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continuidade?
Nelson Neraiel (*)
Foi um grande prazer estar presente, e ver irmãos de várias vertentes, cada qual com seu
enfoque sobre o que é o Xamanismo. Sem dúvida, foi um momento de discussão de
importantes questões relativas a prática do xamanismo na atualidade. Entre elas,
questões de legitimidade sobre a utilização do saber indígena e de suas medicinas, saber
quem pode ser xamã, o que um xamã faz e como atua.
Pude assistir três mesas redondas cujos títulos eram: “Xamanismo, xamanismo urbano,
xamanismo universal, xamanismo crístico, neoxamanismo: afinal o que é isto?”, “O uso
da ayahuasca no Brasil: vertentes e experiências” e “Xamanismo e neoxamanismo:
continuidades e descontinuidades”, onde essas e outras questões foram discutidas por
xamãs urbanos, pajés indígenas, antropólogos, ayahuasqueiros e daimistas. Todas essas
questões são pertinentes por si só, e também para compreendermos as novas direções
que esse fenômeno toma, sendo muito importantes para o momento em que se funda a
Associação Brasileira de Xamanismo (ABRAX) (***).
Não podemos negar o efeito que seus livros tiveram sobre um número enorme de
pessoas, das mais diversas áreas do pensamento contemporâneo, e do seu papel como
divulgador das práticas xamânicas para o público leigo. Sem dúvida, Carlos Castaneda
foi um dos grandes impulsionadores do que hoje chamamos de Neoxamanismo.
Não vou defendê-lo ou tentar provar que ele não era um farsante, vou apenas narrar os
fatos como ele os colocou e esclarecer pontos importantes sobre a tradição que ele
representa e sua função dentro dela.
Devo dizer aqui que Carlos Castaneda representa apenas uma única linhagem, uma
entre as muitas ainda existentes, pertencentes ao que hoje se chama de Nagualismo,
Toltequismo ou Toltequidade. Trata-se de um vasto corpo de conhecimento e de
práticas acumulado durante milhares de anos pelos xamãs da região do atual México e
América Central. Sua linhagem começou há vinte cinco gerações atrás quando os xamãs
da época reorganizaram o conhecimento de homens ainda mais antigos, conhecidos
como “Antigos Videntes” e deram início ao ciclo dos chamados “Novos Videntes”.
Esse conhecimento está espalhado pelo xamanismo das várias etnias ainda existentes no
México e América Central e em todos os matizes do curandeirismo e feitiçaria locais.
Temos vários autores tratando desse tema com abordagens diferentes, mas sem dúvida
complementares.
No encontro, enquanto ele falava besteiras sem parar sobre o uso das plantas, tentando
impressionar, o homem viu sua energia… Assim Carlos entrou no mundo dos Xamãs
Mexicanos. O Xamã viu no ovo luminoso (1) de Castaneda a configuração energética
que buscava em alguém para ser o seu sucessor. Não se importou se ele era índio ou
não; precisava apenas da sua energia. O Intento, o Espírito, estava apontando aquele
homem para ele, indicando-o para formar um novo grupo de guerreiros e guiá-los à
meta final dessa linhagem, um estado chamado liberdade total (2).
Todos os esforços desse xamã, um índio Yaqui chamado D. Juan Matus, naquele
momento, o nagual (3) da sua linhagem, foram sempre para Carlos realizasse uma
manobra perceptiva definida por D. Juan como “ver a energia”, perceber a energia na
forma ela flui no Universo, ou seja, livre dos processos de interpretação usados pelos
nossos organismos para construir a nossa realidade objetiva. A isso D. Juan chamava
simplesmente “Ver”, um processo fundamental para todos os que desejam percorrer o
caminho do conhecimento.
Sabemos que possuir a faculdade de ver o mundo dos espíritos, ver as energias boas e
ruins, é uma capacidade fundamental para que um indivíduo venha a ser considerado
um xamã ou pajé nas culturas xamânicas tradicionais.
Temos aqui a primeira questão que pode ser abordada: como alguém se torna um xamã?
Quem pode se tornar um pajé?
É necessário ver com atenção o desejo de ser xamã do homem contemporâneo. O que
realmente ele deseja? Do que precisa? Voltaremos a esse tópico um pouco mais à frente.
Carlos então foi escolhido pelo nagual dessa linhagem como seu aprendiz. Após um
árduo treinamento que envolveu o uso de plantas de poder e as demais práticas dessa
tradição, transformou-se no novo nagual.
O ato mágico de ver a energia e poder verificar por si próprio os fatos energéticos
descritos por D. Juan foi à corroboração de todos os esforços de Carlos e o fato que o
habilitou a empreender sua viajem rumo ao conhecimento. Esse ato é o que o legitima
como sucessor de D. Juan Matus.
Vamos falar um pouco da polêmica que envolve a obra de Castaneda. Foi dito que D.
Juan nunca existiu, que Carlos fez um apanhado de várias tradições, que não viveu nada
daquilo e que seus livros não “fecham” um com o outro…. Não sei se isso são pontos
tão importantes. Claro que o nome de seu benfeitor, o nagual Juan Matus, que também
utilizava o nome de Mariano Aureliano, não era esse mesmo. Carlos também usava
vários nomes, como José Luis Cortez (Joe Cortez), Carlos Aranha, Charles Spider e
Izidoro Baltazar.
Enquanto as pessoas liam seus livros na década de 70, e viajavam ao México para tentar
encontrá-lo, ele passou dois anos fritando ovos em uma lanchonete, uma curiosa tarefa
que exigiu disciplina, autocontrole, fluidez, ausência de auto-importância e abandono.
Nessa tradição se busca fluidez perceptiva – então, a constante auto-reflexão e a auto-
importância são pesos que não precisamos carregar. Essa tarefa prática realizada por ele
está perfeitamente de acordo com uma das principais artes desses xamãs, a Arte da
Espreita, arte de usar nosso comportamento e o mundo em que vivemos para atingir
estados perceptivos de eficiência e atenção não usuais.
Outro conceito dessa tradição é de que não devemos fornecer uma estória muita
definida a nosso próprio respeito aos nossos semelhantes, pois a pressão da energia dos
pensamentos e das ideias das pessoas a nosso respeito limita a nossa liberdade de ação e
de escolha. Os livros foram escritos segundo esses e outros princípios. Qualquer
tentativa de achar um fluxo contínuo de acontecimentos será infrutífera.
Seus livros obedecem a uma didática própria, não linear, que conduz o leitor a processos
perceptivos similares aos que o próprio Carlos experimentou durante seu aprendizado.
Por exemplo, quando na década de 90 ele reapareceu em público ensinando os “Passes
Mágicos” ou, como passou a chamá-los, “Tensegridade”, nós leitores já vínhamos
recebendo pequenas descrições de passes inseridas nos diversos livros, como o famoso
“Passo do Poder”, presente no seu primeiro livro, A Erva do Diabo (1968). Mais de
vinte e cinco anos depois de conhecermos esse e outros movimentos e já termos feito-os
em algum momento, descobrimos que fazem parte de algo muito maior, um conjunto de
práticas chamado “Passes Mágicos”. O próprio Carlos também passou anos aprendendo
os passes sem saber o que eram. Motivado por D. Juan a mexer o corpo de modo
específico com a finalidade fictícia de tentar estalar os ossos, Carlos acabou aprendendo
seus primeiros passes. Com os leitores o processo foi muito semelhante.
Sua obra tem momentos que soam completamente fantásticos e isso é outro ponto de
polêmica. Há por exemplo o episódio onde Castaneda pula de um penhasco num deserto
mexicano, mas não chega a completar a trajetória de queda até o solo. Pressionado pela
morte eminente, realiza a façanha mágica de entrar em um mundo paralelo se
desmaterializando e retornando a esse mundo em sua cama em Los Angeles; há ainda
várias descrições de transformações em animais e outros do gênero. Enfim, exemplos de
fenômenos que extrapolam os paradigmas da concepção de realidade de nossa
sociedade que estão, porém, plenamente de acordo com o terreno do xamanismo e com
as descrições tradicionais feitas sobre ele.
Quando digo que esse espaço não é simbólico é porque, para essas culturas e para esses
indivíduos, esse é um espaço real, que é a contra parte energética ou espiritual do
mundo material, um espaço composto por energias e forças humanas e não humanas
com influência e poder de ação sobre a realidade objetiva. Não podemos relegar a
atuação dos pajés e xamãs ao plano da simples autossugestão individual e coletiva. Crer
que a descrição da influência desses xamãs se dá no campo da imaginação dentro de um
universo puramente mítico é desconhecer as concepções de realidade dessas culturas. Se
retirarmos a ideia de influência mágica e dos processos tradicionais de formação de um
xamã, teremos muito pouco de fenômeno original.
Após anos de aprendizado, Carlos passou a ser o novo nagual de sua linhagem e,
seguindo a tradição, começou a organizar seu próprio grupo. A forma tradicional dessa
linhagem era a de um grupo fechado, de poucas pessoas que mantinham suas práticas
em absoluto segredo. O grupo agia como um organismo onde cada parte tinha uma
função. Era concebido energeticamente como uma estrutura piramidal com cada
elemento ocupando sua posição específica. Mas, para dar continuidade a sua linhagem,
Carlos precisou modificar aparentemente a forma tradicional de transmissão do
conhecimento – que, aliás, caso tivesse sido mantida, jamais teria permitido que a parte
prática desses conhecimentos tivesse vindo a público.
Porque Carlos não pode manter a tradição nos moldes originais? Veremos a seguir
como as coisas se passaram.
Após algum tempo, Castaneda organizou uma nova unidade com as discípulas de D.
Juan: Florinda Donner, Taisha Abelar e Carol Tigs, a mulher nagual (a última
pertencera ao seu antigo grupo composto nos moldes originais, que depois se
desintegrara). Entretanto, essa nova unidade, composta por apenas quatro pessoas, não
poderia dar continuidade à transmissão do conhecimento do modo que havia sido feito
até então. Nos moldes tradicionais, como vimos, havia dezesseis guerreiros que
formavam um modelo energético preciso e integrado, que necessitava de todas as partes
para funcionar e poder conduzir o grupo à liberdade total.
Como isso não tinha sido possível, pois o grupo original feito por Castaneda se
dissolvera, perceberam que seriam os últimos elos daquela linhagem e que a função de
Castaneda era fechar aquele ciclo. Nesse momento, começaram a decidir o que fazer
com o conhecimento que possuíam. Uma busca mais atenta nos fundamentos dessa
tradição revelou que a cada ciclo de cinquenta e dois naguais, vinte e seis de
continuidade e estabilidade, e vinte seis de crescimento e expansão, surge um nagual de
redirecionamento e atualização. Verificaram que Carlos era um tipo diferente de Nagual
e que sua função era de renovação.
Nos moldes originais da linhagem os Passes Mágicos eram ensinados pelo nagual
apenas para os membros da linhagem, que o realizavam individual e secretamente.
Neste novo momento, Castaneda decide tornar pública a parte prática dos ensinamentos,
alterando o rumo da linhagem. Como isto se deu?
Para tornar os passes públicos, Carlos os organizou em grupos ou séries, separados por
finalidade, tornou os movimentos mais simples e retirou totalmente o ritual e o segredo
associados a eles durante séculos. Carlos deu o nome “Tensegridade” para designar esta
forma moderna dos Passes Mágicos, termo foi tomado por ele da arquitetura, o qual
designa a propriedade dos elementos de uma estrutura trabalhar com a máxima
eficiência e o mínimo desgaste. Assim, a partir de 1995, foram realizados os primeiros
seminários públicos de Tensegridade e, em 1998, é lançado o livro “Passes Mágicos”.
Isso, além de intensificar os efeitos dos passes, contribuía para uma maior facilidade dos
praticantes em aprendê-los e em alcançar momentos de silêncio interior. A percepção do
“Efeito de Massa” foi fundamental para determinar o rumo desse conhecimento, assim
como o modo como é ensinado hoje em dia. Hoje praticantes ao redor do mundo
testaram e verificam cada uma das ferramentas que foram dadas.
A decisão de criar a “Tensegridade” e torná-la acessível a todos foi uma decisão de
Carlos, como autoridade de sua linhagem; decisão que tomou ao observar o fluxo da
energia de nosso tempo. Nesse momento, Carlos re-contextualiza seu saber, e o torna
contemporâneo e acessível, garantindo a sobrevivência da tradição.
Temos aqui a ideia de uma tradição viva e aberta à mudança, preocupada com sua
continuidade, mas também atenta à renovação. Poderia ser esse o caminho para as
respostas às questões que estamos discutindo? Um olhar atento para as culturas
xamânicas ainda existentes e uma estratégia de dar continuidade para esse saber dentro
de seu contexto original?
Castaneda não propõe nenhuma verdade pronta, ele propõe que se pratique, e que se
verifique a validade dessas ferramentas. Acredito que verificar por si próprio seja
fundamental para todos os que se aproximam das práticas xamânicas.
Um dos focos atuais das práticas é a atenta observação de si próprio e dos momentos em
que ganhamos ou perdemos energia, dos momentos em que estamos alinhados e em
harmonia e das coisas ou situações que nos tiram desse estado de alinhamento e
equilíbrio.
Busquei até aqui tornar mais claro algumas das práticas e princípios da tradição que nos
foi apresentada por Carlos Castaneda para comentar alguns pontos polêmicos de sua
obra, mostrando como ela se relaciona com as práticas xamânicas tradicionais.
Agora podemos voltar ao tópico que abordei no inicio do texto sobre essa busca do
homem contemporâneo pelo xamanismo: o que realmente ele deseja e do que precisa?
O que estamos buscando quando nos aproximamos do xamanismo?
O homem moderno, talvez mais do que em qualquer outra época, sente um grande
vazio, uma falta de completude e paz interior que deriva de nosso quase total
desligamento com a teia da vida, da natureza e de suas energias. Pressionado pelas
preocupações do dia-a-dia, vive em um nível de consciência que vai muito pouco além
da satisfação de suas necessidades mais imediatas de conforto e de gratificação. Nossa
consciência impulsionada por seus medos e anseios e, principalmente, conflitos, muitas
vezes, se vê envolta num diálogo caótico e frenético que em nada contribui para a
percepção de nossas possibilidades enquanto consciências individualizadas e
manifestações da energia criativa da vida.
O xamanismo surge então como uma possibilidade na busca dessa ligação com o
sagrado, como um conjunto de práticas que tem a capacidade de restabelecer a conexão
com o mágico e com o mundo espiritual, livre do peso das religiões institucionalizadas e
principalmente sem intermediários.
Mas essa aproximação se dá muitas vezes de forma romântica, e esse anseio por
transformação, equilíbrio, harmonia e bem-estar, acaba se confundindo com o anseio
por tornar-se um xamã. Não sei se tornar um xamã é tão importante assim.
_______
(***) A ABRAX foi fundado dia 20 de março de 2005, último dia do encontro. Léo
Artése foi nomeado presidente.
(1) Ovo luminoso é o campo energético que nos envolve e que se estende à distância de
um braço ao redor de nosso corpo físico; é o equivalente ao que nós chamamos de
“Aura”. É a contraparte energética de nosso organismo.
(3) Nagual, do termo nahual, da língua nahuatl. Aqui o termo é usado para designar um
guia, um homem que por suas características energéticas é uma porta, uma ponte, entre
esse e outros mundos. O nagual é o guia de cada grupo de guerreiros.