipo de fato que quero me deter hoje. Quero
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza - CE.
me concentrar numa outra questão – a questão de ser, ou não, necessário
16 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 17

que o professor de ensino básico tome conhecimento do conteúdo de caráter taxionômico, porque arrola fatos e regras de estrutura linguística.
certas análises linguísticas mais recentes e de maior consenso, e seja infor- Um exemplo disso é o capítulo dessas gramáticas sobre conjunções e tipos
mado sobre questões linguísticas gerais, como, por exemplo, diferentes de orações. São apresentadas uma lista de conjunções coordenativas e
concepções de linguagem. Em palavras mais gerais: O que o professor subordinativas e uma lista de orações coordenadas e subordinadas. De
de ensino básico tem de saber e o que não precisa saber sobre análises qualquer modo, gramática nesse sentido é um compêndio com descrições
linguísticas específicas e sobre questões gerais em debate? de uma língua.
Trazer esse tipo de questão para debate se justifica por duas razões. Num outro sentido, gramática tem caráter dinâmico e corresponde a
De um lado, porque há uma grande defasagem entre o conhecimento um construto mental, que cada membro da espécie humana desenvolve,
sobre estrutura linguística acumulado nas Universidades, nos centros de desde que exposto a dados da língua em questão, já que se trata aqui
pesquisa, e o conhecimento gramatical veiculado nas gramáticas escolares. de gramática de uma língua. Na minha fala vou restringir esse construto
De outro lado, porque qualquer exigência sobre conteúdo a ser introduzida mais ainda — vou tratar mais especificamente de gramática da língua
na formação dos professores tem de ser muito bem medida, a fim de que materna. Quando se começa a refletir sobre fatos de língua, fica claro que
não se queira transformar em linguista todo professor de língua do ensino os seres humanos nascem com uma estrutura mental organizada de tal
básico. Meu objetivo aqui é apresentar o problema, esperando que suscite modo que torna a aquisição de língua algo inevitável, inexorável. Podemos
discussões. Acho que essa questão é real e tem de ser debatida num fórum chamar essa estrutura mental inata de diferentes nomes. Muitos usam
amplo, a fim de que qualquer mudança seja fruto de um consenso. Isso é as expressões gramática universal, faculdade de linguagem ou dispositivo
necessário porque a mudança no modo como se trata língua e gramática de aquisição de língua.2 É em virtude dessa gramática universal, dessa
seria total, caso viesse a ser colocada em prática, nos moldes como estou faculdade de linguagem, desse dispositivo de aquisição de língua, que
pensando que deveria ser. todo membro da espécie humana é capaz de adquirir uma língua, sem
qualquer ensino, bastando para tanto a experiência do contato com a
língua nos primeiros anos de vida. Por mais que fiquem em contato com
O que é Gramática? falantes de uma língua natural e sejam treinados para falar, papagaios
e chimpanzés nunca chegarão a desenvolver uma gramática de língua
Inicialmente, por uma questão de clareza, é preciso distinguir dois con- natural com sua propriedade mais característica, a criatividade. A criati-
ceitos de gramática. vidade vem naturalmente com a aquisição da língua: a criança se torna
Num certo sentido, gramática é algo estático – é um conjunto de capaz de produzir e entender enunciados inteiramente novos, que nunca
descrições a respeito de uma língua. É nesse sentido que a palavra é usada
quando dizemos ‘a gramática do Celso Cunha’, ‘a gramática do Rocha 2  As expressões são empregadas sob a ótica gerativista. Como referência adicional, pode-se citar
a obra seminal Aspects of the Theory of Syntax (CHOMSKY, 1965), e Knowledge of Language: Its nature,
Lima’. Cada uma dessas gramáticas tem suas propriedades específicas. origin and use (CHOMKSY, 1986), esta última fundadora do modelo de Princípios e Parâmetros.
A de Rocha Lima é tida em geral como a mais normativa das três. A de Para uma sistematização dos fundamentos epistemológicos, indicamos a obra traduzida para o
português Novos Horizontes no Estudo da Linguagem e da Mente (CHOMSKY, trad. 2006). Para uma
Celso Cunha já é não-normativa, mas compartilha com a de Rocha Lima o abordagem didática, indicamos o Novo Manual de Sintaxe (MIOTO et alii, 2013). [Nota das editoras]
18 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 19

tinha produzido ou ouvido antes. Uma dada língua, qualquer que seja ela, A escola como agente eliciador da aquisição de
é uma manifestação da gramática universal, da faculdade de linguagem. novos estágios de conhecimento da língua
A explicação para o uso criativo que os falantes/ouvintes fazem de sua
língua só pode estar em propriedades da estrutura mental inata que Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâmico, interno ao
chamamos de faculdade de linguagem. Papagaios e chimpanzés nunca indivíduo e dotado de propriedades que explicam a característica criativa
chegarão a desenvolver uma gramática de língua natural, e, em conse- das línguas naturais, vemos que o aluno, de qualquer série, já chega em
quência, a aprender uma língua natural, porque lhes falta a faculdade sala de aula com uma gramática adquirida, e com propriedades tais que
de linguagem. Em termos mais concretos, falta-lhes a estrutura mental lhe permitem o uso criativo da língua. A escola não vai, portanto, ensinar
inata relativa à linguagem. Ao linguista teórico cabe a tarefa de analisar gramática ao aluno, pois o aluno já chega com uma gramática adquirida.
línguas de modo comparativo, a fim de poder fornecer uma explicação O que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode o aluno ainda
das propriedades da gramática universal e do fato de haver variação adquirir? Enfim, em sentido mais amplo, como pode essa nova percepção
entre as línguas. Nesse momento, não é isso o que me interessa. O que do que seja gramática levar à renovação do ensino de língua?
me interessa é o fato de haver, para todos nós que adquirimos uma O processo de aquisição de uma língua é algo que acontece com a
língua, uma gramática internalizada, que compartilha propriedades da criança, e não algo que a criança faz ou algo que fazem com ela. Como eu
gramática universal, mas que tem também propriedades específicas. disse, nesse processo desenvolve-se no cérebro da criança uma entidade
Gramática, nessa nova percepção, é algo dinâmico capaz de explicar a biológica que faz parte do seu legado genético – a gramática universal
criatividade, típica das línguas naturais, e interno, pois corresponde ao –, de acordo com propriedades específicas dos dados linguísticos a que
desenvolvimento biológico de uma faculdade mental, a faculdade de ela ficou exposta. O processo de aquisição de língua natural corresponde,
linguagem (às vezes também chamada de gramática universal), vista então, ao desenvolvimento de uma gramática particular, tendo como pano
aqui como um órgão do cérebro. de fundo a gramática universal, mas a partir da exposição a dados de uma
Em resumo, existem pelo menos dois conceitos de gramática – dada língua. Assim, uma criança nascida em São Paulo, mas em contato
segundo um deles, gramática é algo estático, externo ao indivíduo e com dados do japonês, vai adquirir a gramática do japonês, e uma criança
taxionômico; segundo o outro, gramática é algo dinâmico, interno ao nascida na mesma cidade, mas em contato com dados do português do
indivíduo e com propriedades que explicam o caráter criativo do uso Brasil, vai adquirir a gramática do português do Brasil.
das línguas naturais. O primeiro ponto que quero salientar aqui, a esse respeito, é que a
No meu modo de ver as coisas, é fundamental que o professor de criança adquire a gramática de sua língua sem ensino. Ela própria é dotada
língua perceba essa diferença e trabalhe em sala de aula com gramática de um dispositivo de aquisição de língua, que permite o desenvolvimento
nessa última acepção – como algo dinâmico, interno ao indivíduo e com da gramática da língua, em seu cérebro, a partir da faculdade de lingua-
propriedades explicativas do caráter criativo do uso das línguas naturais. gem e da exposição aos dados da língua. Por que não fazer o mesmo
no ensino de língua? Aceitando essa postura, a escola tem de adotar a
mesma metodologia do dispositivo de aquisição de língua: a mente do
20 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 21

aluno simplesmente desenvolve os novos processos, a partir da expo- turas dando ênfase ao fato de que a cada estrutura (quer morfológica,
sição a dados que manifestam esses processos. Vou então concluir que quer sintática, e levando em conta o fator prosódico) corresponde um
a primeira propriedade do ensino de língua materna segundo as novas certo resultado semântico. Com a técnica de resultados, o aluno verifica
diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais deve ser a adoção do por si próprio que o ensino gramatical tem uma razão de ser, pois percebe
procedimento de descoberta. Isto é, em vez de ser taxionômico, o ensino que sentido obtém com tal ou qual estrutura. Ele então se dá conta de
deve levar à descoberta. que esse tipo de estudo contribui para o seu domínio de estruturas e, em
Uma segunda característica desse ensino deve ser a adoção da consequência, para o seu domínio do texto – que estruturas escolher, de
metodologia de eliciação. Na verdade, em princípio o aluno adquiriria acordo com o significado que quer obter.
toda a informação que se possa imaginar por ele próprio, sem precisar de
eliciação. Isto é, o procedimento de descoberta a partir do contato com
dados da língua é muito poderoso e tem grande amplitude. Basta pensar O grande desafio
em tudo o que Aristóteles descobriu, partindo somente da sua intuição.
O problema de se usar o procedimento de descoberta, sem auxílio de Os Parâmetros Curriculares Nacionais decretaram o fim do ensino gramatical
metodologia adicional, é que o processo seria muito lento. É preciso, tal qual é praticado atualmente no Brasil. No entanto, isso não significa
portanto, que seja usada também uma metodologia de eliciação, ou seja, uma eliminação do ensino gramatical.4 A visão de gramática no ensino
uma metodologia que direcione o aluno a tirar conclusões e desenvolver gramatical atual é errônea, e é preciso, sim, a presença da gramática no
seu conhecimento sobre a língua.3 Consideremos a questão da estrutura- ensino, mas sob uma nova percepção. Caso se aceite essa posição, tem
ção das orações e dos períodos. No caso das orações chamadas causais de haver uma difusão geral dessa mudança de perspectiva sobre o que
e explicativas, para ganhar tempo, é preciso que seja preparado material se entende por gramática e ensino gramatical. Isto é, cada professor de
didático bem direcionado, para que o próprio aluno tire suas conclusões ensino fundamental e médio tem de assimilar o conceito de gramática
a respeito das distinções que a língua faz, em contraste com as distinções como entidade biológica. Tem de haver também, em consequência,
que a gramática taxionômica propõe. uma mudança do conteúdo programático de cada nível escolar, e uma
Finalmente, uma terceira característica do ensino gramatical é que preparação do corpo docente de cada nível escolar para essa mudança.
deve usar uma técnica de resultados. Existe nas línguas uma relação entre 4  Essa posição, em defesa da reformulação do ensino de gramática, está colocada de forma
forma e conteúdo, de tal modo que variações de forma levam a diferenças bastante clara no texto dos PCNs: [A gramática], ensinada de forma descontextualizada, tornou-se
emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar
no conteúdo. A técnica de resultados consistiria em trabalhar com estru- de ano – uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação,
exercícios de reconhecimento e memorização de nomenclatura. Em função disso, tem-se discutido se
3  O seguinte trecho dos Parâmetros Curriculares Nacionais evidencia a preocupação com a falsa há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira
ideia de que o aprendiz constroi o conhecimento de forma espontaneísta, e ressalta o importante é para que e como ensiná-la (Brasil, 2000, p. 39, grifos nossos). Note-se, porém, que os PCNs não
papel de mediador do professor: Para que essa mediação [entre os elementos da tríade aluno, objeto avançam em relação a uma justificativa teórica para esse questionamento. Diferentemente, em
de conhecimento, e ensino] aconteça, o professor deverá planejar, implementar e dirigir as atividades Lobato, existe um fundamento epistemológico e teórico na formulação do conceito de língua
didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do aluno (Brasil, e gramática, o qual deve orientar as decisões relativas à metodologia proposta para o ensino de
2000, p. 29). [Nota das editoras] língua. [Nota das editoras]
22 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 23

É evidente que acho que essa difusão do conceito de gramática Para dar mais concretude à discussão. consideremos o par de frases
biológica e essa mudança de conteúdo programático são necessárias. Acho, abaixo:
mais ainda, que cabe à Universidade formar o novo professor de língua,
um professor capaz de incorporar nas suas aulas os novos conhecimentos (1)  João acha que ele fala russo fluentemente.
da linguística teórica. Esse é o nosso grande desafio: formar professores (2)  Ele acha que João fala russo fluentemente.
capazes de renovar o ensino de língua, à luz da teoria gramatical moder-
na. Isso significa que temos de redirecionar, também na Universidade, o Todos os falantes atribuem duas interpretações a ‘ele’ em (1): ou ‘ele’
modo como damos aula de língua materna. Nessa tarefa, a meu ver, na tem como antecedente ‘João’, ou se refere a uma pessoa não identificada
Universidade terá de haver um trabalho conjunto entre os docentes de na frase. Isto é, ‘ele’ pode ter referência dependente da referência de ‘João’,
linguística e docentes de língua, para não haver duplicidade de conteúdo. ou pode ter referência livre. Em (2), no entanto, ‘ele’ só aceita a interpre-
Qualquer que seja a partição de tarefas, certos fenômenos têm de ser tação de referência livre. Ora, há uma interpretação para o pronome ‘ele’
estudados e difundidos sistematicamente. Cito alguns deles. em (1) que deixa de existir em (2). Caso as crianças adquirissem a língua
É preciso, antes de tudo, que os nossos alunos aprendam a fazer por analogia, deveriam, por analogia de (2) com (1) atribuir a ‘ele’ duas
demonstrações empíricas de que existe a faculdade de linguagem. Qualquer interpretações em (2), exatamente como fazem em (1). Mas não o fazem.
fenômeno linguístico pode servir de tema para a demonstração. Pode- E não o fazem sem, no entanto, receber instrução a esse respeito. Além do
se escolher uma classe de palavras (substantivos, por exemplo), ou uma mais, esse tipo de fato não é específico ao português. Outras línguas fazem
forma verbal (imperativo, por exemplo), ou um fenômeno morfossintático precisamente a mesma distinção. Tudo leva a crer, portanto, que estamos
(concordância, por exemplo), ou uma construção sintática (interrogativas diante de um fenômeno que decorre da existência de uma faculdade de
com uso de pronome interrogativo, por exemplo). Qualquer fenômeno linguagem. A necessidade de os alunos aprenderem a fazer esse tipo
serve, porque para qualquer um existem exceções, e as exceções podem de argumentação é real, pois só se os nossos alunos se derem conta de
ser usadas na construção de uma argumentação com base na pobreza que existe, de fato, a faculdade de linguagem, poderão se envolver com
do estímulo: como a criança chega a dominar o uso do fenômeno em convicção num projeto de renovação do ensino.
questão, apesar das exceções, se não houve ensino a respeito? Nesse tipo Os fatos de língua a serem examinados sob um novo prisma são inú-
de argumentação, a conclusão inevitável é que existe uma faculdade de meros, e cito três. O primeiro é a questão das relações gramaticais. Noções
linguagem guiando a geração de expressões linguísticas. Isso porque, caso como sujeito e predicado, complemento e adjunto têm sido muito estuda-
a criança adquirisse a língua por imitação ou analogia, não conseguiria das, e seria salutar ter material didático que incorporasse o conhecimento
evitar a geração dos casos de construção agramatical que têm relação recente sobre esses temas. Não tenho como me alongar sobre cada item
analógica com os casos gramaticais. Ela não conseguiria evitar, pois faria aqui. Aponto, brevemente, o fato de os conceitos de sujeito e objeto serem
uma generalização indutiva a partir dos casos gramaticais. Como os casos universais, mas resistirem a uma definição que cubra suas características
agramaticais não são gerados, sabemos que há algo a mais, que não o nas diferentes línguas. Por isso, apesar de integrarem a gramática universal,
processo de indução, guiando o processo de aquisição de língua. têm de ser caracterizados na gramática particular. Sobre os conceitos de
24 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 25

argumento e adjunto, a literatura recente é rica e variada, e tem o que perspectiva do que seja gramática, e, em decorrência, com novos mé-
contribuir para uma explicação mais didática desses conceitos. O segundo todos didáticos.
tema que cito é o das classes de verbos. Vamos continuar falando de verbos Vou concluir mostrando algumas razões para não se abandonar total-
transitivos e intransitivos, quando já se sabe que existem aí, na verdade, mente o ensino gramatical na escola. A primeira razão é o fato de ao texto
três, e não duas classes? Isso porque os intransitivos correspondem a duas e às atividades discursivas em geral subjazer a mesma gramática abstrata
classes, a dos inergativos e a dos inacusativos. O terceiro fato que enumero que subjaz às palavras, aos sintagmas, às orações e às frases. Não pode
é a classificação das orações. Muito já se sabe sobre os tipos oracionais, ser diferente, pois, se assim o fosse, a mente humana estaria operando
além da classificação tradicional, e vale a pena rever essa questão. de modo antieconômico, com princípios de tipo diferente para domínios
Finalmente, é preciso mudar a postura diante das análises linguísticas. diferentes do mesmo objeto. O natural é considerar que, para o mesmo
No caso de questões em aberto, é preciso abrir o jogo mostrando que objeto, são usados os mesmos princípios abstratos. No texto, são usados
não se tem ainda uma resposta. Estaremos assim adotando uma postura princípios que extrapolam o limite da sentença, mas, certamente, não são
científica, e isso é muito bom. de natureza diferente dos princípios do limite da sentença. A diferença,
Estou fazendo essas considerações a respeito do ensino superior, e a meu ver, está nas unidades com que a gramática opera num e noutro
tomando por verdadeiro que a mudança deve ocorrer a partir da Universi- domínio, e não na natureza dos princípios.
dade. Para o ensino básico, acho que a mudança total vai ocorrer paulatina- Em segundo lugar, considero que não se deve abandonar totalmente
mente, à medida em que entrarem para o corpo docente professores que o material gramatical porque a explicitação dos mecanismos de que as
incorporaram as novas aquisições da linguística. De qualquer modo, acho línguas fazem uso e de seu efeito semântico ajuda o aluno a ganhar tempo
que a mudança metodológica tem de ser imediata: em vez de se partir no seu processo de domínio das técnicas do texto e das atividades discur-
de definições, partir de dados empíricos, com adoção do procedimento sivas em geral. A escrita, por exemplo, tem características muito peculiares,
de descoberta da metodologia de eliciação e da técnica dos resultados. e aceita estruturas complexas muito mais facilmente do que a fala, por
A questão, para o ensino fundamental e médio, é que a renovação em estar livre das limitações de memória que caracterizam o discurso oral.
maior profundidade vai depender de uma atualização do corpo docente. Não vejo como seria possível ter um ensino produtivo sem explicitação
Esse é um fato a ser aceito. No entanto, essa é somente uma tarefa a mais, de mecanismos estruturais.
parte do desafio geral. A terceira razão é que, se usado adequadamente o método proposto
– uso do procedimento de descoberta, da metodologia de eliciação e da
técnica dos resultados –, o aluno vai chegar por si próprio à conclusão
 or que não abandonar totalmente
P de que existe uma faculdade de linguagem e de que ele próprio tem
o material gramatical? uma gramática interna, biológica. A visão de língua do aluno certamente
mudará. Além disso, o ensino estará contribuindo para que cada aluno
Defendi que o ensino gramatical taxionômico tem de ser abandonado, conheça um pouco mais da natureza humana.
mas que o ensino gramatical tem de permanecer, só que sob uma nova
26 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 27

 asos de Divergência entre Análises


C pelo sujeito manifesto da oração que segue parecer, como se vê nos pares
Tradicionais e Análises Recentes em (5):

Vou examinar três casos de divergência entre análises da Gramática (5)  a. João parece ser inteligente.
Tradicional e análises mais recentes da Linguística. b. Essa manteiga parece estar rançosa.
c. Esse gato parece estar miando rouco.

Casos de Erro de Análise Uma terceira evidência é o fato de que, nesse tipo de exemplo em
(5), o sujeito de ‘parece’ nos exemplos abaixo é sujeito sintático desse
O primeiro caso que vou apresentar é de erro de análise. Um caso exemplar verbo, mas não é um argumento semântico do mesmo verbo – é, antes,
é a análise do argumento sentencial que ocorre com o verbo parecer, em um argumento semântico do predicado à direita de ‘parece’ (argumento
frases como (3): de ‘ser inteligente’ em (6a), de ‘estar rançosa’ em (6b) e de ‘estar miando
rouco’ em (6c):
(3)  a. Parece que João é inteligente.
b. Parece que vai chover. (6)  a. João parece [ ___ ser inteligente].
b. Essa manteiga parece [ ___ estar rançosa].
As orações que ocorrem depois de ‘parece’ em (3) – que João é c. Esse gato parece [ ___ estar miando rouco].
inteligente, que vai chover – são tratadas como subjetivas pela Gramática
Tradicional e como objetivas diretas pelas análises linguísticas recentes. Se essa análise está correta (como já concluíram todos os linguistas
Há evidências de que essas orações são efetivamente objeto direto, e não que sobre ela se debruçaram), a análise tradicional que é passada ano após
sujeito. Uma dessas evidências é o fato de que as frases em (3) aparecem ano aos alunos está errada. Sobre esse tipo de caso, eu própria não tenho
com um sujeito pronominal manisfesto em línguas que não têm sujeito dúvida: tem de haver uma mudança nas nossas gramáticas escolares, para
pronominal nulo, como se vê em (4): incorporar essa nova análise.

(4)  a. Il semble que Jean est intelligent.


It seems that John is intelligent. Casos de Análises Aprofundadas
b. Il semble qu’il va pleuvoir.
It seems that it is going to rain. Um caso diferente é o de análises que a linguística aprofundou. Nesse
caso, está a divisão da Gramática Tradicional dos verbos principais em dois
Uma outra evidência é o fato de a posição vazia antes de ‘parece’ (a grandes grupos – transitivos e intransitivos. Segundo a análise linguística,
posição que é ocupada por il em francês e it no inglês) poder ser ocupada em vez de uma divisão bipartite, temos uma divisão tripartite. Isso porque
28 L inguística e ensino de línguas O Q U E O P R O F E S S O R DA E D U C AÇ ÃO B Á S I C A D E V E S A B E R D E L I N G U Í S T I C A 29

os verbos intransitivos são subdivididos em dois grupos – verbos inacu- (9)  a. Marisa morreu.
sativos e verbos inergativos. Em que consiste a diferença entre a visão b. Morta Marisa, ...
tradicional e a visão mais recente? Que argumentos temos para dizer que
há uma divisão tripartite e não bipartite? (10)  a. A semente germinou.
Primeiramente, consideremos o critério que a Gramática Tradicional b. Germinada a semente, ...
usa para chegar a uma divisão bipartite. O critério é o número de argu-
mentos: um verbo transitivo tem dois argumentos (sujeito e complemento) (11)  a. O bebê soluçou.
e um intransitivo tem um único argumento (sujeito). O que a pesquisa b. *Soluçado o bebê, ...
recente identificou foi que, no caso de verbos intransitivos, o único argu-
mento que ocorre, e que sintaticamente é o sujeito, para certos verbos (12)  a. O trem apitou.
tem correspondência com o sujeito de verbos transitivos e para outros b. *Apitado o trem, ...
verbos tem correspondência com o objeto de verbos transitivos. Isso fica
claro com alguns exemplos. Vamos considerar o uso de orações reduzidas (13)  a. Luiza sorriu.
de particípio. Se tentamos construir uma reduzida com verbo transitivo, b. *Sorrida Luiza, ...
vemos que só o objeto pode estar presente, como em (7):
Para distinguir esses dois comportamentos, os verbos de (8)-(10)
(7)  a. Maria lavou a louça. recebem uma denominação diferente da dos verbos em (11)-(13): os verbos
b. Lavada a louça, ... de (8)-(10) são denominados inacusativos e os de (11)-(13), inergativos.
c. *Lavada Maria, ... Sobre esse tipo de caso, já não é tão óbvio que as nossas gramáti-
cas escolares tenham de incorporá-lo. Aqui a coisa fica um pouco mais
Em (7c), só conseguimos interpretar Maria como o objeto e a oração complicada porque os fatos já são mais complexos. Mas há problemas
é agramatical exatamente porque nesse exemplo o sintagma Maria está na não-incorporação. Primeiro, está cada vez mais em uso essa distinção,
sendo interpretado como sujeito. Passando para o exame de verbos intran- de modo que quem não a conhecer vai ter dificuldade no entendimento
sitivos, vemos que o argumento desses verbos se comporta efetivamente de estudos linguísticos (e não estou falando de estudos escritos em ou-
ora como o objeto de verbos transitivos, como os verbos de (8)-(10), e ora tras línguas ou estudos sobre línguas exóticas, ou, ainda, estudos muito
como o sujeito de verbos transitivos, como os verbos de (11)-(13): especializados). Segundo, vai haver um momento em que a educação
escolar sobre língua vai ter de introduzir esses conceitos. No momento,
(8)  a. O bebê nasceu. são introduzidos nas Universidades, pelo menos nos centros onde se
b. Nascido o bebê, ... faz pesquisa, de modo que muitos alunos atuais, futuros professores de
ensino básico, já têm esse conhecimento. Até que ponto está correta essa
omissão de informação? A questão pode ser resumida do seguinte modo:
30 L i n g u í s t i c a e e n s i n o d e l í n g ua s

De um certo ponto de vista, omitir essa informação é sonegar informação.


De outro ponto de vista, dar essa informação pode ser considerado fazer
análise linguística, além dos propósitos do ensino escolar.

Casos de Análises Confusas

O último caso que vou considerar é o de análises tradicionais que têm dado
muita margem a discussão exatamente por falta de exatidão e clareza.
Situa-se aí a distinção entre orações causais e explicativas. Poderíamos levar
todo um dia discutindo essa distinção, sem chegarmos a uma conclusão.
Para esse tipo de caso, como vai ser necessária uma revisão da análise
tradicional, mas acho que ainda vai levar algum tempo antes de termos
chegado a uma publicação que deixe clara a distinção, o melhor que o
professor pode fazer é deixar uma certa distância entre ele próprio e a
Gramática Tradicional. Isto é, o professor não deve se comprometer com
a análise tradicional: deve apontar a análise tradicional e deixar clara a
confusão que a ela subjaz.

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