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FRAGMENTOS DE UMA ESTÉTICA TEATRAL

Article · May 2003


DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i57p244-248

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Luiz Fernando Ramos


University of São Paulo
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LUIZ FERNANDO RAMOS

FRAGMENTOS
DE UMA
ESTÉTICA TEATRAL

Q
uando Aristóteles, no século quarto antes de

Cristo, formulou as anotações de aula que ter-

minariam sendo organizadas pelos seus pós-

teros como um tratado acerca da tragédia e da

poesia épica, inaugurava-se, no Ocidente, uma

tradição de pensamento sobre o fenômeno tea-

tral que teria desdobramentos até os dias de

hoje. Se houve uma constante nessa sucessão de contribuições, a

maioria diretamente tributária da Poética de Aristóteles, foi a

dificuldade em se estabelecerem parâmetros universais nessa re-

flexão sobre o teatro, acirrada pela forte determinação que cada

época e suas respectivas práticas teatrais exerciam nesse estabe-

lecimento. Por isso mesmo são raros os tratados que sobreviveram

ao teatro que procuraram analisar e a história das idéias sobre a


LUIZ FERNANDO
RAMOS é professor de arte teatral é um conjunto de exceções que confirmariam essa
História e Teoria do Teatro
do Departamento de Artes
regra. O livro Da Cena em Cena, do professor emérito da Escola
Cênicas da USP.
de Comunicações e Artes da USP, Jacó Guinsburg, é um legítimo
Da Cena em Cena, de J. representante dessa tradição, na medida em que não só reúne re-
Guinsburg, São Paulo,
Perspectiva, 2001. flexões esparsas sobre o teatro, realizadas ao longo dos últimos

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quarenta anos, como reflete, sobremaneira, na Época Helenística e Romana”, traz a voz

o ambiente teatral do pós-guerra no mundo autorizada do estudioso especializado em

todo e dialoga abertamente com alguns dos cultura judaica, que derrama sua erudição

intelectuais que pretenderam interpretá-lo. e ilumina nossa ignorância acerca dos po-

Os textos têm datas e origens variadas, fru- derosos indícios de uma teatralidade ca-

tos ora da atividade didática, ora de colabo- racterística dos hebreus. A ilação mais es-

rações jornalísticas e apresentações de li- timulante é a que localiza uma influência

vros ou traduções. Nem por isso deixam de das tradições gregas do período homérico

representar um todo orgânico, em que re- sobre a cultura semita e especula como,

flexões de décadas plasmam-se diante do apesar das interdições religiosas, essas prá-

leitor numa visão homogênea e coerente ticas se desenvolveram, influenciando, in-

do teatro como objeto de reflexão. Assim, clusive, ritos preservados até hoje nas ce-

se o leitor não encontra uma estética teatral lebrações dos judeus. Coroando essa in-

acabada, pode, pela reincidência de certos vestigação dos vestígios de um teatro

pontos de vista em artigos distantes no tem- hebreu em textos milenares, Guinsburg

po e na finalidade, depreender algumas pre- apresenta a tradução de um fragmento de

missas fundamentais que conformam o Exagoge, tragédia escrita por Ezekielos

pensamento de Guinsburg sobre o teatro e de Alexandria entre os séculos II e I antes

configuram, mesmo que fragmentariamen- de Cristo. Contando a saga dos judeus no

te, uma estética particular. antigo Egito e sua odisséia até a terra pro-

Para efeitos desta resenha seria interes- metida, o texto traz como um dos actantes,

sante agrupar os dezesseis itens do livro em ou personagens, o próprio Deus, e revela

regiões específicas, que organizam algu- o tom imperativo, e quase violento, da

mas das idéias centrais a serem destacadas. divindade judaica.

Em ordem inversa valeria enumerar os três O bloco intermediário do livro, nesta

capítulos finais, voltados para a discussão arbitrária separação aqui proposta, é o mais

sobre a existência da prática teatral na cul- eclético, reunindo desde uma tradução,

tura hebréia, os nove intermediários, com com comentário, do célebre texto de

pesos e temas diferenciados, mas que têm Heinrich von Kleist (1777-1811), Sobre

em comum refletirem sobre as estéticas de o Teatro de Marionetes, até um artigo re-

outros pensadores e artistas românticos e cente sobre as prerrogativas dos textos

pós-românticos, e os quatro iniciais, que dramáticos clássicos frente a encenadores

expressam a reflexão mais original do au- cada vez mais intervencionistas. O traba-

tor e merecerão aqui um aprofundamento. lho de maior fôlego, porém, é o ensaio

O artigo “Elementos de Espetáculo e “Nietzsche no Teatro”, já publicado em

Drama entre os Hebreus”, seguido de “In- 1992, como posfácio à tradução de

dícios de Atividade Teatral entre os Judeus Guinsburg de O Nascimento da Tragédia,

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de Friedrich Nietzsche (1844-1900). No engajamento do espectador próximo daque-
perspicaz enfoque dessa obra de juventu- le experimentado pelos atuantes do ritual
de do filósofo alemão, Guinsburg delimi- primitivo e, portanto, anteciparia alguns dos
ta o projeto nietzschiano de localização programas mais influentes do teatro do sé-
da origem da tragédia na experiência do culo XX.
coro ditirâmbico, quando se encarna o deus Ainda nesses diálogos com outros pen-
Dionísio ainda em forma despersona- sadores do teatro, o autor descreve a pers-
lizada, sem uma máscara individual. Será pectiva historicista de Herder (1744-1803)
nos grandes autores do período clássico, na análise da literatura dramática; explora
Ésquilo e Sófocles, que esta pulsão dio- a raiz do humorismo na dramaturgia e na
nisíaca, em confronto dialético com a tra- estética de Pirandello; e dialoga com o es-
dição constritiva do deus Apolo e sua ina- tudioso norte-americano Léonard Pronko
ta clarividência, assumirá identidades, a partir de sua obra Teatro de Vanguarda
favorecendo o surgimento de máscaras e, (Beckett, Ionesco e o Teatro Experimental
conseqüentemente, de atores individuais. na França), traçando um mapa do teatro
Guinsburg percebe um diálogo implícito mais radical que se fez na Europa nos pri-
de Nietzsche com Aristóteles, e justifica a meiros sessenta anos do século passado.
distância de perspectivas entre eles no fato Esse recorte explicita ao leitor contempo-
de ao primeiro não interessar o “construto râneo vários autores, hoje pouco conheci-
formal como tal, mas somente como me- dos, que já foram agrupados no que se
diação para a essência do trágico”. Assim, chamou de “Escola de Paris”, como
por exemplo, se o estagirita vê em Eurípi- Tardieu, Vauthier, Pichette, Ghelderode,
des a culminância formal da tragédia Ática, Audiberti e Schéhadé. Escrito em 1963,
Nietzsche o percebe como principal agen- como um ensaio para o Suplemento Literá-
te de sua decadência, na medida em que, rio do jornal O Estado de S. Paulo, o artigo
como afirma Guinsburg, foca prioritariamente em Beckett e Ionesco,
mas também, de forma percuciente, em
“a paixão dionisíaca é excisada de sua re- Genet. No que diz respeito aos dois primei-
presentação e o nervo vital do auto-diti- ros, acompanha Pronko na observação de
râmbico deixa de latejar. […] Mais do que uma relevância simétrica entre eles. Esta
do que uma criação original do espírito trá- seria uma colocação que, talvez, mereces-
gico, o repertório euripidiano é uma genial se revisão quarenta anos depois, já que
sofística dramatizada da campanha ideoló- Beckett permanece indecifrável ao teatro
gica da ‘corrosiva’ Weltanschauug so- contemporâneo, enquanto Ionesco tornou-
crática” (p. 62). se um autor tão clássico quanto Racine. É
oportuno, ainda, mencionar o artigo em que
Entre os achados de Guinsburg que cla- dá conta da estética teatral de Brecht, já
rificam O Nascimento da Tragédia, vale analisando-a em plena década de 90 e reco-
mencionar o que identifica em Nietzsche nhecendo-lhe as potencialidades que jus-
uma estratégia de valorização do momen- tificariam sua revivescência atual no pano-
to original da tragédia para projetar, atra- rama teatral brasileiro. E o ensaio pioneiro
vés desta predileção, o desejo de um seu na análise dos aspectos cênicos da poética
renascimento, idealizável na ópera de de Haroldo de Campos. Finalmente, encer-
Wagner. Guinsburg ressalta, ao mesmo rando esse bloco de conversas em torno das
tempo, o desinteresse do filósofo alemão poéticas teatrais modernas e contemporâ-
pelo projeto wagneriano para a cena, de neas, há o artigo em que Guinsburg presta
uma gesamtkunswerk, ou obra de arte total, uma homenagem ao seu principal interlo-
aspecto que é central na apreciação con- cutor, o intelectual alemão, radicado no
temporânea de Wagner. Guinsburg termi- Brasil, Anatol Rosenfeld. Mais do que um
na sublinhando, com propriedade, que a uto- amigo de Anatol, um admirador, Guinsburg
pia teatral de Nietzsche pressuporia um justifica ali o que considera ser uma produ-

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ção altamente qualificada no campo dos nal”. Guinsburg aqui, de alguma forma,
estudos teatrais e que se refletirá em sua retoma a perspectiva da mimese aristotélica,
própria elaboração teórica. Entre as refle- em sua característica dual de ser uma cons-
xões de Anatol Rosenfeld reexaminadas por trução imaginária representando o mundo,
Guinsburg, a mais valorizada é a expressa e ser, como ação dramática, efetivamente,
no texto “O Fenômeno Teatral” (*). Como o mundo em carne e osso.
afirma, No segundo capítulo, “O Teatro no
Gesto”, em que se pretende esmiuçar os
“Anatol Rosenfeld estudou, por via antro- três fatores constituintes do espetáculo
pológica, lingüístico-estrutural e estética, teatral – ator, texto e público –, Guinsburg
a fenomenologia da atuação teatral, indo repensa o conceito tradicional de texto,
ao cerne desta produção, para captar os seus reconhecendo sua condição de fator indis-
fatores e sua fatura essenciais. Ao estabe- pensável ao fenômeno teatral, mas sem li-
lecer, formulo eu, que o ator é aquele que mitar a sua forma a qualquer preceito
tem a capacidade de levar ao máximo a condicionante. Na verdade, o que definiria
capacidade humana de ser não sendo, isto essa condição textual seria a anterioridade,
é, de desempenhar papéis e de projetar a a situação de projeto, pretexto de uma cena
sua encarnação corporal como uma figura que se formará. Com isso, todas as formas
ou metáfora do imaginário, na relação ao contemporâneas de teatralidade, incluindo
vivo consigo próprio e com o seu especta- aquelas que não partem de dramaturgias
dor, deslocou o ponto nevrálgico da cria- convencionais, seriam abarcadas. Impor-
ção teatral, tanto do conjunto de esquemas tante salientar que esta idéia de uma textua-
e signos que constituem uma peça, como lidade prévia, ou inevitável, não parece se
do conjunto de ordens e moldagens que confundir com o conceito semiológico de
constituem uma direção. Surpreendeu o ato “texto cênico”, como substância da mate-
criador da interpretação, o in-vestimento rialidade espetacular, e mantém, mesmo no
no re-vestimento da máscara, no seu mo- caso de espetáculos criados no processo de
mento de fecundação” (p. 99). ensaio e altamente tributários da improvi-
sação, a sua autonomia de elemento cons-
É exatamente essa valorização do ator
como eixo de análise do fenômeno teatral,
intuída nas reflexões de Rosenfeld, que
prevalecerá e será desenvolvida nos quatro
textos mais autorais que abrem o livro. No
primeiro deles, “A Idéia do Teatro”, depois
de em suas próprias palavras “cartografar
em linhas gerais o relevo da questão do
teatro no espaço e no tempo históricos”, ele
questiona a possibilidade de esgotar a per-
cepção do “fenômeno” através de sua face
externa e sugere a existência de um duplo
a ser desvelado, e que desse “visibilidade
ao invisível”, ou que o expusesse como
“máscara e encarnação”. Acopla assim, ao
ator, “esses portadores de psiquismo hu-
mano”, dois outros elementos: um “é o que
se apresenta no imaginário como operador
necessário do desenho mimético”, e o ou-
tro, “que possibilita o primeiro e, quiçá,
tudo o mais no teatro […] dá lugar ao pró- * Anatol Rosenfeld, Texto e Con-
texto I, São Paulo, Perspecti-
prio espaço e ao próprio ato representacio- va,1972.

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tituinte do fenômeno teatral. O segundo vés de perguntas e respostas que tradu-
elemento, que articula a teatralidade desde zem, coloquialmente, o que até agora ti-
este ponto de partida, é o ator, agente da nha surgido como texto árido e discurso
operação de sintetizar a si, e ao texto com erudito, são retomadas a tríade essencial
que se relacionasse, num terceiro elemento (texto, ator e público), a proeminência do
que seria o personagem, ou a máscara. Nes- ator, “máscara encarnada”, e a idéia das
sa visão do fenômeno teatral “o corpo do funções da concreção mimética e da arti-
comediante investido do papel estabelece culação significativa. Em relação a estes
por si um espaço cênico” e torna-se, assim, conceitos, avança-se na idéia da possibi-
“órgão principal da realização do ence- lidade de uma concreção abstrata, desde
nador”. A “máscara encarnada” reaparece que realizada através do meio dominante
como elemento central do teatro, aquele que é o ator, no que, além de enfatizar-se
que lhe dá sua especificidade. Completan- mais uma vez essa predominância do atu-
do a tríade de elementos essenciais ao fe- ante, abre-se um flanco à contestação des-
nômeno espetacular impõe-se o público, sa premissa. Isso porque, em se levando
com quem esta “máscara encarnada” esta- em conta algumas experiências modernis-
belecerá “um comércio direto, corpóreo e tas, como as de Kandinski e sua partitura
sensível”, e que se torna participante deci- para refletores, ou de Craig e sua coreo-
sivo na formulação final dessa alquimia. grafia de telas, ou mais contemporanea-
Mas o tema central de Guinsburg aqui é o mente, de Robert Wilson e seu teatro onde
gesto no teatro, o que remete de novo ao o ator e a própria figura humana foram
ator. Como já apontara Rosenfeld, o ator é nivelados numa nova hierarquia, ou na
percebido como o catalisador mor do fenô- ausência de uma, seria sensato supor uma
meno teatral, reunindo o texto e sua ence- “concreção abstrata” que se efetivasse in-
nação diante do público. Para enfatizar essa dependentemente do ator.
proeminência Guinsburg define outras duas O quarto capítulo, que fecha esse nú-
funções imprescindíveis: a “concreção cleo irradiador de uma potencial, por-
mimética”, que garantiria o reconhecimento que apenas esboçada, estética teatral de
pelo público do que é encenado, ou a “ar- Guinsburg, procura situar o fenômeno te-
ticulação significativa”, que permitiria, atral no contexto das demais mídias. Mais
mesmo às concreções a princípio estranhas uma vez, Anatol Rosenfeld é evocado como
ao mundo conhecido, uma apresentação referência. Tanto na posição de insistir na
otimizada diante do público receptor. Em especificidade do teatro, ou na insubs-
ambos os casos, quem enlaça as pontas tituível situação de confronto direto e ma-
soltas, ou desata os nós invisíveis é o gesto terial entre ator e público, como, com olhar
atuante e significante do ator, e esta é uma mais pessimista, num de seus últimos arti-
razão suficiente para Guinsburg concluir gos, para lamentar a hegemonia da TV. O
propugnando pela definitiva ascendência próprio Guinsburg se mostra bem mais oti-
do ator frente à dramaturgia, ou seus suce- mista e faz um extensivo balanço históri-
dâneos, e a encenação e seus coordenado- co para demonstrar que, em qualquer de
res, na autoria da cena que se desvelará suas concretizações, em épocas passadas
diante do público. ou contemporâneas, o teatro, no mínimo,
Os mesmos temas retornam no tercei- “decorre de uma necessidade antropoló-
ro capítulo, “Diálogos sobre a Natureza gica”. O raciocínio se estende à paisagem
do Teatro”, em que, na forma de diálogos do teatro brasileiro e às suas táticas de so-
entre um professor e seus alunos, brevivência na selva midiática. Coeren-
Guinsburg extravasa a experiência de dé- temente, o autor considera o panorama de
cadas no ensino da estética teatral. Como diversos pontos de vista para reafirmar,
bem disse Sábato Magaldi na apresenta- afinal, evidências alvissareiras. Entre elas,
ção do livro, neste texto “fica explicitada seu próprio livro, Da Cena em Cena, talvez
a qualidade didática do professor”. Atra- seja a mais eloqüente.

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