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Obra publicada

com a colaboração da

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Waldyr Muniz Oliva

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri

Comissão Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto de
Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha
(Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz
(Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos
(Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros
(Faculdade de Educação).
A CRÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DO
CONHECIMENTO

Imre Lakatos e Alan Musgrave (orgs.)

Dois livros, em particular, exerceram decisiva influência na Filosofia


da Ciência contemporânea: A Lógica da Pesquisa Científica, de Karl R.
Popper e A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Kuhn.
Ambos esses livros concordam quanto à importância das revoluções na
Ciência, mas discordam quanto ao papel da crítica no seu desenvolvimento.
Um dos colaboradores do presente volume alega que, para Kuhn, a mu -
dança revolucionária é um problema de "psicologia da multidão”. Kuhn
rejeita tal interpretação de seu pensamento, mas insiste em que "qualquer
que seja o progresso cientifico, devemos expli- cá-lo examinando a
natureza do grupo científico, descobrindo o que este valoriza, o que tolera
e o que desdenha".
A CRÍTICA E O DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO nasceu de
um simpósio acerca da obra de Kuhn, presidido por Popper e realizado por
ocasião de um colóquio internacional em Londres (1965). Não se trata de
um simples registro das discussões então travadas, pois vários dos ensaios
aqui reunidos foram reescritos e expandidos. O livro começa com um texto
de Kuhn no qual ele enuncia a sua posição, seguindo-se sete textos de
outros autores, de crítica e análise das formulações de Kuhn, e concluindo-
se com a resposta deste. Eis, pois, um livro que se destina a estudantes e
professores de Filosofia e História da Ciência, bem como a quantos se
interessem por esse setor fundamentai do conhecimento humano.

EDITORA CULTRIX EDITORA DA UNIVERSIDADE


D E SÃ O P A U L O
Título do original:
CRITICISM AND THE GROWTH OF KNOWLEDGE Copyrigth © 1970, Cambridge
University Press

Traduzido por OCTAVIO MENDES CAJADO

Revisão técnica de PABLO MARICONDA

(do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da


Universidade de São Paulo)

MCMLXXIX

Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela


EDITORA CULTR1X LTDA.

Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 São Paulo, SP que se
reserva a propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO

Prefácio 1

Nota sobre a Terceira Impressão 2

T. S. KUHN: Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa? 5

Discussão:

J. W. N. WATK1NS: Contra a “Ciência Normal” 33

S. E. TOULMIN: É Adequada a Distinção entre Ciência Normal e


Ciência Revolucionária? 49
L. PEARCE WILLIAMS: Ciência Normal, Revoluções Científicas e
a História da Ciência 60

K. R. POPPER: A Ciência Normal e seus Perigos 63

MARGARET MASTERMAN: A Natureza de um Paradigma 72

I. LAKATOS: O Falseamento e a Metodologia dos Programas de

Pesquisa Científica 109

P. K. FEYERABEND: Consolando o Especialista 244

T. S. KUHN: Reflexões sobre os meus Críticos 285


CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP

A crítica e o desenvolvimento do conhecimento:


C951 quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre
Filosofia da Ciência, realizado em Londres em 1965 / organi zado por Imre
Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octa- vio Mendes Cajado ;
revisão técnica de Pablo Mariconda]. — São Paulo : Cultrix : Ed. da
Universidade de São Paulo, 1979.

Bibliografia.
1. Ciência — Filosofia I. Colóquio Internacional sobre Filosofia da
Ciência, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III. Musgrave, Alan.

79-0113 CDD-501

índices para catálogo sistemático:


1. Ciência — Filosofia 501
2. Filosofia da ciência 501
A CRÍTICA E O
DESENVOLVIMENTO DO
CONHECIMENTO
Quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência,
realizado em Londres em 1965

Organizado por

I MR E L A KA T OS Ex-professor de Lógica da Universidade de Londres

A L AN M US GRAV E Professor de Filosofia da Universidade de Otago

E D I T O R A C U L T R I X São Paulo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Outras obras de interesse:

A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA*


— Karl Popper

AUTOBIOGRAFIA INTELECTUAL*
— Karl Popper

AS IDÉIAS DE POPPER *
— Brian Magee

AS IDÉIAS DE BERTRAND RUSSEL *

— A. J. Ayer

AS IDÉIAS DE EINSTEIN *
— Jeremy Bernstein

AS IDÉIAS DE WITTGENSTEIN *
— David Pears

FILOSOFIA DA CIÊNCIA*
— Sidney Morgenbesser

INTRODUÇÃO A FILOSOFIA DA CIÊNCIA *


— K. Lambert e G. G. Brittan, Jr.

DEFINIÇÕES: TERMOS TEÓRICOS E SIGNIFICADO *


— Leottidas Hegettberg

ESCOLHA E ACASO: UMA INTRODUÇÃO X LÓGICA I NDUTIVA * —


Brian Skyrms

INICIAÇÃO A LÓGICA E A
METODOLOGIA DA CIÊNCIA —
-----Diversos autores

LÓGICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM *


— Gottlob Frege

(Cont. na outra dobra)


A CRÍTI CA E O

D E SENV OLVIME NT O DO CONHE CIME NT O


PREFACIO

Este livro constitui o quarto volume das Atas do Seminário Internacional


sobre Filosofia da Ciência de 1965 realizado no Bedford College, Regent's Park,
Londres, de 11 a 17 de julho de 1965. O Seminário foi organizado conjuntamente
pela British Society for the Philosophy of Science (Sociedade Britânica de Filosofia
da Ciência) e pela London School of Economics and Political Science (Escola de
Economia e Ciência Política de Londres), sob os auspícios da Divisão de Lógica,
Metodologia e Filosofia da Ciência da União Internacional de História e Filosofia
da Ciência.
O Seminário e as Atas foram generosamente subsidiados pelas instituições
patrocinadoras, assim como pela Leverhulme Foundation (Fundação Leverhulme) e
pela Alfred P. Sloan Foundation (Fundação Alfred P. Sloan). O Comitê Organizador
foi formado por W.C. Knea- le (Presidente), I. Lakatos (Secretário Honorário), J. W.
N. Watkins (Segundo Secretário Honorário), S. Köber, Sir Karl Popper, H. R. Post e
J. O. Wisdom.
Os três primeiros volumes das Atas foram publicados pela North- Holland
Publishing Company, de Amsterdã, sob os seguintes títulos:
Lakatos (org.): Problems in the Philosophy of Mathematics (Problemas da
Filosofia da Matemática), 1967.
Lakatos (org.): The Problem of Inductive Logic (O Problema da Lógica
Indutiva), 1968.
Lakatos e Musgrave (orgs.): Problems in the Philosophy of Science
(Problemas da Filosofia da Ciência), 1968.
Todo o programa do Seminário está impresso no primeiro volume das Atas.
Este quarto volume obedece à política editorial seguida nos três primeiros é
mais uma reconstrução racional e uma ampliação dos debates do que propriamente
um mero registro dos mesmos. Todo o volume se desenvolve a partir de um único
simpósio, ocorrido no dia

1
13 de julho sobre A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. De acordo
com os planos originais, o Professor Kuhn, o Professor Feyerabend e o Dr.
Lakatos deveriam ser os principais oradores mas, por motivos diferentes (veja
mais adiante, à p. 33), as colaborações do Professor Feyerabend e do Dr. Lakatos
só chegaram depois do Seminário. O Professor Watkins concordou, em substituí-
los. O Professor Sir Karl Popper assumiu a presidência do acirrado debate do
qual participaram, entre outros, o Professor Stephen Toulmin, o Pro fessor Pearce
Williams, a Srt. a Margaret Masterman e o Presidente.
Os textos dos trabalhos, tais como aqui se imprimiram, foram concluídos em
diferentes ocasiões. O artigo do Professor Kuhn está impresso essencialmente na
forma em que foi lido pela primeira vez. Os trabalhos dos Professores John
Watkins, Stephen Toulmin, Pearce William e de Sir Karl Popper são versões
ligeiramente modificadas das colaborações originais. Por outro lado, a
contribuição da Srt. a Masterman só foi terminada em 1966, ao passo que as do Dr.
Lakatos e do Professor Feyerabend, juntamente com a réplica final do Profes sor
Kuhn, foram concluídas em 1969.
Os Organizadores — auxiliados por Peter Clark e John Worrall
— desejam agradecer a todos os colaboradores sua amável cooperação.
Confessam-se igualmente gratos à Srt. a Christine Jones e à Srt. a Mary McCormick
pelo trabalho consciencioso e cuidadoso no preparo dos manuscritos para a
publicação.
OS ORGANIZADORES

Londres, agosto de 1969.

NOTA SOBRE A TERCEIRA IMPRESSÃO

A terceira impressão de A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento só


difere da primeira pela eliminação de uns poucos erros de impressão e pela
introdução de correções menores, essencialmente bibliográficas e estilísticas.
Desde que se publicou a primeira impressão, as idéias discutidas neste
volume foram ainda mais desenvolvidas por alguns autores:
Thomas Kuhn publicou uma segunda edição de sua The Struc- ture of
Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas) com um posfácio,
que aperfeiçoa sua teoria dos paradigmas (Chicago University Press, 1970).

2
Stephen Toulmin publicou o primeiro volume da sua Human Understanding
(Compreensão Humana — Princeton University Press e Clarendon Press, 1972).
Paul Feyerabend expôs o seu anarquismo metodológico no livro Against
Method (Contra o Método) (New Left Books, 1974).
Imre Lakatos desenvolveu ainda mais sua teoria dos programas de pesquisa
científica em History of Science and Its Rational Recons- truction (História da
Ciência e Sua Reconstrução Racional) e em suas Replies to Critics (Respostas aos
Críticos), ambas publicadas na obra organizada por R. C. Buck e R. S. Cohen PSA
1970, Boston Studies in the Philosophy of Science, 8 (PSA 1970, Estudos
Bostonianos de Filosofia da Ciência, 8) (Reidel Publishing House, 1971) e em seu
trabalho Popper on Demarcation and Induction (Popper [fala] sobre Demarcação
e Indução) na obra organizada por P. A. Schilpp: The Philosophy of Karl R.
Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), Open Court, 1974. [Elie Zahar
aperfeiçoou substancialmente a metodologia de Lakatos em seu Why did Einstein’s
Programme Supersede Lo- rentz’s? (Por que o Programa de Einstein Suplantou o
de Lorentz’s?), no n.° 24 do The Britsh Journal for the Philosophy of Science, pp.
95-123 e 223-62, aperfeiçoamento esse também aplicado à reinter- pretação da
Revolução Coperniciana no trabalho de Lakatos e Zahar: Why did Copernicu’s
Programme Supersede Ptolemy's? (Por que o Programa de Copérnico Suplantou o
de Ptolomeu?) e no livro organizado por R. Westman: The Copernican
Achievement (A Realização Coperniciana), (Califórnia University Press, 1975).]

OS ORGANIZADORES

Londres, janeiro de 1974.

3
L ÓGIC A D A DE SCOBERT A OU PS ICOL OGI A DA
PE S QUIS A? 1

THOMAS S. KUHN
Princeton University

Meu objetivo nestas páginas é justapor o ponto de vista sobre


o desenvolvimento científico esboçado em meu livro, The Structure of Scientific
Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas), aos pontos de vista mais
conhecidos do nosso presidente, Sir Karl Popper. 2 Normalmente eu me negaria a
um empreendimento dessa natureza, pois sou menos otimista que Sir Karl quanto
à utilidade das confrontações. Por outro lado, admirei por tanto tempo a sua obra
que, a esta altura, não me é fácil criticá-la. Apesar disso, estou persuadido de
que, nesta ocasião, a tentativa há que ser feita. Antes mesmo de meu livro ser
publicado há dois anos e meio, eu começara a descobrir características especiais e
freqüentemente enigmáticas da relação entre minhas opiniões e as dele. Essa
relação e as reações divergentes por ela provocadas dão a entender que uma
comparação disciplinada entre as duas pode elucidar muita coisa. Permitam-me
dizer por que isso me parece possível.

1. Este ensaio foi inicialmente preparado a convite de P. A. Schilpp para seu volume
prestes a sair The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), que será
publicado por The Open Court Publishing Company, La Salle, 111., em The Library of Living
Philosophers (A Biblioteca dos Filósofos Vivos). Confesso -me profundamente grato ao Professor
Schilpp e aos editores pela autorização que me concederam para imprimi -lo como parte das atas
deste simpósio antes de aparecer no volume para o qual foi primeiro solicitado.

2. Para preparar este trabalho, reli de Sir Karl Popper Logic of Scientific Discovery,
Conjectures and Refutations e The Poverty of Hisloricism. Também fiz referências ocasionais à
sua Logik der Forschung e a The Open Society and its Enemies. Minha The Structure of
Scientific Revolutions proporciona um relato mais extenso de muitas questões adiante discutidas.

5
Em quase todas as ocasiões em que nos voltamos explicita mente para os
mesmos problemas, nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas. 3
Interessa-nos muito mais o processo dinâmico por meio do qual se adquire o
conhecimento científico do que a estrutura lógica dos produtos da pesquisa
científica. Em face desse interesse, ambos enfatizamos, como dados legítimos, os
fatos e o espírito da vida científica real, e ambos nos voltamos com freqüência
para a história no intuito de encontrá-los. Desse conjunto de dados partilhados,
chegamos a muitas das mesmas conclusões. Ambos rejeitamos o parecer de que a
ciência progride por acumulação; em lugar disso, enfatizamos
o processo revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeita - da e
substituída por uma nova teoria, incompatível com a anterior; 4 e ambos
sublinhamos enfaticamente o papel desempenhado nesse pro- cesso pelo fracasso
ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios lançados pela lógica,
experimentação ou observação. Finalmente, Sir Karl e eu estamos unidos na
oposição a algumas das teses mais características do positivismo clássico.
Ambos enfatizamos, por exemplo, o embricamento íntimo e inevitável da
observação com a teoria científica; conseqüentemente, somos céticos quanto aos
esforços para produzir qualquer linguagem observacional neutra; e ambos in-
sistimos em que os cientistas podem, com toda propriedade, procurar inventar
teorias que expliquem os fenômenos observados, e que façam isso em termos de
objetos reais, seja qual for o significado da última expressão.
Conquanto não esgote as questões a cujo respeito Sir Karl e eu
concordamos, 5 essa lista já é suficientemente extensa para nos colocar

3. Uma simples coincidência não pode ser responsável por essa extensa superposição.
Conquanto eu não tivesse lido nenhuma obra de Sir Karl antes do aparecimento, em 1959, da sua
Logik der Forschung (ocasião em que meu livro estava no rascunho), ouvi discutido
repetidamente certo número de suas idéias principais. Ouvi-o, sobretudo, discutir algumas delas
como "Conferencista William James'’ em Harvard na primavera de 1950. Tais circunstâncias não
me permitem especificar uma dívida intelectual para com Sir Karl, mas deve haver uma.

4. Utilizei alhures o termo “paradigma” em lugar de “teoria” para deno tar o que é
rejeitado e substituído durante as revoluçõ es científicas. Algumas razões para a mudança do termo
surgirão mais adiante.
5. O realce dado a uma área adicional de concordância a cujo respeito tem havido muitos
mal-entendidos pode pôr ainda mais em foco o que, no meu entender, constitui as verdadeira s
diferenças entre os pontos de vista de Sir Karl e os meus. Ambos insistimos em que a fidelidade a
uma tradição desempenha papel essencial no desenvolvimento científico. Ele escreveu, por
exemplo, "Quantitativa e qualitativamente a fonte mais importante d o nosso

6
no mesmo grupo minoritário entre os filósofos da ciência contemporâ nea.
Presumo que seja por isso que os seguidores de Sir Karl têm sido, com alguma
regularidade, meu público filosófico mais compreensivo, ao qual continuo a
sentir-me grato. Minha gratidão, contudo, não é sem reservas. A mesma
concordância, que provoca a simpatia desse grupo, não raro lhe dirige mal o
interesse. Ao que tudo indica, os adeptos de Sir Karl são capazes de ler grande
parte do meu livro como capítulos de uma revisão tardia (e, para alguns, drástica)
de sua obra clássica The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta
Científica). Um deles pergunta se a visão da ciência esboçada na minha Scientific
Revolutions não constituiu por muito tempo matéria de conhecimento comum. Um
segundo, mais caritati- vo, limita minha originalidade à demonstração de que as
descobertas de fato têm um ciclo vital muito semelhante ao das inovações-da-
teoria. Outros, ainda, declaravam-se satisfeitos de uma maneira geral com a
leitura do livro, mas discutem apenas as duas questões, com parativamente
secundárias, a cujo respeito minha discordância com Sir Karl é mais explícita: a
ênfase que dou à importância de um compromisso profundo com a tradição e meu
descontentamento com as implicações do termo “falseamento”. Resumindo, todos
esses homens leram meu livro com óculos muito especiais e há outra maneira de
lê-lo. A visão que se tem através desses óculos não está errada — minha
concordância com Sir Karl é real e substancial. Entretanto, os leitores fora do
círculo properiano quase invariavelmente deixam de notar até que a concordância
existe, e são eles que com mais freqüência reconhecem (nem sempre com
simpatia) as questões que me parecem mais importantes. Chego à conclusão de
que uma mudança de gestalt divide os leitores do meu livro em dois ou mais
grupos. O que um deles vê como notável paralelismo é virtualmente invisível para
outros. O desejo de compreender tudo isso é o que motiva a presente comparação
da minha visão com a de Sir Karl.
A comparação, todavia, não deve limitar-se a uma justaposição ponto por
ponto. O que exige atenção é menos a área periférica em que se devem isolar
nossas divergências secundárias ocasionais, do que a região central em que
parecemos concordar. Sir Karl e eu apelamos para os mesmos dados; vemos, numa
extensão incomum, as mesmas linhas no mesmo papel; indagados sobre essas
linhas e esses

conhecimento — tirando o conhecimento inato — é a tradição” (Popper, Conjectures and


Refutaíions, p. 27). De maneira ainda mais pertinente, já em 1948, escrevia: “Não me parece que
poderemos, algum dia, libertar-nos de todos os laços da tradição, A chamada libertação, na
realidade, é apenas a mudança de uma tradição para outra” (Conjectures and Relutations, 1953,
p. 122).

7
dados, damos, não raro, respostas virtualmente idênticas ou, pelo menos,
respostas que inevitavelmente parecem idênticas na limitação imposta pelo
processo de pergunta e resposta. Não obstante, experiências como as que já
mencionei convencem-me de que nossas intenções são muitas vezes totalmente
diversas quando dizemos as mesmas coisas. Se bem as linhas sejam análogas, as
figuras que delas emergem não o são. Por isso chamo ao que nos separa mudança
de gestalt e não discordância e por isso me sinto, ao mesmo tempo, perplexo e
intrigado sobre a melhor maneira de examinar a separação. Como poderei
persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que sei acerca do desenvolvimento científico
e que já o disse num ou noutro lugar, de que o que ele chama de pato pode ser
visto como um coelho? Como poderei ensiná-lo a usar meus óculos quando ele já
aprendeu a olhar através dos seus para tudo o que posso apontar?
Nesta situação, impõe-se uma mudança de estratégia, e a seguinte se
sugere. Relendo mais uma vez alguns dos principais livros e ensaios de Sir Karl,
torno a encontrar uma série de expressões que se repetem e que, embora eu as
compreenda e não as desaprove de todo, são expressões que nunca teria usado
nos mesmos lugares. Sem dúvida, trata-se na maior parte das vezes, de metáforas
retoricamente aplicadas a situações das quais Sir Karl forneceu alhures
descrições inatacáveis. Contudo, para os propósitos correntes, tais metáforas —
que se me afiguram manifestamente inadequadas — podem revelar-se mais úteis
do que descrições diretas. Isto é, podem sintomatizar diferenças contextuais que
uma expressão literal cuidadosa esconde. A ser assim, tais expressões
funcionam, não como linhas-sobre-o-papel, mas como a orelha-de-coelho, o xale
ou a fita-na-garganta que se isola quando se está ensinando um amigo a
transformar seu modo de ver um diagrama de gestalt. Essa, ao menos, é minha
esperança no que a elas se refere. Tenho em mente quatro diferenças de
expressões e delas tratarei seriatim.
I
Uma das questões fundamentais a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos
é a insistência em que uma análise do desenvolvimento do conhecimento
científico deve levar em consideração a maneira pela qual a ciência é realmente
praticada. Assim sendo, algumas das suas repetidas generalizações me
surpreendem. Uma delas aparece no início do primeiro capítulo de A Lógica da
Descoberta Científica: “Um cientista”, diz Sir Karl, “seja teórico, seja
experimentador, apresenta enunciados, ou sistemas de enunciados, e os testa
pouco a pouco. No campo das ciências empíricas, mais particularmente, ele
constrói hi

8
póteses, ou sistemas de teorias, e os põe à prova à luz da experiência, pela
observação e pela experimentação”.'' O enunciado é virtualmente um clichê e, no
entanto, apresenta três problemas em sua aplicação. É ambíguo porque não
especifica qual das duas espécies de “enunciados" ou “teorias” está sendo testada.
Não há dúvida de que essa ambigüidade pode ser eliminada por referência a
outras passagens dos escritos de Sir Karl, mas a generalização que dela resulta e
historicamente equivocada. De mais a mais, o equívoco revela-se importante, pois
a forma não ambígua da descrição omite exatamente a característica da prática
científica que, de certo modo, distingue as ciências de outras atividades criativas.
Há uma espécie de “enunciado” ou “hipótese” que os cientistas submetem
repetidamente ao teste sistemático. Tenho em mente os enunciados das conjeturas
de um indivíduo acerca da maneira apropriada de ligar seu problema de pesquisa
ao corpo do conhecimento científico aceito. Ele pode conjeturar, por exemplo,
que determinada incógnita química contém o sal de uma terra rara, que a
obesidade dos seus ratos experimentais se deve a um componente específico da
dieta deles, ou que um modelo espectral recém-descoberto deve ser compreendido
como um efeito do spin nuclear. Em cada caso, os passos seguintes de sua
pesquisa se destinarão a testar a conjetura ou hipótese. Se esta passar por uma
quantidade suficiente ou suficientemente persuasiva de testes, o cientista fez uma
descoberta ou, pelo menos, resolveu- o enigma em cuja solução estava
empenhado. Caso contrário, terá de abandonar inteiramente o enigma ou tentar
resolvê-
lo com o auxílio de outra hipótese qualquer. Embora nem todos, muitos
problemas de pesquisa assumem essa forma. Os testes desse tipo representam um
componente comum do que denominei “ciência normal” ou “pesquisa normal”,
responsável pela imensa maioria do trabalho realizado em ciência básica. Esses
testes, porém não são dirigidos, em nenhum sentido usual, para a teoria corrente.
Ao contrário, quando está às voltas, com um problema de pesquisa normal, o
cientista deve postular a teoria corrente como a regra do seu jogo. Seu objetivo e
resolver uma charada, de preferência uma charada em quê outros falharam, e a
teoria corrente é indispensável para defini-la e para assegurar que, em havendo
talento suficiente, a charada poderá ser resolvida. 7 É evidente que quem se propõe
a um tal empreendi

6. Popper, Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 27.


7. Sobre uma extensa discussão da ciência normal, a ativida de para cujo exercício os profissionais
são treinados, veja minha The Struclure of Scientific Revolutions, pp. 23-24 e 135-42. É
importante notar que, quando descrevo o cientista como um solucionador de enigmas e Sir Karl o
descreve como um

9
mento precisa testar com freqüência a solução conjetural do enigma que seu
engenho lhe sugere, Mas só é testada a sua conjetura pessoal. Se ela não passar
pelo teste, só se impugna a capacidade do cientista e não o corpo da ciência
corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqüência na ciência normal, esses
testes são de um gênero peculiar pois na análise final, é o cientista e não a teoria
vigente que se põe à prova.
Não é essa, todavia, a espécie de teste que Sir Karl tem em men- te.
Interessam-no, acima de tudo, os processos por cujo intermédio a ciência se
desenvolve, e ele está convencido de que o “desenvolvi mento” não ocorre
principalmente por acumulação mas pela derru- bada revolucionária da teoria
aceita e pela substituição por uma teoria melhor. 8 (Considerar que
“crescimento” inclui “derrubada repe- tida” é uma singularidade lingüística cuja
raison d'être poderá tornar-se visível à medida que prosseguirmos.) Segundo este
ponto de vista, os testes enfatizados por Sir Karl são os que se realizam para ex-
plorar as limitações da teoria aceita ou para submeter a teoria vigente a uma
tensão máxima. Entre seus exemplos favoritos, todos .de re sultados
surpreendentes e destrutivos, estão as experiências de Lavoi - sier sobre
oxidação, a expedição de 1919 para estudar o eclipse e as recentes experiências
sobre a conservação da paridade. 9 Trata-se, naturalmente, de testes clássicos
mas, ao utilizá-los para caracterizar a atividade científica, Sir Karl passa por
alto um pormenor importan-
tíssimo a respeito deles. Tais episódios são muito raros no desenvol vimento da
ciência. Sobrevem, quase sempre, provocados pôr uma crise anterior no campo
pertinente (as experiências de Lavoisier oú as de Lee e Yang 1 ") ou pela
existência de uma teoria que compete

solucionador de problemas (por exemplo em seu Conjectures and Refutations, pp. 67, 222), a
similaridade de nossos termos disfarça uma divergência funda mental. Escreve Sir Karl (os grifos
são meus), “Não há dúvida de que nossas expectativas e, portanto, nossas teorias, pode m até
preceder, historicamente, nossos problemas. Entretanto a ciência só começa com problemas. Os
problemas afloram sobretudo quando estamos decepcionados em nossas expectativas, ou quando
nossas teorias nos envolvem em dificuldades, em contradições.” Emprego o termo "enigma” no
intuito de enfatizar que as dificuldades que de ordinário são enfrentadas até pelos melhores
cientistas são, como enigmas de palavras cruzadas ou charadas de xadrez, desafios apenas ao seu
engenho. É ele quem está em dificuldade, não a teoria vigente. Meu ponto de vista é quase oposto
ao de Sir Karl.

8. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 129, 215 e 221, sobre enunciados
particularmente vigorosos dessa posição.
9. Por exemplo, Popper, Conjectures and Refutations, p. 220.
10. Sobre a obra acerca da oxidação, veja Guerlac, Lavoisier — The Crucial Year, 1966.
Sobre os antecedentes das experiências relativas à paridade veja-se Hafner e Presswood.
“Strong Interjerence and Weak Interactions", 1965.

10
com os cânones existentes da pesquisa (relatividade geral de Eins - tein). Estes
são, todavia, aspectos do que em outro lugar chamei de “pesquisa extraordinária”
ou ocasiões para ela, atividade em que os cientistas exibem muitas das
características enfatizadas por Sir Karl, mas que, pelo menos no passado, só
surgiram com intermitências e em circunstâncias muito especiais em qualquer
especialidade científica."
A meu ver, portanto, Sir Karl caracterizou toda a atividade científica em
termos que só se aplicam a suas partes revolucionárias oca sionais. Sua ênfase é
natural e comum; os feitos de um Copérnico ou de um Einstein constituem leitura
mais aprazível que os de um Brahe ou de um Lorentz; Sir Karl não seria o
primeiro se tomasse o que chamo de ciência normal por uma atividade
intrinsecamente desinteressante. Apesar isso, nem a ciência nem o
desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de ser compreendidos se a
pesquisa foi vista apenas através das revoluções que produz de vez em quando.
Por exemplo, embora os compromissos básicos só sejam testados na ciência
extraordinária, é a ciência normal que revela, ao mesmo tempo, os pontos que
devem ser testados e a maneira de testá- los. Ou ainda, é para a prática normal, e
não para a prática extraordinária da ciência, que se treinam profissionais; se eles,
entretanto, forem muitíssimo bem-sucedidos nas substituições das teorias de que
depende a prática normal, esta singularidade terá de ser explicad a. Finalmente, e
tal é por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido à atividade
científica dá a entender que é a ciência ’ normal, onde não ocorre os tipos de
testes de Sir Karl, e não a ciência extraordinária que quase sempre distingue a
ciência de outras atividades. A existir um critério de demarcação (entendo que
não devemos procurar um critério nítido nem decisivo), só pode estar na parte da
ciência que Sir Karl ignora.
Num de seus ensaios mais sugestivos, Sir Karl remonta a origem “ da
tradição da discussão crítica [que] representa o único modo praticável de expandir
nosso conhecimento” até os filósofos gregos entre Tales e Platão, homens que, no
seu entender, fomentaram a discussão crítica não só entre as escolas mas também
dentro delas. 12 A descrição do discurso pré-socrático é muito bem feita, mas o que
se descreve em nada se parece com ciência. É antes a tradição de

11. O argumento é desenvolvido de maneira circunstanciada em minha The Structure of


Scientific Revolutions, 1962, pp. 52-97.
12. Popper, Conjectures and Rejutations. capítulo 5, especialmente pp. 148-52.
razões, contra-razões e debates sobre questões fundamentais que, ex ceto talvez
durante a Idade Média, caracterizassem a filosofia e boa parte da ciência social
desde então. Já por volta do período helenís- tico a matemática, a astronomia, a
estática e as partes geométricas da ótica haviam abandonado esse tipo de
discurso em favor da solução de enigmas. Outras ciências, em quantidades cada
vez maiores, sofreram depois disso a mesma transição. Em certo sentido, para
virar do avesso o ponto de vista de Sir Karl, -é precisamente o abandono do
discurso crítico que assinala a transição para uma ciência. Depois que um campo
opera essa transição, o discurso crítico só se repete em momentos de crise,
quando estão em jogo as bases desse campo. 13 Apenas quando precisam escolher
entre teorias concorrentes os cientistas se comportam como filósofos. É por isso
provavelmente que ã brilhante descrição de Sir Karl das razões da escolha entre
sistemas metafísicos se parece tanto com minha descrição das razões da escolha
entre teorias científicas. 14 Em nenhuma das escolhas, como logo tentarei
demonstrar, o sistema dos testes desempenha papel decisivo.
Há, contudo, uma boa razão para que o teste pareça desempenhar esse
papel e, ao estudá-lo, o pato de Sir Karl pode, afinal, conver- ter-se no meu
coelho. Não existirá nenhuma atividade de solução de enigmas se os seus
praticantes não partilharem de critérios que, para aquele grupo e aquele
momento, determinam o instante em que certo enigma é solucionado. Os mesmos
critérios determinam necessariamente o fracasso na obtenção de uma solução, e
quem quer que escolha, pode ver esse fracasso como o fracasso de uma teoria em
passar por um teste. Normalmente, porém, como já tenho dito, não se vê dessa
maneira. Só se censura o praticante, não se lhe censuram os instrumentos. Mas
em condições especiais, que provocam uma crise na profissão (como, por
exemplo, um grande malogro, ou o malogro repetido dos profissionais mais
brilhantes) a opinião do grupo pode mudar. Um fracasso visto antes como
pessoal parece então o fracasso da teoria que está sendo testada. Dali por diante,
por ter nascido de um enigma e ter critérios determinados de solução, o teste se
revela, ao mesmo tempo, mais severo e mais difícil de eludir do que os que se
encontram dentro de uma tradição ,cujo processo normal é muito mais o discurso
crítico do que a solução de enigmas.

13. Conquanto eu não estivesse então procurando um critério de demar cação, são
exatamente esses os pontos desenvolvidos em minha The Structure oj Scientific Revolutions, pp.
10-22 e 87-90.
14. Cf. Popper, Conjectures and Rejutat ions, pp. 192-200, com minha The Structure of
Scientijic Revolutions, pp. 143-58.

12
/
Num sentido, portanto, a severidade dos critérios-de-teste é tão- -só um
lado da moeda cujo verso é a tradição de solução-de-enigmas. Daí que a linha de
demarcação de Sir Karl e a minha coincidam com tanta freqüência. A
coincidência, contudo, está apenas no resultado delas; o processo de aplicá-las,
muito diferente, isola aspectos distintos da atividade a cujo respeito deverá ser
tomada a decisão — ciência ou não-ciência. Examinando, por exemplo, os casos
mais debatidos, a psicanálise ou a historiografia marxista, para os quais, no dizer
de Sir Karl, seu critério foi inicialmente destinado, 15 concordo em que eles não
podem ser apropriadamente qualificados de “ciência”. Mas chego a essa
conclusão por um caminho muito mais seguro e direto do que o dele. Um breve
exemplo talvez mostre que, dos dois critérios, o dos testes e o d a solução de
enigmas, este último é o menos equívoco e o mais fundamental.
A fim de evitar controvérsias contemporâneas sem importância, prefiro
focalizar a astrologia a focalizar, digamos, a psicanálise. A astrologia é o
exemplo mais freqüentemente citado por Sir Karl de uma “pseudociência”. 16 Diz
ele: “Fazendo suas interpretações e profecias suficientemente vagas, eles [os
astrólogos] conseguiram explicar de modo plausível tudo o que poderia ter sido
uma refutação da teoria se a teoria e as profecias ti vessem sido mais precisas. No
intuito de escapar ao falseamento eles destruíram a testabilidade da teoria”. 17 Tais
generalizações captam algo do espírito da atividade astrológica. Tomadas, no
entanto, literalmente, como o terão de ser para fornecer um crit ério de
demarcação, são insustentáveis. A história da astrologia durante os séculos em
que foi intelectualmente respeitável registra inúmeros vaticínios que falharam de
forma categórica. l,s Nem mesmo os expoentes mais convencidos e veementes da
astrologia duvidavam da repetição desses malogros. A astrologia não pode ser ex -
cluída das ciências pela forma com que eram feitos seus prognósticos.
Tampouco pode ser excluída em virtude do modo com que seus praticantes
explicavam o malogro. Assinalavam os astrólogos, por exemplo, que, quanto à
diferença das predições gerais acerca das pro-

15. Popper, Conjectures and Rejutations, p. 34.

16. O índice do livro de Popper Conjectures and Rejutations tem seis verbetes cujo título
é "a astrologia como pseudociência típica".
17. Popper, Conjectures and Rejutations, p. 37.
18. Sobre exemplos, veja Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, 5,
pp. 225 e seguintes; 6, pp. 71, 101, 114.

13
pensões de um indivíduo ou de uma calamidade natural, o prenúncio do futuro de
um indivíduo era uma tarefa imensamente complexa, que exigia a máxima
habilidade e extrema sensibilidade aos menores erros em dados importantes. A
configuração das estrelas e dos oito planetas mudava constantemente; as tabelas
astronômicas utilizadas para computar a configuração po _ ocasião do nascimento
de um indivíduo não primavam pela perfeição; poucos homens conheciam o
instante do seu nascimento com a indispensável precisão. 1(1 Não era de se
admirar, portanto, que as previsões falhassem com f reqüência. Só depois que a
própria astrologia se tornou implausível começaram esses argumen tos a dar
impressão de que consideravam certo precisamente o que estava em questão. 20
Hoje se empregam amiúde argumentos semelhantes para explicar, por exemplo,
malogros na medicina ou na meteorologia. Em ocasiões de dificuldades eles
também são apresentados pelas ciências exatas, em campos como a física, a
química e a astronomia. 21 Não havia nada de não-científico na explicação do
fracasso dada pelo astrólogo.
Não obstante, a astrologia não era uma ciência. Ao invés disso, era um
ofício, uma das artes práticas, que apresentava íntimas seme lhanças com a
engenharia, a meteorologia e a medicina, pela maneira com que se exercitavam
há pouco mais de um século. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com
a psicanálise contemporânea são, a meu ver, particularmente rigorosos. Em cada
um desses campos a teoria partilhada só era adequada para estabelecer a
plausibilidade da disciplina e fornecer uma base-racional às várias regras-de-
ofício que governavam a prática. Tais regras tinham demonstrado sua uti lidade
no passado, mas nenhum profissional as supunha suficientes para impedir a
repetição do fracasso. Faziam-se mister uma teoria mais inteligível e regras mais
poderosas, mas teria sido absurdo abandonar uma disciplina plausível e muito
necessária, com uma tradição de êxito limitado, só porque ainda não se haviam
alcançado tais desi- deratos. Na ausência deles, no entanto, nem o astrólogo nem
o médico poderiam fazer pesquisas. Conquanto tivessem regras para aplicar,

19. Sobre reiteradas explicações de malogro, veja, ibid., I, pp. 11 e 514;


4, 368; 5, 279.
20. Um apanhado inteligente de algumas das razões por que a astrologia perdeu sua
plausibilidade está incluído no ensaio de Stahlman, “Astrology in Colonial America: An
Extended Query”, (á no estudo de Thorndike, “The True Place of Astrology in the History of
Science", o leitor encontrará uma explicação do fascínio exercido anteriormente pela astrologia.

21. Cf. minha The Struclure of Scientific Revolutions, pp. 66-76.

14
não tinham enigmas para resolver e, portanto, não tinham ciência para praticar. 22
Comparem-se as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a pre- dição de
um astrônomo falhasse e seus cálculos conferissem, ele poderia esperar corrigir a
situação. Os dados podiam estar errados: velhas observações podiam ser
reexaminadas e novas mensurações feitas, tarefas que criavam uma quantidade de
quebra-cabeças de cálculo e instrumentação. Ou talvez a teoria necessitasse de
ajustamento, quer pela manipulação de epiciclos, excêntricos, equantes, etc., quer
por reformas mais fundamentais de técnica astronômica. Por mais de u m milênio
tais foram os enigmas teóricos e matemáticos em torno dos quais, juntamente com
suas contrapartidas instrumentais, se constituiu a tradição da pesquisa
astronômica. O astrólogo, em compensação, não tinha esses quebra -cabeças. A
ocorrência de fracassos poderia ser explicadã, mas os fracassos particulares não
deram origem a enigmas da pesquisa, pois nenhum homem, por mais habili tado
que fosse, poderia utilizá-las na tentativa construtiva de revisar a dificuldade, em
sua maioria fora do conhecimento, do controle ou da responsabilidade do
astrólogo. Os fracassos individuais eram correspondentemente não-informativos,
e não se refletiam na competência do prognosticador aos olhos de seus colegas
profissionais. 23 .

22. Essa formulação dá a entender que o critério de demarcação de Sir Karl pode ser salvo
enunciando-o de uma forma ligeiramente diferente, inteira mente de acordo com sua intenção
aparente. Para que um campo seja uma ciência suas conclusões precisam ser logicamente
deriváveis de premissas partilhadas. Sob esse aspecto há que excluir a astrologia, não porque suas
previsões não sejam testáveis, mas porque só as previsões mais gerais e menos testáveis podiam ser
derivadas da teoria aceita. Visto que qualquer campo capaz de satisfazer a essa condição pode
suportar uma tradição de soluciona- mento de enigmas, a sugestão é claramente proveitosa. Está
bem próxima de fornecer uma condição suficiente para que um campo seja uma ciência. Mas nesta
forma, pelo menos, não é sequer uma condição suficiente e por certo não é uma condição
necessária. Ela admitiria, por exemplo, a agrimensura e a navegação como ciências e excluiria a
taxonomia, a geologia histórica e a teoria da evolução. As conclusões de uma ciência podem ser
precisas e cogentes ao mesmo tempo, sem ser plenamente deriváveis, pela lógica, de premissas
aceitas. Cf. minha The Slructure of Scientific Revolutions, pp. 35-51, e também a discussão na
Seção III, mais adiante.

23. Isto não quer dizer que os astrólogos não se criticavam uns aos outros. Ao contrári o,
como praticantes de filosofia e de algumas ciências sociais, pertenciam a uma variedade de escolas
diferentes, e a luta entre as escolas, às vezes, era acirrada. Mas esses debates, de ordinário, giravam
em torno da Implausibilidade da teoria adotada por uma ou por outra escola. Òs rríalogros de
predições individuais desempenhavam um papel muito pequeno. Compare-se A Hislory of Magic
and Experimental Science de Thorndike, 5, p. 233.

15
Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas pelas
mesmas pessoas, incluindo Ptolomeu, Kleper e Tycho Brahe, nunca existiu um
equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de charadas. E sem
charadas, que pudessem primeiro desafiar e depois atestar o engenho do
profissional, a astrologia não poderia ter-se tornado ciência, ainda que as estrelas
controlassem, de fato, o destino humano.
Em suma, conquanto os astrólogos fizessem predições que poderiam ser
testadas e reconhecessem que essas predições às vezes falhavam, não podiam
empenhar-se, e não se empenhavam, nos tipos de atividades que normalmente
caracterizam todas as ciências reconhecidas. Sir Karl está certo ao excluir a
astrologia do rol das ciências, mas sua superconcentração nas revoluções
ocasionais da ciência o impede de ver a razão mais segura para fazê -lo.

Esse fato, por seu turno, pode explicar outra singularidade da


historiografia de Sir Karl. Embora sublinhe repetidamente o papel dos testes na
substituição de teorias científicas, vê-se também obrigado a reconhecer que
muitas teorias, como por exemplo a de Ptolomeu, foram substituídas antes de
terem sido realmente testadas. 24 Em algumas ocasiões, pelo menos, os testes não
são imprescindíveis às revoluções através das quais progride a ciência. Mas isso
não é verdade em relação aos enigmas. Se bem que as teorias citadas por Sir Karl
não tenham sido postas à prova antes da sua substituição, nenhuma delas foi
substituída antes de haver deixado de sustentar convenientemente uma tradição
de solução-de-enigmas. O estado da astronomia era um escândalo no início do
século XVI. Não obstante, a maioria dos astrônomos acreditava que os
ajustamentos normais de um modelo basicamente ptolemaico corrigiriam a
situação. Nesse sentido a teoria não falhou ao ser testada. Mas alguns
astrônomos, entre os quais Copérnico, entendiam que as dificuldades deviam
estar no próprio enfoque ptolemaico e não nas versões particulares da teoria pto-
lemaica até então desenvolvidas, e os resultados dessa convicção já foram
registrados. A situação é típica. 25 Com ou sem testes, uma tradição de solução-
de-enigmas pode preparar o caminho para a própria substituição. Confiar no teste
como marca de uma ciência é passar por alto o que os cientistas mais fazem e,
com isso, o traço mais característico da sua atividade.

24. Cf. Conjectures and Refutations, de Popper, p. 246.


25. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 77-87.

16
II

Com o pano de fundo fornecido pelos reparos precedentes pode mos


descobrir logo a ocasião e as conseqüências de outra expressão favorita de Sir
Karl. O prefácio escrito para Conjectures and Refuta- tions (Conjecturas e
Refutações) inicia-se com esta sentença: “Os ensaios e conferências de que se
compõe este livro são variações sobre um tema muito simples — a tese segundo a
qual podemos aprender com nossos erros.” O grifo é de Sir Karl; a mesma tese
repete-se em seus escritos desde uma data bem anterior; 2,1 tomada isoladamente,
ela obriga inevitavelmente ao assentimento. Todos podemos aprender, e
aprendemos, com nossos erros; o processo de isolá-los e corrigi-los é uma técnica
essencial no ensino das crianças. A retórica de Sir Karl tem raízes na experiência
cotidiana. Apesar disso, nos contextos para os quais ele invoca esse imperativo
familiar, suas aplicações parecem decididamente torcidas, pois não estou certo de
que tenha sido cometido um erro, pelo menos um erro, com o qual se possa
aprender.
Não há necessidade de confrontar os problemas filosóficos mais profundos
apresentados pelos erros para ver o que está agora em debate. É um erro somar
três mais três e obter cinco, ou concluir de ‘ Todos os homens são mortais” que
“Todos os mortais são homens”. Por motivos diferentes, é um erro dizer “Ele é
minha irmã” ou afirmar a presença de um campo elétrico forte quando as cargas
experimentais não a indicam. Presume-se que haja ainda outras espécies de erros
mas todos os erros normais tendem a possuir as seguintes características. Um erro
é feito, ou cometido, num tempo e num lugar especificáveis, por determinado
indivíduo. Esse indivíduo deixou de obedecer a alguma regra estabelecida de
lógica, de linguagem, ou das relações entre uma delas e a experiência. Ou deixou
de reconhecer as conseqüências de determinada escolha entre as alternativas que
as regras lhe facultam. O indivíduo só pode aprender com o seu erro porque o
grupo cuja prática incorpora essas regras pode limitar o fracasso individual na
aplicação delas. Em suma, as espécies de erros

26. A citação é do livro Conjectures and Rejutations, de Popper, p. vii, num prefácio
datado de 1962. Anteriormente, Sir Karl equiparara “aprender com nossos erros a "aprender por
ensaio-e-erro” (Conjectures and Rejutations, p. 216), e a formulação de ensaio-e-erro data,
pelo menos, de 1937 (Conjectures and Rejutations, p. 312) e é, em espírito, mais velho do que
isso. Muita coisa dita mais adiante s obre a noção de “equívoco” de Sir Karl aplica-se igualmente
ao seu conceito de “erro”.

17
a que se aplica o imperativo de Sir Karl de modo mais óbvio estão numa falha de
compreensão ou deconhecimento do indivíduo dentro de uma atividade
governada por regras preestabelecidas. Nas ciên- cias, tais erros ocorrem com
maior freqüência, e talvez de forma exclusiva, na prática da pesquisa normal dê
solução-de-enigmas.

Não é aí, todavia, que Sir Karl os procura, pois o seu conceito de ciência
obscurece até a existência da pesquisa normal. Ele os procura nos episódios
extraordinários ou revolucionários do desenvol vimento científico. Os erros. para
os quais aponta geralmente não são atos, senão teorias científicas do passado: a
astronomia ptólémai- ca, a teoria do flogisto ou a dinâmica newtoniana, e
“aprender jcom nossos erros” é o que acontece, correspondentemente, quando
uma comunidade científica rejeita uma dessas teorias e a substitui por outra. 27 Se
isto não parece de imediato uma utilização estranha, a razão principal é porque
apela para o resíduo indutivista que existe em todos nós. Acreditando que as
teorias válidas são o produto de induções corretas a partir dos fatos, ,o
indutivista também sustenta que uma teoria falsa resulta de um erro de indução.
Em princípio, pelo menos, ele está preparado para responder a perguntas: que
erro se perpetrou, que regra foi violada, quando e por quem, para se chegar,
digamos, ao sistema ptolemaico? Ao homem para o qual essas perguntas são
sensatas, e só a ele, a expressão de Sir Karl não apresenta problemas.

Mas nem Sir Karl nem eu somos indutivistas. Não acreditamos que existem
regras para induzir teorias corretas a partir dos fatos, nem mesmo que as teorias,
corretas ou incorretas, são induzidas. Ao invés disso, nós as encaramos como
suposições imaginativas, que se

27. Conjectures and Refutations, de Popper, pp. 215 e 220. Nessas páginas Sir Karl
esboça e ilustra sua tese de que a ciência se desenvolve através de revoluções. Ao fazê -lo, nunca
justapõe o termo “erro” ao nome de uma teoria científica superada, presumivelmente porque o
seu sólido instinto histórico não lhe permite incorrer num anacronismo tão grosseiro. Não
obstante, o anacronismo é fundamental para a retórica de Sir Karl, que reiteradamente fornece
pistas conducentes a diferenças mais substanciais entre nós. A menos que as teorias superadas
sejam erros, não há maneira de reconciliar, digamos, o parágrafo inicial do prefácio de Sir Karl
para o livro Conjectures and Refutations, p. vii, "aprender com nossos erros”, “nossas
tentativas freqüentemente equivocadas de resolver nossos problemas”, “testes que podem ajudar -
nos na descoberta de nossos erros”, com a opinião (Conjectures and Refutations, p. 215) de que
“o crescimento do conhecimento científico... [consiste na] repetida derrubada de teorias
científicas e sua substituição por teorias melhores e mais satisfatórias”.

18
inventam em um só bloco para serem aplicadas à natureza. E se bem assinalemos
que essas suposições podem encontrar, e geralmente acabam encontrando
enigmas que não lhes é dado resolver, também reconhecemos que tais
confrontações incômodas raro ocorrem durante algum tempo depois de inventada
e aceita a teoria. Em nossa opinião, portanto, não se perpetrou nenhum erro para
chegar ao sistema ptò- lemaico, e acho difícil compreender o que Sir Karl tem em
mente quando chama de erro esse sistema, ou qualquer outra teoria superada.
Poder-se-á querer dizer no máximo que uma teoria que não era um erro passou a
sê-lo ou que um cientista errou ao aferrar-se a uma teoria por um tempo
demasiado longo. E nem mesmo tais expressões, a primeira das quais pelo menos
é extremamente inábil, nos devolve o sentido de erro com o qual estamos mais
familiarizados. Esses erros são os erros normais que um astrônomo ptolemaico
(ou coperniciano) faz dentro do seu sistema, talvez observando, calculando ou
analisando dados. Isto é, pertencem ao tipo de erros que se podem isolar e logo
depois corrigir, deixando intacto o sistema original. No sentido de Sir Karl, por
outro lado, um erro contamina todo um sistèma e só pode ser corri gido
substituindo-se todo o sistema. Não há expressões nem similaridades capazes de
disfarçar essas diferenças fundamentais, nem se pode esconder o fato de que,
antes de instalar-se a contaminação, o sistema tinha a plena integridade do que
ora denominamos conhecimento sólido.
É muito possível que o sentido de “erro” de Sir Karl possa ser recuperado,
mas uma operação bem-sucedida de recuperação terá de privá-lo de certas
implicações ainda correntes. Como o termo “teste”, o termo “erro” foi tomado da
ciência normal, onde o seu uso é razoavelmente claro, e aplicado a episódios
revolucionários, onde sua apli- çação, na melhor das hipóteses, é problemática.
Essa transferência cria, ou pelo menos reforça, a impressão predominante de que
teorias inteiras podem ser julgadas pela mesma espécie de critérios que se
empregam para julgar as aplicações de pesquisa individual de uma teoria. A
descoberta de critérios aplicáveis torna-se, então, um deái- derato fundamental
para muitos. É estranho que Sir Karl se encontre entre eles, pois a pesquisa se
opõe à mais original e frutuosa investida de sua filosofia da ciência. Mas não
posso compreender de outra maneira seus escritos metodológicos desde a Logik
der Forschung. Parece-me que ele, a despeito de repúdios explícitos, procurou
sistematicamente processos de avaliação que se podem aplicar a teorias com a
segurança apodítica característica das técnicas pelas quais se identificam os erros
na aritmética, lógica ou mensuração. Receio que ele esteja perseguindo um fogo -
fátuo nascido da mesma conjunção de

19
ciência normal e ciência extraordinária que fez que os testes pareces sem um traço
tão fundamental das ciências.

III

Em sua Logik der Forschung, Sir Karl sublinhou a assimetria entre uma
generalização e sua negação na relação delas com a evidência empírica. Não se
pode mostrar que uma teoria científica se aplica de maneira bem-sucedida a todos
os casos possíveis, mas pode mos- trar-se que ela foi malsucedida em determinadas
aplicações. A ênfase emprestada a esse truísmo lógico e às suas implicações
afigura-se um passo à frente do qual não há que voltar atrás. A mesma assimetria
desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific Revolutions,
onde a incapacidade de uma teoria de fornecer regras para identificar quebra-
cabeças solúveis é encarada como a origem de crises profissionais que não raro
resultam na substituição da teoria. Minha idéia está muito próxima da de Sir Karl, e
bem posso tê-la tirado do que ouvi sobre a obra dele.
Mas Sir Karl descreve como “falseamento” ou “refutação” o que acontece
quando uma teoria fálhá na tentativa de aplicação, e estas são as primeiras de uma
série de expressões que me parecem sumamente estranhas. Tanto “falseamento”
quanto “refutação”, antônimos de “prova”, são tiradas principalmente da lógica e
da matemática formais; as cadeias de raciocínio a que elas se aplicam rematam-se
com um “Q.E.D.”; a invocação desses termos supõe a capacidade de obrigar ao
assentimento qualquer membro da comunidade profissional pertinente. Ninguém
entre os aqui presentes, no entanto, precisa ainda que se lhe diga que os argumentos
raros são tão apodíticos nos casos em que está em jogo toda uma teoria ou, com
maior freqüência, até uma lei científica. Todas as experiências podem ser contesta -
das, quer quanto à relevância, quer quanto à exatidão. Todas as teorias podem ser
modificadas por uma variedade de ajustamentos ad hoc sem por isso deixar de ser,
em suas linhas gerais, as mesmas teorias. De mais a mais, é importante que assim
seja, pois é amiúde contestando observações ou ajustando teorias que se desenvolve
o conhecimento científico. Contestações e ajustamentos são uma parte comum da
pesquisa normal na ciência empírica, e os ajustamentos, pelo menos, representam
também um papel dominante na matemática não-formal. A brilhante análise das
contra-réplicas permissíveis às refutações matemáticas levadas a efeito pelo Dr.
Lakatos fornece os

20
argumentos mais impressionantes que conheço contra a posição fal- seacionista
ingênua. 28
Sir Karl não é, obviamente, um falseacionista ingênuo. Sabe tudo o que
acaba de ser dito e enfatizou-o desde o princípio da sua carreira. Em sua Logic of
Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta Científica), por exemplo, escreve:
“Na verdade, nunca se poderá produzir a refutação concludente de uma teoria;
pois é sempre possível dizer que os resultados experimentais não merecem
confiança ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados ex -
perimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o processo de
nosso entendimento.” 29 Enunçiados como esse mostram mais um paralelo entre a
visão da ciência de Sir Karl e a minha, mas o que fazemos com eles dificilmente
poderia ser mais diferente. Para a minha visão eles são fundamentais, não só
como evidência mas também como fonte. Para a visão de Sir Karl, no entanto, são
uma qualificação essencial que ameaça a integridade da sua posição básica.
Tendo excluído a refutação, concludente, ele não providenciou um substituto para
ela, e a relação que continua a empregar é a do falseamento lógico. Conquanto
não seja um falseacionista ingênuo Sir Rarl, no meu entender, pode ser
legitimamente tratado como tal.
Se ele só se interessasse pela demarcação, os problemas colocados peia falta
de disponibilidade de refutações concludentes seriam menos severos e talvez
elimináveis. Isto é, a demarcação poderia con- seguir-se mediante um critério
exclusivamente sintático. 30 A posição de Sir Karl seria então, e talvez assim o
seja, que uma teoria é científica se e somente se os enunciados de observação —
sobretudo as negações de enunciados existenciais singulares — puderem ser logi-
camente deduzidos dela, talvez em conjunção com o conhecimento básico
expresso. As dificuldades (às quais logo voltarei) para decidir se o resultado de
determinada operação de laboratório justifica a asserção de determinado
enunciado de observação seriam então irrelevantes. Talvez se pudessem eliminar
da mesma maneira as dificul

28. “Proofs and Refutations”, de Lakatos.


29. Logic of Scientific Discovery, de Popper, p. 50.
30. Se bem que o meu ponto seja um pouco diferente, devo meu reco nhecimento da
necessidade de enfrentar essa questão às críticas dirigidas por C. G. Hempel aos que interpretam
erroneamente Sir Karl atribuindo-lhe uma crença no falseamento absoluto em lugar de uma crença
no falseamento relativo. Veja os seus Aspects of Scientific Explanation, p. 45. Reconheço-me
também devedor do Professor Hempel por sua crítica atenta e ' inteligente deste ensaio quando
ainda não passava de um rascunho.

21
dades igualmente graves para decidir se um enunciado de observação deduzido
de uma versão aproximada (por exemplo, matematicamente controlá vel) da teoria
deva ser considerado conseqüência da própria teoria, embora a base para fazê -lo
seja menos aparente. Problemas como esses não pertenceriam à sintaxe, mas à
pragmática ou á semântica da linguagem em que a teoria foi moldada, e não
desempenhariam, portanto, papel algum na determinação do seu status como
ciência. Para ser científica, a teoria precisa ser falseável apenas por um
enunciado de observação e não pela observação real. A relação entre enunciados,
à diferença da que existe entre um enunciado e uma observação, poderia ser a
refutação concludente familiar da lógica e da matemática.
Por motivos sugeridos acima (p. 15, nota de rodapé n.° 22) e desenvolvidos
logo depois, duvido que as teorias científicas possam ser moldadas, sem uma
mudança decisiva, numa forma que permita os julgamentos puramente sintáticos
exigidos por essa versão do critério de Sir Karl. Mas ainda que o pudessem ser,
essas teorias reconstruídas só proporcionariam uma base para o seu critério de
demarcação, è hão para a lógica do conhecimento tão intimamente associada a
ele. Esta última, entretanto, tem constituído o interesse mais per sistente de Sir
Karl, e a noção que ele tem dela é bem precisa. “A lógica do conhecimento...”
escreve ele, “consiste tão-só em investigar os métodos empregados nos testes
sistemáticos a que toda idéia nova tem de ser submetida para ser tomada
seriamente em consideração.” 31 Dessa investigação, continua ele, resultam
regras ou convenções metodológicas como as seguintes: “Depois que uma
hipótese tiver sido proposta e testada, e tiver demonstrado sua têmpera, não se
deve permitir que seja posta de lado sem uma ‘boa razão’. Uma ‘boa razão’ pode
ser, por exemplo. . . o falseamento de uma das suas conseqüências.” 32
Regras como essa e, com elas, toda a atividade lógica acima descrita, já não
são simplesmente sintáticas em sua importância. Requerem que tanto o
investigador epistemológico quanto o cientista pesquisador sejam capazes de
relacionar sentenças derivadas de uma teoria não com outras sen tenças mas com
observações e experiências reais. Esse é o contexto em que precisa funcionar o
termo “falseamento” de Sir Karl, e Sir Karl mantém absoluto silêncio sobre como
isso pode ser feito. Que é o falseamento se não é a refutação conclu

31. Popper, Logic of Scientific Discovery, p. 31.


32. Popper, ibidem, pp. 53 e seguintes.
dente? Em que circunstâncias exige a lógica do conhecimento que o cientista
abandone uma teoria previamente aceita quando se defronta, não com
enunciados sobre experiências, mas com as próprias expe riências? Até a
elucidação dessas questões, não me parece muito claro que o que Sir Karl nos
deu seja uma lógica do conhecimento. A meu ver, embora igualmente valiosa,
trata-se de coisa muitíssimo diversa. Em lugar de uma lógica, Sir Karl nos
ofereceu uma ideologia; em lugar de regras metodológicas, ele nos deu máximas
de procedimento.
Cumpre, todavia, adiar essa conclusão até que se lance um derradeiro e
mais profundo olhar à origem das dificuldades surgidas com a noção de
falseamento de Sir Karl. Ela pressupõe, como já sugeri, que se pode moldar ou
remoldar, sem distorção, uma teoria numa forma que permite aos cientistas
classificar cada evento concebível como um caso que confirma a teoria, como
um caso que a falseia ou como um caso que é irrelevante para a teoria. Para que
uma lei geral seja falseável requer-se obviamente que, a fim de testar a
generalização (x) Ø (x) aplicando-a à constante a, sejamos capazes de dizer se a
se encontra ou não dentro do âmbito da variável x e se é o caso de que 0 (a) ou
não. A mesma pressuposição é ainda mais aparente na medida de
verossimilhança recém-elaborada por Sir Karl. Ela requer que se produza
primeiro a classe de todas as conseqüências lógicas da teoria e depois se
escolham entre essas conseqüências, com a ajuda do conhecimento básico, as
classes de todas as conseqüências verdadeiras e de todas as falsas/* 3 Pelo menos
será preciso fazê-lo se o critério de verossimilhança tiver de resultar num
método de escolha de teorias. Entretanto, nenhuma dessas tarefas pode ser
levada a cabo se a teoria não for totalmente articulada logicamente e se os
termos através dos quais ela se liga à natureza não tiverem sido suficientemente
definidos para determinar-lhes a aplicabilidade em cada caso possível. Na
prática, todavia, nenhuma teoria científica satisfaz a essas exigências, e muita
gente já sustentou que, se o fizesse, a teoria deixa ria de ser útil à pesquisa. 34 Eu
mesmo apresentei alhures o termo “paradigma” com o propósito de destacar a
dependência da pesquisa

33. Popper, Conjectures and Rejutations, pp. 233-5. Note-se também, no pé da última
dessas páginas, que a comparação de Sir Karl da relativa verossimilhança de duas (eorias
depende do fato de “não haver mudanças revolucioná rias em nosso conhecimento básico”,
suposição que ele não desenvolve em parte alguma e que é difícil de harmonizar com a sua
concepção da mudança científica mediante revoluções.
34. Braithwaite, Scientific Explanation, pp. 50-87, especialmente p. 76, e minha The
Structure of Scientific Revolutions, pp. 97-101.

23
científica para com exemplo s concretos, que lançam uma ponte sobre o que de
outro modo seriam lacunas na especificação do conteúdo e na aplicação das
teorias científicas. Não se podem repetir aqui os argumentos pertinentes. Mas um
breve exemplo, embora altere temporariamente minha linha de discurso, talvez
seja ainda mais útil.
Meu exemplo tem a forma de um resumo construído a partir de
conhecimentos científicos elementares. Esse conhecimento refere - se aos cisnes e
para isolar-lhe as características atualmente pertinentes farei trê s perguntas a
respeito: (a) Quanto se pode saber a respeito de cisnes sem introduzir
generalizações explícitas como esta: “Todos os cisnes são brancos?” (b) Em que
circunstâncias e com que conseqüências convém acrescentar tais generalizações
ao que era sabido sem elas? (c) Em que circunstâncias se rejeitam as
generalizações depois de feitas? Ao formular essas perguntas meu objetivo é
sugerir ”] que, embora a lógica seja um instrumento poderoso e essencial da
investigação científica, é possível ter um conhecimento sólido em formas a que
escassamente se pode aplicar a lógica. Sugiro outrossim que a articulação lógica
não é um valor em si mesma, mas só deve; ser buscada quando as circunstâncias
a exigem e na medida em que' a exigem.
Imagine, o leitor, que lhe foram mostrados, e você pode lembrar- se deles,
dez pássaros peremptoriamente identificados como cisnes; imagine ainda que
possui uma familiaridade semelhante com patos, gansos, pombos, rolinhas,
gaivotas, etc., e que está informado de que cada um desses tipos constitui uma
família natural. Você já sabe que uma família natural é um grupo observado de
objetos semelhantes, suficientemente importantes e suficientemente discretos
para exigir um nome genérico. Com maior precisão, embora eu aqui sim plifique
mais do que o requer o conceito, uma família natural é uma classe cujos membros
são mais parecidos uns com os outros do que com os membros de outras famílias
naturais. 35 A experiência das gerações tem confirmado até agora que todos os
objetos observados cabem numa ou noutra família natural. Isto é, mostrou que
toda a população do mundo pode ser dividida (embora não de uma vez por

35. Note-se que a semelhança entre os membros de uma família natural é aqui uma
relação aprendida e uma relação que pode ser desap rendida. Pondere-se o antigo provérbio:
“Para um ocidental, todos os chineses são parecidos.” Esse exemplo também põe em destaque a
mais drástica das simplificações introduzidas neste ponto. Uma discussão mais completa teria
de tomar em consideração hierarquias de famílias naturais com relações de semelhança entre
famílias nos níveis mais elevados.

24
todas) em categorias perceptivamente descontínuas. Acredita-se que nos espaços
perceptivos entre as categorias não existe objeto algum.
O que você aprendeu a respeito de cisnes pela exposição a paradigmas é
muito parecido com o que as crianças aprendem primeiro acerca de cães e gatos,
mesas e cadeiras, mães e pais. Claro está que é impossível especificar-lhes o
âmbito e o conteúdo especí- fico mas, apesar de tudo, é conhecimento sólido.
Derivado da obser- vação, pode ser invalidado por uma observação ulterior e,
entremen- tes, proporciona uma base de ação racional. Ao ver um pássaro muito
parecido com os cisnes que já conhece, você poderá com razão supor que ele
come o que comem os outros e dar-lhe o mesmo alimento. Se os cisnes
constituem uma família natural, nenhum pássaro que se pareça muito com eles à
primeira vista exibirá características radicalmente diferentes a um exame mais
atento. É claro que você talvez tenha sido mal informado acerca da integridade
natural da família dos cisnes. Mas isso pode ser descoberto pela experiência,
como por exemplo a descoberta de certo número de animais (observe-se que mais
de um são necessários) cujas características estabeleçam uma ponte entre os
cisnes e, digamos, os gansos por intervalos vagamente perceptíveis. 36 Até que
isso ocorra, entretanto, você saberá muita coisa a respeito de cisnes, embora não
esteja plenamente seguro do que sabe nem tem certeza do que é um cisne.
Suponha agora que todos os cisnes que você realmente observou são
brancos. Deverá adotar a generalização “Todos os cisnes são brancos”? O fazê -lo
mudará muito pouco o que você sabe; essa mudança só terá utilidade no caso
pouco provável de você encontrar um pássaro não-branco que sob outros aspectos
se pareça com um cisne; fazendo a mudança você aumenta o risco de que se
prove que a família dos cisnes não é, apesar de tudo, uma família natural. Nessas
circunstâncias você tenderá a abster-se de generalizar, a menos que haja razões
especiais para fazê-lo. Talvez, por exemplo, você precise descrever cisnes a
homens que não se podem expor diretamente a paradigmas. Sem uma cautela
sobre-humana, tanto de sua parte quanto da parte dos seus leitores, sua descrição
adquirirá

36. Essa experiência não exige o abandono da categoria “cisnes” nem o abandono da
categoria "gansos”, mas exige a introdução de um limite arbitrário entre elas. As famílias “cisnes”
e “gansos” deixariam de ser famílias naturais, e não se poderia concluir coisa alguma acerca do
caráter de um novo pássaro semelhante a um cisne que também não fosse verdadeiro em relação aos
gansos. O espaço perceptual vazio é essencial para que a qualidade de membro da família tenha
conteúdo cognitivo.
a força de uma generalização; tal é, muitas vezes, o problema do taxiólogo. Ou
você talvez tenha descoberto alguns pássaros cinzentos, que se parecem em outros
sentidos com os cisnes, mas que comem comida diferente e têm uma conformação
defeituosa. Você poderá então generalizar para evitar um equívoco de
comportamento. Ou poderá ter uma razão mais teórica para pensar que a
generalização vale a pena. Talvez tenha observado, por exemplo, que os membros
de outras famílias naturais possuem a mesma coloração. A especificação desse
fato de modo que faculte a aplicação de técnicas lógicas poderosas, ao que você
sabe, pode permitir-lhe aprender mais a respeito da cor animal em geral ou da
reprodução animal.
Ora, tendo feito a generalização, que fará você se encontrar um pássaro
preto que de outra forma se parece com um cisne? Quase as mesmas coisas, penso
eu, que faria se já não estivesse comprometido com a generalização. Examinará o
pássaro com cuidado, externamente e talvez internamente também, a fim de
encontrar outras características que distingam esse espécime dos seus paradigmas.
O exame será particularmente demorado e completo se você tiver razões teóri cas
para acreditar que a cor caracteriza as famílias naturais ou se o seu ego estiver
profundamente envolvido na generalização. É muito provável que o exame revele
outras diferenças, e você anunciará a descoberta de uma nova família natural. Ou,
não encontrando tais diferenças, poderá anunciar o achado de um cisne preto. A
observação, contudo, não pode forçá-lo a essa conclusão falseadorà, 5 você, de
vez em quando sairia perdendo se isso acontecesse. Considerações teóricas podem
sugerir que a cor basta para demarcar uma família naturail: o pássaro não é um
cisne porque é preto. Ou você poderá simplesmente adiar a questão enquanto
espera a descoberta e o exame de outros espécimes. Só se já se tiver
comprometido com uma
plena definição de “cisne”, uma definição que lhe especifique a apli cabilidade a
todo objeto concebível, poderá você ser logicamente forçado a rescindir sua
generalização. 37. E por que teria oferecido tal definição?* Ela não teria nenhuma
função cognitiva e o exporia a

37. Novas provas da desnaturalidade de uma definição dessa natureza são fornecidas pela
pergunta seguinte. Deve incluir-se a "brancura” entre as características que definem os cisnes? Em
caso afirmativo, a generalização “Todos os cisnes são brancos” será imune à experiência. Mas se se
excluir a “brancura” da definição, será preciso incluir outra característica qualquer capaz de substituir
a “brancura”. As decisões a respeito das características que fazem parte de uma definição e estarão
disponíveis para o enunciado de leis gerais são amiúde arbitrárias e, na prática, raramente se fazem. O
conhecimento, em regra geral, não se articula dessa maneira.

26
tremendos riscos. 38 Está visto que, muitas vezes, vale a pena assumir riscos, mas
dizer mais do que se sabe, só por amor ao risco, é temeridade.

Tenho para mim que o conhecimento científico, embora logicamente mais


articulado e muito mais complexo, é desse tipo. Os livros e os mestres onde ele se
adquire apresentam exemplos concretos a par de uma infinidade de generalizações
teóricas. Ambos são veículos essenciais do conhecimento e é, pois, pickwic kiano
procurar um critério metodológico que suponha o cientista capaz de determinar
ante- cipadamente cada caso imaginável se ajustará à sua teoria ou a falseará. Os
critérios de- que eie dispõe, explícitos e implícitos, só são suficientes para
responder a essa pergunta nos casos que se ajustam claramente ou que são
claramente irrelevantes. Esses são os casos que eie espera, e para os quais o seu
conhecimento foi planeja- do: Defrontando-se com o inesperado, ele deve sempre
fazer novas pesquisas a fim de articular melhor a sua teoria na área que acaba de
tornar-se problemática. Poderá então rejeitá-la em favor de outra e pior uma boa
razão. Mas critérios exclusivamente lógicos não podem ditar sozinhos a conclusão
que ele deve obter.

IV

Quase tudo o que foi dito até agora são variações sobre um único tema. Os
critérios com que os cientistas determinam a validade de uma articulação ou de
uma aplicação da teoria existente não bastam por si mesmos a determinar a
escolha entre teorias concor- rentes. Sir Karl errou transferindo características
escolhidas de pesquisa cotidiana para os episódios revolucionários ocasionais em
que o avanço científico é mais óbvio, ignorando, inteiramente a partir daí, a
atividade de todos os dias. Ele procurou, em particular, resolver o problema da
escolha da teoria durante revoluções pelos critérios lógicos só aplicáveis íntegra
quando a teoria já pode ser pressuposta. Esta é a maior parte da minha tese neste
trabalho e poderia ser toda ela se eu me contentasse em deixar compl etamente
abertas as questões aventadas. Como é que os cientistas procedem à escolha

38. Essa incompletude das definições é muitas vezes denominada "textu ra aberta” ou
“vagueza de significado”, mas tais expressões parecem decidi damente enviesadas. As definições
talvez sejam incompletas, mas não há nada de errado com os significados. Ê dessa maneira que se
comportam os significados!

27
entre teorias concorrentes? Como havemos nós de compreender o modo com que
a ciência progride?
Seja-me permitido esclarecer de pronto que, tendo aberto essa caixa de
Pandora, não tardarei em fechá-la. Há muita coisa em relação a tais questões que
eu não entendo, nem devo fingir que as compreendo. Mas acredito ver as
direções em que as respostas devem ser buscadas, e concluirei com uma breve
tentativa para mostrar o caminho. Perto do seu fim tornaremos a encontrar um
conjunto de expressões características de Sir Karl.
Preciso perguntar primeiro que é o que ainda requer explicação. Não é que
os cientistas descobrem a verdade a respeito da natureza, nem que eles se
aproximam ainda mais da verdade. A não ser, como sugere um dos meus
críticos, 39 que definamos simplesmente o enfoque da verdade como o resultado
da atividade dos cientistas, não podemos reconhecer o progresso na direção dessa
meta. Precisamos antes explicar por que a ciência — nosso exemplo mais seguro
de conhecimento sólido — progride, e precisamos descobrir primeiro como de
fato o faz.
Ainda se conhece surpreendentemente pouco sobre a resposta a essa
questão descritiva. Ainda se faz necessária grande quantidade de cuidadosa
investigação empírica. Com o passar do tempo, as teorias científicas tomadas em
grupo tornam-se obviamente mais e mais articuladas. Nesse processo, equiparam-
se à natureza em um número cada vez maior de pontos e com crescente precisão.
Ou o número de temas a que se pode aplicar o enfoque da solução de enigmas
cresce claramente com o tempo. Há uma contínua proliferação de especialidades
científicas, em parte pela extensão dos limites da ciência e em parte pela
subdivisão dos campos existentes.
Tais generalizações, no entanto, são apenas um princípio. Não sabemos, por
exemplo, quase nada sobre o que um grupo de cientis- tas está disposto a sacrificar
a fim de lograr os ganhos que uma nova teoria invariavelmente oferece. Minha
impressão, embora não seja mais do que isso, é que uma comunidade científica
raro ou nunca adotara uma nova teoria a não ser que esta resolva todos ou quase
todos os enigmas quantitativos e numéricos que se deparavam à sua predecessora. 40
Por outro lado. eles sacrificarão o poder expla- natório, embora com relutância,
deixando às vezes abertas questões

39. Hawkins, crítica da "The Structure of Scientific Revolutions”, de Kuhn.

40. Cf. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 102-8.

28
anteriormente resolvidas e, às vezes, declarando-as inteiramente não- -
científicas. 4r Voltando-nos para outra área, pouco sabemos acerca das mudanças
históricas ocorridas na unidade das ciências. Apesar de êxitos espetaculares, a
comunicação através das fronteiras entre especialidades científicas torna-se cada
vez pior. Crescerá com o tempo o número de pontos de vista incompatíveis
empregados pelo número sempre maior de comunidades de especialistas? A
unidade das ciências representa sem dúvida um valor para os cientistas, mas em
favor do que serão eles capazes de renunciar a ela? Ou ainda, conquanto o volume
do conhecimento científico aumente claramente com o tempo, que diremos da
ignorância? Os problemas resolvidos nos últimos trinta anos não existiam como
questões abertas há um século. Em qualquer época, o saber científico já
disponível esgota virtualmente o que há para saber, só deixando quebra-cabeças
visíveis no horizonte do conhecimento existente. Não será possível, nem mesmo
provável, que os cientistas contemporâneos saibam menos do que há para saber a
respeito do seu mundo do que sabiam a respeito do seu os cientistas do século
XVIII? Cumpre lembrar que as teorias científicas só se ligam à natureza aqui e
ali. Serão agora talvez os interstícios entre os pontos de ligação maiores e mais
numerosos do que no passado?
Enquanto não pudermos responder a mais perguntas como essas, não
saberemos direito o que é o progresso científico e não podere mos, portanto,
esperar explicá-lo. Por outro lado, pouco faltará para que as respostas a essas
perguntas forneçam a explicação desejada. As duas vêm quase juntas. Já devia
estar claro que a explicação, na análise final, precisa ser psicológica ou
sociológica. Isto é, precisa ser a descrição de um sistema de valores, uma
ideologia, juntamente com uma análise as instituições através das quais o
sistema é transmitido e imposto. Sabendo a que os cientistas dão valor, podemos
esperar compreender os problemas pelos quais se responsabilizarão e as escolhas
que farão em determinadas circunstâncias de conflito. Duvido que se possa
encontrar outra espécie de resposta.
A forma que a resposta assumirá, naturalmente, é outro assun to. Neste
ponto termina também minha consciência do controle do meu tema. Mais uma
vez, porém, algumas generalizações de amostras ilustrarão os tipos de respostas
que se devem procurar. Para um cientista, a solução de um difícil enigma
conceptual ou instrumental

41. Cf. Kuhn, “The Function of Measurement in Modern Phvsical Scien ce”.

29
representa uma meta principal. O seu êxito nessa tentativa é recom- pènsado pelo
reconhecimento de outros membros do seu grupo profissional e só deles. O
mérito prático da solução, na melhor das Hipóteses, é um valor secundário, e a
aprovação de homens fora do grupo especialista é um valor negativo ou não é
nenhum valor. Tais valores, que muito contribuem para ditar a forma da ciência
normal, são também às vezes significativos quando é preciso escolher entre
teorias. Um homem treinado para solucionar enigmas desejará preservar o maior
número possível de soluções já obtidas pelo seu grupo, e desejará também
maximizar o número de enigmas passíveis de solução. Mas até esses valores
freqüentemente conflitam entre si e outros há que tornam o problema da escolha
ainda mais difiçil. É exatamente nesse sentido que seria mais significativo um
estudo daquilo a que os cientistas renunciarão. A simplicidade, a precisão e a
compatibilidade com as teorias utilizadas em outra s especialidades saõ valores
expressivos para os cientistas, mas nem todas ditam a mesma escolha nem serão
aplicadas da mesma maneira. Nessas circunstâncias, importa igualmente que a
unanimidade do grupo seja um valor soberano, levando o grupo a minimizar as
ocasiões de conflito e a congregar-se rapidamente em torno do mesmo conjunto
de regras para a solução de enigmas, ainda que para isso lhe seja preciso subdi -
vidir a especialidade ou excluir um membro anteriormente produtivo. 42
Não estou dizendo que estas são as respostas certas ao problema do
progresso científico, mas apenas os tipos de respostas que devem ser procurados.
Poderei esperar que Sir Karl me faça companhia nesta maneira de ver a tarefa
que ainda está por ser feita? Durante algum tempo pres umi que ele não o faria,
visto que um conjunto de expressões que se repetem em sua obra parece impedi -
lo de assumir essa posição. Ele rejeitou reiteradamente “a psicologia do
conhecimento” ou o “subjetivo” e insistiu em que o seu interesse se resumia no
“objetivo” ou na “lógica do conhecimento”. 43 O título de sua contribuição mais
fundamental para o nosso campo é A Lógica da Descoberta Científica, e é ali que
ele afirma da maneira mais positiva que o seu interesse diz muito mais respeito
aos estímulos lógicos para conhecimento do que aos impulsos psicológicos dos
indivíduos. Até há pouco tempo eu supunha que essa maneira de encarar o
problema excluiria a solução que tenho advogado.

42. Cf. The Structure of Scientific Revolutions, de minha autoria, pp.


161-9.
43. Popper, Logic of Scientific Discovery, pp. 22 e 31 e seguintes, 46; e Conjectures and
Refutations, p. 52.
/
30
Mas agora estou menos seguro, pois há outro aspecto da obra de Sir Karl
não muito compatível com o que precede. Quando ele rejeita “a psicologia do
conhecimento”, o seu interesse explícito é apenas negar a importância
metodológica da fonte de inspiração do indivíduo ou da consciência de certeza do
indivíduo. Disso não posso discordar. Vai, todavia, uma longa distância entre a
rejeição das idiossincrasias do indivíduo e a rejeição dos elementos comuns
induzidos pela criação e pela educação na composição psicológica da situação de
membro licenciado de um grupo científico. A dispensa de um não impõe a do
outro. E isso também Sir Karl parece reconhecer às vezes. Embora insista em que
está escrevendo sobre a lógica do conhecimento, um papel essencial em sua
metodologia é desempenhado por trechos que só posso interpretar como
tentativas de inculcar imperativos morais aos membros do grupo científico.
“Presumamos”, escreve Sir Karl, “que nos impusemos deliberadamente a
tarefa de viver neste nosso mundo desconhecido; ajustar- nos a ele da melhor
maneira que pudermos;. ... e explicá-lo, se possível (não precisamos presumir que
o seja) e até onde for possível, com a ajuda de leis e teorias explanatórias. Se nos
impusermos essa tarefa, não existe processo mais racional que o método da. . .
conjetura e da refutação: de ousadamente propor teorias; de envidar nossos
melhores esforços para mostrar que estas são errôneas; e de aceitá -las como
tentativas se nossos esforços críticos forem malsuce- didos.” 44 Entendo que não
devemos compreender o êxito da ciência sem compreender toda a força de
imperativos como estes, reto- ricamente induzidos e profissionalmente
partilhados. Ainda mais institucionalizados e articulados (e também um tanto
diversamente) tais máximas e valores talvez expliquem o resultado de escolhas
que não poderiam ter sido ditas só pela lógica e pela experiência. O fato de
passagens como estas ocuparem um lugar proeminente nos escritos de Sir Karl é,
portanto, mais uma prova da semelhança dos nossos pontos de vista. E o fato de
continuar ele, no meu entender, sem os ver como os imperativos
sociopsicológicos que são é mais uma prova da existência da mudança de gestalt
que ainda nos divide profundamente.

44. Popper, Conjecíures and Rejutaticms, p. 51. O grifo está no original.

31
REFERÊNCIAS

Braithwaite [1953]: Scientific Explanation, 1953.


Guerlac [1961]: Lavoisier — The Crucial Year, 1961.
Hafner e Presswood [1965]: “Strong Interference and Weak Interacti ons”, Science, 149, pp.
503-10.

Hawkins [1963]: Crítica da “Structure of Scientific Revolutions”, de Kuhn, American


Journal of Physics, 31.

Hempel [1965]: Aspects of Scientific Explanation, 1965.


Lakatos [1963-4]: “Proofs and Refutations”, The British fournal for the Philosophy of
Science, 14, pp. 1-25, 120-39, 221-43, 296-342.

Kuhn [1961]: “The Function of Measurement in Modern Physical Science”, /s/s, 52, pp. 161 -
93.

Kuhn [1962]: The Structure of Scientific Revolutions, 1962.

Popper [1935]: Logik der Forschung, 1935.

Popper [1945]: The Open Society and its Enemies, 2 vols, 1945.

Popper [1957]: The Poverty of Historicism, 1957.

Popper [1959]: Logic of Scientific Discovery, 1959.

Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.


Stahlman [1956]: "Astrology in Colonial America: An Extended Query”, William and Mary
Quarterly, 13, pp. 551-63.

Thorndike [1923-58]: A History of Magic and Experimental Science, 8 vols, 1923-58.

Thorndike r 1955]: “The True Place of Astrology in the History of Science”, Isis, 46, pp. 273-
8.

32
C ON TRA A "CIÊ NCIA NORMAL”

JOHN WATKINS London School of


Economics

Há algumas semanas fui convocado para responder na tarde de hoje ao


Professor Kuhn. Feyerabend e Lakatos forneceriam os outros ensaios; mas o
primeiro não pôde vir e o segundo descobriu que, ao organizar este seminário,
gerara um monstro de muitas cabeças e só para atender às suas exigências, que se
multiplicavam, estaria ocupado aproximadamente vinte e quatro horas por dia.
O convite inesperado deixou-me muito feliz. Kuhn goza de uma posição
única no mundo de fala inglesa como historiador com mentalidade filosófica e
como filósofo da ciência com espírito histórico. Entendi que seria um privilégio e
um prazer responder ao seu trabalho.
Para Kuhn, todavia, a mudança de programa foi menos agradável. Ele
esperava que Feyerabend e Lakatos escrevessem ensaios independentes, de modo
que o seu só precisaria estar pronto hoje à tarde. Soube, então, que ,eu
responderia ao seu ensaio, o que significava que eu deveria vê-lo com alguma
antecedência. Reagiu heroicamente, enviando pedaços do seu trabalho através do
Atlântico à medida que lhe saíam da máquina de escrever. Durante grande parte
da última semana senti-me como o leitor de um folhetim sensacional, aguardando
ansioso, o capítulo seguinte. Dessa maneira, meu próprio ensaio foi escrito de um
só fôlego; e receio que isto tenha agravado minha tendência para não levar em
conta detalhes e sutilezas na tentativa de medir forças com as idéias de alguém.
No tumulto dos últimos dias tive um grande auxiliar. A obra de Kuhn, The
Structure of Scientific Revolutions, é um livro famoso,

33
com o qual me acho razoavelmente familiarizado. Tive o privilégio de lê -lo
quando ainda manuscrito em 1961 e de discuti-lo com o autor. Em 1963 foi ele
tema de extensos debates no seminário de Sir Karl Popper, em que o Sr.
Hattiangadi apresentou um estudo a seu respeito (e que, mais tarde, desenvolveu
em interessantíssima dissertação). Mais adiante, citarei alguma coisa que Popper
disse na ocasião; não me surpreenderá que meu ensaio contenha empréstimos
feitos inconscientemente às nossas discussões durante o seminário.
De modo que o meu trabalho versará tanto sobre o livro de Kuhn quanto o
ensaio que ele acaba de ler. O que não deixa de ser conve niente, visto que em seu
estudo, Kuhn adotou uma política muito parecida com a política sukarniana de
confrontação entre a visão da ciência proposta em seu livro e a visão popperiana
da ciência. Alegra-me que o tenha feito. Lembro-me de haver-lhe sugerido em
1961 que desenvolvesse e discutisse em seu livro o choque entre sua visão da
comunidade científica como sociedade essencialmente fechada, constantemente
abalada por colapsos nervosos coletivos seguidos da restauração da harmonia
mental, e a visão de Popper do que deve ser, e realmente é, em grau considerável
a comunidade científica: uma sociedade aberta em que nenhuma teoria, por mais
dominante e bem-sucedida que seja, nenhum “paradigma”, para usar o termo de
Kuhn, é sagrado. Na ocasião Kuhn não seguiu a sugestão, mas hoje fez, sem
dúvida, uma “amende honorable”.
Duas coisas, todavia, me deixaram um tanto insatisfeito com a maneira pelo
qual ele organizou a confrontação. Em primeiro lugar, a forma como ele a
apresenta não é tão séria quanto poderia ser. Logo no come ço, diz: “Em quase
todas as ocasiões em que nos voltamos explicitamente para os mesmos
problemas, nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas.” 1 Minha meta será
apresentar os conflitos maiores entre os dois pontos de vista. A esta altura limi -
tar-me-ei a citar uma observação incluída no ensaio de Kuhn que, por assim
dizer, resume o conflito principal numa sentença: “é precisamente o abandono do
discurso crítico que assinala a transição para uma ciência.” 2
A segunda causa da minha insatisfação é diferente. Uma confrontação ao
estilo de Sukamo envolve não só um grande choque ideológico mas também
grande quantidade de escaramuças locais. Espero que Kuhn me perdoe por
limitar a maior parte das minhas

1. Neste volume, pp. 5-6.


2. Neste volume, p. 11,

34
contra-escaramuças a uma nota de pé de página. 3 Em meu texto con- centrar-me-
ei na idéia dele — idéia original e estimulante — da Ciência Normal. Haverá
certa injustiça inconsciente ou, pelo menos, certa parcialidade em minha
discussão da idéia. Acredito que ela tenha considerável importância sociológica.
Um sociólogo que investigasse a profissão científica como poderia investigar,
digamos, a profissão médica, bem andaria se a utilizasse como seu tipo ideal. Mas
eu a considerarei de um ponto de vista metodológico, e a metodologia, tal como a
compreendo, diz mais respeito à ciência no que ela tem de melhor, ou à ciência
como deveria ser dirigida, do que à ciência vulgar.
Meu programa será o seguinte. Começarei, na seção II, confrontando o
relato da Ciência Normal de Kuhn com a apreciação que Popper faria de uma
situação científica em harmonia com a idéia da Ciência Normal de Kuhn. Depois,
na seção IH, perguntarei por que Kuhn afirma que a Ciência Normal, tal como se
opõe ao que ele denomina Ciência Extraordinária, constitui a essência da ciência.
Por fim, na seção IV, perguntarei se a Ciência Normal pode ser como Kuhn a
descreve e, sem embargo disso, dar origem à Ciência Extraor dinária. Minha
resposta será “Não”; e mostrarei que essa resposta refuta f elizmente a visão de
Kuhn da normalidade científica como sociedade fechada de mentes fechadas.

3. O método de Kuhn consiste em escolher certas “expressões caracte rísticas”, e erigir


sobre elas uma construção que ele possa censurar à vontade. Mas suas cons truções têm às vezes
leve semelhança com o que foi dito nos livros onde se colheram as expressões. (O próprio Kuhn
admite às vezes que suas construções nem sempre se ajustam perfeitamente. Assim, na p. 14,
escreve: “Conquanto não seja um falseacionista ingênuo, Sir Karl, no meu entender, pode ser
legitimamente tratado como tal.”) Kuhn, por exemplo, pondera com muitas sacudidelas de cabeça a
“expressão” que “podemos aprender com nossos erros”. Ele parece incapaz de admitir que Popper
usasse a palavra “erro” num sentido alegremente despojado de sentimento de culpa, sem ne nhuma
sugestão de fracasso pessoal, de transgressão de regras, etc. O físico

I. E. Wheeler empregou a palavra num espírito popperiano quando escreveu: “Todo o nosso
problema é cometer erros o mais depressa possível” (Wheeler, “A Septet of Sibyls, Aids in the
Search for Truth”, p. 360). Como o alvo principal de Kuhn era o critério de demarcação de Popper,
e como Popper o enunciou com suma nitidez, seria de esperar que aqui, ao menos, Kuhn fiz esse
uma citaçlo precisa. Mas não, ele prefere mais uma vez apresentar uma construção sua: “A
demarcação poderia conseguir-se por um critério exclusivamente sintático. Sir Karl entenderia
então, e talvez assim o entenda, que uma teoria só será científica se os enunciados de observação
— sobretudo as negações de enunciados existenciais singulares — puderem ser logicamente
deduzidos delas...” (p. 144). Se se consultar a Logik der Forschung de Popper, seção 21, ver-se-á
que isso está cheio de erros (no sentid o de Kuhn).

35
II

Considerando a idéia de Ciência Normal de Kuhn de um ponto


de vista popperiano, é natural que eu me concentre noque diz Kuhn
acerca dos testes dentro da Ciência Normal. Realizam-se testes, diz ele, o tempo
todo, mas “esses testes são de um gênero peculiar pois,
na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe à
prova”. 4 Sua idéia é essa. O chamado “teste” em Ciência Normal não é teste de
teorias, e sim parte de uma atividade de solução-de-enig- mas. A Ciência Normal é
governada por algum paradigma (ou teoria dominante). Confia -se implicitamente
no paradigma; mas ele não se ajusta com perfeição aos achados experimentais.
Sempre haverá dis- crepâncias ou anomalias aparentes. A Pesquisa Normal
consiste, em grande parte, na solução dessas anomalias através de ajustamentos
adequados, que deixam intacto o paradigma. Toma-se então o paradigma como
garantia da existência de uma solução para cada enigma gerado pelas
discrepâncias aparentes entre ele e as observações. Daí que, embora os “testes”
realizados dentro da Ciência Normal pareçam testes da teoria predominante
quando vistos através de óculos popperianos, são, na verdade, testes de outra
coisa, a saber, da habilidade do experimentador em solucionar enigmas. Se for
negativo, o resultado de um “teste” dessa natureza não atingirá a teoria, mas
atingirá desfavoravelmente o experimentador, cujo prestígio poderá ser diminuído
pelo malogro da sua tentativa de solucionar o enigma; mas o prestígio do
paradigma dentro de cuja estrutura foi feita a tentativa é tão elevado que
dificilmente será abalado por dificuldadezinhas locais dessa natureza.
Segundo Kuhn, é apenas num momento do que ele denomina Ciência
Extraordinária, quando a própria teoria predominante está sendo atacada, que pode
ocorrer alguma coisa como teste autêntico de teorias. Nesse caso, o resultado
negativo de um teste pode ser considerado, não como o fracasso pessoal do
experimentador, mas como o fracasso da teoria. Para usarmos as palavras de
Kuhn, “Um fracasso visto antes como pessoal parece então o fracasso da teoria
que está sendo testada”. 5
Para Kuhn, a Ciência Normal, como o próprio nome o sugere, é a condição
normal da ciência; a Ciência Extraordinária é uma condição anormal; e, repetimos,
dentro da Ciência Normal, o teste

4. Neste volume, p . 1 0 .
5. Neste volume, p . 1 1 .

36
autêntico das teorias predominantes torna-se impossível de algum misterioso
modo psicossociológico. Não admira que Kuhn se surpreenda com um reparo que
ele considera “virtualmente um clichê”, 6 a saber, a observação de Popper de que
os cientistas propõem enunciados e os testam passo a passo. Para Kuhn é
virtualmente um clichê dizer que os cientistas empenham-se normalmente numa
infinidade de testes: testam suas soluções com relação a enigmas gerados por
anomalias; e para ele é surpreendentemente incorreto diz er que os cientistas
costumam testar teorias.
Popper nunca negou a conveniência de se defender uma teoria com algum
dogmatismo, de modo que ela não seja posta de lado com demasiada rapidez,
antes que os seus recursos tenham sido cabalmente examinados; mas esse
dogmatismo só será saudável enquanto houver outras pessoas por perto que não se
inibam de criticar e pôr à prova uma teoria defendida com tenacidade. Se todos se
achassem sob alguma compulsão misteriosa para preservar as teorias vi gentes da
ciência contra resultados incômodos, essas teorias, no en tender de Popper,
perderiam seu status científico e degenerariam em algo parecido com doutrinas
metafísicas.
Temos assim o seguinte conflito: a condição da ciência que Kuhn considera
normal e apropriada é uma condição que, se fosse realmente obtida, Popper
consideraria não-científica, um estado de coisas em que a ciência crítica se teria
convertido em metafísica defensiva. Popper sugeriu por divisa da ciência:
Revolução permanente! Para Kuhn, parece mais apropriada a máxima: Panacéias,
não; normalidade, sim!
No seu trabalho de hoje Kuhn falou na ênfase dada por Popper à assimetria
entre a falseabilidade e a não-verificabilidade das generalizações científicas,
como “um passo à frente do qual não há voltar atrás”. 7 Acrescentou que a “mesma
assimetria desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific
Revolutions. . . bem posso tê-lo tirado do que ouvi sobre a obra dele.” Mas a
memória de Kuhn parece ter-lhe pregado uma peça neste ponto: em seu livro ele
se referiu explicitamente à tese de Popper de que não há verificação e de que o
falseamento é o que importa, 8 e o fez no intuito de dispensar essa tese por
irrealística, sob a alegação de que na Ciência Normal não há falseamento de
teorias, ao passo que na Ciência Extraordinária a prova que se aceita como
falseadora do paradigma

6. Aleste volume, p. 11.


7. Neste volume, p. 11.
8. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 145.

37
que se despede é também aceita como verificadora do novo paradigma que já se
admite. 9
Em sua Structure of Scientific Revolutions Kuhn não apresentou nenhum
critério de demarcação para a ciência; limitou-se a pôr de lado o critério de
falseabilidade de Popper. Agora propõe um critério alternativo próprio:

Finalmente, e tal é por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso


dirigido à atividade científica dá a entender que é a Ciência Normal — onde não
ocorrem os tipos de testes de Sir Karl — e não a Ciência Extraordinária que quase
sempre distingue a ciência de outras atividades. A existir um critério de demarcação
(entendo que não devemos procurar um critério nítido nem decisivo), só pode estar na
parte da ciência que Sir Karl ignora. 10

Isso foi cautelosamente redigido. Mas na página seguinte, mais ousado ,


Kuhn afirmou: “dos dois critérios, o dos testes e o da solução de enigmas, este
último é o menos equívoco e o mais fundamental”. 11 De minha parte, lançarei aos
ventos a cautela de Kuhn e lhe reenunciarei a sugestão sem qualquer preocupação
de prudência: a Ciência Normal (em que verdadeiramente não há teste algum de
teorias) é ciência autêntica; a Ciência Extraordinária (em que ocorre teste
autêntico de teorias) é tão anormal, tão diferente da ciência genuína, que mal se
pode chamar de ciência. Kuhn explica que, por se confundir com tanta facilidade
o solucionamento de enigmas com o teste, “a linha de demarcação de Sir Karl e a
minha coincidem com tanta freqüência”. 12 Bem, as linhas podem coincidir; mas
elas dividem o material de maneiras opostas. O que é genuinamente científico
para Kuhn mal chega a ser ciência para Popper, e o que é genuinamente
científico para Popper mal chega a ser ciência para Kuhn.
Kuhn apresenta a seguinte consideração contra o critério de Popper e a
favor do seu: tem acontecido freqüentemente na história da ciência de uma teoria
ser substituída antes de haver fracassado num teste, mas nenhuma o foi “antes de
haver deixado de sustentar convenientemente uma tradição de solução -de-
enigmas”. 13 Daí que

9. “Mas o falseamento, embora ocorra seguramente... também pode ser chamado de


verificação, uma vez que consiste no triunfo de urji novo paradigma sobre o antigo” (Kuhn,
The Structure of Scientific Revolutions, p. 146).

10. Neste volume, p. 11.


11. Neste volume, p. 12.
12. Neste volume, p. 12.
13. Neste volume, p. 17.

38
o teste não seja, afinal de contas, tão importante assim. “Confiar no teste como
marca de uma ciência é passar por alto o que os cientistas mais fazem e, com
isso, o traço mais característico de sua atividade.” 14
Em primeiro lugar, porém, Popper não confia, como marca de uma teoria
científica, no fato de ter sido ela realmente testada mas no de ser testável, e
quanto mais testável melhor (mantendo-se iguais as outras coisas). Por isso está
totalmente de acordo com a sua filosofia da ciência a substituição de uma teoria
científica por uma teoria mais testável, mesmo que a anterior ainda não tenha
falhado num teste.
Em segundo lugar, contrastando com a idéia relativamente clara da
testabilidade, a noção de deixar de “sustentar convenientemente uma tradição de
solução-de-enigmas” é essencialmente vaga; pois visto que Kuhn insiste em que
há sempre anomalias e enigmas não solucionados, 15 a diferença entre sustentar e
deixar de sustentar uma tradição de solução-de-enigmas é uma simples diferença
de grau: deve haver um nível crítico em que uma quantidade tolerável de anoma -
lias se transforma numa quantidade intolerável. Como não sabemos qual é o nível
crítico, esse é o tipo de critério que só pode ser usado retrospectivamente:
permite-nos declarar, depois de ocorrida uma mudança de paradigma, que a
pressão empírica sobre o velho paradigma deve ter-se tornado intolerável. (Isto se
ajusta bem à idéia de Kuhn de que um paradigma reinante exerce tamanha
influência sobre o espírito dos homens que só uma vigorosa pressão empírica
pode desalojá-lo.)
Mas a história da ciência contém exemplos importantes de uma teoria
dominante, empiricamente bem-sucedida, suplantada por uma teoria incompatível
e mais testável. Permitam-me citar um exemplo disso. Antes de Newton, as leis
de Kepler constituíam a teoria dominante do sistema solar. Parece-me que já não
é necessário demonstrar que a teoria newtoniana é rigorosamente incompatível
com as leis originais de Kepler — se falarmos da incorporação das últimas nas
primeiras da sua subordinação a elas, deveremos acrescentar que são versões
significativamente modificadas dessas leis que provêm da teoria de Newton. 16 Se
Kuhn admitir que a teoria de Kepler

14. Neste volume, p. 17.


15. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 81.
16. Há mais de cinqüenta anos Pierre Duhem escreveu: “O princípio da gravidade
universal, muito longe de ser derivável por generalização e indução das leis observacionais
de Kepler, as contradiz formalmente. Se a teoria d e Newton for correta, as leis de Kepler são
necessariamente falsas” (Duhem, La théorie Physique: son Objet et sa Structure, p. 193 da
tradução inglesa de

39
era um paradigma incompatível com o paradigma newtoniano, terá de admitir,
creio eu, que este foi um caso de mudança de paradigma. De forma que surge a
pergunta: é plausível afirmar que o paradigma kepleriano “deixou de sustentar
convenientemente uma tradição de solução-de-enigmas”?
Havia, antes de Newton, um enigma não-solucionado ligado às leis de
Kepler. O próprio Newton menciona “uma perturbação da órbita de Saturno em
toda conjunção desse planeta com Júpiter, tão sensível, que os astrônomos estão
perplexos com ela”. 17 Mas visto que, para Kuhn, há sempre enigmas não
resolvidos, isto dificilmente equivalerá à incapacidade “de sustentar uma
tradição de solução-de-enigmas”. Newton, de qualquer maneira, parece ter estado
longe de considerar o sistema kepleriano como tendo fracassado. Na Proposição
a que está anexada a supracitada observação, ele enunci ou as duas primeiras leis
de Kepler de forma incorreta, 18 contribuindo com isso para a origem da lenda
perpetuada por Halley, que, em sua crítica dos Principia, escreveu, “Aqui [no
Livro III] está demonstrada a verdade da Hipótese de Kepler”. 19
Parece que uma teoria dominante é passível de ser substituída, não em
virtude de uma crescente pressão empírica (que pode ser pequena), porém graças
a uma teoria nova e incomparável (inspirada talvez por uma diferente concepção
metafísica) livremente desenvolvida: uma crise científica talvez tenha causas
mais teóricas do que empíricas. 20 Se isto for assim, há maior liberdade de
pensamento na

1954). Sobre uma análise mais circunstanciada das inconsistências entre a teo ria newtoniana e
as leis de Kepler — inconsistências que significam que as últimas terão de ser corrigidas de
maneiras importantes antes de poderem ser explicadas pela primeira — veja “The Aim of
Science”, e Conjectures and Refutations, de Popper, p. 62 n.

17. Newton, Philosophiae Naturalis Principia M athematica, Livro III, Prop. xiii. O
Professor J. Agassi chamou-me a atenção para esse trecho. (Ele o discute em seu livro
Towards an Historiography of Science, na nota de rodapé n.° 5 da p. 79.)

18. Newton, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, Livro III, Prop. xiii.
Quanto à terceira lei de Kepler, veja Livro I, Prop. iv, cor. vi., e também The
Correspondence of Isaac Newton.
19. Halley, Crítica dos Principia, Philosophical Transactions, de Newton, p. 410.

20. O ponto mais próximo disso a que chega Kuhn está em sua admissão de que pode
emergir um novo paradigma "pelo menos em embrião, antes que uma crise se tenha
desenvolvido muito (Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 86; o grifo é meu). A
possibilidade de que o paradigma chegue a emergir antes que se tenha sequer desenvolvido a
crise, e de que ele possa gerar a crise, é excluída por sua idéia da predominância do
paradigma dentro da Ciência Normal.

40
ciência do que presume Kuhn. Voltarei a esse problema na última seção.

III
Mais adiante, demonstrarei que, se for capaz de dar origem à Ciência
Extraordinária (ou Revolucionária), a Ciência Normal não pode ter o caráter que
Kuhn lhe atribui. Por ora, no entanto, suporei que a história da ciência exibe com
efeito um padrão kuhniano; isto é, suporei que um ciclo típico consiste num
período longo de Ciência Normal, que dá lugar a um período curto e agitado da
Ciência Extraordinária, depois do qual sobrevém um novo período de Ciência
Normal.
A pergunta que faço é a seguinte: Por que se empenha Kuhn em
superestimar a Ciência Normal e em subestimar a Ciência Extraordinária? Essa
pergunta é provocada por diversas considerações. Primeiro, a Ciência Normal me
parece maçante e não-heróica comparada com a Ciência Extraordinária. O próprio
Kuhn considera um equívoco, mas um equívoco perfeitamente natural, encarar a
Ciência Normal como “uma atividade intrinsecamente desinteressante”, 21 e
admite que a Ciência Normal é relativamente estéril em matéria de novas idéias.
Determinações mais exatas de constantes físicas — eis o que realizam as
“operações de limpeza do terreno” que constituem a Ciência Normal. 22 Segundo,
Kuhn reiterou hoje à tarde que ele, como Popper, rejeita “o parecer de que a
ciência progride por acumulação”; 2:i mas se lhe perguntassem de que maneira
progride a Ciência normal, diria, presumivelmente, que ela progride de maneira
ordenada, não-dramática, gradativa, isto é, por acumulação. Por que, e de outro
livro, ainda mais famoso, sobre as revoluções científicas médio se adquire o
conhecimento científico”, 21 chega Kuhn a identificar a ciência com seus períodos
de estagnação teórica? Terceiro, por que o autor de um livro excelente sobre a
revolução coperniciana e de outro livro, ainda mais famoso, sobre as revoluções
científicas em geral, veio a ter uma espécie de aversão filosófica pelas revoluções
científicas? Por que está tão enamorado da laboriosa e não-crítica Ciência
Normal?
Uma resposta, embora eu desconfie que não seja a principal, é que se
deixou impressionar por considerações meramente quantitati

21. Neste volume, p. 11.


22. Kuhn,The Structure ofScientific Revolutions, pp. 24 e 27.
23. Neste volume, p. 5.
24. Neste volume, p.5; o grifo é meu.

41
vas: há muito mais Ciência Normal, medida em horas de trabalho, do que Ciência
Extraordinária. A Ciência Normal, diz Kuhn, “é responsável pela imensa maioria
do trabalho realizado em ciência básica”. 25 Os desenvolvimentos científicos com
que Popper se preocupa são “muito raros”. 28
De um ponto de vista sociológico pode ser correto não dar crédito a algo em
função de sua raridade. Mas de um ponto de vista metodológico, algo raro em
ciência — uma nova idéia capaz de novos caminhos ou uma experiência crucial
entre duas teorias importantes — pode ter muito mais peso do que alguma coisa
que acontece o tempo todo.
Não creio, todavia, que essas considerações quantitativas fossem decisivas
para Kuhn. Desconfio que estava funcionando uma espécie muito diferente de
consideração. Como o assunto é um tanto pessoal e delicado, e minha prova foi
toda tirada do livro de Kuhn, não exporei minhas conjeturas imediatamente, mas
chegarei a elas passo a passo. Começarei considerando até que ponto o critério de
demarcação de Kuhn consegue excluir certas disciplinas intelectuais que poucos
dentre nós chamaríamos científicas.
É interessante que o próprio Kuhn tenha dito, a esse respeito, que não “quer
acompanhar Sir Karl quando este rotula a astrologia de metafísica em lugar de
ciência”. 27 E não é difícil ver por quê: a cuidadosa elaboração de um horóscopo, ou
de um calendário astrológico, ajusta-se perfeitamente à idéia de Kuhn sobre a
Pesquisa Normal. O trabalho é feito sob a égide de um corpo estável de dou trina,
não desacreditado, aos olhos dos astrólogos, por fracassos que se podem prever.
Mais interessante, a propósito das possíveis razões de Kuhn para depreciar a
ciência revolucionária, é outra espécie de caso que pa

25. Neste volume, p. 9.


26. Neste volume, p. 10.
27. Esta citação foi tirada do rascunho original do ensaio de Kuhn. Ele agora diz que
“Sir Karl está certo ao excluir a astrologia do rol das ciências”
(p. 11, o grifo é meu) — certo, mas pelos motivos errados: pois havia malogros pr.editivos na
astrologia (se bem esses malogros sempre pudessem ser “explicados”); por outro lado, os
astrólogos “não tinham enigmas para resolver e, portanto, não tinham ciência para praticar” (p.
9). Esta nova revelação da sutileza do conceito-de-enigma de Kuhn me deixa alarmado. Eu sabia
que um malogro preditivo podia ser considerado como simples anomalia enigmática, e p oderia
mais tarde, quando se modificasse a estrutura, vir a ser encarado como refutação. Eu não
percebera que pode haver malogros prediti- vos que não são vistos como refutações nem como
colocadores de enigmas.

42
rece ajustar-se com perfeição à sua idéia de Pesquisa Normal. Ima- gina-se um
estudioso de teologia trabalhando numa inconsistência aparente entre duas
passagens bíblicas. A doutrina teológica lhe assegura que a Bíblia,
convenientemente compreendida, não contém inconsistência. Sua tarefa consiste
em fornecer uma interpretação que ofereça uma reconciliação convincente entre
as duas passagens. Esse trabalho parece essencialmente análogo à pesquisa
científica “normal” descrita por Kuhn; e há elementos para supor que ele não
repudiaria a analogia. Pois The Structure of Scientific Revolutions contém inú-
meras sugestões, algumas explícitas, outras implícitas, na escolha da linguagem,
de um paralelismo significativo entre a ciência, mormente a Ciência Normal, e a
teologia. Kuhn discorre acerca de uma educação científica como um “processo de
iniciação profissional” 28 que “prepara o estudante para a condição de membro de
determinada comunidade científica”. 29 Diz ele que “é uma educação estreita e rí-
gida, provavelmente mais estreita e mais rígida que qualquer outra, exceto talvez
a da teologia ortodoxa”. 30 Diz também que a educação científica envolve a
reescrita, em manuais, da história de trás para diante, o que indica “um dos
aspectos do trabalho científico que mais claramente o distingue de qualquer out ra
atividade criativa, exceto talvez a teologia": 31 Em outros lugares, a sugestão de
um paralelismo entre a ciência e a teologia, embora menos explícita, não é menos
óbvia. Diz ele, por exemplo, que a Ciência Normal “suprime freqüen temente
novidades fundamentais por serem necessariamente subver sivas dos seus
compromissos básicos.” 32 E quando Kuhn discute o processo pessoal de repudiar
um velho paradigma e abraçar um novo, descreve-o como uma “experiência de
conversão”, 33 acrescentando que “uma decisão desse gênero só pode ser feita com
base 1 1 a fé.” 34
Entendo, portanto, que, para Kuhn, há uma analogia entre a comunidade
científica e a comunidade religiosa e a ciência é a religião do cientista. Assim
sendo, talvez se possa perceber por que coloca ele a Ciência Normal acima da
Ciência Extraordinária: esta última corresponde, do lado religioso, a um período
de crise e cisma, confusão e desespero, a uma catástrofe espiritual.

28. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 47.


29. Op. cit., p. 11.
30. Op. cit., p. 165; o grifo é meu.
31. Op. cit., p. 135; o grifo é meu.
32. Op. cit., p. 5.
33. Op. cit., p. 150.
34. Op. cit., p. 157.

43
IV

Até aqui, andei considerando as avaliações comparativas de Kuhn da


Ciência Normal e da Ciência Extraordinária na suposição de que a história da
ciência apresenta, de fato, um ciclo Ciência Normal/ Ciência
Extraordinária/Ciência Normal. Contestarei agora essa suposição.
Um modo de contestar seria apontar para exemplos históricos contrários,
isto é, para longos períodos de história científica em que não emergiu nenhum
paradigma claro e durante o qual estiveram ausentes os típicos sintomas da
Ciência Normal. Lembro-me de Popper ter dito (no correr das nossas discussões
durante o simpósio, sobre o livro de Kuhn) que, embora o newtonianismo se
transformasse em algo parecido com um paradigma no sentido kuhniano, nenhum
paradigma dessa natureza emergiu durante a longa história da teoria da matéria35 :
aqui desde os pré-socráticos até os dias atuais tem havido debates infindáveis
entre os conceitos contínuos e descontínuos da matéria, entre várias teorias
atômicas de um lado, e teorias etéreas, ondulatórias e de campo, de outro.
Desejo colocar uma objeção diferente, que diz respeito à possibilidade da
emergência de um novo paradigma no fim de um período de Ciência Normal.
Não criticarei o relato epidemiológico que ele apresentou em seu livro, sobre
como, depois de um novo paradigma haver contagiado uns poucos agentes
transmissores, a epidemia pode espalhar-se pela comunidade científica. Nas
linhas que se seguem concentrarei a atenção no primeiro cientista a aceitar o
novo paradigma. Minha tese será que um novo paradigma nunca emergirá da
Ciência Normal tal como esta foi caracterizada por Kuhn.
Começarei recapitulando algumas teses kuhnianas relativas à mudança do
paradigma.
(1) É da natureza do paradigma gozar de um monopólio em sua influência
sobre o pensamento do cientista. O paradigma não tolera rivais: está incluído no
conceito de paradigma de Kuhn a noção de que o cientista, enquanto se acha sob
a sua influência, não pode pensar seriamente num paradigma rival. Se começou a
brincar com um paradigma rival, isso quer dizer que o velho paradigma já está
morto para ele. Chamo-a de tese do Monopólio do Paradigma.

35. Um argumento semelhante foi apresentado independentemente por Du- dley


Shapere: cf. o seu trabalho sobre ‘‘The Structure of Scientific Revolu tions”, p. 387.

44
(2) É pequeno ou nulo o interregno entre o fim do reinado do velho
paradigma sobre a mente do cientista e o começo do reinado do novo. O cientista
não anda por aí durante um período substancial de tempo sem nenhum paradigma
para guiá-lo. Só abandona um paradigma para abraçar outro. (Como se gritasse, O
Paradigma morreu. Viva o Paradigma.) Eu chamo-lhe a tese do Nenhum In-
terregno.
(3) O novo paradigma será incompatível com o paradigma por ele
suplantado. 3fi (Kuhn, na verdade, vai mais longe ainda e afirma que o novo
paradigma será incomensurável com o velho. 37 Discutirei mais adiante a relação
entre incompatibilidade e incomensurabilida- de.) Chamo à tese de Kuhn sobre o
choque entre o velho e o novo paradigma de tese da Incompatibilidade. (É
evidente que ela reforça a tese do Monopólio do Paradigma.)
(4) Da conjunção das três teses acima segue-se que a conversão do
cientista de um paradigma velho para um novo tem de ser rápida e decisiva. Kuhn
endossa enfaticamente essa implicação. Já o vimos referir-se à mudança de
paradigma como a uma “conversão”; e de outras passagens de seu livro se
depreende que, no seu entender, tais conversões são aceleradas. Diz ele que uma
mudança de paradigma é “um evento relativamente súbito e não -estruturado como
a mudança de gestalí”, 38 e que “não se pode fazer a transição entre paradigmas
concorrentes dando um passo por vez. . . Como a mudança de gestalí, ela tem de
ocorrer de uma vez (embora não necessariamente num instante)”. 39 Chamo a esta
a tese da Mudança de Gestalt.
(5) Considerem-se agora as implicações das teses anteriores para a
invenção de um novo paradigma. O ponto de vista de Kuhn admit e que o
paradigma, depois de inventado, pode levar muito tempo para conquistar a
aceitação geral. A pergunta é esta: quanto tempo pode levar o inventor original
para juntar os rudimentos do novo paradigma? Ou digamo-lo de outra maneira:
que espécie de pré-história pode ter o novo paradigma? A resposta implícita na
tese da Mudança de Gestalt parece ser esta: nenhuma. Antes de mudar-se para ele,
pensamento do cientista se exercitava ao longo de linhas irreconcilia - velmente
diferentes (segundo as teses do Monopólio do Paradigma e da Incompatibilidade).
Sua mudança para o novo paradigma tem de ser considerada idêntica à sua
invenção do novo paradigma. (Estou

36. Kuhn, TheStructure of Scientific Revolutions, pp. 91 e 102.


37. O p. cit., pp. 4, 102, 111 e 147.
38. Op. cit., p. 121.
39. Op. cit., p. 149.

45
presumindo que ele foi inventado no interior da comunidade cientí fica e não
importado de fontes extracientíficas.) E visto que a mu dança para ele foi
“relativamente súbita”, sua invenção também deve ter sido relativamente súbita.
Kuhn endossa a implicação. Em seu livro escreveu: “O novo paradigma, ou uma
sugestão suficiente para permitir uma articulação posterior emerge de uma vez,
às vezes no meio da noite, 1 1 0 espírito de um homem profundamente imerso na
crise”. 10 E hoje à tarde ele repetiu que as teorias “se inventam em bloco”.' 11
Chamo a esta, maliciosamente, a tese do Paradigma Ins tantâneo. (O café
instantâneo leva mais que um instante para ser feito; mas faz -se “de uma vez”, à
diferença de uma torta de carne e de rins, da qual se pode dizer que “se faz
dando um passo por vez”.)
Precisamos lembrar-nos de que o novo paradigma é imediatamente tão
poderoso que induz o nosso cientista a voltar-se contra o bem expresso e não-
refutado paradigma que lhe dominou o pensamento científico até então. Isso quer
dizer, creio eu, que o novo paradigma não pode começar como se fosse um mero
conjunto de idéias fragmentárias mas, desde o princípio, precisa ser
suficientemente grande e definido para que suas surpreendentes capacidades
latentes sejam manifestas ao seu inventor.
A ser assim, afigura-se-me que a tese do Paradigma Instantâneo é
escassamente digna de fé do ponto de vista psicológico. Não sei quanto um gênio
só é capaz de realizar no meio da noite, mas des confio de que essa tese espera
demasiado dele. Como quer que seja, no entanto, existem exemplos históricos
contrários a ela. Para citar apenas um: a Lei do Inverso do Quadrado era um
componente importante da teoria newtoniana (que Kuhn considera o paradigma
dos paradigmas); e Pierre Duhem remontou a longa evolução da Lei do Inverso
do Quadrado, passando por Hooke, Kepler e Copér - nico, até a idéia de
Aristóteles de que os corpos procuram o centro da terra. 42 Concluo que se impõe
a rejeição da tese do Paradigma Instantâneo.

40. Op. cit., p. 89.


41. Neste volume, p. 40.
42. Duhem, op. cit. capítulo vii, seção 2. O próprio Duhem propõe esse exemplo em
apoio da sua resposta enfaticamente negativa "Seguramente não” à pergunta: “A mente [de
um homem] é suficientemente poderosa para criar uma teoria física de uma só vez?” (op. cit.,
capítulo vii, seção 2). Agassi rotulou a própria concepção de Duhem da evolução das idéias
científicas de “a teoria da continuidade” (Agassi, Towards an Historiography of Science, pp.
31 e seguintes). Agassi ataca o método historiográfico patrocinado por essa concepção; ele,
naturalmente, não propõe a contra-afirmação de que as teorias são inventadas de uma só vez.

46
A tese do Paradigma Instantâneo proveio da tese da Mudança de Gestalt
quando esta última foi aplicada ao primeiro homem que mudou para o novo
paradigma. E a tese da Mudança de Gestalt proveio da conjunção das teses do
Monopólio do Paradigma, do Nenhum Interregno e da Incompatibilidade. Daí
que, se se rejeitar a tese do Paradigma Instantâneo, terá de ser rejeitada uma
dessas três. Considerarei primeiro a da Incompatibilidade.
Parece haver certa incoerência interna na versão de Kuhn dessa tese. Ele
afirma que o que “emerge de uma revolução científica não é só incompatível mas
a miúdo realmente incomensurável com o que se passou antes”. 43 Mas poderiam
duas teorias incomensuráveis ser logicamente incompatíveis? Se alguém sustentar,
digamos, que os mitos bíblicos e as teorias científicas são incomensuráveis,
pertencem a diferentes universos de discurso, estará presumivelmente querendo
dizer que o relato da Criação que se lê no Gênese não deveria ser encarado como
logicamente incompatível com a geologia, o darwinis - mo, etc.: eles são
compatíveis e podem coexistir de modo pacífico exatamente por serem
incomensuráveis. Mas se o sistema ptolemaico é logicamente incompatível com o
coperniciano, ou a teoria newto- niana com a da Relatividade, a coexistência
pacífica não é possível: elas eram alternativas rivais; e se houve possibilidade de
se fazer uma escolha racional entre elas, isso se deveu, em parte, à possibilidade
de planejar com elas experiências cruciais (paralaxe estelar, desloca mento de
estrelas, etc.).
Seja-nos, portanto, permitido desenredar a tese da Incompatibilidade de
Kuhn da idéia contrária da incomensurabilidade. Assim purificada, a tese
histórica de Kuhn se harmoniza felizmente com a tese metodológica de Popper.
Pois para que a teoria seja altamente testá- vel, como o exige a metodologia de
Popper, é mister que produza (não só algumas predições notáveis, que
ultrapassem o âmbito profético das teorias existentes, mas também) algumas
predições que con- flitem com as das teorias existentes, de preferência em áreas
em que as teorias existentes foram bem testadas e, até o momento, não apre-
sentaram falhas. Popper diz, com efeito, que os principais avanços teóricos da
ciência devem ter caráter revolucionário; e Kuhn diz, com efeito, que eles têm
caráter revolucionário. Muito bem. Concordemos, portanto, em que a tese da
Incompatibilidade deve ficar.
Nesse caso, a tese do Monopólio do Paradigma e/ou a tese do Nenhum
Interregno devem ir embora. Mas estas realmente não se largam. Diz a segunda
que o pensamento profissional do cientista é

43. Kuhn, The Structure oj Scientific Rev olutions, p. 102.

47
sempre dominado por paradigmas, e diz a primeira que ele, em todos os
momentos, é dominado por um paradigma. Contra isso sustentei que leva tempo
— mais uma questão de anos que de horas — para que um novo paradigma
potencial se desenvolva até o ponto de poder desafiar um paradigma
estabelecido, de sorte que o pensamento herético começa a funcionar muito antes
que possa ocorrer a mudança de paradigma. Isso quer dizer que não é verdade
que um paradigma reinante exerça uma influência tão monopolizadora sobre o
espírito dos cientistas que os incapacite para considerá -lo com espírito crítico,
ou para brincar com alternativas (sem necessariamente ado- tá-las). Isso quer
dizer que a comunidade científica não é, afinal de contas, uma socied ade fechada
que tem por característica principal “o abandono do discurso crítico”.

REFERENCIAS

Agassi [1963]: Towards an Historio gr aphy of Science, 1963.


Duhem [1914]: La théorie Physique: son Objet et sa Structure, 1914.
Halley [1687]: Crítica dos Principia, Philosophical Transactions, de Newton, 1687.
Reimpressa no livro organizado por I. B. Cohen: Isaac Newton's Papers and Letters
on Natural Philosophy, 1958, pp. 405-11.
Kuhn [1962]: The Structure of Scientific Revolutions, 1962.
Newton [1669]: Manuscrito, reimpresso no livro organizado por Tumbull: The
Correspondence of Isaac Newton, 1, pp. 297-303.
Newton [1687]: Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, 1687.
Popper [1934]: Logik der Forschung, 1935.
Popper [1957]: “The Aim of Science”, Ratio, 1, pp. 24-35.
Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.
Shapere [1964]: “The Structure. of Scientific Revolutions”, The Philosophical Review, 73,
pp. 383-94.
Wheeler [1956]: “A Septet of Sibyls: Aids in the Search for Truth”, The American Scientist,
44, pp. 360-77.

48
É A D E QU A D A A D I S T INÇÃO E NT RE CI Ê NCIA NORM AL E
C I Ê N CI A REV OL UCI ONÁRI A?

STEPHEN TOULMIN
University of Michigan

A contribuição do Professor T. S. Kuhn para este simpósio pode ser vista


de dois ângulos: como crítica do enfoque de Sir Karl Popper da filosofia da
ciência, à luz dos seus contrastes com as opiniões do Professor Kuhn ou,
alternativamente, como parte adicional do desenvolvimento da análise de Kuhn
do processo da mudança científica. O que aqui me interessa é o segundo desses
dois aspectos. Chamare : a atenção para certas mudanças significativas na posição
que Kuhn parece agora estar ocupando em relação às que adotou, primeiro em seu
ensaio original sobre “A Função do Dogma na Pesquisa Científica” lido no
Worcester College, Oxford, em 1961,* e depois em seu livro The Structure of
Scientific Revolutions publicado em 1962. E à luz das mudanças, mostrarei como
podemos enxergar nosso caminho além da teoria da “revolução científica” de
Kuhn para uma teoria mais apropriada da mudança ci entífica.
O grande mérito da insistência do Professor Kuhn no caráter
“revolucionário” de algumas mudanças na teoria científica foi ter ela obrigado
muita gente a enfrentar pela primeira vez toda a profundidade das transformações
conceptuais que assinalaram, em certas ocasiões, o desenvolvimento histórico das
idéias científicas. Desde o princípio, no entanto, ficou claro para muitos
espectadores que o enunciado original da posição de Kuhn, pelo menos em dois
sentidos, era apenas provisório. Temos esperado com interesse para ver a direção
a que o seu desenvolvimento intelectual o levou depois disso. Em primeiro lugar,
embora a sua escolha da palavra “dogma”

1. Impresso no livro organizado por Crombie, Scientific Change, de 1963, pp. 347-69.

49
servisse perfeitamente no título de um trabalho muito interessante na
reunião do Worcester College, bastou um exame um pouco mais atento para
revelar que sua própria efetividade provinha de certo exa gero retórico implícito
ou de um jogo de palavras. (Dizer que “toda- a ciência normal repousa numa
base de dogma” eqüivalia a dizer “somos todos realmente loucos”; o que talvez
funcione numa ou noutra ocasião, mas. . .)
A natureza desse jogo de palavras tornar-se-á evidente se contrastarmos a
aplicação da análise de Kuhn aos Principia de Newton, considerados como o
documento fundamental da mecânica clássica, com sua aplicação à Opticks de
Newton, que tanta influência exerceu sobre a física do século XVIII. Tomando
primeiro os Principia, podemos enunciar da seguinte maneira um ponto filosófico
proveitoso: a função intelectual de um esquema conceptual estabelecido é
determinar os padrões da teoria, as questões significativas, as inter pretações
legítimas, etc., dentro das quais a especulação teórica estará presa enquanto esse
determinado esquema conceptual exercer autoridade intelectual sobre a ciência
natural a que se refere. Isso (repito) é um ponto filosófico, que indica alguma
coisa do que se subentende quando se diz que os processos científicos, tanto na
área teórica quanto na prática, são “metódicos” e marcados pelo simples bom
senso. Esse determinado ponto, no entanto, nada faz para estabele cer que o
dogma desempenha um papel qualquer na teoria científica. Ao contrário, era
totalmente razoável — e não-dogmático — para os físicos entre 1700 e 1880
aceitar a dinâmica de Newton como ponto de partida provisório. E é sempre
facultado aos cientistas contestar a autoridade intelectual do plano fundamental
de conceitos dentro do qual estão trabalhando provisoriamente — sendo o direito
permanente à contestação dessa autoridade uma das coisas que assinala como
“científico” (como Sir Karl Popper sempre insistiu) o processo intelectual. Por
falar nisso, esse primeiro ponto filosófico foi enunciado com maior clareza e
menor ambigüidade, há uns vinte e cinco anos, por R. G. Collingwood em seu
Essay on Metaphysics (Ensaio sobre Metafísica) 2 . A função intelectual dos
“paradigmas” de Kuhn é precisamente a das “pressuposições absolutas” de
Collingwood.
Alternativamente, se tomarmos como nosso exemplo a Opticks de Newton,
poderemos estabelecer um ponto sociológico da seguinte

2. Collingwood, An Essay on Metaphysics, 1940, especialmente os capítulos iv-vi. O


argumento de Collingwood é discutido, em paralelo com o de Kuhn, em meu est udo de 1966,
“Conceptual Revolutions in Science”.

50
maneira: os trabalhadores secundários da ciência tendem a ver apenas parte do
quadro intelectual do assunto que lhes interessa, e a restringir a escolha das
hipóteses por cujo intermédio interpretam seus dados, por deferência ao suposto
exemplo que lhes deixou um trabalhador primário, por eles considerado seu
mestre e diante de cuja autoridade magistral se inclinam. O ponto é mais
sociológico do que filosófico: nesse caso, pode falar-se com efeito no papel
desempenhado pelo “dogma” no desenvolvimento das idéias científicas. Mas o
verdadeiro princípio da sabedoria em qualquer tentativa para compreender a
natureza do desenvolvimento intelectual da ciência há de ser, sem dúvida,
distinguir entre a autoridade intelectual do esquema conceptual estabelecido e a
autoridade magistral do indivíduo dominante. E só quando trabalhadores
secundários insistem em reter, digamos, uma teoria corpuscular da luz por
respeito à autoridade de Newton, mesmo depois de terem sido aventadas alterna-
tivas legítimas com idêntico apoio experimental, é que a palavra “dogma” tem
alguma pertinência para a ciência.
Ao passar do seu ensaio de Oxford para o livro de 1962, Kuhn retirou sua
insistência no termo “dogma”, mas tentou conservar uma distinção central entre
“ciência normal” e “revoluções científicas”. Em todo o correr do livro considerou
que a idéia das “revoluções” tinha algum poder de iluminar e explicar certas fases
da mudança científica. Ncise sentido, sua análise, na melhor das hipóteses,
também foi provisória. Como nos ensina a história política, a palavra “revolução”
pode servir de rótulo descritivo útil, mas faz muito tempo que perdeu o valor
como conceito explanatório. Tempo houve em que, diante das mudanças polític as
de uma variedade peculiarmente drástica, os historiadores não titubeavam em
dizer, “. . . e então houve uma revolução”, e tudo ficava por isso mesmo; a
implicação era que, no caso de mudanças drásticas dessa natureza, não se poderia
dar nenhuma explicação racional como as que justificadamente exigimos no caso
de desenvolvimentos políticos normais. No devido tempo, porém, eles foram
obrigados a reconhecer que a mudança política nunca envolve, de fato, uma
solução tão absoluta e tão completa de continuidade. Quer consideremos a
Revolução Francesa, quer examinemos a Revolução Norte -americana ou a
Revolução Russa, em qualquer um desses casos as continuidades da estrutura e da
prática políticas e administrativas são tão importantes quanto as mu danças.
(Considerem-se, por exemplo, o sistema legal norte-americano, a prática russa de
escoltar turistas e o código francês da herança: o efeito da revolução política foi
mudar cada uma delas apenas marginalmente, e o estado de coisas correspondente
em cada país antes e depois da revolução em tela eram muito mais semelhantes

51
do que as condições pré-revolucionárias ou pós-revolucionárias nos diferentes
países.) Dessa forma, na esfera política, os enunciados a respeito da ocorrência
de “revoluções” são apenas preliminares de perguntas acerca dos mecanismos
políticos envolvidos na mudança revolucionária. No nível explanatório, a
diferença entre mudança normal e mudança revolucionária na esfera política
revelou-se, afinal de contas, mera diferença de grau.
A posição adotada pelo Professor Kuhn em seu livro sempre
me pareceu exigir restrições similares. De acordo com esse argu
mento, as diferenças entre as espécies de mudança que ocorrem du rante as fases
“normais” e “revolucionárias” do desenvolvimento científico sã o, no nível
intelectual, absolutas. Em resultado disso, a sua exposição foi longe demais ao
implicar a existência, na teoria científica, de descontinuidades muito mais
profundas e muito menos explicáveis do que qualquer uma que na re
seu novo trabalho, ele parece afastar-se um pouco dessa posição
original, exposta, para uma posição menos extremada; entretanto, ao fazê -lo
(como eu sustentarei) demole inteiramente sua distinção original entre as fases
“normais” e as “revolucionárias”. Esta não é, evidentemente, a sua intenção, mas
(no meu modo de ver) não se pode fugir à conseqüência.
Seja-me permitido explicar, com a ajuda de uma analogia tirada da história
da paleontologia durante os anos que medearam entre 1825 e 1860, por que digo
isso. Durante esses anos, construiu-se um dos dois mais influentes sistemas
paleontológicos em torno da teoria das “catástrofes”, exposta primeiro por
George Cuvier na França e extensamente desenvolvida por Louis Agassiz em
Harvard, que enfatizava as descontinuidades absolutas encontradas no registro
geológico e paleontológico. Ela possuía o mérito considerável de contes tar a
suposição (que formava um axioma metodológico básico para os seguidores de
James Hutton, incluindo Charles Lyell em seus primeiros anos ) de que todos os
agentes envolvidos na mudança geológica e paleontológica — tanto inorgânica
como orgânica — tinham sido exatamente da mesma espécie e tinham agido
exatamente das mesmas maneiras em todas as fases da história da terra.
Entretanto, partindo da sua observação original, autêntica, das descontinuidades
geológicas e paleontológicas, Cuvier foi mais adiante, insistindo em que tais
descontinuidades eram prova de acontecimentos “sobrenaturais” — isto é,
mudanças tão súbitas e violentas que não podiam explicar-se em termos de
processos naturais físicos e químicos. As descontinuidades, como ele disse, eram
prova de “catástrofes”, e estas (como as “revoluções” originais dos historiadores
políticos), algo

52
que se não podia ligar intelectualmente. Quando um geólogo dizia, . e então
houve uma catástrofe”, estava dizendo que, para a mudança em questão, não
havia nenhuma explicação racional, em termos de mecanismos geológicos
naturais, como, por exemplo, os responsáveis pela formação de estratos
sedimentares normais. Essa interpretação teórica das descontinuidades geológicas
e paleontológi- cas foi longe demais. É verdade que, em alguns sentidos, as
descontinuidades observadas na crosta da terra eram tão nítidas quanto afirmara
Cuvier; mas, à proporção que prosseguia a investigação, verificou-se que elas não
eram universais em sua extensão e tampouco se achavam além de toda e qualquer
esperança de explicação razoável.
Como se resolveu a oposição entre a teoria uniformista e a teo ria das
catástrofes? Este é o ponto significativo para o nosso propósito aqui. Com o
passar do tempo, aconteceram duas coisas. De um lado, geológos e paleontólogos
da geração de Lyell viram-se obrigados, aos poucos, a reconhecer que algumas
mudanças que constituíam o tema das suas indagações tinham sido de fato mais
dramáticas do que eles haviam suposto. Charles Darwin, por exemplo, ob servou
nas costas do Chile os efeitos de terremotos recentes que tinham alterado a
localização relativa de vários estratos geológicos numa extensão de até seis
metros, num único tremor de terra, e esse descobrimento convenceu Lyell de que
terremotos passados, afinal de contas, poderiam tej sido mais severos do que ele
supusera. Do lado uniformista, por conseguinte, as idéias foram-se tornando mais
e mais “catastróficas”. Nesse meio tempo, no campo ca - tastrofista, as idéias se
desenvolveram na direção oposta. Os estudos de Louis Agassiz, em particular,
obrigaram-no a multiplicar o número de catástrofes invocadas para explicar a
prova geológica real e para diminuir-lhes o tamanho. Em razão disso, as
catástrofes originais, “drásticas e inexplicáveis”, finalmente se tornaram tantas, e
tão insignificantes, que principiaram a revelar uniformidades, con vertendo-se
dessa forma em fenômenos geológicos e paleontológicos por si mesmas. Como
tais, a afirmativa de que não estavam sujeitas a uma explicação mecanicista ou
naturalista deixou de ser plausível, e a necessidade — até no caso delas — de
apresentar um relato dos mecanismos envolvidos tornou-se irrespondível. Numa
palavra, as “catástrofes” originais passaram a ser uniformes e governadas por leis
exatamente como quaisquer outros fenômenos geológicos e palentoló - gicos. O
que os paleontólogos catastrofistas não apreciaram de pronto foi que essa
mudança aparentemente inocente, ocorrida dentro da estrutura da sua teoria, lhes
destruiu o critério original para distin

53
guir entre as mudanças “normais” (ou naturais) e “catastróficas” (ou
sobrenaturais) na crosta da terra, e que dessa maneira a pró pria distinção entre o
“normal” e o “catastrófico” desmoronou.
Seja-me agora permitido aplicar a analogia. Lendo o atual relato da sua
posição, escrito pelo Professor Kuhn, verifico que ele se afastou da dicotomia
original “normal”/“revolucionária” na mesma direção em que Agassiz se afastou
da teoria original de Cuvier. Mais uma vez se tornava proveitoso e importante, no
princípio, insistir em que o desenvolvimento de idéias científicas supõe, por
vezes, mudanças tão drásticas que introduzem profundas incongruências concei-
tuais entre as idéias aceitas por sucessivas gerações de cientistas. Nenhuma teoria
de crescimento e desenvolvimento científico seria adequada se não reconhecesse
tais descontinuidades intelectuais e lhes fizesse justiça. Nos seus primeiros relatos
— o livro de 1962, assim como o ensaio de 1961 — Kuhn descreveu essas
descontinuidades “revolucionárias” como absolutas. Elas criaram uma situação em
que havia, inevitavelmente, completa incompreensão no nível teórico entre os
adeptos do sistema mais velho e os do sistema mais novo de pensamento
científico; como, por exemplo, entre um adepto da dinâmica newtoniana mais
antiga e um adepto da nova dinâmica eins- teiniana. Era inevitável a
incompreensão porque, chegado o momento de organizar sua experiência, os dois
homens não compartilhavam de uma língua comum, ou de um ponto de vista
comum, nem mesmo de uma gestalt comum. Em conseqüência disso, nem a
linguagem newtoniana nem a linguagem einsteiniana bastariam para explicar o
ponto de vista de cada um dos adeptos ao outro. A ocorrên- car o ponto de vista
de cada um dos adeptos. A ocorrência de uma “revolução científica” (ao que
parecia) deixou as tentativas de comunicação tão completamente fora dos eixos
que assegurou a incompreensão.
Havia sempre, contudo, um elemento de exagero retórico neste enunciado
do assunto, assim como no emprego de Kuhn, a princípio, da palavra “dogma”.
Afinal de contas, as carreiras profissionais de inúmeros físicos estenderam -se de
1890 a 1930, e esses homens assistiram à mudança do sistema de pensamento
newtoniano para o eins- teiniano. Se o completo colapso da comunicação
científica, considerado por Kuhn como característica essencial da revolução
científica tivesse de fato ocorrido durante esse período, teria sido possível do-
cumentá-lo com a experiência dos mesmos homens. Que descobrimos? Se a
mudança conceptual envolvida na transição foi tão profunda quanto o afirma
Kuhn, esses físicos pareceram curiosamente inconscientes do fato. Ao contrário,
porém, muitos deles foram capa

54
zes de dizer após o evento, por que haviam alterado sua posição pessoal, passando
de uma atitude clássica para uma atitude relativista
— e quando digo “por quê” quero dizer “por que razões. . No entanto, nas
palavras de Kuhn, uma mudança de posição dessa natureza só poderia resultar de
uma “conversão” — o tipo de mudança mental que um homem descreveria
dizendo: “Já não posso ver a Natureza como a via antes...” — ou alternativamente
mais como o resultado de “causas” que de “razões” — “Einstein foi tão persua-
sivo... ”, ou “Surpreendi-me mudando sem saber por quê... ”, ou “Isso valia tanto
quanto o meu trabalho. . .”.
Pode-se admitir, por conseguinte, que o desenvolvimento do pensamento
científico supõe importantes descontinuidades concep- tuais, e que os sistemas
conceptuais que se substituem dentro de uma tradição científica podem basear -se
freqüentemente em princípios e axiomas muito diferentes e até incongruentes;
devemos, porém, acau- telar-nos para não acompanhar até o fim a hipótese
“revolucionária” original de Kuhn. Pois a substituição de um sistema de conceitos
por outro é algo que acontece em virtude de razões perfeitamente boas, ainda que
essas “razões” não se possam formalizar em conceitos ainda mais latos ou em
axiomas ainda mais gerais. Pois o que pressupõem ambas as partes num debate
dessa ordem — tanto os que se aferram à opinião mais antiga, quanto os que
apresentam uma opinião nova — não é um corpo comum de princípios e axiomas:
é antes um conjunto comum de “processos de seleção” e “regras de seleção”, que
são menos “princípios científicos” do que “princípios constitutivos da ciência”.
(Eles também podem mudar no curso da história, como o demonstrou Imre
Lakatos no caso dos critérios da prova matemática; fazem-no, contudo, mais
devagar do que as teorias em cujo julgamento são empregados.)
Suponhamos, então, que se conceda a Kuhn que “incompatibili dades
conceptuais” entre as idéias de sucessivas gerações de cientistas introduzem
efetivamente descontinuidades reais no desenvolvimento do pensamento
científico. Se for esta a essência da sua visão do problema, teremos de
acompanhá-lo até a fase seguinte do seu argumento, que corresponde ao
“catastrofismo modificado” de Agassiz. Pois ao passo que na exposição original
de Kuhn as revoluções científicas eram algo que tendia a acontecer em
determinado ramo da ciência apenas uma vez em duzentos anos, ou coisa que o
valha, as “incompatibilidades conceptuais” com que ele agora se preocupa es tão
sujeitas a aparecer com muito mais freqüência. Numa escala suficientemente
pequena, com efeito, são muito freqüentes; e talvez cada

55
nova geração de cientistas com idéias originais ou “opiniões” próprias se
surpreenda, em certos pontos e em certos sentidos, ocupando uma posição oposta
à da geração imediatamente anterior. Pode-se perguntar, de fato, se alguma
ciência natural, possuidora de um sério componente teórico desenvolve-se alguma
vez por um processo exclusivo de “acumulação”.
Nesse caso, entretanto, a ocorrência de uma “revolução científica” já não
eqüivale a uma dramática interrupção da consolidação contínua e “normal” da
ciência; ao invés disso, toma-se uma simples “unidade de variação” dentro do
próprio processo da mudança científica. Como na paleontologia, desaparece o
aspecto hiper-racio- nal das descontinuidades, e — no processo — desmorona a
própria base da distinção entre mudança “normal” e mudança “revolucioná ria” na
ciência, fundamento e essência da teoria de Kuhn. Pois a “natureza absoluta” da
transição envolvida na revolução científica fornecia o critério original para
reconhecer a ocorrência de uma mudança. E, assim que reconhecemos que
nenhuma mudança conceptual da ciência é absoluta, só nos resta uma seqüência
de modificações conceptuais maiores e menores, que diferem uma da outra em
grau. Destrói-se dessa maneira o elemento distintivo da teoria de Kuhn, e
ficamos a olhar para além dela, à procura de uma nova teoria de mudança
científica. Essa teoria terá de ultrapassar o conceito de “re voluções” de Kuhn e
dos ingênuos pontos de vista uniformistas a que ele renunciou, assim como a
reinterpretação evolucionária da paleontologia de Darwin ultrapassou o
catastrofismo de Cuvier e o unifor- mismo de Lyell.
Como o Professor Kuhn, acredito que a nova teoria — quando a tivermos
— terá de basear-se, em parte, nos resultados de novos estudos empíricos do
crescimento e desenvolvimento reais da ciência; que, como resultado, terá de
trazer a lógica da ciência para mais perto da sua sociologia e da sua psicologia.
Continuará, todavia, a ser importantíssimo (como enfatiza Sir Karl Popper) evitar
identificar os critérios lógicos para apreciar novas hipóteses científicas com
generalizações acerca da prática real dos cientistas, quer tomados in -
dividualmente quer tomados coletivamente como grupos profissionais.
Que forma deveria assumir uma teoria dessa natureza? Mais uma vez, a
experiência de outras disciplinas históricas poderá dar - nos uma sugestão. Pois
mais uma vez tem sido idêntica a proveitosa direção para escapar ao impa sse
entre os pontos de vista revolucionário e uniformista da mudança histórica:
investigar mais atentamente os mecanismos envolvidos e, em particular, os
mecanismos da variação e da perpetuação. (Confrontem-se, por exemplo, a
Origin of

56
Species, de Charles Darwin e a Anatomy of Revolution. de Crane Brinton.)
Permitam-me estender um pouco mais a sugestão, ainda que assim antecipe uma
exposição que será apresentada detalhadamente em outro lugar. 3
Suponha-se que deixemos de pensar nas “micro-revoluções” em pequena
escala de Kuhn como unidades de mudança efetiva na teoria científica, e as
encaremos, em vez disso, como unidades de variação. Ver-nos-emos então diante
de um quadro da ciência em que as teorias comumente aceitas em cada fase
servem de ponto de partida para grande número de variantes sugeridas; mas em
que apenas reduzida fração dessas variantes de fato sobrevive e se estabelece no
corpo de idéias transmitido à geração seguinte. Dessa maneira, a simples
pergunta “como ocorrem as revoluções na ciência?” tem de ser reformulada e dá
origem a dois grupos distintos de perguntas. De um lado precisamos inquirir:
“Que fatores determinam o número e a natureza das variantes teóricas
apresentadas à consideração numa determinada ciência em determinado período?”
— contrapartida, na evolução biológica, da pergunta genética sobre a origem das
formas mutantes. De outro lado precisamos indagar: “Que fatores e considerações
determinam as variantes intelectuais que logram aceitação, a fim de se
estabelecer no corpo de idéias que serve de ponto de partida para o turno seguinte
de variações?” — contrapartida das perguntas biológicas sobre seleção.
Como em outras disciplinas históricas, portanto, o problema da mudança
histórica pode ser proveitosamente reenunciado c omo um problema de variação-
e-perpetuação-seletiva. As vantagens desse reenunciado não se podem expor
cabalmente aqui, mas uma coisa pelo menos vale a pena indicar. Ele não só nos
ajuda a localizar a ambigüidade que leva o debate entre Kuhn e Popper ao
desentendimento
— a ambigüidade entre a filosofia da ciência, empenhada em desco brir a
consideração que deve determinar apropriadamente a seleção entre novas
variantes, e a psicologia ou sociologia da ciência, empe nhada em atinar com as
considerações que de fato resolvem o assunto. Mas também acredito que possa
ajudar-nos a resolver algumas velhas perplexidades tocantes à relação entre os
fatores externos e internos do desenvolvimento de uma tradição intelectual. Se
tratarmos a mudança científica como caso especial de um fenômeno mais

3. Meu ensaio de 1966, “Conceptual Revolutions in Science”, apresenta breve análise do


argumento. Uma exposição cabal será dada a lume num livro que está para aparecer sobre a
evolução conceptual e o problema do entendimento.

57
genérico de “evolução conceptual”, poderemos distinguir pelo me nos três
aspectos diversos dessa evolução. O volume real, ou quantidade, de v inovação
que se processa num dado campo em qualquer ocasião pode ser distinguida da
direção para a qual tende de modo predominante a mesma inovação; e ambas
podem ser diferenciadas, por sua vez, dos critérios de seleção que determinam as
variantes perpetuadas no interior da tradição.
Uma vez que tais distinções sejam feitas com clareza é desejável considerar
separadamente até que ponto cada aspecto da mudança científica responde a
fatores internos ou externos e será ingênuo supor que haja necessidade de
conflito entre as duas espécies de exposição. Aqui vai uma sugestão: o volume de
inovação que se processa em qualquer ciência depende, presumivelmente, em
grande parte, das oportunidades que se oferecem naquele contexto social para
realizar um trabalho original na ciência em questão — daí que o coeficiente de
inovação responde substancialmente a fatores externos à ciência. Por outro lado,
os critérios de seleção para apreciar as inovações conceptuais na ciência serão,
em grande parte, assunto profissional e, portanto, interno: muitos cientistas, de
fato, teriam a expectativa de que se trata de assuntos inteiramente internos,
profissionais — muito embora isso talvez não passe, na prática, de um ideal
irrealizá- vel. Finalmente, a direção da inovação em determinada ciência de pende
de uma complexa mistura de fatores, internos e externos: as fontes de novas
hipóteses são muito variadas e sujeitas a influências e analogias distantes dos
problemas pormenorizados que estão à mão.
As ramificações mais completas de uma teoria “evolucionária” de mudança
científica (que contraste com o “catastrofismo” de Kuhn) devem ser deixad as
para outra ocasião. Por enquanto, seja-me permitido rematar este estudo
formulando duas perguntas, que ajudarão a encontrar com absoluta precisão o
caráter de transição da presente posição de Kuhn. (1) Quão extensas terão de ser
as incompatibilidades conceptuais entre as idéias de uma geração científica e as
da geração seguinte, a fim de que a transição entre elas constitua uma “revolução
científica” segundo a atual exposição de Kuhn? (Pre- sumo que nenhuma foi
jamais, na realidade, suficientemente extensa para satisfazer ao seu critério
original; portanto, precisamos agora de um novo critério para substituí -la.) (2) Se
alguma mudança conceptual entre as teorias de gerações sucessivas capazes de
provar incompreensão entre elas tiver de ser aceita como “revolução”, não
poderemos exigir uma exposição geral do papel de todas as mudan

58
ças conceptuais dessa natureza dentro do desenvolvimento do pensa mento
científico? Não estamos autorizados, numa palavra, a tratar essas
“microrrevoluções” como contrapartidas das “microcatástrofes” de Agassiz e dos
últimos geólogos catastrofistas? E, a ser esse o caso, não estaremos, de fato,
deixando inteiramente para trás as implicações originais do termo “revolução"?
Os estudiosos da história política, a esta altura, já abandonaram qualquer
confiança ingênua na idéia das “revoluções”. Se eu tiver razão, e as
“microrrevoluções” da atual posição de Kuhn forem as unidades de toda a
inovação científica, a idéia da “revolução científica” terá de seguir a das
“revoluções políticas”, abandonando a categoria de conceitos expla- natórios a
fim de figurar na categoria dos rótulos meramente descritivos.

REFERÊNCIAS

Collingwood [1940]: An Essay on Metaphysics, 1940.


Crombie (org.) [1963]: Scientific Change, 1963.
Toulmin [1966]: “Conceptual Revolutions in Science”, no livro organizado por Cohen -
Wartofsky: Boston Studies in the Philosophy oj Science, 3, 1967, pp. 331-47.

59
C I Ê N C I A N OR M AL , REV OL UÇÕE S CI E NTÍ FICAS E A
HI S T ÓRI A DA CI Ê NCIA

L. PEARCE WILLIAMS
Cornell University

Eu gostaria de fazer ura rapidíssimo comentário sobre a diver gência entre


Kuhn e Popper a respeito da natureza essencial da ciência e a gênese das
revoluções científicas. Se bem entendi o pensa mento de Sir Karl Popper, a
ciência se acha, de um modo básico e constante, potencialmente à beira da
revolução. Basta que uma refutação seja bastante grande para constituir uma
revolução dessa ordem. Sustenta o Professor Kuhn, por outro lado, que a maior
parte do tempo dedicado ao exercício da ciência é o que ele denomina ciência
“normal” — isto é, solucionamento de problemas ou resolução de cadeias de
argumentos implícitos em trabalhos anteriores. Nes sas condições, uma revolução
científica, para Kuhn, leva muito tempo para ser construída e só ocorre de
tempos em tempos porque a maioria das pessoas não tenta refutar as teorias
vigentes. Ambos os lados apresentaram suas posições com detalhes
consideráveis, mas a mim me parece haver uma brecha muito importante nas
duas teorias. É simplesmente esta: como sabemos de que t rata a ciência? A per-
gunta talvez soe surpreendentemente ingênua, mas tentarei justificá -la.

Há, essencialmente, duas maneiras respeitáveis de responder à pergunta.


Uma é sociológica; a comunidade científica pode ser tratada como qualquer outra
comunidade e está sujeita à análise sociológica. Note-se que isso “pode” ser
feito, mas ainda não o foi. Para dizê-lo de outro modo, a maior parte da atividade
científica pode ser dirigida para a refutação ou para a “solução do problema”,
mas não sabemos se o é ou não. A propósito direi que não estou impressionado
com a observação da Srta. Masterman segundo a qual o paradigma é
ansiosamente apreendido pelos pesquisadores em campos

60
como a ciência dos computadores e as ciências sociais. Afinal de contas, a
imagem do homem que se afoga e do pedacinho de palha é familiar. Não acredito
que o Dr. Kuhn tencionasse restringir sua análise às ciências embrionárias e estou
interessado em saber o que os praticantes das ciências naturais acreditam estar
fazendo. Repetindo, acontece simplesmente que não temos essa informação. As
dificuldades para compilá-la são enormes. Desejamos apenas uma amostra
quantitativa? O que a maioria dos cientistas faz é de fato pertinente ao que
constitui a ciência a longo prazo? Pesamos a opinião, digamos, de Peter Debye da
mesma maneira que a de um homem que mede acuradamente amostragens
nucleares? Não sou sociólogo, mas creio que enfocar o problema através da
sociologia seria seguir um caminho espinhoso.
Entretanto, deveria notar-se que tanto Kuhn quanto Popper baseiam seus
sistemas (no caso de Kuhn) no que os cientistas fazem (sem nenhuma prova sólida
de que fazem ciência dessa maneira) ou (no caso de Popper) no que deviam fazer
(com pouquíssimos exemplos para persuadir-nos de que isso está certo). Tanto
Kuhn quanto Popper realmente baseiam suas concepções da estrutura da ciência
na sua história e o ponto principal de minhas observações é que a história da
ciência não pode suportar essa carga por ora. Simplesmente não sabemos o
suficiente para permitir que se erija uma estrutura filosófica sobre uma base
histórica. Por exemplo, não pode haver melhor ilustração da “ciência normal” do
que as pesquisas experimentais levadas a efeito por Michael Faraday no terreno
da eletricidade na década de 1830. Começando com a descoberta “acidental” da
indução eletromagnética em 1831, cada novo passo parecia provir claramente do
anterior. Aqui estava a solução-de-problemas mais evidente possível. Esse é o
ponto de vista tradicional de Faraday, mestre experimentador, que, a crermos em
Tyndall, ou mesmo em Thompson, nunca teve uma idéia teórica em sua vida.
Entretanto, assim que passamos dos escritos publicados para o Diário, as notas e
as cartas manuscritas, vemos surgir um estranho Faraday. Desde 1821 ele estava
testando hipóteses fundamentais sobre a natureza da matéria e da força. Quantos
cientistas “normais” (tais como se definem pelos seus escritos publicados) são, no
fundo, realmente revolucionários? Espera-se que, um dia, a história da ciência
seja capaz de responder a isso mas, por enquanto, ninguém pode dizer.
Antes que os seguidores de Popper, fiquem demasiadamente satisfeitos eu
gostaria de erguer diante deles o espectro da história da espectroscopia entre os
anos de 1870 e 1900. Creio que se pode com toda justiça descrever esse período
como um período de levan

61
tamento cartográfico, em que os espectros dos elementos eram des critos com
precisão cada vez maior. Aqui se processa uma pequena e precisa “refutação” e,
não obstante, seria difícil negar a Angstrõm o título de cientista. Nem se deveria
esquecer que um dos “soluciona- dores de problemas” mais bem-sucedidos da
história da ciência foi Max Planck, que se distinguiu também como um dos
revolucionários mais relutantes de todos os tempos.
Como historiador, portanto, cumpre-me ver tanto Popper quanto Kuhn com
um olho mais ou menos deformado. Ambos ventilaram questões de importância
fundamental; ambos forneceram visões profundas da natureza da ciência; mas
nenhum reuniu provas sólidas bastantes para levar-me a crer que a essência da
busca científica foi capturada. Continuarei a usar os dois como guias nas minhas
pesquisas, tendo sempre em mente a observação de Lorde Boling - broke de que
“a história é o ensino da filosofia pelo exemplo”. Precisamos de um número
muito maior de exemplos.

62
A C I Ê N C I A NORM AL E S E US PE RI GOS

KARL POPPER
London School of Economics

A crítica do Professor Kuhn às minhas opiniões sobre ciência é a mais


interessante que já encontrei até agora. Há, reconhecidamente, alg uns pontos,
mais ou menos importantes, em que ele não me entende ou me interpreta mal.
Kuhn, por exemplo, cita com desaprovação um trecho do início do primeiro
capítulo do meu livro, The Logic of Scientific Discovery (A Lógica da Descoberta
Ceintífica). Pois eu gostaria de citar uma passagem que ele deixou passar,
constante do Prefácio da Primeira Edição. (Na primeira edição a passagem em
apreço vinha logo antes do trecho citado por Kuhn; mais tarde inseri o Prefácio da
Edição Inglesa entre as duas passagens.) Ao passo que o breve trecho citado por
Kuhn poderá soar, fora do contexto, como se eu não estivesse a par do fato,
destacado por ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias
dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato predecessor de 1934 soa
quase como uma antecipação desse ponto central da opinião de Kuhn.
Depois de duas epígrafes tiradas de Schlick e de Kant, meu livro começa
com as seguintes palavras: “Um cientista empenhado numa pesquisa, digamos no
campo da física, pode atacar diretamente o seu problema. Pode ir logo ao âmago
do assunto: isto é, ao coração de uma estrutura organizada. Pois já existe uma
estrutura de doutrinas científicas; e, com ela, uma situação — problema
geralmente aceito. É por isso que ele pode deixar para outros o ajuste de sua
contribuição à estrutura do conhecimento científico.” E, a seguir, prossigo
dizendo que o filósofo se encontra em posição diferente.
Agora parece muito claro que a passagem citada descreve a situação
“normal” do cientista de modo muito semelhante a Kuhn: há um edifício, uma
estrutura organizada da ciência que fornece ao cientista uma situação — problema
geralmente aceito a que o seu

63
próprio trabalho pode ajustar-se. Isso se parece muito com um dos pontos
principais de Kuhn: a saber, que a ciência “normal", como ele a chama, ou o
trabalho “normal” do cientista, pressupõe uma estrutura organizada de
suposições, ou uma teoria, ou um programa de pesquisas, necessário à
comunidade de cientistas a fim de poderem discutir racionalmente o seu trabalho.
O fato de haver Kuhn passado por alto esse ponto de concordância e de
haver-se aferrado ao que vinha imediatamente depois, e que ele supunha fosse
um ponto de discordância me parece significativo. Mostra que só lemos e
compreendemos um livro com expectativas definidas em nossa mente. Isso, de
fato, pode ser considerado uma das conseqüências de minha tese de que
abordamos tudo à luz de uma teoria preconcebida. Assim também um livro. Em
conseqüência disso, estamos sujeitos a escolher as coisas de que gostamos ou
desgostamos ou que desejamos, por outros motivos, encontrar no livro; e assim
fez Kuhn ao ler o meu livro.
Entretanto, apesar desses pontos secundários, Kuhn me com preende muito
bem — melhor, creio eu, do que a maioria dos críticos que conheço; e suas duas
críticas principais são muito importantes.
A primeira dessas críticas sustenta, em poucas palavras, que pas sei
totalmente por alto o que ele denomina ciência “normal”, e me empenhei
exclusivamente em descrever o que ele denomina “pesquisa extraordinária” ou
“ciência extraordinária”.
Creio que a distinção entre as duas espécies de atividades talvez não seja
tão nítida quanto o quer Kuhn; entretanto, estou pronto pa ra admitir que, na
melhor das hipóteses, não tive mais que uma obscura consciência dessa
distinção; e o que é mais, que a distinção aponta para algo de suma importância.
Nessas circunstâncias, é relativamente secundário serem ou não os termos
de Kuhn, ciência “normal” e ciência “extraordinária”, até certo ponto petições de
princípio e (no sentido de Kuhn) “ideológicos”. Creio que são tudo isso; o que,
porém, não diminui meus sentimentos de gratidão a Kuhn por haver assinalado a
distinção e por haver assim aberto meus olhos para uma série de problemas que
eu ainda não tinha visto com clareza.
A ciência “normal”, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade do
profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico: do estudioso da
ciência que aceita o dogma dominante do dia; que não deseja contestá -lo; e que
só aceita uma nova teoria revolucionária quando,; quase toda a gente está pronta
para aceitá-la — quando

64
ela passa a estar na moda, como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a
que todos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda e xige talvez tanta
coragem quanto criar uma.
Vocês talvez digam que, ao descrever dessa maneira a ciência “normal”
de Kuhn, eu o estou criticando implícita e sub -repticiamen- te. Afiançarei,
portanto, mais uma vez, que o que Kuhn descreveu existe, e precisa ser levado
em consideração pelos historiadores da ciência. O fato de tratar -se de um
fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso para a ciência), ao
passo que Kuhn, aparentemente, não desgosta dele (porque o considera
“normal”) é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo importante.
A meu ver, o cientista “normal”, tal como Kuhn o descreve, é uma pessoa
da qual devemos ter pena. (Consoante as opiniões de Kuhn acerca da história
da ciência, muitos grandes cientistas devem ter sido “normais”; ent retanto,
como não tenho pena deles, não creio que as opiniões de Kuhn estejam muito
certas.) O cientista “normal”, a meu juízo, foi mal ensinado. Acredito, e muita
gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universitário (e se pos sível
de nível inferior) devia consistir em educar e estimular o aluno a utilizar o
pensamento crítico. O cientista “normal”, descrito por Kuhn, foi ma) ensinado.
Foi ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutrinação. Aprendeu
uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela
qual pode ser aplicada (sobretudo na mecânica quântica). Em conseqüência
disso, tornou- se o que pode ser chamado cientista aplicado, em contraposição
ao que eu chamaria cientista puro. Para usarmos a expressão de Kuhn, ele se
contenta em resolver “enigmas”. 1 A escolha desse termo parece indicar que
Kuhn deseja destacar que não é um problema realmente fundamental o que o
cientista “normal” está preparado para enfrentar: é, antes, um problema de
rotina, um problema de aplicação do que se aprendeu; Kuhn o descreve como
um problema em que se aplica a teoria dominante (a que ele dá o nome de
“paradigma”). O êxito do cientista “normal” consiste tão -só em mostrar que a
teoria dominante pode ser apropriada e satisfatori amente aplicada na obtenção
de uma solução para o enigma em questão.

1. Não sei se o emprego do termo "enigma” por parte de Kuhn tem alguma coisa que
ver com o emprego de Wittgenstein. Wittgenstein, natural mente, empregou-o em conexão
com sua tese de que não há problemas genuínos em filosofia — apenas enigmas, isto é,
pseudoproblemas ligados ao uso im próprio da linguagem. Seja como for, o emprego do termo
“enigma" em lugar de “problema” indica, por certo, um desejo de mostrar que os problemas
assim descritos não são muito sérios nem muito profundos.

65
A descrição do cientista “normal” feita por Kuhn lembra -me claramente
uma conversa que tive com meu falecido amigo, Philipp Frank, por volta de
1933. Nessa ocasião Frank se queixava amargamente do enfoque da ciência sem
espírito crítico característico da maioria dos estudantes de engenharia. Eles
queriam simplesmente “conhecer os fatos”. Rejeitavam as teorias ou hipóteses
problemáticas, que não fossem “geralmente aceitas”: elas intranqüilizavam os
estudantes, que só queriam conhecer as coisas, os fatos, que pudessem aplicar em
sã consciência e sem análises introspectivas.
Admito que esse tipo de atitude existe; e existe não só entre engenheiros,
mas também entre pessoas educadas como cientistas. Só posso di zer que vejo um
grande perigo nisso e na possibilidade que tem de tornar -se normal (assim como
vejo um grande perigo no aumento da especialização, outro fato histórico
inegável): um perigo para a ciência e, na verdade, para nossa civilização. O que
mostra por que considero tão importante a ênfase dada por Kuhn à existência
desse tipo de ciência.
Acredito, porém, que Kuhn se equivoca quando sugere que é normal o que
ele chama de ciência “normal”.
Claro está que eu nem sonharia brigar por causa de um termo. Mas gostaria
de sugerir que poucos cientistas lembrados pela história da ciência foram
“normais” no sentido de Kuhn, se é que houve algum que o fosse. Em outras
palavras, discordo de Kuhn não só no tocante a certos fatos históricos, mas
também no tocante ao que é característico da ciência.
Tome-se por exemplo Charles Darwin antes da publicação de The Origin of
Species (A Origem das Espécies). Mesmo depois dessa publicação ele foi o que se
poderia descrever como um “revolucionário relutante”, para usarmos a bela
descrição de Max Planck feita pelo Professor Pearce Williams; antes dela,
Darwin não tinha nada de revolucionário. Nada se assemelha a uma atitude
revolucionária consciente em sua descrição de The Voyage of the Beagle (A
Viagem do Beagle). Mas ela está cheia de problemas; problemas autênticos, novos
e fundamentais, e engenhosas conjeturas — conjeturas que competem
freqüentemente umas com as outras — a respeito de possíveis soluções.
Dificilmente haverá uma ciência menos revolucionária do que a bo tânica
descritiva. Não obstante, o botânico descritivo enfrenta constantemente
problemas autênticos e interessantes: problemas de distribuição, problemas de
localizações características, problemas de diferenciação de espécies ou
subespécies, problemas como os da sim-

66
biose, inimigos característicos, doenças características, variedades re sistentes,
variedades mais ou menos férteis, e assim por diante. Mui tos problemas
descritivos obrigam o botânico a empregar um enfo que experimental; e isso leva
à fisiologia das plantas e, assim, a uma ciência teórica e experimental (em lugar
de uma ciência puramente “descritiva”). As várias fases dessas transições
fundem-se de modo quase imperceptível e surgem em cada fase problemas
autênticos em lugar de “enigmas”.
Mas talvez Kuhn chame “enigma” ao que eu chamaria “proble ma”; e o fato
é que não queremos brigar por causa de palavras. Seja - me, portanto, permitido
dizer alguma coisa mais geral a respeito da tipologia dos cientistas de Kuhn.
Afirmo que entre o “cientista normal” de Kuhn e o seu “cientis ta
extraordinário” há muitas gradações; e é preciso que haja. Tome -se Boltzmann,
por exemplo; haverá poucos cientistas maiores do que ele. Dificilmente, porém,
se poderá dizer que sua grandeza consiste em haver ele prepar ado uma revolução
importante porque era, em extensão considerável, um seguidor de Maxwell. Mas
estava tão longe de ser um “cientista normal” quanto se pode estar; lutador co -
rajoso, resistiu à moda imperante em seu tempo — moda que, a propósito, só
imperou no continente e teve poucos seguidores, na quela época, na Inglaterra.
Acredito que a idéia de Kuhn de uma tipologia dos cientistas e dos
períodos científicos é importante, mas necessita de restrições. O seu esquema de
períodos “normais”, dominados por uma teoria imperante (um “paradigma”,
segundo a terminologia de Kuhn) e segui dos de revoluções excepcionais, parece
ajustar-se muito bem à astronomia. Mas não se ajusta, por exemplo, à evolução
da teoria da matéria; nem à evolução da teoria das ciências b iológicas desde, di-
gamos, Darwin e Pasteur. Em relação ao problema da matéria, sobretudo,
tivemos pelo menos três teorias dominantes que competi ram desde a
Antigüidade: as teorias da continuidade, as teorias atô micas e as teorias que
tentavam combinar as duas primeiras. Além disso, tivemos por algum tempo a
versão de Berkeley feita por Mach — a teoria de que a “matéria” era um
conceito mais metafísico do que científico: de que não havia nada parecido com
uma teoria física da estrutura da matéria; e de que a teoria fenomenológica do
calor deveria tornar-se o paradigma por excelência de todas as teorias físicas.
(Emprego aqui a palavra “paradigma” num sentido um pou co diferente do que
lhe dá Kuhn: não para indicar uma teoria dominante, mas um programa de
pesquisa — um modo de explicação

67
considerado tão satisfatório por alguns cientistas que eles exigem a sua aceitação
geral.)
Conquanto eu considere importantíssimo o descobrimento de Kuhn do que
ele chama de ciência “normal”, não concordo com a afirmativa de que a história da
ciência lhe apóia a doutrina (essencial à sua teoria da comunicação racional)
segundo a qual “normalmente” temos uma teoria dominante — um paradigma —
em cada domínio científico, e ainda segundo a qual a história de uma ciência
consiste numa seqüência de teorias dominantes, com períodos revolucionários
intervenientes de ciência “extraordinária”; períodos que ele descreve como se a
comunicação entre cientistas se houvesse interrompido mercê da ausência de uma
teoria dominante.
Essa imagem da história da ciência conflita com os fatos tais como os vejo.
Pois sempre houve, desde a Antigüidade, constante e proveitosa discussão entre as
teorias dominantes concorrentes da matéria.
Agora, em seu atual ensaio, Kuhn parece propor a tese de que a lógica da
ciência tem pouco interesse e nenhum poder explanatório para o historiador da
ciência.
Afigura-se-me que, vinda de Kuhn, essa tese é quase tão paradoxal quanto o
foi a tese “Eu não uso hipóteses” exposta na Optics de Newton. Pois assim como
Newton usava hipóteses, assim Kuhn usa a lógica — não só para argumentar, mas
também no mesmíssi- mo sentido em que me refiro à Lógica da Descoberta. Ele
emprega, todavia, uma lógica da descoberta que, em certos pontos, difere radi -
calmente da minha: a lógica de Kuhn é a lógica do relativismo histórico.
Permitam-me mencionar primeiro alguns pontos de concordância. Acredito
que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em conjeturas audazes e,
portanto, pode ser descrita como revolucionária. Sempre acentuei, todavia, a
necessidade de algum dogmatismo: o cientista dogmático tem um papel importante
para representar. Se nos sujeitarmos à crítica com demasiada facilidade, nunca
descobriremos onde está a verdadeira força das nossas teorias.
Mas Kuhn não quer saber desse dogmatismo. Acredita no domínio de um
dogma imperante por períodos consideráveis; e não acredita que o método da
ciência seja, normalmente, o método de conjeturas audazes e de crítica.
Quais são os seus principais argumentos? Não são psicológicos nem
históricos — são lógicos: Kuhn sugere que a racionalidade da ciência pressupõe a
aceitação de uma referencial comum. Sugere que

68
a racionalidade depende de algo como uma linguagem comum e um conjunto
comum de suposições. Sugere que a discussão racional e a crítica racional só
serão possíveis se estivermos de acordo sobre questões fundamentais.
Essa é uma tese amplamente aceita e, com efeito, está na moda: a tese do
relativismo. E é uma tese lógica.
Considero-a equivocada. Admito, naturalmente, que é muito mais fácil
discutir enigmas dentro de um referencial comum aceito e ser levado pela maré
de uma nova moda imperante a um novo referen cial, do que discutir princípios
fundamentais — isto é, o próprio referencial de nossas suposições. Mas a tese
relativista de que a estrutura não pode ser discutida criticamente pode ser
discutida criticamente e não resiste à crítica.
Dei-lhe o nome de O Mito do Referencial, e discuti-a em várias ocasiões.
Considero-a um equívoco lógico e filosófico. (Lembro-me de que Kuhn não gosta
do meu emprego da palavra “equívoco”; mas essa aversão é simplesmente parte
do seu relativismo.)
Eu gostaria de dizer em poucas palavras por que não sou re lativista: 2
acredito na verdade “absoluta” ou “objetiva”, no sentido de Tarski (embora,
naturalmetne, não seja um “absolutista”, pois não penso que eu, nem qualquer
outra pessoa, temos a verdade no bolso). Não duvido de que este seja um dos
pontos em que estamos mais profundamente divididos; e é um ponto lógico.
Admito que a qualquer momento somos prisioneiros apanhados no
referencial das nossas teorias; das nossas expectativas; das nossas experiências
passadas; da nossa linguagem. Mas somos prisioneiros num sentido
pickwickiano; se o tentarmos, poderemos sair de nosso referencial a qualquer
momento. Ê verdade que tornaremos a encontrar-nos em outro referencial, mas
este será melhor e mais espaçoso; e poderemos, a quaisquer momento, deixá -lo
também.
O ponto central é que é sempre possível uma discussão crítica e uma
comparação dos vários referenciais. Não passa de um dogma
— e um dogma perigoso — o que estatui que os diversos referenciais são como
linguagens mutuamente intradutíveis. O fato é que nem línguas totalmente
diferentes (como o inglês e o hopi, ou o chinês) são int raduzíveis, e que existem
inúmeros índios ou chineses que aprenderam a dominar perfeitamente o inglês.

2. Veja, por exemplo, o Capítulo 10 das minhas Conjectures and Refu- tations, e o
primeiro Addendum à 4.* (1962) e à última edição do volume ii de minha Open Society.

69
O Mito do Referencial, em nosso tempo, é o baluarte central do
irracionalismo. A tese que lhe oponho é que ele simplesmente exa gera a
dificuldade, transformando-a numa impossibilidade. Não se pode deixar de
admitir a dificuldade da discussão entre pessoas educadas situadas em diferentes
referências. Mas nada é mais proveitoso que uma discussão dessa natureza; do
que o embate cultural que estimulou algumas das maiores revoluções
intelectuais.
Admito que uma revolução intelectual se assemelha com freqüência a uma
conversão religiosa. Uma nova visão das coisas pode apanhar-nos como o fuzilar
de um raio. Mas isso não quer dizer que não podemos avaliar, crítica e
racionalmente, nossos pontos de vista anteriores à luz dos novos.
Seria, desse modo, simplesmente falso dizer que a transição da teoria da
gravidade de Newton para a de Einstein é um salto irracional e que as duas não
são racionalmente comparáveis. Existem, ao contrário, inúmeros pontos de
contato (tais como o papel da equação de Poisson) e pontos de comparação:
segue-se da teoria de Einstein que a teoria de Newton é uma excelente
aproximação (a não ser no que concerne aos planetas e cometas que se movem
em órbitas elípticas com excentricidades consideráveis).
Nessas condições, em ciência, à diferença do que acontece na teologia, é
sempre possível o confronto crítico das teorias concorrentes, dos referenciais que
competem entre si. E a negação dessa possibilidade representa um equívoco. Na
ciência (e só na ciência) podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que
sabemos mais agora do que sabíamos antes.
Assim sendo, a diferença entre mim e Kuhn remonta, de manei ra
fundamental, à lógica. E o mesmo acontece com toda a teoria de Kuhn. À sua
proposta: “A Psicologia em lugar da Lógica da Descoberta” podemos responder:
todos os seus argumentos advêm da tese de que o cientista é logicamente obrigado
a aceitar um referencial, visto que nenhuma discussão racional é possível entre
referenciais. Eis aí uma tese lógica — mesmo que seja uma tese equivocada.
De fato, como já expliquei alhures, o “conhecimento científico” pode ser
considerado como destituído de objeto. 3 Pode ser encarado como um sistema de
teorias do qual trabalhamos como trabalham

3. Veja agora minha palestra intitulada “Epistemology Without a Kno- wing Subject”
estampada nas Atas do Terceiro Congresso Internacional de Lógica, Metodologia e
Filosofia da Ciência, que se realizou em Amsterdã, no ano de 1967.

70
os pedreiros numa catedral. A meta é descobrir teorias que, à luz da discussão
crítica, cheguem mais perto da verdade. Desse modo, a meta é o aumento do
conteúdo de verdade das nossas teorias (o que, como já demonstrei, 4 só pode ser
conseguido pelo aumento do seu conteúdo).
Não posso concluir sem assinalar que, no meu entender, é surpreendente e
decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia (ou ainda, como
Pearce Williams recomenda, à história da ciência) a fim de informar -se a respeito
das metas da ciência e do seu progresso possível.
De fato, cotejadas com a física, a sociologia e a psicologia estão cheias de
modas e dogmas não-controlados. A sugestão de que podemos encontrar aqui
algo parecido com uma “descrição pura, objetiva” está claramente equivocada.
Além disso, como pode o retrocesso a tais ciências, a miúdo espúrias, ajudar-nos
a resolver essa dificuldade? Não será sociológica (nem psicológica, ou histórica)
a ciência a que vocês desejam recorrer a fim de decidir quanto monta a per gunta
“Que é ciênciaT’ ou “Que é, de fato, normal em ciência?” Pois vocês,
evidentemente, não querem recorrer à orla lunática sociológica (ou psicológica
ou histórica)? E a quem desejam consultar: ao sociólogo (ou psicólogo, ou
historiador) “normal” ou ao “extraordinário”?
Por isso considero tão surpreendente a idéia de recorrer à sociologia ou à
psicologia. E considero-a tão decepcionante porque ela mostra que foi baldado
tudo o que eu disse até agora contra as tendências e processos sociologistas e
psicologistas, especialmente na história.
Não, esta não é a maneira, como a simples lógica pode mostrar; e assim a
resposta à pergunta de Kuhn “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?”
é a seguinte: enquanto que a Lógica da Descoberta tem muito pouca coisa para
aprender com a Psicologia da Pesquisa, esta tem muito que aprender com aquela.

4. Veja meu estudo intitulado ‘‘A Theorem on Truth-Content”, publicado na obra


Mind, Matter, and Method, de Feigl Festschrift, organizado por P. K. Feyerabend e Grover
Maxwell, em 1966.

71
A N A T URE ZA D O PAR ADI GM A 1

MARGARET MASTERMAN Cambridge


Language Research Unit

1. A dificuldade inicial: as múltiplas definições de paradigma dadas por Kuhn.


2. A originalidade da noção sociológica do paradigma de Kuhn: o paradigma é
algo que pode funcionar quando não existe a teoria.
3. A conseqüência filosófica da insistência de Kuhn na centrálidade da ciência
normal', filosoficamente falando, o paradigma é um artefato que pode ser
utilizado como expediente na solução de enigmas; e não como visão metafísica
do mundo.
4. O paradigma precisa ser uma “imagem concreta usada analogi- camente;
porque precisa ser um "modo de ver’’.
5. Conclusão: visão prévia das características lógicas do paradigma.

O propósito deste estudo é elucidar a concepção de paradigma de T. S.


Kuhn; e foi escrito na suposição de que T. S. Kuhn é um dos mais notáveis
filósofos da ciência do nosso tempo.
É curioso que, até agora, nenhuma tentativa tenha sido feita para elucidar
essa noção de paradigma, fundamental a toda con

1. Este ensaio é uma versfio ulterior de um trabalho que me pedira m para apresentar
quando fosse discutida a obra de T. S. Kuhn neste Simpósio; e que não pude escrever por ter
sido acometida de severa hepatite infecciosa. Dedico, portanto, esta nova versão aos médicos, às
enfermeiras e ao pessoal do Pavilhão n.° 8 do Nor wich Hospital, que permitiram fosse um
índice dos assuntos ventilados por Kuhn feito numa cama de hospital. Foi -lhe dada uma forma
capaz de conformar-se da melhor maneira possível com a contribuição convalescente que
acabei fazendo da platéia do Simpósio.

72
cepção da ciência de Kuhn tal como ele a expôs em sua The Structure of Scientific
Revolutions? Isso talvez aconteça porque esse livro é, ao mesmo tempo,
cientificamente claro e filosoficamente obscuro. Está sendo muito lido, e cada vez
mais apreciado, pelos verdadeiros pesquisadores científicos, de modo que deve ser
(até certo ponto) cientificamente bem expresso. Por outro lado, os filósofos lhe
têm dado interpretações muito diversas, o que nos faz supô -lo filosoficamente
obscuro. O motivo dessa dupla reação, a meu ver, deriva de haver Kuhn olhado
realmente para a ciência, em diversos campos, em lugar de restringir a sua esfera
de leitura ao campo da história e da filosofia da ciência, ou seja, a um só campo.
Até agora, portanto, na medida em que o seu material é reconhecível e familiar
aos cientistas verdadeiros, estes lhe consideram o pensamento fácil de
compreender. Na medida em que o mesmo material é estranho e pou co familiar
aos filósofos da ciência, estes consideram opaco qualquer pensamento que nele se
baseie. Na realidade, porém, a forma de pensar de Kuhn não é opaca, senão
complexa, já que reflete, filosoficamente falando, a complexidade do seu material.
De um modo semelhante, em Proofs and Refutations 3 introduziu Lakatos nova
complexidade e novo realismo em nossa concepção da matemática, porque
examinou com atenção o que os matemáticos realmente fazem quando refinam e
mudam os dispositivos e idéias uns dos outros. Como filósofos, por conseguinte,
devemos progredir além do novo “ponto de realismo” relativo à ciência
estabelecido por esses dois, e não regredir aquém dele. E, como cientistas, cabe-
nos examinar com suma atenção a obra dos dois destacados pensadores, visto que,
mesmo como um simples guia geral, podem ser de efetiva utilidade n o interior da
ciência.
O presente estudo é escrito mais de um ponto de vista científico do que de
um ponto de vista filosófico; embora deva ser dito de início que não me ocupo de
ciências físicas, mas das ciências do computador. Nessas condições, longe de
expressar dúvidas a respeito da existência da “ciência normal” de Kuhn, aceito -a
por verdadeira. Não há necessidade de continuar aqui invocando a história. Que
existe ciência normal — e que ela é exatamente como Kuhn a descreve — é o fato
notável, esmagadoramente óbvio, que se depara a qualquer filósofo da ciência que
se dispõe, de um modo prático ou tecnoló

2. A concepção apresentada neste estudo baseia-se no livro de Kuhn The Structure of


Scientific Revolutions, e não no resto da sua obra publicada. Todos os números de páginas
incluídos no texto referem-se a esse trabalho de Kuhn.

3. Lakatos, “Proofs and Refutations”.

73
gico, a empreender alguma pesquisa científica real. Foi por haver Kuhn —
finalmente — notado o fato central a propósito de toda ciência real (pesquisa
básica, aplicada, tecnológica, são todas iguais aqui), de que se trata normalmente
de uma atividade governada por hábitos, de solução-de-enigmas, e não uma
atividade fundamentalmente perturbadora ou falseadora, (isto é, de que não se
trata de uma atividade filosófica), que os verdadeiros cientistas estão agora, cada
vez mais, lendo Kuhn em vez de ler Popper: tanto que, sobretudo nos novos
campos científicos, a “palavra correta” passou a ser “paradigma” e deixou de ser
“hipótese”. É pois cientificamente urgente e filosoficamente importante tentar
descobrir o que é o paradigma kuhniano.
Sendo científico o meu ponto de vista global, o presente estudo também
aceita por verdadeiro que a ciência como é realmente exer cida — a saber, a
ciência mais ou menos como Kuhn a descreve — é também a ciência como deve
ser exercida. Pois se não houver algum mecanismo autocorretor que opere no
interior da própria ciência, não haverá esperança de que, cientificamente falando,
as coisas venham a emendar-se depois de desandar. Pois a única coisa que os
cientistas que trabalham não farão é modificar sua maneira de pensar, no
exercício da ciência, ex more philosophico, porque Popper e Feyera- bend
pontificam para eles como se fossem teólogos do século XVIII; prin cipalmente
porque tanto Popper quanto Feyerabend costumam pontificar ainda mais que os
teólogos do século XVIII. 4
Receio que o prefácio me tenha saído um tanto agressivo; a necessidade de
comprimir o material e a indignação que me causou o que chamarei no estudo o
“eterismo-da-filosofia-da-ciência” foram a razão disso. Em todo caso, sobretudo
em vista de algumas expressões menos moderadas de Watkins, 5 um pouco de
agressividade em favor de Kuhn injetada neste simpósio não fará mal a ninguém.

4. Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism”, p. 60. (Essa explosão mais


do que profética inclui dentro em si mesma uma metaexplosão contra a filosofia lingüística
contemporânea de Oxford.) Veja também, mais sucintamente, Watkins no presente simpósio.

5. Por exemplo, na comparação entre a concepção de Kuhn da “comuni dade científica


como sociedade essencialmente fechada, intermitentemente sa cudida por colapsos nervosos
coletivos seguidos de um uníssono mental res taurado”, e a (nobre) concepção de Popper da
mesma sociedade como sociedade aberta; veja Watkins, neste volume, p. 34, nota de pé de
página 2 e pp. 29-30. Esta última contém uma deformação realmente muito grosseira da
verdadeira concepção de Kuhn — deformação repetida nas pp. 31-32, e em todo o tom do
trecho, em que acusa Kuhn de “ver a ciência como a religião do cientista”; e no trecho em que
discute o que ele denomina “A

74
1 . A DIFICULDADE INICIAL: AS MÚLTIPLAS DEFINIÇÕES DE
PARADIGMA DADAS POR KUHN.

Duas dificuldades vitais se apresentam aos que levam a sério a “nova


imagem da ciência” de Kuhn/’ Na primeira, que é a sua concepção de verificação
da experiência (ou a ausência dela), não concordo com ele e nisso me parece que
o mundo filosófico empirista tem argumentos contra ele. Mas no segundo, que é a
sua concepção do paradigma, sobejam-lhe argumentes contra esse mundo. Pois
não somente o paradigma de Kuhn, a meu ver, é uma idéia fundamental e nova na
filosofia da ciência e, portanto, uma idéia que merece ser exa minada, mas
também, conquanto dependa dela toda a concepção geral de Kuhn da natureza das
revoluções científicas, os que o atacam nunca se deram ao trabalho de descobrir
do que se trata. Ao invés disso, presumem sem discutir que o paradigma é uma
“teoria básica” ou um “ponto de vista metafísico geral”; ao passo que, a meu
juízo, é muito fácil mostrar que, em seu sentido primário, ele não pode ser uma
coisa nem outra.
Kuhn, naturalmente, com o seu estilo quase poético, torna a elucidação do
paradigma autenticamente difícil para o leitor sup erficial. De acordo com a minha
contagem, ele emprega a palavra “paradigma” em pelo menos vinte e um sentidos
diferentes em sua The Structure of Scientific Revolutions. Assim descreve um
paradigma:
(1) Como uma realização científica universalmente reconhecida (p. x): “ [Paradigmas]
são, no meu entender, realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem modelos de problemas e soluções para uma comunidade de profissionais.”
(2) Como mito (p. 2): “Os historiadores defrontam-se com dificuldades
crescentes no distinguir o componente “científico” da observação e da crença passadas daquilo
que os seus predecessores rotularam de "erro” e "superstição”. Quanto mais cuidadosamente
estudam, digamos, a dinâmica aristotélica, a quí mica flogística, a termodinâmica calórica, mais
seguros se sentem de que essas concepções outrora vigentes da natureza não eram, no seu todo,
menos científicas nem mais recorrentes da idiossincrasia humana do que as concepções hoje
dominantes. Se tais crenças antiquadas podem ser denominadas mitos, os mitos

Tese do Paradigma Instantâneo’’. Diga-se a bem da justiça que Watkins se desculpa duas vezes
pela desnecessária violência do estilo; de uma feita, quando se acusa corretamente de “certa
injustiça inconsciente”; e, de outra, quando confessa estar falando “um tanto maldosamente".
Mas que um filósofo sério do seu calibre se considere justificado em ser, ao mesmo tempo,
superficial e inexato na crítica e violento no estilo — não é apenas motivo de comentários, mas
também de surpresa.
6. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 1 e 3.
podem ser produzidos pelos mesmos tipos de métodos e mantidos pelos mesmos tipos de razões
que hoje conduzem ao conhecimento científico. Se, por outro lado, elas tiverem de ser
chamadas ciência, então a ciência incluiu corpos de crenças totalmente incompatíveis com as
que sustentamos hoje.”
(3) Como “filosofia” ou constelação de perguntas (pp. 4-5): “[Nenhuml
grupo científico pode exercer seu ofício sem um conjunto qualquer de crenças recebidas. Nem
isso torna menos importante a constelação a que o grupo, em dado momento, está de fato
ligado. A pesquisa eficaz dificilmente começará antes que a comunidade científica pense ter
adquirido respostas firmes a perguntas como estas: De que entidades fundamentais
se compõe o universo?
Como interagem elas entre si e com os sentidos? Que perguntas podem ser legitimamente
formuladas a respeito dessas entidades e que técnicas se podem empregar na busca de
soluções?”
(4) Como manual, ou obra clássica (p. 10): “‘Ciência Normal’ significa
pesquisa firmemente baseada em realizações científicas passadas, realizações que alguma
comunidade científica reconhece por algum tempo como propiciadoras da base da sua prática
subseqüente. Hoje tais realizações são relatadas, se bem que raramente na forma original,
pelos manuais científicos, elementares e avançados. Esses manuais expõem o corpo da teoria
aceita, ilustram muitas ou todas as suas aplicações bem-sucedidas, e comparam tais aplicações
com observações e experiências exemplares. Antes que esses livros se tornassem populares no
princípio do século XIX (e até mais tarde nas ciências recém -desenvolvidas), muitos dos
famosos clássicos da ciência desempenharam função semelhante. A Física de Aristóteles, o
Almageslo de Ptolomeu, os Princípios e a Ótica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a
Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell — estas e muitas outras obras serviram, durante
algum tempo, implicitamente, para definir os problemas e métodos legítimos de um camp o de
pesquisa para sucessivas gerações de profissionais. Elas puderam fazê -lo porque partilhavam
de duas características essenciais. Sua realização era tão sem precedentes que atraía um grupo
duradouro de adeptos, desviando-os de tipos concorrentes de atividade científica. Ao mesmo
tempo, era tão aberta que deixava a solução de todas as espécies de problemas para o grupo
redefinido de profissionais. Às realizações que partilharem dessas duas características
chamarei, daqui por diante, ‘paradigmas’. ”

(5) Cómo toda uma tradição e, em certo sentido, como modelo (pp. 10 -11): “ . . .
alguns exemplos aceitos da prática científica verdadeira — exemplos que incluem ao mesmo
tempo a lei, a teoria, a aplicação e a instrumentação — fornecem modelos dos quais emanam
tradições coerentes de pesquisa científica. São as tradições que, para o historiador, pertencem
a rubricas como “astronomia ptolemaica” (ou “coperniciana”), “dinâmica aristotélica” (ou
“newtoniana”), "ótica corpuscular” (ou "ondulatória”), e assim por diante. O estudo de para-
digmas, incluindo inúmeros outros muito mais especializados do que os acima mencionados,
prepara o aluno para fazer parte de determinada comunidade cien tífica com a qual praticará
mais tarde.”

(6) Como realização científica (p. 11): “Visto que neste ensaio o con
ceito de paradigma substituirá uma variedade de noções familiares, urge dizer mais alguma
coisa acerca das razões da sua introdução. Por que a realização científica concreta, como local
de compromisso profissional, é anterior aos vários conceitos, leis, teorias e pontos de vista que
podem ser abstraídos dela? Em que sentido é o paradigma partilhado numa unidade
fundamental para o estudioso do desenvolvimento científico, unidade que não se pode reduzir
ple-

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namente a componentes logicamente atômicos, capazes de funcionar em seu lugar?”
(7) Como analogia (p. 14): "Um grupo primitivo de teorias, que se
seguiram à prática do século XVII, considerava a atração e a geração produzidas pelo atrito
como os fenômenos elétricos fundamentais. Esse grupo tendia a tratar a repulsão como efeito
secundário, que se devia a uma espécie de rebote mecânico e também a adiar para o mais tarde
possível a discussão e a pesquisa sistemática do recém-descoberto efeito de Gray, a condução
elétrica. Outros “eletricistas” (o termo é deles mesmos) consideravam a atração e a repulsão
manifestações igualmente elementares da eletricidade e modificaram, nessa con formidade, suas
teorias e sua pesquisa. (Na verdade, esse grupo é notavelmente pequeno — a própria teoria de
Franklin nunca explicou cabalmente a mútua repulsão de dois corpos com carga negativa.) Mas
ele encontrou tanta dificuldade quanto o primeiro grupo para explicar simultaneamente
qualquer um dos efeitos menos simples de condução. Esses efeitos, no enta nto, forneceram o
ponto de partida para um terceiro grupo, que tendia a falar em eletricidade como um “fluido”
capaz de correr através de condutores em lugar de um “eflúvio" que emanava de não -
condutores.”
(8) Como especulação metafísica bem-sucedida (pp. 17-18): " . . . nas
fases iniciais do desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes que enfrentam a
mesma série de fenômenos, mas nem sempre os mesmos fenômenos, descrevem -nos e
interpretam-nos de maneiras diferentes. O que surpreende e talvez seja único em seu grau para
os campos a que chamamos ciência, é que essas divergências iniciais sempre desaparecem...
Para ser aceita como paradigma, uma teoria precisa parecer melhor do que suas concorrentes,
mas não precisa explicar, como de fato nunca explica, t odos os fatos com que se pode
defrontar.”
(9) Como dispositivo aceito na lei comum (p. 23): “Em seu uso esta
belecido, o paradigma é um modelo ou padrão aceito, e esse aspecto do seu significado me
facultou, por falta de palavra melhor, apropriar-me aqui da palavra “paradigma”. Logo,
porém, se tornará claro que o sentido de “modelo" e “padrão” que permite a apropriação não é
exatamente o sentido habitual da definição de “paradigma". Em gramática, por exemplo,
“amo, amas, amai" é um paradigma porque mostra o modelo que se deve usar na conjugação
de grande número de outros verbos latinos como, por exemplo, na produção de "laudo, laudas,
laudat”. Nessa aplicação normal, o paradigma funciona permitindo a reprodução de exemplos
que poderiam, em princípio, servir para substituí-lo. Numa ciência, por outro lado, o
paradigma raro é objeto de reprodução. Ao invés disso, como decisão judicial aceita na lei
comum, é objeto de articulação e especulação subseqüentes sob novas e mais rigorosas
condições.”
(10) Como fonte de instrumentos (p. 37): " . . . os instrumentos con-
ceptuais e instrumentais fornecidos pelo paradigma.”
(11) Como ilustração normal (p. 43): "Atenta investigação histórica de
determinada especialidade em dado momento revela uma série de ilustrações recorrentes e
quase normais de várias teorias em suas aplicações conceptuais, observacionais e
instrumentais. Tais são os paradigmas da comunidade, reve lados em seus manuais,
conferências e exercícios de laboratório. Estudando-os e praticando com eles, os membros da
comunidade correspondente aprendem o seu ofício. O historiador, é claro, descobrirá, além
disso, uma área de penumbra ocupada por consecuções cujo status ainda se acha em dúvida,
mas a essência

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dos problemas resolvidos e das técnicas será geralmente claro. A d espeito de ambigüidades
ocasionais, os paradigmas de uma comunidade científica desen volvida podem ser
determinados com relativa facilidade.”
(12) Como expediente, ou tipo de instrumentação (pp. 59-60): " . . . eles
negaram antecipadamente a tipos paradigmáticos de instrumentação o seu direito a esse título.
Em suma, conscientemente ou não, a decisão de empregar de terminada parte do aparato e usá-
la de certo modo traz consigo a suposição de que só surgirão determinadas circunstâncias. Há
expectativas tanto instrumentais quanto teóricas, e elas têm desempenhado com freqüência um
papel decisivo no desenvolvimento científico. Uma expectativa dessa natureza, por exemplo,
faz parte da história do descobrimento do oxigênio. Utilizando um teste comum destinado a
avaliar “a qualidade do ar”, tanto Priestley quanto Lavoisier mis turaram dois volumes do seu
gás com um volume de óxido nítrico, sacudiram a mistura sobre a água e mediram o volume do
resíduo gasoso. A experiência precedente, da qual surgira esse processo comum, assegurava-
lhes que, em se tratando do ar atmosférico, o resíduo seria de um volume e que, em se tratando
de qualquer outro gás (ou de ar poluído), o resíduo seria maior. Nas experiên cias que fizeram
com o oxigênio, os dois cientistas encontraram um resíd uo de aproximadamente um volume, e
assim identificaram o gás. Só muito mais tarde e graças, em parte, a um acidente, renunciou
Priestley ao processo comum e tentou misturar óxido nítrico com o seu gás em outras
proporções. Descobriu então que, com o quádruplo do volume de óxido nítrico, quase não
havia resíduo. Seu compromisso com o procedimento original do teste — procedimento
sancionado por muitas experiências anteriores — havia sido igualmente um compromisso com
a não-existência de gases capazes de comportar-se como se comportava o oxigênio. Poderíamos
multiplicar as ilustrações desse tipo repor tando-nos, por exemplo, à identificação da fissão do
urânio. Um dos motivos por que essa reação nuclear se revelou especialmente difícil de
reconhecer foi que os homens que sabiam o que deviam esperar ao bombardear o urânio esco-
lhiam testes químicos que visavam sobretudo a elementos da extremidade su perior da tabela
periódica. Deveremos, acaso, concluir da freqüência com que tais ligações instrumentais se
revelam falazes que a ciência deve abandonar os testes e os instrumentos comuns? Isso
resultaria num método inconcebível de pesquisa. Os processos e aplicações do paradigma são
tão necessários à ciência quanto as leis e as teorias do paradigma. . .”
(13) Como um baralho de cartas anômalo? 7
(14) Como fábrica de máquinas-ferramentas (p. 76): “Enquanto os ins
trumentos fornecidos por um paradigma continuarem a revelar -se capazes de resolver os
problemas que ele define, a ciência caminhará mais depressa e penetrará mais fund o através
do emprego confiante desses instrumentos. A ra zão é clara. Assim como acontece na
manufatura assim acontece na ciência — a renovação do equipamento é uma extravagância
que deve ser reservada para a ocasião oportuna.”
(15) Como figura de gestalt que pode ser vista de duas maneiras (p. 85): " . . . as
marcas no papel vistas primeiro como um pássaro são vistas agora como um antílope, ou vice -
versa. Esse paralelo pode ser ilusório. Os cientistas não vêem alguma coisa como outra;
simplesmente a vêem. Já examinamos alguns

7. Cf. a discussão de Kuhn da experiência de Bruner -Postman, op. cit., pp. 62-3.

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problemas criados dizendo que Priestley viu oxigênio como ar deflogisticado. Além disso, o
cientista não preserva a liberdade do sujeito da gestalt a fim de b randi-la de um lado para
outro, entre maneiras de ver. Não obstante, a mu dança de gestalt, principalmente por ser hoje
tão familiar, é um protótipo elementar útil para o que ocorre numa mudança de paradigma em
escala normal.”
(16) Como conjunto de instituições políticas (p. 92): " . . . só a crise
atenua o papel das instituições políticas, como já a vimos atenuar o papel dos paradigmas."
(17) Como “modelo” aplicado à quase-metafísica (p. 102): “E assim
como o problema muda, assim muda, com freqüência, o modelo que dis tingue a verdadeira
solução científica de uma simples especulação metafísica, de um jogo de palavras ou de um
jogo matemático."
(18) Como princípio organizador capaz de governar a própria percep ção (p. 112):
“Examinando a rica literatura experimental da qual f oram tirados
esses exemplos somos levados a suspeitar que algo semelhante a um paradigma é um pré -
requisito da própria percepção."
(19) Como ponto de vista epistemológico geral (p. 120): " . . . o para
digma filosófico iniciado por Descartes e desenvolvido ao mes mo tempo como a dinâmica
newtoniana.”
(20) Como um novo modo de ver (p. 121): “Os cientistas... falam
conseqüentemente em “véus que caem dos olhos” ou no “relâmpago luminoso” que “inunda”
um enigma até então obscuro, permitindo que seus componentes sejam vistos de um novo
modo..
(21) Como algo que define ampla extensão de realidade (p. 128): “Os
paradigmas determinam grandes áreas de experiência ao mesmo tempo.”

É evidente que nem todos esses sentidos de “paradigma” são incompatíveis


entre si: alguns podem ser elucidações de outros. Sem embargo, dada a
diversidade, é obviamente razoável perguntar: “Haverá alguma coisa em comum
entre todos? Haverá, filosoficamente falando, alguma coisa definida ou geral
acerca da noção de paradigma que Kuhn está tentando esclarecer? Ou ele não
passa de um poeta-historiador que descreve sucessos diferentes ocorridos no
decurso da história da ciência e a eles se refere empregando a mesma pa lavra
paradigma?”
Tentativas preliminares de responder a essa pergunta pela críti ca textual
deixam claro que os vinte e um sentidos de “paradigma” de Kuhn pertencem a
três grupos principais. Pois quando equipara o “paradigma” a um conjunto de
crenças (p. 4), a um mito (p. 2), a uma especulação metafísica bem-sucedida (p.
17), a um modelo (p. 102), a um novo modo de ver (pp. 117-21), a um princípio
organizador que governa a própria percepção, (p. 120), a um mapa (p. 108), e a
alguma coisa que determina uma grande área de realidade (p. 128), é evidente que
ele tem muito mais em mente uma noção

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ou entidade metafísica do que uma noção ou entidade científica. Chamarei,
portanto, aos paradigmas desse tipo filosófico paradigmas metafísicos ou
meiaparadigmas', e estes representam a única espécie de paradigma a que, pelo
que sei, se referiram os críticos filosóficos de Kuhn. O segundo sentido principal
de “paradigma” de Kuhn, no entanto, dado por outro grupo de empregos, é
sociológico. Assim, ele define “paradigma” como realização científica
universalmente reconhecida (p. x), como realização científica concreta (pp. 10-
11), como conjunto de instituições políticas (p. 91), e também como de cisão
judicial aceita (p. 23). Chamarei a esses paradigmas de natu reza sociológica de
paradigmas sociológicos. Finalmente, Kuhn emprega a palavra “paradigma” de
modo ainda mais concreto, como verdadeiro manual ou obra clássica (p. 10),
como fornecedor de instrumentos (pp. 37 e 76), como instrumentação real (pp. 59
e 60); lingüisticamente, como paradigma gramatical (p. 23), ilustrati - vamente,
como analogia (v.g. à p. 14); e psicologicamente, como figura de gestalt e como
um baralho de cartas anômalo (pp. 63 e 85). Chamarei aos paradigmas dessa
espécie paradigmas de artefato ou paradigmas de construção.
A partir deste momento presumirei (embora peça algumas des culpas aos
estudiosos) que a crítica textual de Kuhn só nos dá, no fim, paradigmas
metafísicos, sociológicos e de construção; e discutirei primeiro o sentido
sociológico de “paradigma”.

2. A ORIGINALIDADE DA NOÇÃO SOCIOLÓGICA DO PARADIGMA DE


KUHN: O PARADIGMA É ALGO QUE PODE FUNCIONAR QUANDO
NÃO EXISTE A TEORIA.

Visto sociologicamente (em contraposição à sua concepção filosófica) o


paradigma é um conjunto de hábitos científicos. Seguindo esses hábitos a solução
bem-sucedida de problemas pode continuar; eles tanto são intelectuais, verbais,
comportamentais, quanto mecânicos e tecnológicos, pertencendo a qualquer um
desses gêneros ou a todos ao mesmo tempo; tudo depende do tipo de problema
que está sendo resolvido. A única definição explícita de paradigma, com efeito,
que Kuhn apresenta é em função desses hábitos, conquanto os reúna a todos sob o
nome de realização científica concreta. “Ciência normal”, diz ele (p. 10),
significa “pesquisa baseada numa ou em mais de uma realização científica
passada, que alguma

80
comunidade reconhece durante algum tempo como fornecedora dos fundamentos
da sua prática ulterior”. Tais realizações (i) “suficientemente sem precedentes
para atrair um grupo duradouro de adeptos, desviando-os de modos concorrentes
de atividade científica’’, e (ii) “suficientemente abertas para deixar todas as
espécies de problemas ao grupo redefinido de profissionais a fim de que os
resolvam. Às realizações que partilharem das duas características chamarei, da qui
por diante, paradigmas". Assim, atribuindo o lugar central, na ciência real, a uma
realização concreta em lugar de atribuí-lo a uma teoria abstrata, Kuhn, único entre
os filósofos da ciência, coloca-se em condições de dissipar a preocupação que
tanto aturde o cientista que trabalha ao defrontar-se pela primeira vez com a
filosofia da ciência profissional: “Como poderei utilizar uma teoria que não
existe?”
Além disso, o próprio Kuhn não tem dúvida de que os seus paradigmas,
assim sociologicamente definidos, são anteriores à teoria. (Essa é parte d a razão
por que ele deseja uma nova palavra, que não seja “teoria” para descrevê -los.)
Pois “por que”, pergunta a si mesmo (p. 11), é o paradigma, ou realização
científica, “como um local de compromisso profissional, anterior aos vários
conceitos, leis, teorias e pontos de vista que dele se podem abstrair?” Infeliz-
mente (e tipicamente) tendo formulado essa pergunta tão pertinente, Kuhn não dá
a si mesmo resposta alguma, e ao leitor cabe encontrar a resposta, se puder. Mas,
pelo menos, torna-se claro que, para Kuhn, algo sociologicamente descritível e,
acima de tudo, concreto, já existe na fases iniciais da ciência real, quando a teoria
não existe.
Também merece ser observado que, sejam quais forem os padrões
sinonímicos que Kuhn tenha sido levado a estabelecer no auge de sua
argumentação, ele, na realidade, jamais equipara “paradigma” — em nenhum dos
seus principais sentidos — a “teoria científica”. Pois o seu metaparadigma é algo
muito mais amplo do que a teoria e ideologicamente anterior a ela: isto é, toda
uma Weltanschauung. Seu paradigma sociológico, como vimos, também é anterior
à teoria, e diferente dela, por ser algo concreto e observável: a saber, um conjunto
de hábitos. E o seu paradigma de construção é menos que uma teoria, visto que
pode ser algo tão pouco teórico quanto uma simples parte de um aparato: isto é,
qualquer coisa capaz de provocar a ocorrência real de uma solução de enigma.
Assim sendo, as tão difundidas opiniões de que Khun, na realidade, não está
dizendo nada de novo; ou de que, na medida em que é um filósofo, suas opiniões
são essencialmente idênticas às de Feyerabend; ou ainda de que ele deve estar
tentando dizer as mesmas coisas que Popper (visto que Popper disse primeiro
tudo o que há de verdadeiro na filosofia da ciência), mas de que ele não as diz
com muita eficiência nem com o tipo certo de ênfase; todas essas opiniões,
depois de um exame verdadeiro do texto de Khun, se revelam falsas. 8 São, com
efeito, as diferenças entre a “nova imagem” da ciência segundo Khun (ou, como
lhe chamarei a partir de agora, a “concepção paradigmática” da ciência) e todas
as outras filosofias da ciência de que tenho conhecimento, que fazem com que o
livro de Khun seja tão extensamente lido e que eu me prepare para escrever este
ensaio.
Tentarei dizer, portanto, na próxima seção, o que me parece encontrar-se na
concepção paradigmática que, estabelecendo com êxito o cientificismo
característico da ciência, combate vitoriosamente o filosofismo etéreo da
“metafísica falsável”, que caracteriza a concepção popperiana. Depois disso
tentarei dizer alguma coisa sobre o efeito que a concepção paradigmática de
Kuhn tem sobre a “concepção hipotético-dedutiva” mais antiga e mais fechada;
pois a concepção paradigmática, surpreendentemente, me parece muito mai s
próxima da segunda dessas concepções que a primeira. Em conclusão, aludirei ao
que, na minha opinião, serão as características lógicas distintivas e
revolucionárias do paradigma de Kuhn, depois de despojado do seu meio
sociológico e depois de encarado de um modo geral e filosófico. Derivarei todas
essas características lógicas da propriedade básica do paradigma, à qual darei o
nome de con- cretismo ou “crueza”.
Antes de começar tudo isso, e para rematar convenientemente esta seção,
tentarei esboçar, de maneira impressionista, as diferenças que observei entre a
concepção de ciência de Kuhn e a concepção de Feyerabend, visto que este, além
de ser o filósofo da ciência que, até agora, mais se aproxima de Khun, é também
o que maiores estudos dedicou à sua obra. 9 A principal diferença, ao meu juízo, é
que, mercê do seu preconceito sociológico geral, os interesses de

8. Eu poderia documentar tudo isso: mas não o farei.


9. Feyerabend, “Explanation, Reduction and Emplricism”, p. 32. O que aqui se
encontra é um relato muito descuidado do ensaio de Feyerabend, pelo que desejo pedir
desculpas, visto que dei uma impressão positiva e sumária do que é, na realidade, uma série de
resultados negativos.

82
Kuhn são muito mais amplos que os de Feyerabend. Kuhn se inte ressa tanto pela
ascensão quanto pela queda da ciência, por todo o processo de seres humanos que
tentam chegar a uma explicação científica. Feyerabend se interessa apenas pela
queda; suas análises giram todas em torno desse sentido de explicação que ele
supõe sinônimo de redução; Feyerabend, por exemplo, pressupõe a exis tência de
pelo menos uma teoria plenamente inteligível. Mas Kuhn não pressupõe coisa
alguma; de início, nem mesmo os seus paradigmas. 10 Vasculha a verdadeira
história e põe-se a refletir; lê manuais científicos de ensino e se interroga. Por
conseguinte, uma investigação que tenha por objetivo a originalidade de Kuhn
será também uma investigação das formas cruas e das fases iniciais da ciência.
E é isso, acima de tudo, que torna o seu trabalho atraente para os cientistas
em novos campos; principalmente, é claro, para os estudiosos das ciências sociais
e da psicologia experimental. Uma das razões por que a filosofia da ciência
profissional parece etérea aos verdadeiros cientistas da pesquisa, é qu e os
modernos filósofos da ciência, tomados como grupo, têm trabalhado para trás.
Primeiro tivemos a concepção hipotético-dedutiva, cuja base é o sistema dedutivo
único, aparentemente articulado, coerente, plenamente inteli gível, completo e
bem interpretado — ideal que nenhuma ciência alcança, mas do qual, se Kuhn
estiver certo, todos os manuais de ensino, numa ciência difícil avançada, tenta
aproximar-se. 11 Depois disso tivemos a mais nova concepção de Feyerabend (que
se seguiu à de Popper), da fase que vem antes: isto é, de duas teorias muito mais
novas, muito menos bem rematadas que concorrem para cobrir o que se pode
chamar “o mesmo campo” (embora apenas num sentido pickwickiano). Nenhum
filósofo da ciência moderna, até agora, retrocedeu mais cedo às f ases em que não
há quaisquer teorias, como direi na seção seguinte, ou em que há um número
excessivo delas (se a palavra “teoria” for usada metafísica ou coloquialmente) e
nenhum campo claro. Entretanto, em vista da atual proliferação das pretensas
novas ciências, para que a filosofia da ciência pudesse tornar-se como deve ser,
um guia cientificamente útil para pesquisadores verdadeiros, já devia ter sido
feito algum movimento filosófico retrocedente.
Na minha opinião, Kuhn fez esse movimento; ou tentou fa zê-lo.

10. Antes de assumir a sua atual posição intelectual, o desenvolvimento de Kuhn


estendia-se por certo número de campos e passava pelo menos por seis fases (veja a sua The
Structure of Scientific Revolutions, prefácio, pp. vii-x).
11. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 1; pp. 1-2; p. 10; pp. 135 e
seguintes; p. xi; e veja também a seção IV, mais adiante.

83
3. A CONSEQÜÊNCIA FILOSÓFICA DA INSISTÊNCIA DE KUHN NA
CENTRALIDADE DA CIÊNCIA NORMAL: FILOSOFICAMENTE
FALANDO, O PARADIGMA É UM ARTEFATO QUE PODE SER
UTILIZADO COMO EXPEDIENTE NA SOLUÇÃO DE ENIGMAS, E
NÃO COMO VISÃO METAFÍSICA DO MUNDO.

Os que estão impressionados com a primazia analítica dada por Kuhn à


sociologia em oposição à filosofia, como a indicar as pistas principais dos
fundamentos da verdadeira ciência, poderiam dizer: “Por que é que você insiste
na idéia do ‘paradigma’? Trata-se apenas do nome dado por Kuhn a um conjunto
de hábitos. Esses hábitos existem, não há dúvida; mas o fato não tem importância
filosófica.”
Isso não está certo, nem mesmo em relação a Kuhn. Além dos seus
paradigmas sociológicos (sentido 2), ele tem paradigmas metafísicos (sentido 1)
e paradigmas de artefato ou paradigmas de construção (sentido 3). È fácil
mostrar que tem pelo menos esses. Mas deixando de lado que Kuhn, tomado
agora como filósofo, disse realmente a respeito de paradigmas, há uma razão
mais profunda e imediata para não nos contentarmos com um sentido puramente
sociológico de “paradigma”; e essa razão é que qualquer definição deste último
não pode deixar de ser circular. Pois, a fim de estabelecer a prioridade (temporal)
do paradigma em relação à teoria na ação científica, temos de defini -lo,
sociologicamente, como realização científica concreta já conhecida, ou conjunto
já estabelecido de hábitos. Mas como poderá o próprio cientista, numa nova
ciência, descobrir primeiro que está seguindo numa futura realização cientí fica
concreta, se não souber que está seguindo um paradigma? Há aqui claramente
uma circularidade: primeiro definimos o paradigma como realização já
concluída; depois, de outro ponto de vista, descrevemos a realização como
construída em torno de um paradigma já existente.
Poder-se-ia argumentar, naturalmente, que, se empreendêssemos seriamente
o estudo sociológico pormenorizado, através da observação, de novas ciências
contemporâneas, em lugar de limitar-nos à análise histórica detalhada, através da
percepção tardia, de passadas ciências rançosas, essa circularidade, para
propósitos práticos, poderia ser quebrada; visto que, se existissem, poderíamos
descobrir paradigmas no processo de formação. Mas mesmo então, como sa -
beríamos que estávamos procurando paradigmas, e não outras coisas,

84
a não ser que já soubéssemos, não-sociologicamente, o que era um paradigma? É
evidente que o sentido primário de “paradigma” tem de ser filosófico; e o
paradigma tem de existir antes da teoria. Estabelecido isto, o homem que diz;
“Que é, na realidade, este ‘paradigma’, que é essa entidade?”, pode ser convidado,
como resposta, a verificar o que está acontecendo num novo campo científico.
Pois numa ciência nova, não só é quase certo que falta a teoria formal; mas
também muita atividade científica de grande poder se dirige para a escolha
precisa do momento em que valerá a pena o trabalho de construí-la. A alternativa
é “continuar como estamos indo agora”; isto é, com algum truque, ou técnica
embrionária, ou imagem, e um discernimento da sua aplicabilidade nesse campo. E é
esse truque, mais esse discernimento que, juntos, constituem o paradig ma. A
metafísica explícita (o que o próprio cientista denomina “a filosofia” ou “o gás”),
a mais plena inovação matematizante, os processos experimentais mais
desenvolvidos — todas essas coisas cujo conjunto, no depois, virá a ser “a
realização científica concreta estabelecida” — quase sempre aparecem muito
depois do truque- -prático-inicial, que trabalha-o-suficiente-para-que-a-sua-
escolha-encor- pore-uma-visão-potencial, isto é, depois do primeiro teste do para -
digma. De fato, na ciência genuína e viva, o próprio esforço para estabelecer uma
“realização científica concreta” precisa justificar-se. Para que a teoria resultante
(e/ou a técnica mais exata e dispendiosa) seja aceitável, é preciso que ela permita
a obtenção de resultados que não se poderiam obter de outra maneira. Nenhum
bom cientista deseja estabelecer uma realização dessa natureza só para figurar
mais tarde em livros de filosofia da ciência. Menos ainda desejará teoricamente
limpar o seu tema removendo da descrição coloquial dos fatos até aq ui usada
qualquer análise possível dos verdadeiros centros de dificuldade. Assim, o
problema real na obtenção de uma filosofia da nova ciência consiste em descrever
filosoficamente o truque ou expediente original em que se funda o pa radigma
sociológico (isto é, o conjunto de hábitos).
Com tudo isso em mente, é esclarecedor voltarmo-nos de novo
comparativamente ao primeiro e ao terceiro sentidos de “paradigma” de Kuhn.
Como já vimos, se perguntarmos o que é um paradigma kuhniano, o hábito das
definições múltiplas de Kuhn coloca um problema. Se perguntarmos, todavia, o
que faz um paradigma, logo se torna claro (presumindo-se sempre a existência da
ciência normal) que o fundamental é o sentido de construção de “paradigma”, e
não o sentido metafísico ou metaparadigma. Pois só com um artefato se podem
solucionar enigmas. E conquanto tenha afirmado ini

85
cialmente (p. 36) que vai empregar a palavra “enigma” no sentido literal,
comum, de dicionário, e mais tarde fraqueje e fale (p. 42) sobre “a metáfora que
relaciona a ciência normal com a solução de enigmas”, Kuhn possui, de um
modo geral, uma idéia firme, literal e muito concreta do que dizer com a
atividade de solução de enigmas da ciência normal. Um enigma científico
normal tem sempre uma solução (p. 36) garantida pelo paradigma, mas que
requer engenho e perspicácia para ser encontrada. Tipicamente (p. 35), a solução
é conhecida com antecipação, como acontece com qualquer outro enigma, mas o
caminho passo a passo que conduz a ela não o é. O cientista normal é um adepto
da solução de enigmas (p. 37); e é nessa solução de enigmas — não apenas um
vago “soluciona- mento de problemas”, mas uma solução de enigmas — que
consiste prototipicamente a ciência normal. E um enigma é sempre um arte fato.
Está certo dizer que o paradigma “fornece instrumentos” (pp. 37 e 76) ou,
vagamente, que possibilita solução de problemas. Continua a ser verdade que no
tocante a qualquer enigma que deva ser solucionado pelo emprego do paradigma,
este terá de ser uma construção, um artefato, um sistema, um instrumento;
juntamente com o manual de instruções para utilizá-lo com êxito e um método
de interpretação do que ele faz.
Entretanto, a ser verdade que o paradigma de construção de Kuhn, e
nenhum dos seus outros dois sentidos principais de “paradigma”, é o que
proporciona a chave filosófica da verdadeira natureza dos paradigmas de uma
nova ciência, localizando com precisão o truque ou expediente que põe em
movimento uma nova ciência; enfim, a ser verdade tudo isso, então por que
razão todos os filósofos da ciência, exceto eu, entenderam ser evidente que por
“paradigma” Kuhn aludia a uma visão metafísica do mundo, e que o seu sentido
fundamental de “paradigma” era o sentido 1 e não o sentido 3? A explicação
imediata é fácil. Eles não levaram a sério a descrição da ciência normal feita por
Kuhn. Entretanto, ainda se poderá pensar que, dizendo tudo isso, eu pretenda
repudiar o que os filósofos da ciência estão dizendo atualmente sobre a ciência
que emerge da metafísica (a concepção “metafísica falseável”); ou que estou ig-
norando o que diz o próprio Kuhn a propósito da ciência pré -para- digmática 12;
ou que estou promulgando de um modo marxista a

12. E, com efeito, estou sendo descuidada acerca do que diz Kuhn no tocante à ciência
pré-paradigmática, exatamente como fui descuidada antes a respeito de Feyerabend. Veja,
todavia, a discussão do assunto no fim desta seção.

86
lei sobre a motivação de toda ciência nova para ser tecnológica. Isso não
acontece. É óbvio que uma das raízes da realização científica é metafísica, como
Popper, o próprio Kuhn e muitos outros já disseram. Mas a predisposição
filosófica vigente tem-se inclinado tanto no sentido de examinar o que é
conceituai, ao pensar acerca da natureza de qualquer ciência, que os filós ofos
quase se esqueceram de tomar em consideração o que é prático. Desse modo, ao
discutir o problema da verificação, Kuhn não viu a importância da aplicação
tecnológica final; 13 e, ao discutir a emergência da ciência do seio da metafísica e
da filosofia, Popper não viu a importância do truque técnico que dá início a cada
nova ciência. Embora deva ter ouvido o velho dito segundo o qual a ciência é um
casamento entre a metafísica e a tecnologia, Popper nunca pergunta a si mesmo
como ocorre a cópula; por conseguinte, a fraqueza fatal da concepção popperiana
da ciência está em que os popperianos não podem responder à pergunta: “Se um
sistema científico é essencialmente um sistema metafísico falseável, como pode a
própria metafísica ser usada como modelo e submetida a testes?”
Isso me leva à comparação que prometi fazer entre Kuhn e Popper; ou, mais
precisamente, à comparação entre a concepção paradigmática da nova ciência e a
concepção popperiana. Pois a grosseira lacuna que afirmo existir na concepção
popperiana — a saber, que Popper não pode explicar como começa de repente
qualquer nova linha de pesquisa — não se deve, como alegam por vezes os
cínicos, ao fato de serem os filósofos popperianos da ciência incapazes de
compreender a tecnologia, nem ao fato de serem os tecnólogos incapazes de
pensar como os popperianos sobre a filosofia da ciência. Nenhuma dessas
afirmativas é verdadeira e ambas são irrelevantes. A causa da dificuldade, no meu
entender, é a excessiva confiança em Newton. Exatamente por haver durado tanto
tempo, a mecânica newtoniana está numa posição única, entre as teorias
científicas, de poder ser considerada como quase-metafísica, como o verdadeiro
protótipo da teoria dedutiva, ou ainda (agora) como tecnologia, dependendo da
maneira com que olharmos para ela. Ademais, a confiança na mecânica
newtoniana, como se ela estivesse sempre ali para ser ambiguamente apontada em
qualquer crise como a ciência, é abjeta. Se todos os filósofos da ciência que
derivam de Kant não tivessem podido equiparar a ciência à mecânica newtoniana,
onde andaria a filosofia da ciência? O próprio

13. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. xii, 19, 69 e 166-7; no entender
de Kuhn, a tecnologia está fora da esfera da filosofia da ciência.

87
Popper, com efeito, em Conjectures and Refutations, encontra grande dificuldade
para fazer a comparação; mas enquanto Popper supõe que a dificuldade reside
(para nós, mas não para Kant) no fato de precisarmos agora considerar a teoria de
Newton “como uma hipótese cuja verdade é problemática” pois “Einstein
demonstrou que e possível, pelo emprego de princípios básicos muito distantes
dos de Newton, fazer justiça a toda a série dos dados da experiência”, 11 a
dificuldade de fato apresentada pela mecânica newtoniana é que ela funciona tão
completamente que agora se tornou parte da tecnologia, ou seja, da tecnologia de
pôr em órbita satélites espaciais. Segundo os princípios kuhnianos, portanto, eu
penso também nos princípios de Popper, ela já deixou de ser objeto da filosof ia
da ciência.
Prescindindo Newton, daí por diante, Popper apresenta uma exposição
realista muito mais pobre do pensamento criativo na ciência. “Nós inventamos
nossos mitos e nossas teorias e os pomos à prova”, diz ele 15 — ao que a resposta
é: “Como?” “Quando?” “Onde?” “Vêem-se as teorias como livres criações de
nossas mentes”, continua ele, “o resultado de uma intuição quase poética” 16
— e a resposta curta para isso é: “Quem as vê assim?” “Não tentamos prová-las.
. . senão refutá-las.” 17 De mais a mais, na primeira oportunidade, Popper
abandona de todo a discussão das teorias científicas a fim de voltar-se para as
filosóficas, em ordem a analisá-las, brilhantemente, e verificar se elas também
não são refutáveis, de um modo mais direto. Em seguida, excetua ndo uma
pequena margem, equipara estas últimas às teorias científicas 18; e a gente
desconfia de que — à parte Newton — foram estas, e não a ciência tal como
realmente é, que ele teve em mente durante todo esse tempo.
Tal equiparação virtual (excetuando-se Newton) do pensamento científico
ao pensamento filosófico especulativo, mais do que qualquer outra coisa, é que
dá origem atualmente ao que descrevi no princípio como a “filosofia etérea da
ciência”. Em contraste com essa “abstração”, Kuhn, insistindo na importância
sociológica do conjunto real de hábitos que, de fato, caracteriza toda ciência
nova, e é anterior a qualquer formulação teórica, conseguiu estabelecer, como
elemento central de sua filosofia, o concretismo essencial, ca

14. Popper, Conjectures and Refutations, p. 191.


15. Popper, Conjectures and Refutations, p. 192.
16. Loç. cit.
17. Loc. cit.
18. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 199-200.

88
racterístico da ciência; isto é, refazendo a distinção que o próprio cientista faz
entre a “imagem” real, ou “modelo”, e a “filosofia”. Esse “modelo (cuja operação
já descrevi como o truque, ou expediente, que põe em movimento qualquer ciência
ou linha de pesquisa nova) passa a ser para Kuhn o seu paradigma de construção
(paradigma no sentido 3), cuja utilização permite seja levada a cabo a solução de
enigmas da ciência normal. E a identificação, por seu turno -—- isto é, o fato de
que o sentido primário do paradigma de Kuhn tem de ser o sentido de construção e
não o sentido metafísico
— lhe permite estabelecer uma nova relação recíproca entre o emprego do
modelo e a metafísica. Pois em vez de perguntar “Como é que um sistema
metafísico pode ser usado como modelo?” — isto é, em lugar de fazer a pergunta
a que eu disse antes que os poppe- rianos não poderiam responder — Kuhn pode
perguntar agora: “Como é que uma construção de solução de enigma (isto é, um
paradigma no sentido 3) pode ser usado metafisicamente? Como é que um
paradigma de construção pode, na verdade, transformar-se num ‘modo de ver’?”
O exame dessa pergunta nos obriga a passar abruptamente da impressão
popperiana da ciência em geral para uma reavaliação mais sofisticada da
concepção hipotético-dedutiva da função exata da teoria científica. Pois, afinal de
contas, um sistema hipotético- -dedutivo — se puder ser construído — por sua
natureza, é um artefato de solução de problemas. Antes, porém, de prosseguirmos
nisso, cumpre esclarecer uma confusão, a saber, o que o próprio Kuhn diz acerca
da natureza da ciência nova, ou primeira fase, ou p ré-paradigma. Pois já tive
ocasião de afirmar que um exame da originalidade de Kuhn era também uma
investigação das origens cruas, e das primeiras fases, de qualquer ciência; e
confirmei-o enumerando razões para pensar — e para mostrar que Kuhn também
pensa — que já existem paradigmas quando ainda não existe teoria. Mas isso
provoca logo a pergunta seguinte: “E então, o que Kuhn pensa existir antes do
próprio paradigma?”
Esse é um dos pontos em que discordo de Kuhn, em que sua visão geral da
ciência pré-paradigmática me parece confusa e não totalmente analisada. Como
vejo o assunto, ele deixa de fazer distinção entre três importantes estados de
coisas, aos quais chamarei respectivamente ciência não-paradigmática, ciência
multiparadigmáti- ca e ciência biparadigmática. A ciência não-paradigmática é um
estado de coisas que se observa logo no princípio do processo reflexi vo sobre
qualquer aspecto do mundo, isto é, na fase em que não

89
existe paradigma. Sobre esse estado de coisas diz Kuhn (p. 15) que nele só os
fatos facilmente acessíveis são coligidos, e assim mesmo de forma casual, a não
ser que a tecnologia tenha tornado acessíveis alguns fatos mais recônditos; que
isso acontece porque, nessa fase, todos os fatos parecem igualmente importantes;
e que conjuntos de fatos diferentes, mas imbricados, são interpretados de
maneiras diferentes, metafísicas ou quase irreais. Ele diz mais (p. 11) que “pode
haver uma espécie de pesquisa científica sem paradigmas. . .”, mas que é não -
esotérica; e (pp. 13, 100 e 163) que numa pesquisa dessa natureza “embora os profissionaiscampo
de fossem cie
resultado líquido da atividade deles era algo menos do que ciência”.
Observa ainda (p. 20) que, em tais situações, o livro (em oposição ao artigo)
possui “a mesma relação com a realização profissional que ainda conserva em
outros campos criativos”; que todo cientista recomeça do princípio (p. 13); que háum número de esc
as outras (p. 25); que há uma contínua discussão filosófica sobre questões
fundamentais (p. 159); e nenhum progresso (pp. 159 e 163). Em suma, a ciência
não-paradigmática mal se distingue, se é que chega a distinguir-se da “filosofia”
do objeto pertinente, e é coberta pela análise popperiana.
Esse estado de coisas pré-científico e filosófico contrasta nitidamente, no
entanto, com a ciência mulliparadigmática, com o estado de coisas em que, longe
de não haver paradigma, há, pelo contrário, um excesso de paradigmas. (Esta é a
atual situação global nas ciências psicológicas, sociais e de informação.) Aqui,
dentro do sub- campo definido por cada técnica paradigmática, a tecnologia, às
vezes, pode tornar-se muito avançada e permitir o progresso da solução normal
de enigmas pela pesquisa. Mas cada subcampo definido por sua técnica é tão
mais trivial e acanhado que o campo definido pela intuição, e as várias definições
operacionais dadas pelas técnicas divergem tão grosseiramente umas das outras,
que persiste a discussão sobre as questões fundamentais, e o progresso a longo
prazo (em oposição ao progresso local) deixa de ocorrer. Esse estado de coisas
chega ao fim quando alguém inventa um paradigma mais profundo, embora mais
cru (p. 23), que proporciona uma visão mais central da naturez a do campo, se
bem que restrinja e torne a sua pesquisa mais rígida, esotérica, precisa (pp. 18 e
37). Este paradigma (p. 16), quer provocando o colapso dos paradig mas rivais,
mais superficiais, quer, alternativamente, ligando-os de um modo ou de outro a si
mesmo, triunfa sobre o resto, de modo que pode iniciar-se o trabalho científico
avançado, tendo apenas um

90
paradigma total. Desse modo, a ciência multiparadigmática é a ciência plena, de
acordo com os próprios critérios de Kuhn; contanto que esses c ritérios sejam
aplicados tratando-se cada subcampo como um campo separado.
No entanto, durante o período de crise imediata anterior a uma revolução
científica, diz Kuhn (pp. 84 e 86) que muitas características da ciência pré-
paradigmática recomeçam a manifestar-se, “exceto que o núcleo de divergência
[entre as escolas concorrentes] é menor e mais difinido”. Durante esse período há
sempre dois paradigmas a competir entre si e a lutar pelo domínio (pp. 75 e 91);
descrevia-a, portanto, como ciência biparadigmátira.
A razão por que Kuhn deixa de distinguir suficientemente a ciência não -
paradigmática da ciência multiparadigmática e, portanto, de ligar suficientemente
a ciência multiparadigmática à ciência bi- paradigmática, deve-se, em parte, a
uma confusão; depois de dizer que pode haver uma espécie de pesquisa científica
sem paradigmas, acrescenta: “ou, pelo menos, sem nenhum tão inequívoco e
cogente quanto os acima nomeados” (p. 11), como se esses dois estados cie coisas
fossem idênticos. Deve-se também, em parte, ao lugar insuficiente dentro da
ciência que ele concede à tecnologia, que existe em abundância e às vezes até em
excesso na ciência multiparadigmática, mas apenas de modo insignificante, se é
que existe realmente, na ciência não-paradigmática.
Em oposição a este complicado e confuso exame pré-paradig- mático da
teoria de Kuhn (e levando a sério sua noção de “ciência normal”) simplifiquei a
posição dizendo francamente que, quando a “ciência normal” principia, em
qualquer lugar, ali teremos ciência, e onde ela não principia, ali teremos filosofia
ou qualquer outra coisa, menos ciência, e que é sempre algum truque de solução -
de-enigmas, de emprego de construções, que dá início à ciência normal. Essa
afirmativa me expõe a dois tipos de ataques. Em primei ro lugar, posso ser atacada
por não poder distinguir uma única linha nova de \pesquisade uma ciência nova
total (veja, porexemplo, a passagem
anterior em que equiparo uma à outra) e, portanto, na terminologia supracitada,
por não poder distinguir a ciência multiparadigmática da ciência madura com um
único paradigma. Esse ataque procede. Na minha opinião, as duas só podem
distinguir-se uma da outra mais tarde, pela retrospecção, quando uma nova
ciência total com um vasto paradigma tiver sido finalmente cr iada pela
convergência de algumas linhas de pesquisa orientadas por paradigmas, que pro -
jetam luz umas sobre as outras. O segundo ataque que me pode ser

91
dirigido é que, se eu distinguir “ciência” de “filosofia” só porque dentro da
ciência sempre ocorre em algum lugar a ciência normal, que dizer do caso oposto
em que a “ciência normal” principia prematuramente de maneira injustificada,
graças a um grupo de cientistas que seguem a moda e começam a imitar-se uns
aos outros sem um apropriado exame prévio do paradigma (isto é, sem que a
alegada visão da importância de certo paradigma para determinado campo seja
uma visão genuína)? A isso respondo o seguinte: “E daí?” Acaso não vemos uma
“ciência normal” prematura (que críticos irritados também chamam de “ciência
fajuta” e “pseudociên- cia”) começando em toda a nossa volta como se fosse um
pesadelo, nas ciências mais novas, mormente onde se podem usar grandiosos
computadores para dar uma impressão espúria de autêntica eficiência científica?
Mas o fato de poder a nova ciência ser excessivamente má não a impede de ser
uma ciência má (em oposição à má filosofia, à má pintura ou a outra qualquer
coisa má). No fim, desmoronam as linhas pseudocientíficas de pesquisa científica
normal, ou deixam de produzir resultados, ou são derrubados ou se evaporam
— ou é o que se espera; e assim no passado (como, por exemplo, no caso da
astrologia, que era, como diz Watkins, excessivamente “normal” em alguns
sentidos) isso ficou finalmente provado.
Tendo feito o que se pode fazer para estabelecer não-sociolo- gicamente um
paradigma kuhniano como um truque ou expediente genuinamente compreensivo
de solução-de-enigmas, examinemos agora não só a natureza do expediente mas
também, se possível, a natureza dessa compreensão.

4. O PARADIGMA PRECISA SER UMA “IMAGEM” CONCRETA USADA


ANALOGICAMENTE, PORQUE PRECISA SER UM “MODO DE VER”.

Se o paradigma fosse apenas uma construção ou artefato inter - pretável cujo


uso se tivesse convertido em instituição social estabelecida, talvez fosse difícil
distinguir a concepção paradigmática da ciência de Kuhn de alguma concepção
hipotético-dedutiva sociologicamente sofisticada; sobretudo porque, a meu ver,
pode demonstrar-se que a visão paradigmática da ciência de Kuhn tem um pouco
mais em comum com a concepção hipotético-dedutiva do que o daria a entender
uma leitura superficial do seu livro. Pois a despeito do seu estilo aparentemente
vago e poético, tanto ele quanto os hipotético-deduti-

92
vistas lutam para dizer alguma coisa exata a respeito do dese nvolvimento da
ciência. O que distingue as duas concepções é que um paradigma para a solução
de enigmas, à diferença de um sistema hipo- tético-dedutivo para a solução de
enigmas, também precisa ser um “modo de ver” concreto.
Tendo em mente o sistema hipotético-dedutivo, vejamos o que diz Kuhn.
Ele compara repetidamente a mudança de um paradigma científico para outro à
operação de “rever” uma figura ambígua de gestalt19 ou a estar sujeito a uma
experiência psicológica de gestalt.'20 Note-se, portanto, que cada um deles é um
artefato completamente especificável, especialmente construído para um “modo
de ver”; na verdade, para ser dois modos alternativos de ver. Quando, porém,
comparamos o próprio paradigma a uma figura de gestalt, a comparação torna-se
trivial; porque se nós, para fazê-lo, nos perguntarmos como é uma figura de
gestalt quando ela representa apenas um modo de ver, recebemos a resposta trivial
de que ela é uma imagem perfeitamente comum de um simples objeto concreto.
Além disso, a comparação da figura de gestalt falha também em outro sentido, a
saber, que uma figura ambígua de gestalt, à diferença de um paradigma, não pode
ser estendida nem desenvolvida, visto que qualquer detalhe adicional que for
acrescentado pór certo a fará pender para uma outra das suas interpretações. 21
Que Kuhn deve precaver-se ao falar sobre um artefato, que é também um
‘modo de ver”, é uma afirmação, não sobre a natureza do artefato, mas sobre o seu
uso; a saber, que sendo ele a imagem de uma coisa, é usado para repre sentar outra
— por exemplo, um modelo geométrico feito de arame e contas, embora seja antes
de tudo a idealização de uma espécie bem conhecida de brinquedo de criança, é
usado em ciência para representar uma molécula de proteína.
Kuhn, de fato, está procurando artefatos reais usados analogi- camente como
o fizeram muitos filósofos da ciência, de Norman Camp bell a Hesse. Mas o
artefato de Kuhn, à diferença do de Hesse, 22 não pode ser uma simples analogia de
quatro pontos nem uma analogia material, porque precisa ser uma gestalt
organizada para a solução

19. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 85, 110, 113, 116, 119, 121, 125
e 149.
20. Ibid. pp. 62, 64, 111, 112 e 115.
21. Isso pode ser visto de modo particularmente claro num exame das figura s de gestalt
perpetuamente ambíguas em Gregory, Eye and Brain, 1966.
22. Hesse, Models and Analogies in Science, 1963, pp. 70-3.

93
de enigmas, que é, por sua vez a “imagem” de alguma coisa, A, se tiver de ser
aplicada, de maneira não-óbvia, a fim de proporcionar um novo “modo de ver”
alguma outra coisa, B.
À diferença, porém, da figura de gestalt bidirecional de Kuhn, o seu
paradigma não precisa ser ambíguo assim como não-óbvio em sua aplicação;
pode, portanto, como outras analogias, ser desenvol vido com a devida cautela.
Mas surge a pergunta: como deve ser desenvolvido? E haverá algum sentido real
em que uma analogia, em contraste com um modelo ou um sistema matemático,
para ser um artefato?
Antes de que, para concluir, discutamos essa questão, é preciso dizer mais
sobre como se deve distinguir o paradigma de Kuhn de uma teoria científica
hipotético-dedutiva pelo fato de ser um “modo de ver”. Não basta dizer que é
uma “imagem” ou um dispositivo concreto construído usado analogicamente.
Pois se poderia replicar que até um sistema matemático, mesmo quando não-
interpretado, é, notoriamente, um “modo de ver” muito abstrato. Pois sempre se
poderá perguntar ao homem que o está usando, em especial numa ciência nova,
por exemplo, “Por que você está usando esse sistema matemático, e não outro?”,
ou, “Você tem certeza de que essa imagem matemática que está construindo lhe
dará o tipo de espaço de que precisará mais tarde quando a sua prova
experimental tiver sido organizada com maior clareza?” Ademais, de acordo com
o ponto de vista hipo- tético-dedutivo, a matemática usada em ciência não é não-
interpretada. É colorida — “ligeiramente matizada” seria uma descrição melhor,
pois o mecanismo de colorir nunca é bastante esclarecido — pelas verdades
concretas mais altamente coloridas que formam as partes inferiores, mais
particulares, do sistema. Vistas por esse prisma, supõe-se que o concretismo e a
interpretação transpiram, de alguma maneira, das partes inferiores mais
concretas para as partes mais altas, mais abstratas e etéreas; fazendo assim de
todo o edifício hipotético-dedutivo um artefato que pode ser considerado um
“modo de ver” par excellence.
O ‘“modo de ver” do paradigma de Kuhn, entretanto, realmente difere
disso — e não só porque, como já se afirmou, o seu paradigma já existe quando a
teoria ainda não existe. Difere porque o seu paradigma é uma “imagem” concreta
de alguma coisa, A, usada analogicamente para descrever outra coisa concreta, B.
(Ou seja, o truque que, como eu já disse, começa toda a ciência nova, é que uma
construção conhecida, um artefato, torpa-se um “veículo de pesquisa” e,

94
ao mesmo tempo, se tiver êxito, um paradigma, ao ser aplicado a um novo
material e de um modo não-óbvio.) Ele tem assim duas espécies de concretismos,
e não uma: o concretismo que trouxe consigo por ser uma “imagem” de A, e o
segundo concretismo, que agora adquiriu, por ser aplicado a B. Essa segunda
espécie de concretismo é a espécie que a concepção hipotético-dedutiva da
ciência procura explicar; mas a primeira não é explicada de forma alguma pela
concepção hipotético-dedutiva. Se, contudo, complicarmos a concepção
hipotético-dedutiva dizendo, como Campbell de fato diz, 23 mas como Hesse, creio
eu, não diz, 24 que há sempre uma analogia ou um modelo concreto no fundo de
qualquer matemática usada em ciência, e que esse modelo não é apenas alguma
coisa acrescentada depois, para ser usada heurís- ticamente ou como ajuda
mecânica; se dissermos mais, como Campbell, de fato, diz mais uma vez, que essa
é a analogia que orienta e restringe a expressão da teoria, agitando e removendo,
pela necessidade de preservá-la, as possibilidades de outro modo excessivas de
desenvolvimento abstrato inerente a toda matemática, a primeira espé cie de
concretismo (chamo-lhe concretismo-A) é explicada como a segunda espécie
(chamo-lhe concretismo-B). Pois o concretismo-A torna-se agora o concretismo
que a analogia leva consigo para a matemática antes de ser uma analogia, quando
não passava de uma “imagem” de A; ao passo que o concretismo -B é o que
transpira de volta para a matemática vindo do campo de aplicação, B. As
entidades abstratas da teoria resultante podem então ser duplamente interpretadas
— como de fato o terão de ser numa nova ciência
— em primeiro lugar à maneira de A, em termos da analogia geradora, e em
segundo lugar à maneira de B (isto é, operacionalmente, e, à medida em que a
teoria se desenvolve, cada vez mais) em termos de dados tirados do campo a que a
teoria está sendo aplicada.
Assim que os filósofos da ciência começarem a procurar à sua volta ciências
novas em lugar de olhar apenas para trás em busca de

23. Campbell, Foundations of Science-, veja especialmente as páginas 129-30.

24. A mente de Hesse está dividida sobre a questão de saber se a analo gia está no âmago
da teoria, como diz Campbell, ou se é apenas um auxiliar da mesma teoria. Em seus Models and
Analogies in Science ela argumenta brilhantemente, com efeito, em favor da concepção
campbelliana; mas em seu ensaio “The Explanatory Function of Metaphor”, diz apenas que “o
modelo dedutivo da explicação científica deveria ser modificado e completado com uma
concepção de explicação teórica como redescrição metafórica do domínio do esplanandum” (p.
1), colocando assim, ainda uma vez, o carro matemático adiante dos bois metafóricos.

95
ciências rançosas, ou alternativamente, numa tentativa auto-atordoante de
atualizar-se, olharem só de longe para a crescente variedade do caos na mecânica
quântica teórica, ver-se-á que há, evidentemente, componentes de A e de B nas
teorias científicas. O exemplo mais notável que conheço da distinção é fornecido
pelo Código Genético. Aqui o concretismo-A inicial é dado por uma “imagem”
da linguagem, que agora se estendeu para incluir não só “letras” e “palavras”,
mas também “sentenças” e “pontuação”; ao passo que a reinterpre- tação-B
operacional em termos de processos operacionais é bioquímica.
Presumirei doravante que estabeleci a existência de dois compo nentes
operacionais, o componente-A e o componente-B, até numa teoria científica
idealizada; e que, enquanto a concepção hipotético- -dedutiva só leva em
consideração o segundo, a concepção paradigmática de Kuhn destaca o primeiro.
Ambos têm de ser distinguidos, no comportamento, dos seus trajes matemáticos
comuns: as considerações adicionais que concorrem para a elaboração dessa
distinção são apresentadas na conclusão adiante. Já se disse o suficiente, no
entanto, para mostrar que, dentro da esfera atual da filosofia da ciência, o
empreendimento essencial, no afã de descobrir a natureza filosófica do
paradigma kuhniano, consiste em extrair o componente-A de uma teoria
desenvolvida, o paradigma, do seu invólucro matemático também interpretável
por B. 25

5. CONCLUSÃO: VISÃO DAS CARACTERÍSTICAS LÓGICAS DO


PARADIGMA

Se o paradigma precisa ter a propriedade do concretismo, ou “crueza”, isso


quer dizer que ele precisa ser, literalmente, um modelo; ou, literalmente, uma
imagem; ou, literalmente, uma seqüência analo- gia-desenho de usos de palavra
na linguagem natural; ou alguma combinação destas três coisas.

25. Vale a pena observar que, segundo essa concepção, o domínio do paradigma
filosófico, (ou paradigma bruto) visto historicamente e de maneira retrospectiva é mais
limitado do que o domínio do paradigma sociológico, que inclui dentro de si me smo tudo aquilo
cuja operação poderia converter-se em hábito, além de incluir idealmente a parte matemática e
a experimentação de um sistema hipotético-dedutivo.

96
Em qualquer um desses casos, desejo dizer que um paradigma estabelece
uma “analogia crua”; e, em seguida, definir a analogia crua como uma analogia
com as seguintes características lógicas:
(a) uma analogia crua é finita em sua extensibilidade;
(b) é incomparável com qualquer outra analogia crua;
(c) é extensível somente por um processo inferencial de “repro-
dução”, que pode ser examinado usando-se a técnica de pro
gramação de computador chamada de “complementação inexata”
(“inexact matching”), mas não pelos métodos normais de exame de
inferências.
O problema de dizer algo filosófico e, no entanto, exato a respeito de um
paradigma dessa natureza (que agora se transforma no problema de dizer algo
geral e exato acerca da natureza e dos métodos de operação de um artefato
concreto, construído de pigmentos, de arame, ou de linguagem) não pode ser
atacado dentro dos limites deste ensaio; tanto mais que é, creio eu, o mesmo
problema que Black tenta atacar quando procura descobrir a natureza de um
arquétipo, 26 ou quando pergunta a si mesmo como formalizará a “concepção
interativa” de metáfora usada na linguagem. 27 Na minha opinião, o novo “modo
de ver” produzido pela “interação” metafórica de Black é uma forma alternativa
do “modo de ver” produzido pela mudança de gestalt de Kuhn.
Aqui assinalarei apenas, para concluir, que, uma vez assegu rado o
concretismo, ou “crueza”, de um paradigma inicial, pode obter-se grande
simplificação em várias áreas da filosofia da ciência. Por exemplo, quando Kuhn
diz que seus paradigmas não são diretamente comparáveis uns com os outros, a
palavra que emprega para dizê-lo é “incomensurável”, e o contexto deixa claro
que ele está pensando em ciência avançada. Mas se tentarmos construir uma no -
ção geral e exata dessa incomensurabilidade, como faz Feyerabend, creio que se
pode demonstrar que a tentativa conduz a grandes dificuldades filosóficas, além
de produzir uma reducíio ad absurdum da ciência real. E se apenas encararmos um
paradigma concreto que estabelece uma analogia crua, esta, notoriamente, na
medida em que é realmente crua, não será diretamente comparável com nenhuma
outra analogia crua. (Como, por exemplo, se pode comparar “O ho mem, o modelo
dos animais”, com “O homem, esse lobo”?) Note-se

26. Black, Models and Metaphors, 1962, capítulo xiii.


27. Ibid., capítulo iii.

97
também que a ineomparabilidade aceita depende da cruez a. Ela não subsiste
quando o paradigma em apreço se engastou numa forma matemática, exceto na
medida em que é o componente-A e não o componente-B que está em jogo. Pois,
sendo concreto, o compo- ncnte-A estabelece uma analogia crua; ao passo que,
sendo matemático e operacional, o componente-B só estabelece uma analogia
matemática, se é que estabelece alguma analogia; e as analogias entre peças de
matemática não se tornam incomensuráveis mas, ao contrário, comparáveis.
A propriedade da crueza permite que se faça uma simplificação semelhante
das asserções de Kuhn para demonstrar que o paradigma precisa ser finito em
extensibilidade. Pois na medida em que a analogia crua estabelecida pelo
paradigma não é somente parecida com a analogia crua estabelecida por alguém
que fale numa linguagem natural mas é uma analogia crua, torna-se notório que
ela não pode ser muito desenvolvida (todos os poetas sabem disso); ao passo que,
por contraste, sempre se imagina que a extensibilidade mate mática é capaz de
aumentar por acumulação, indefinidamente.
Neste assunto devo confessar (inspirada por Feyerabend) que também não
fiquei contente com a simplificação produzida pelo postulado de crueza do
paradigma, mas tentei construir uma noção geral abstrata da inextensibilidade.
Comecei com o expediente tradicional generalizante da analogia empregado
pelos lógicos — e tal como o expõe, digamos, Jevons 28 — e depois tentei provar
a finitude na extensibilidade utilizando a lógica dos termos. Para fazê -lo é neces-
sário dizer que o tipo de analogia que desejamos, isto é, uma analogia que faça a
aplicação de toda uma organização-A a um campo-B, serve de exemplo da
qualificação de um nome geral, ou “substantivo” por um “adjetivo” complexo. Se
pudéssemos admiti-lo, poderíamos dizer que a lei de intensão-extensão da lógica
dos termos se aplicaria também a esse caso, de forma que, quando o significado -
-em-intensão de um “adjetivo-substantivo” dessa natureza fosse indefinidamente
aumentado pela adição de outros “adjetivos”, o seu sig- nificado-em-extensão
seria correspondentemente diminuído. Desse modo, seja qual for o limiar ou o
limite zero de significado inteligível que estabelecermos, surgirá uma fase em
que a seqüência que se estende continuamente o ultrapassará; exibindo dessa
maneira o fe

28. Jevons, The Principies of Science, 1873: veja Analogy no índice; e veja também o
capítulo ii, sobre a lógica dos termos, e especialmente as pá ginas 25-7.

98
nômeno da “morte por um milhar de qualificações". Mas não creio que o
desenvolvimento da analogia do paradigma, feita quando se inicia uma boa e nova
linha de pesquisa científica, possa valer como uma qualificação de termo
adicional e direta, visto que tudo se resume no fato de que ela provoca o
descobrimento de novas características do campo de aplicação, que nunca teriam
sido notadas sem a ajuda da analogia paradigmática, aumentando assim o signi-
ficado-em-extensão de toda a seqüência do termo pelo aumento do que ele denota,
isto é, o campo.
Nessas condições, falhou minha tentativa de ser abstrata em relação à
extensibilidade do paradigma, e vi-me envolvida com a propriedade inevitável da
crueza, tentando explicar o ignolum per ignotius; isto é, tentando explicar uma
entidade logicamente desconhecida, um paradigma, por meio de uma propriedade
lógica ainda mais desconhecida, a crueza. O cerne do problema consiste em en -
carar uma analogia crua expressa em palavras ambíguas como um artefato;
imagens e modelos de arame podem ajustar-se com relativa facilidade, depois que
o problema central tiver sido enfrentado. E é preciso que o seja. Porque o fato
evidente é que o cientista que trabalha numa nova ciência está construindo e
estendendo uma analogia crua pelo emprego do discurso, com ou sem a ajuda de
aparatos mecânicos ou da matemática. E se ele, com efeito, estiver fazendo isso, o
fato de o estar fazendo — esse esqueleto — tem de sair do armário filosófico-
lógico. Isto é assim principalmente porque um nú mero crescente de escritos na
literatura agora discute a “semântica” ou os “significa dos” dentro da ciência e,
pela ausência de uma confrontação explícita com o problema da ambigüidade da
palavra, diz, com efeito, algumas coisas muito extraordinárias a respeito. 29

29. Veja não só Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism”, mas ta mbém
Brodbeck, “Explanation, Prediction and 'Imperfect Knowledge”’ e Putnam, ‘‘The Analytic and
the Synthetic”; e a bibliografia anterior de Ryle - -Toulmin-Scriven, a que eles se referem.
Destes, o erro de Feyerabend me parece ser filosófico: fulminando in discriminadamente os
filósofos lingüísticos, ele não distingue os truísmos da linguagem natural dos recursos
combinatórios da linguagem natural. Brodbeck faz afirmações para demonstrar que a
conversação coloquial dos físicos é elíptica, alusiva e lacônica , assim como presa ao contexto, ao
passo que os seus relatórios oficiais são explícitos, compreensíveis, logicamente completos e
livres do contexto; ou, pelo menos, quando não o são, a razão é porque não conseguem
aproximar-se de um relatório físico platônico e ideal qu poderiam ter escrito mas não
escreveram (pp. 237-8). Ela também tece considerações não-sofisticadas do tipo que os filósofos
da linguagem comum criticaram corretamente, como, por exemplo para demonstrar que a frase
“é necessário que os cavalos brancos sejam brancos” é uma afirmação

99
A própria exposição de Kuhn acerca dos limites e da extensibi - lidade do
paradigma é incompleta e falha, pelo que ele mesmo se desculpa. 30 Por outro
lado, o modo como descreve o desmoronamento de um paradigma pela
emergência, em seu interior, de uma anomalia que se aprofunda até converter -se
em crise é, a um tempo, esclarecedor e realista, quando aplicado a uma nova
ciência. Essencialmente, uma anomalia é uma inverdade, ou um problema que
deveria ser solúvel mas é insolúvel, ou um resultado pertinente porém
indesejável, ou uma contradição, ou um absurdo, abandonada pelo próprio
paradigma quando levada demasiado longe 31 ; não apenas um argumento incidental
contrário à teoria, nem um fato inconveniente, que Kuhn caracteriza
corretamente como simplesmente “irritante”. 32 Tampouco é uma novidade
extraparadigmática, 33 ou um problema que costumava existir dentro do campo
numa fase anterior,

da prosa normal, ao passo que, na realidade, é um exemplo óbvio de um livr o de lógica, ou uma
observação poética inverídica, mas esplêndida, que tanto pode referir -se a ondas quanto a
bares, autores favoritos e transporte angélico, bem como a animais naturais (p. 238). Ela diz
mais que a linguagem dos lógicos é util ao filósofo “precisamente porque e apenas na medida em
que é a reconstrução de uma grande parte da linguagem que falamos” (ibid.) Putnam luta
profundamente com o “Todos os solteiros são celibatários” de Quine; mas ao fazê -lo, afirma não
só que “solteiro” está livre do contexto (esquecendo-se assim dos botões dos solteiros, dos
bacharéis em humanidades, dos assistentes dos cavaleiros medievais [as três acepções da
palavra bachelor: solteirão, bacharel e cavaleiro que servia sob pendão de outro — N. do T.] —
e Fodor e Katz); mas também que não é agrupado pela lei (esquecendo-se igualmente do efeito
sobre o uso da palavra “macho”, das expe riências com a testerona e das aberrações
crotnossômicas dos intersexos). Da mesma forma — posto que num artigo interessantíssimo —
ele faz a temerária asserção (p. 362) de que não há sinonímias nem analiticidades implícitas na
linguagem (afinal de contas, pode ser que Strawson tenha razão); e a falsa asserção de que os
lingüistas sabem descrever uma linguagem natural em função de um con junto de regras (pp.
389-90). Está visto que, quando pensadores excepcionais emitem observações como estas, o
assunto todo está necessitando de uma nova espécie de visão interior.

30. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 86 e 90. Só num ponto Kuhn
argumenta que os paradigmas precisam ser não-extensíveis (nas pp. 95-6); na maior parte das
vezes ele apenas se refugia na história e diz que o são.
31. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 65 (veja também pp.
5, 52 e 78).
32. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 78-9. A expressão real de Kuhn
(à p. 78, linha 12) é "irritante menor".
33. Veja acima, nota de pé de página n.° 31; especialmente a p. 5, sobre a supressão da
novidade fundamental; e todos os outros trechos que figurariam numa lista correspondente ao
item "novidade” num índice de Kuhn, se houvesse um índice de Kuhn. Veja também, no mesmo
índice imaginado, "anomalia”.

100
mas que os encarregados de desenvolver o paradigma suprimiram e tornaram
invisível, por ser incompatível com o “compromisso básico” do paradigma. 34 Para
ser verdadeira, a anomalia tem de ser produzida dentro do paradigma. De sorte
que, se este tiver de ser concebido como analogia crua, a anomalia, em sua forma
mais simples e mais crua, corresponderá à analogia neutra de Hesse, que se revela
uma analogia negativa 35 ; isto é, um conjunto de afirmações (ou leis)
desenvolvidas no interior da própria analogia, que teria sido verda deira se tivesse
resistido até esse ponto, mas que, não tendo resistido, a té esse ponto, se revela
falsa. Nessa situação simples, será inevitável que se façam tentativas para ajustar
a analogia; na situação mais complexa, matematizada, fazem-se tentativas para
eliminar as restrições impostas à matemática ou para complicá-la, para produzir
variantes da teoria, para descobrir as suposições fundamentais da teoria, ou para
tentar reajustar a analogia. 36 A analogia se aprofunda e transforma em crise
quando falham essas tentativas; quando, por exemplo, a complexidade da teoria
aumenta mais depressa do que a sua exatidão 37 ; ou a área de dificuldade se
dilata, e não acanha, até que os próprios princípios fundamentais do paradigma
sejam postos em dúvida 38 ; ou, alguns estranhos, com um ponto de vista
completamente diferente e uma nova técnica rudimentar, conseguem solucionar
com

34. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions: p. 5 de novo (sobre a noção de


"compromisso básico); p. 102, " . . . a recepção de um novo paradigma exige freqüentemente
uma redefinição da ciência corresponde nte. Alguns velhos problemas podem ser relegados a
outra ciência ou declarados inteiramente ‘não-científicos’p. 37, “ . . . u m a das coisas que uma
comunidade científica adquire com o paradigma é um critério para escolher problemas que.
embora o paradigma seja tido por axiomático, podem presumir-se solúveis. São estes, em grande
parte, os únicos problemas que a comunidade admitirá como cien tíficos ou estimulará seus
membros a encarar. Outros problemas, incluindo muitos que anteriormente haviam sido
tomados como padrão, são rejeitados como metafísicos, como matéria de outra disciplina ou, às
vezes, como sendo tão problemáticos que não vnlem o tempo perdido”. Sobre exemplos de pro -
blemas básicos que a ciência ulterior tornou “invisíveis” veja pp. 103 -7; sobre a discussão geral
da “invisibilidade”, veja todo o capítulo acerca das Revoluções como Mudanças na Concepção
de Mundo.

35. Hesse, Models and Analogies in Science, pp. 9 e seguintes.


36. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 90; “A proliferação das
articulações concorrentes, a disposição para tentar qualquer coisa, a expressão do
descontentamento explícito, o recurso à filosofia e aos debates sobre princípios fundamentais,
são todos sintomas de uma transição da pes quisa normal para a pesquisa extraordinária.” Veja
também a comparação entre a ciência em crise e a ciência pré -paradigmática (p. 84).

37. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 68-70.


38. lbid., p. 65.

101
facilidade o problema principal que estava causando todo o trans torno, de modo
que o paradigma presente, juntamente com todos os seus compromissos,
derivações e suposições, assume um aspecto de sonho. Falando de um modo mais
geral, não é só o caso de um paradigma plenamente desenvolvido, ou teoria, que
chega a um ponto em que suas extensões adicionais produzem menores lucros. A
situação é pior. O próprio paradigma se estraga se for estendido em de masia,
produzindo inconsistência conceptual, absurdos, expectativas errôneas,
desordem, complexidade e confusão, exatamente da maneira com que o faz uma
analogia crua, se for pressionada em excesso, digamos, num poema, mas de
modo muito diferente daquele com que o faz um sistema de matemática pura,
quando dá fórmulas irresolú- veis ou contradições, ou não fornece provas; isto é,
quando ainda se pode fazer uma declaração exata do que está errado.
Nenhum filósofo da ciência antes de Kuhn descreveu essa deterioração.
Todos haviam censurado o desmoronamento gradual de vá rias teorias científicas
pelo fato de terem sido eventualmente falseadas pela experiência, pela
emergência, digamos, de novos fatos; ou seja, pela não-cooperação, por assim
dizer, da natureza. Ninguém o censurou pelo fato de que as teorias, porque têm
de ter em seu âmago paradigmas analógicos concretos para definir -lhes os
compromissos básicos, e porque o efeito desses paradigmas é restringir -lhes
drasticamente os campos, desmoronam quando levadas muito longe por sua
própria constituição; e sem que se faça necessária qualquer irritação agravante da
natureza.
E agora, para rematar, chegamos ao âmago do assunto: a necessidade de
encarar uma analogia crua como um artefato. E a essência disso consiste em
formular a pergunta: “Como se estende um paradigma cru?” ou “Que é o que
Kuhn quer dizer com a palavra ‘reprodução’ (se é que ele quer dizer alguma
coisa)?”
Começarei com a segunda pergunta, visto que ela conduz à pri meira. Um
sinal de que Kuhn leva a sério a noção de que a ciência normal consiste na
solução de enigmas (e, portanto, de que um paradigma tem de ser um artefato) é
que ele pergunta imediatamente a si mesmo (p. 38): “Se há solução de enigmas,
onde estão as regras?” Mas é obrigado a parar (pp. 42 -6) porque, em três quartas
partes do tempo, não há regras. Diante da própria incapacidade de encon trar
regras, Kuhn opta por duas saídas incompatíveis. A primeira (pp. 42 -4) é afirmar
realisticãmente que não há necessidade de regras. A segunda,
caracteristicamente, é dizer (pp. 38-9) que por “regra” ele não subentende
realmente “regra”, mas “preconcepção”,

102
ou “ponto de vista estabelecido”. Esta segunda sugestão, na solução de enigmas,
simplesmente não funciona, pois as regras ou são regras ou não são; e que Kuhn
sabe disso mostra-o efetivamente o fato de que, a partir desse momento, e através
de todo o livro, ele prossegue em seu primeiro empreendimento de tentar
descobrir como operam os paradigmas independentemente de regras. Suas
sugestões são as seguintes. Talvez, diz ele, os paradigmas acrescentem novos
desenvolvimento e partes a si mesmos explorando “uma rede de semelhanças
familiares imbricadas e entrecruzadas” wittgensteinianas (p. 45), em que cada
semelhança só se sustenta com relação a algumas propriedades e entre algumas
partes. Ou talvez os paradigmas “possam rela- cionar-se pela semelhança e pela
modelagem com uma ou outra parte do corpo científico que a comunidade em
questão já reconhece como figurando entre suas realizações e estabelecidas...” (p.
45). Anteriormente (p. 23), ao definir “paradigma”, ele falara numa exata relação
gramatical de reprodução, que, todavia, “raro se mantém entre um paradigma e
suas exemplificações”; e mais adiante (pp. 32 e seguintes) falam da “articulação”
ou “reformulação” do paradigma como um processo que, ocorrendo numa ciência
qualitativa, não pode ser descrito em termos de inferência matemática normal. É
possível, naturalmente, que todas essas relações kuhnianas de semelhan ça não
formem um gênero: podem todas diferir essencialmente umas das outras; repito,
porém (ver mais acima, a discussão dos diferentes sentidos de “paradigma”), que,
se elas diferirem, Kuhn, filosoficamente falando, não estará dizendo nada
definido. Se elas, todavia, formarem um gênero; e, ainda mais, se todas elas —
como, a partir deste momento, pressuporei — forem modos diferentes de fazer a
mesma coisa; nesse caso, Kuhn estará dizendo algo filosoficamente novo.
Dentro da ciência normal (diz Kuhn, nessa palestra) os paradig mas são
capazes de expansão e desenvolvimento de dois modos mui to diversos.
Desenvolvem-se, no fim, por inferência matemática ou por outra inferência
governada por regras — a única que permite a solução de enigmas verdadeiros.
Mas também se desenvolvem, inicialmente, por “articulação” intuitiva (ou
“semelhança de família” ou “modelagem direta”, ou “reprodução”, num sentid o
extenso — por qualquer um desses processos ou por todos eles). O segundo pro -
cesso também é uma forma de inferência num sentido mais amplo
— no sentido em que “inferência” é literalmente qualquer tipo de permissão para
passar de uma unidade, seqüência de unidades ou estados de coisas para outra
unidade, seqüência de unidades ou estados de coisas — mas é intuitivo; não se
sujeita a regras.

103
E isso nos traz de volta à nossa primeira pergunta, sobre como se
desenvolve um paradigma cru. Se a resposta for “Por inferência intuitiva”,
perguntaremos em seguida: “Que é essa chamada inferência intuitiva, e será
realmente intuitiva?” Pois se houver uma operação menos intuitiva do que
qualquer outra, essa é a operação inteiramente mecanizável de fazer uma réplica,
B’, de um original, B. Tal reprodução, portanto, não pode ser o que Kuhn quer
dizer. Ele quer dizer muito mais que, quando B' é uma réplica de B, B' reproduz o
que , por algum propósito conhecido P, se consideram os traços principais de B.
Quando um modelo matemático, M, por exemplo, se acha “bem preso” a um
paradigma cru, C, da maneira que temos descrito, M, para algum P, reproduz os
traços principais de C. Pode ser, como diz Max Black, 39 ao descrever essa forma
de relação entre o original e o modelo, que muitos dos que superficialmente
parecem ser os traços principais de Aí — por exemplo, sua escala — podem ser
irrelevantes para construir a réplica entre M e C ; não estão incluídos na
declaração do propósito P. Mas, como entre M e C , deve haver alguns traços
principais correspondentes; de outro modo, não diríamos que M é um modelo de
C.
Há agora duas formas de pensamento formal pertinentes à análise da
reprodução do traço principal; as duas emergiram das ciências do computador. A
primeira, sobre a qual há agora toda uma literatura, 40 é a matemática da
classificação, ou dos “grupos”; isto é, a formalização do processo de encontrar
famílias wittgensteinianas. A segunda, sobre a qual quase não há literatura, se
excetuarmos a literatura geral sobre o reconhecimento do padrão organizado, 41 é
o conjunto de processos para levar um computador digital a fazer uma
“combinação inexata” (“inexact match”) entre duas fórmulas muito semelhantes
uma à outra, mas não exatamente iguais.
Em ambos esses métodos, os conglomerados de dados em apreço precisam
ser caracterizados reportando-se a um conjunto de pro

39. Black, Models and Metaphors, pp. 219-23. Como Black o mostra, a forma original
do modelo de relação tende a ser, na verdade, mais compli cada do que eu a defini aqui.

40. Parker-Rhodes e Needham, “The Theory of Clumps”; Parker-Rhodes,


“Contributions to the Theory of Clumps”; Needham, "The Theory of Clumps, II” e “Research
on Information Retrieval, Classification and Clumping”; Ne edham, "A Method for Using
Computers in Information Classification”; Needham e Spãrck-Jones, “Keywords and Clumps”,
e Needham, “Applications of the Theory of Clumps”.

41. Ver, por exemplo, Barus, “A Scheme for Recognizing Patterns for an Unspecified
Class”.

104
priedades em relação às quais é sempre possível dar uma resposta à pergunta
“Tem este conglomerado esta propriedade ou não?” Se tiver, escreve -se um l em
suas características; se não tiver, um O. No fim da caracterização, números
binários de comprimento iguais terão sido produzidos para todos os
conglomerados de dados; e, no caso de todos dados que, de acordo com a
caracterização, surgem exatamente iguais, os números binários, naturalmente,
surgem iguais. Mas nos casos em que há “alguma similaridade”, como dizemos,
mas não semelhança completa, é possível fazer duas coisas: (a) na matemática dos
grupos pode ser formulado um critério de similaridade, 12 de acordo com o qual
todos os conglomerados examinados como semelhantes surgirão como
pertencentes à mesma família ou grupo; ou
(6) pesar algumas propriedades dos dados, ou algumas combinações de
propriedades, como seus “traços principais”, de tal maneira que se poderá dar
uma resposta única à pergunta “Qual, de todo esse conjunto de conglomerados de
dados, D,. . . Dn, é ‘mais semelhante em seus traços principais’ a outro
conglomerado de dados, D t , que vem de fora do conjunto; isto é, qual é o D que
‘se combina inexatamente’ com D’?” Esse último processo é que é tão difícil de
reduzir à forma de programa (não que a programação da matemática dos grupos,
por si mesma, seja fácil); na realidade, é tão difícil que se converteu num
conhecido horror não-númérico do programador de dados. 43 Não obstante, pode
ser apresentado um vigoroso argumento prima facie para dizer que a “combinação
inexata”, quando puder ser concluída e se o puder ser, é a “relação de reprodução”

42. Vários critérios de similaridade são mencionados nos trabalhos cita dos na nota d pé
de página n.° 40, da p. anterior. O primeiro a ser formulado foi o de Tanimoto, “An Elementary
Mathematical Theory of Classification and Prediction”. Ver também Sneath e Sokal, Principies
of Numerical Taxonomy.
43. Um retrocesso vicioso infinito pode estabelecer-se da seguinte forma:
(i) os testes de similaridade dos traços principais acima de um
certo limiar não podem ser aplicados enquanto não tiverem sido aplicados,
primeiro, testes de principalidade de traços,
Terá de ser criado, desse modo, um segundo cálculo de prin
cipalidade.
(ii) Os testes de principalidade de traço não podem ser aplicados enquanto
não tiverem sido ordenados primeiro, visto que eles se revelam não -
independentes uns dos outros. Terá de ser assim criado um terceiro cálculo
que dê a ordenação dos critérios para testar a principalidade dos traços.
(iii) Essas próprias considerações de ordenação dependem de considerações de
conexão. .. (etc.).
Em outras palavras, o processo da detecção progressiva da complexidade
aumenta maisdepressa do que a invenção dos meios para lidar com ela.

105
que estamos procurando. Não sabemos ao certo o sentido em q ue ela é uma
relação: é reflexiva e simétrica, por exemplo, mas não transitiva (do fato de A ter
seus traços principais semelhantes aos de B, e B aos de C, não se segue de modo
algum que A tenha seus traços principais semelhantes aos de C, a não ser que
cada reprodução tenha um P idêntico). Dessa maneira, a lógica da relação de
reprodução, em seu estado bruto, é uma lógica de um passo por vez, que nun ca
sai do chão; uma lógica em que todo o esforço pretendido consis te em ver
condições, o peso, a retroalimentação de informações para mudar o peso, e o
custo para a riqueza e a completeza do plano de caracterização, com que se pode
estabelecer uma quantidade limitada de “recursividade” dentro de determinado
padrão seqüencial de reproduções. Há um traço de lógica sempre transitivo, a
saber, o da sucessão temporal; pois se A, numa seqüência de reprodução, ocorre
antes do que B, e B antes do que C, A ocorre mais cedo do que C; e isso pode ser
importante se o que estiver sendo estudado for a acentuação gradual, através de
uma seqüência de seqüências de reprodução, cada qual reatroalimentando algum
outro como sua produção, de algum traço principal pré-escolhido.
Nem sequer é certo que a reprodução, rigorosamente falando, seja uma
forma de inferência. Não vejo, por exemplo, como se pode provar com isso
algum teorema de inferência. De fato, contrastada com a dedução normal
simples, a reprodução, bem como as reproduções controladoras, é logicamente
horrível. De todas as coisas, porém, é a que o cérebro humano, em seus processos
inconscientes de reconhecimento, parece fazer com maior facilidade; os homens
da inteligência artificial projetaram nova luz sobre ele 44 ; e é (creio eu) como se
estende o paradigma de Kuhn. Fizeram-se, com efeito, alguns sistemas muito
simples da reprodução; dentro do campo de recuperação de informações, por
exemplo, todo algoritmo de recuperação ligado a um processo de escala de
pertinência vale por um sistema de reprodução segundo a descrição que dei,
como acontece com cada processo de busca que distingue os traços principais e
que foi construído como um leitor de caracteres. Ainda não se pensou, contudo,
nesses processos em termos gerais, de modo que ainda não se fez nenhuma
análise geral da operação de reconhecimento dos traços principa is.

44. Veja particularmente a noção de "regeneração* em Good, Specula- tions


Goncerning the First Ultra-lntelligent Machine, 1965.

106
Em vista das manifestas dificuldades de manusear, até com uma máquina,
uma entidade como aquela em que se converteu o p aradigma bruto de Kuhn (isto
é, se estou certa quanto ao resultado da sua conversão) e em vista do óbvio
ceticismo que deverá despertar até a sugestão de que devemos levar a sério e
filosoficamente o paradigma de Kuhn, vale a pena lembrar-nos, num parágrafo
final, do que acontecerá se não continuarmos a seguir o pensamento de Kuhn; isto
é, o que acontecerá se abandonarmos toda a sua idéia do paradigma?
Pode ser difícil determinar o pensamento de Kuhn e desenvol vê-lo; mas se
não fizermos um esforço nesse sentido, creio que ficaremos numa posição
sumamente perturbadora. Pois, como historiadores, por mais que possamos
sofismar as conclusões de Kuhn, não seremos capazes de voltar para onde
estávamos antes de Kuhn e seus predecessores imediatos começaram a a lcançar-
nos. O protesto deles contra a desonestidade inconsciente e as oscilações de
predisposições com que a história da ciência tem sido tratada em manuais
científicos até agora corta muito fundo; como corta fundo seu alerta contra a
concepção acumulativa demasiado simples, e deformada, da ciência, resultante da
leitura dos compêndios como se estes fossem a verdadeira história. Por outro
lado, se um cuidado maior com a história da ciência não resultar numa concepção
global mais adequada da ciência, que vantagem haverá em fazer essa história — a
não ser talvez como um passatempo esotérico? Por sua natureza como parte da
história das idéias, a história da ciência tem de ser uma disciplina capaz de ajudar
os cientistas a obter uma visão mais profunda da ver dadeira natureza da sua
ciência. Se não fizer isso, trivializar-se-á — não será mais que uma coleção
pedagógica de fatos menores. Assim sendo, se fugirmos de toda e qualquer consi -
deração adicional da “nova imagem” da ciência de Kuhn, correre mos o risco de
desligar totalmente a história realística, de estilo novo, da ciência, da sua
filosofia de estilo antigo: um desastre.
E se seguirmos em frente, e se minha análise estiver certa, precisaremos
reexaminar o que é verdadeiro na analogia à luz do que Kuhn mo strou ser
verdadeiro nos paradigmas.

REFERÊNCIAS

Barus [1962]: “A Scheme for Recognizing Patterns for an Unspecified Class”, no livro
organizado por Fischer, Pollock, Raddack e Stevens, Optical Character Recognition,
1962.

107
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113-27.
Parker-Rhodes e Needham [1960]: "The Theory of Clumps", Cambridge Language Research
Unit Working Papers, 126.
Parker-Rhodes [1961]: “Contributions to the Theory of Clumps”, Cambridge Language
Research Unit Working Papers, 138.
Popper [1963]: Conjectures and Refutations, 1963.
Putnam [1962]: “The Analytic and the Synthatic”, ensaio incluído na obra organizada por
Feigl e Maxwell: Minnesota Studies in the Philosophy of Science, 3, pp. 358-97.
Sneath e Sokal [1963]: Principies of Numerical Taxonomy, 1963.
Tanimoto [1958]: “An Elementary Mathematical Theory of Classification and Pred iction”.
I . B . M . Research, 1958.

108
O FALSEAMENTO E A METODOLOGIA DOS
PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA 1

IMRE LAKATOS
London School of Economics

1. Ciência: razão ou religião?

2. Falibilismo versus falseacionismo.


(a) Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica.
(b) Falseacionismo metodológico. A ‘base empírica’.
(c) Falseacionismo sofisticado versus falseacionismo ingênuo. Mudanças
progressivas e degenerativas de problemas.
3. Uma metodologia dos programas de pesquisa científica.
(a) Heurística negativa; o "núcleo” do programa.
(b) Heurística positiva; a construção do "cinto de proteção" e a relativa
autonomia da ciência teórica.
(c) Duas ilustrações: Prout e Bohr.
(cl) Prout: um programa de pesquisa que progride num oceano de
anomalias.

1. Este ensaio é uma versão consideravelmente melhorada de meu tralho “Criticism


and the Methodology of Scientific Research Programmes 1 ’, de 1968, e uma tosca versão de meu
trabalho de 1973. Algumas partes do primeiro foram aqui reproduzidas sem alteração com
licença do organizador das Proceedings oj the Aristoteiian Society. Na preparação da nova
versão recebi muita ajuda de Tad Beckman, Colin Howson, Clive Kilmister, Larry Laudan,
Eliot Leader, Alan Musgrave, Michael Sukale, John Watkins e fohn Worrall.

109
(c2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre
fundamentos inconsistentes.
(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da
racionalidade instantânea.
(dl) A experiência Michelson-Morley.
(d2) As experiências Lummer-Pringsheim.
(d3) Desintegração-beta versus leis da conservação.
(d4) Conclusão. O requisito do desenvolvimento contínuo.
4. O Programa de pesquisa popperiano versus o programa de pesquisa kuhniano.
Apêndice: Popper, falseacionismo e a ‘‘tese Duhem-Quine”.

1. CIÊNCIA: RAZÃO OU RELIGIÃO?

Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado


— provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sa bedoria e a
integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mão das afirmativas não -
provadas e minimizasse, até em pensamento, o hiato existente entr e a
especulação e o conhecimento estabelecido. A força demonstrativa do intelecto
ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas
eles foram intimidados e confundidos pela glória da física newtoniana. Os
resultados de Einstein tornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos
ou cientistas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o co -
nhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, com isso, toda a
estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída:
não se pode simplesmente jogar por terra o ideal da verdade demonstrada —
como fazem alguns empiristas lógicos — reduzindo-o ao ideal da “verdade
provável” 2 nem — como fazem alguns sociólogos do conhecimento — à
“verdade pelo consenso [mutável]”. 3

2. O principal protagonista contemporâneo do ideal da “verdade prová vel” é Rudolf


Carnap. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. “Changes in the
Problem of the Inductive Logic”, de Lakatos, de 196 8.

3. Os principais protagonistas contemporâneos do ideal da “verdade por consenso”


são Polanyi e Kuhn. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf.
Impersonal Knowledge, de Musgrave, 1969, e a crítica feita por Musgrave do trabalho de
Ziman: “Public Knowledge: An Essay Concer - ning the Social Dimensions of Science”, 1969.

110
O mérito de Popper baseia-se principalmente no fato de haver ele
compreendido todas as implicações do colapso da teoria científica mais bem
corroborada de todos os tempos: a mecânica newtoniana e a teoria newtoniana da
gravitação. Na sua opinião, a virtude não está na cautela em evitar erros, mas na
implacabilidade com que se eliminam esses erros. Audácia nas conjeturas de um
lado e austeridade nas refutações de outro: essa é a receita de Popper. A
honestidade intelectual não consiste em tentar alguém entrincheirar-se ou firmar
sua posição demonstrando-a (ou probabilizando-a) — a honestidade intelectual
consiste antes em especificar precisamente as condições em que uma pessoa está
disposta a renunciar à sua posição. Marxistas e freudianos comprometidos
recusam-se a especificar tais condições: essa é a marca distintiva da sua
desonestidade intelectual. A crença pode ser uma fraqueza biológica
lamentavelmente inevitável que deve ser mantida sob o controle da crítica: mas o
compromisso, para Popper, é um crime sem limites.
Kuhn já pensa de maneira diferente. Ele também rejeita a idéia de que a
ciência cresce pela acumulação de verdades eternas. 4 Também se inspira na
derrubada da física newtoniana levada a cabo por Einstein. O seu principal
problema também é a revolução científica. Mas ao passo que, de acordo com
Popper, a ciência é “revolução permanente” e a crítica é o cerne do
empreendimento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excepcional e, na
verdade, extracientífica, e a crítica, em épocas “normais”, é maldição. Ao parecer
de Kuhn, com efeito, a transição da crítica para o compromisso assinala o ponto
em que o progresso — e a ciência “normal” — principia. Para ele, a idéia de que
na “refutação” se pode exigir a rejeição (a eliminação de uma teoria) é
falseacionismo “ingênuo”. A crítica da teoria dominante e propostas de novas
teorias só são permitidas nos raros momentos de “crise”. Esta última tese kuhni ana
tem sido amplamente criticada 5

4. Ele apresenta, com efeito, seu livro The Structure of Scientific Revo- lutions, de 1962,
argumentando contra a idéia do “desenvolvimento por acumulação” do crescimento científico.
Intelectualmente, porém, ele deve mais a Koyré do que a Popper. Koyré mostrou que o positivismo
proporciona má orientação ao historiador da ciência, pois a história da física só pode ser com -
preendida no contexto de uma sucessão de programas “metafísicos” de pes quisa. Assim sendo, as
mudanças científicas estão ligadas a vastas revoluções metafísicas cataclísmicas. Kuhn desenvolve
essa mensagem de Burtt e Koyré

e o enorme êxito do seu livro deveu-se, em parte, à sua crítica objetiva e direta da historiografia
justificacionista — que criou sensação entre os cientistas e historiadores comuns da ciência, ainda
não alcançados pela mensagem de Burtt, Koyré (nem pela de Popper). Infelizmente, porém, sua
mensagem tinha implicações autoritárias e irracionalistas.

111
e não a discutirei. O que me interessa é que Kuhn, tendo reconhecido o fracasso do
justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do
desenvolvimento científico, parece agora recair no irracionalismo.
Para Popper a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser
racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn a
mudança científica — de um “paradigma” a outro — é uma conversão mística, que
não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da
psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança
religiosa. / • '
O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um mero ponto
técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem
implicações não só para a física teórica mas também para as ciências sociais
subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência
há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia
vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais:
a verdade está no poder. Assim a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não-
intencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos
(“estudantes-revolucionários”).
Neste ensaio mostrarei primeiro que na lógica da descoberta científica de
Popper se fundem duas posições diferentes. Kuhn só compreende uma delas, o
“falseacionismo ingênuo” (prefiro a expressão “falseacionismo metodológico
ingênuo”); entendo que a crítica que ele faz dele é correta, e até a reforçarei. Kuhn,
no entanto, não compreende uma posição mais sofisticada cuja racionalidade não se
baseie no falseacionismo “ingênuo”. Tentarei explicar — e reforçar ainda mais — a
posição mais forte de Popper que, creio eu, escapa às críticas de Kuhn e apresenta
as revoluções científicas não como se constituíssem conversões religiosas, mas
como progresso racional.

2. FALIBILISMO VERSUS FALSEACIONISMO.

Para ver com maior clareza as teses conflitantes, precisamos reconstruir a


situação do problema tal como se apresentava na filosofia da ciência após o colapso
do “justificacionismo”.

5. Cf., por exemplo, as contribuições de Watkins e Feyerabend para este volume.

112
De acordo com os "justificacionistas", o conhecimento científico consistia em
proposições demonstradas. Tendo reconhecido que as deduções estritamente
lógicas nos permitem apenas inferir (transmitir a verdade) mas não demonstrar
(estabelecer a verdade), eles discordavam em relação à natureza dessas
proposições (axiomas) cuja verdade pode ser provada por meios extralógicos. Os
intelectualistas clássicos (ou "racionalistas” no sentido estrito do termo) admitiam
espécies muito variadas — e poderosas — de “demonstrações” extra- lógicas pela
revelação, intuição intelectual, experiência. Com a ajuda da lógica, estas lhes
permitiam provar toda a sorte de proposições científicas. Os empiristas clássicos
só aceitaram como axiomas um conjunto relativamente pequeno de “proposições
fatuais” que expressavam os “fatos concretos”. O seu valor de verdade foi
estabelecido pela experiência e elas constituíram a base empírica da ciência. Para
poder provar teorias científicas partindo apenas da rigorosa base empírica, eles
precisavam de uma lógica muito mais poderosa do que a lógica dedutiva dos
intelectualistas clássicos: a “lógica indutiva”. Todos os justificacionistas,
intelectualistas ou empiristas, concordavam em que uma afirmação singular que
expressa um “fato concreto” pode provar a falsidade de uma teoria universal; 6 mas
poucos dentre eles julgaram que uma conjunção finita de proposições fatuais
fosse suficiente para provar “indutivamente” uma teoria universal. 7
O justificacionismo, isto é, a identificação do conhecimento com o
conhecimento provado, foi a tradição dominante do pensamento racional no
correr dos séculos. O ceticismo não negou o justificacionismo: apenas asseverava
que não havia (nem poderia haver) conhecimento provado e portanto qualquer
espécie de conhecimento. Para

6. Os justificacionistas acentuaram repetidamente essa assimetria entre os enunciados


fatuais singulares e as teorias universais. Cf. por exemplo a dis cussão sobre Pascal no ensaio
de Popkin, “Scepticism, Theology and the Scientific Revolution in the Seventeenth Century",
de 1968, p. 14, e o enunciado de Kant no mesmo sentido citado no novo moto da terceira
edição alemã da Logik der Forschung de Popper, de 1969. (A escolha feita por _Popper dessa
pedra angular tradicional da lógica elementar como moto da nova edição da sua obra clássica
demonstra sua preocupação principal: combater o probabilismo, em que a assimetria se
mostra irrelevante; pois as teorias probabilistas podem tornar -se quase tão bem estabelecidas
quanto as proposições fatuais.)

0. Com efeito, até alguns desses poucos, seguindo Mill, passaram do problema
obviamente insolúvel da prova indutiva (de proposições universais a partir de proposições
particulares) ao problema pouco menos obviamente insolúvel de provar proposições fatuais
particulares a partir de outras proposições fatuais particulares.

113
os céticos o “conhecimento” nada mais era do que a crença animal. Dessa
maneira, o ceticismo justificacionista ridicularizou o pensamento objetivo e
abriu as portas para o irracionalismo, o misticismo, a superstição.
Essa situação explica o esforço enorme feito pelos racionalistas clássicos
na tentativa de salvar os princípios sintéticos a priori do in- telectualismo e pelos
empiristas clássicos na tentativa de salvar a certeza de uma base empírica e a
validade da inferência indutiva. Para todos eles a honestidade científica exigia que
não se afirmasse nada que não estivesse provado. Ambos, contudo, foram
derrotados: os kantianos pela geometria não-euclidiana e pela física não-
newtoniana, e os empiristas pela impossibilidade lógica de estabelecer uma base
empírica (como os kantianos assinalaram, fatos não provam propo sições) e de
estabelecer uma lógica indutiva (nenhuma lógica pode aumentar o conteúdo
infalivelmente). Verificou-se que todas as teorias são igualmente indemonstráveis.
Os filósofos demoraram em reconhecê-lo, por motivos óbvios: os
justificacionistas clássicos temiam que, se admitissem a indemons - trabilidade
da ciência teórica, teriam também de concluir que ela é sofisma e ilusão, uma
fraude desonesta. A importância filosófica do probabilismo (ou
“neojustificacionismo”) está na negação da necessidade de uma conclusão dessa
natureza.
O probabilismo foi elaborado por um grupo de filósofos de Cam- bridge
em cujo entender, embora as teorias científicas sejam igualmente improváveis,
elas têm diferentes graus de probabilidade ( (no sentido do cálculo dás
probabilidades) relativos à evidência empírica disponível. 8 A honestidade
científica, portanto, requer menos do que se havia suposto: ela consiste em
proclamar apenas teorias altamente prováveis; ou até em especificar apenas, para
cada teoria científica, a evidência e a probabilidade da teoria à luz dessa evidência.
Está claro que a substituição da prova pela probabilidade foi um recuo
importante do pensamento justificacionista. Mas até esse recuo se revelou
insuficiente. Logo se evidenciou, graças sobretudo aos per- sistentes esforços de
Popper, que em condições muito gerais todas as

8. Os fundadores do probabilismo eram intelectualistas; os últimos es forços de


Carnap para construir uma classe empirista de probabilismo malogrou. Cf. meu ensaio
“Changes in the Problem of Inductive Logic”, de 1968. p. 367 e também p. 361, nota de
rodapé n.° 2.

114
teorias têm uma probabilidade zero, seja qual for a evidência; todas as teorias não
são apenas igualmente indemonstráveis mas também igualmente improváveis. 9 «
j
Muitos filósofos argumentam que a incapacidade de obter pelo menos uma
solução probabilística do problema da indução significa que nós “jogamos fora
quase tudo que a ciência e o bom senso consideram conhecimento.” /1 ° É nesse
contexto que precisamos apreciar a mudança dramática acarretada pelo
falseacionismo na avaliação das teorias e, em geral, nos padrões de honestidade
intelectual. Em certo sentido, o falseacionismo foi um novo e considerável recuo do
pensamento racional. Mas, sendo um recuo de padrões utópicos, esclareceu muita
hipocrisia e muito pensamento confuso, de modo que, na realidade, acabou
representando um avanço.

(a) .Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica.


Discutirei primeiro uma das classes mais importantes de falseacionismo: o
falseacionismo dogmático (ou “nauralísta”). 11 O falseacionismo dogmático admite a
fabilidade de todas as teorias científicas sem qualificação, mas retém uma espécie
de base empírica infalível. É estritamente empirista sem ser indutivista: nega que a
certeza da base empírica pode ser transmitida a teorias. Desse modo, o falsea-
cionismo dogmático é a classe mais fraca de justifícacionismo.
Ê extremamente importante sublinhar que a admissão de uma contra-evidência
empírica [fortificada] como árbitro final contra uma teoria não faz de ninguém um
falseacionista dogmático. Qualquer kantiano ou indutivista concordará com essa
arbitração. Mas tanto o kantiano quanto o indutivista, embora se curvem diante de
uma experiência crucial negativa, também especificarão condições sobre como
estabelecer e fortificar, mais do que outra, uma teoria não refutada. Os kantianos
sustentavam que a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana foram
estabelecidas com certeza; os indutivistas sustentavam que elas tinham
probabilidade 1. Para o falseacionista dogmáti-

9. Sobre uma discussão pormenorizada, cf. meu ensaio "Changes in the Problem of
Inductive Logic”, de 1968, especialmente à p. 353 e seguintes.
10. “Reply to Critics”, de Russell, de 1943, à p. 683. Sobre uma discussão do
justifícacionismo de Russell, cf. meu ensaio de 1962, “Infinite Regress and the Foundations of
Mathematics”, sobretudo à p. 167 e seguintes.
11. Sobre uma explicação desse termo, cf. mais adiante, à p. 116, nota de pé de página
n.° 12.

115
co, porém, a contra-evidência empírica é o único árbitro capaz de julgar uma teoria.
A marca distintiva do falseacionismo dogmático é, pois, o reconhecimento de
que todas as teorias são igualmente conjeturais. A ciência não pode provar teoria
alguma. Mas se bem não possa provar, pode refutar: ela “pode executar com certeza
lógica completa [o ato de] repúdio do que é falso”, 12 isto é, há uma base empírica de
fatos absolutamente firme que se podé usar para refutar teorias. Os falsea- cionistas
fornecem novos padrões — muito modestos — de honestidade científica: dispõem-
se a considerar uma proposição como “científica” não só se for uma proposição
fatual provada, 'mas também se não passar de uma proposição falseável, 1 isto é, se
houver técnicas experimentais e matemáticas disponíveis na ocasião que designem
certas afirmações como falseadores potenciais. 13
A honestidade científica, portanto, consiste em especificar, de antemão, uma
experiência de tal natureza que, se o resultado contradisser a teoria, a teoria terá de
14
ser abandonada. Q falseacionista exige que, uma vez refutada a proposição, não
haja evasão da verdade: a proposição tem de ser rejeitada incondicionalmente. O
falseacionista dogmático executa sumariamente as proposições (não-tautológicas):
que não podem ser falseadas : classifica-as de “metafísicas” e nega- lhes uma
posição científica.
Os falseacionistas dogmáticos traçam uma demarcação nítida entre o teórico e
o experimentador: o teórico propõe, o experimentador —r em nome da Natureza —
dispõe. Como diz Weyl: “Desejo registrar minha admiração sem limites pela obra do
experimentador em sua luta para arrancar fatos interpretáveis de uma Natureza obsti-
nada, que tão bem sabe enfrentar nossas teorias com um Não decisivo — ou com um
Sim inaudível.” 15 Braithwaite apresenta uma exposição particularmente lúcida do
falseacionismo dogmático. Ventila o prpble-

12. The Art of the Soluble, de Medawar, 1967, p. 144. Veja também
mais adiante, à p. 224, nota de pé de página n.° 341. ,
13. Essa discussão já indica a importância vital sobre o falacionista dog mático de uma
demarcação entre proposições fatuais que se Podem provar e proposições teóricas que não se
podem provar.
14. “Os critérios de refutação têm de ser estabelecidos com antecedência: é preciso que
haja concordância sobre as situações observáMçis que, sendo realmente observadas, significam
que a teoria é refutada” (Poppèr, 'von/ecíures and Rejutations, p.- 38, nota de rodapé n.° 3).

15. Citado na Logik der Forschung, de Popper, 1934, seção 85, com o comentário de
Popper: “Concordo plenamente”.

116
ma da objetividade da ciência: “Até que ponto, portanto, deve um sistema
científico dedutivo estabelecido ser considerado uma livre criação da mente
humana, e até que ponto deve ele ser considerado fornecedor de um relato
objetivo dos fatos da natureza?” Sua resposta é a seguinte: “A forma do
enunciado de uma hipótese científica e seu emprego para expressar uma
proposição geral é um expediente humano; o que se deve à Natureza são os
fatos observáveis, que refutam ou não a hipótese científica. . . [Na ciência]
deixamos à Natureza a tarefa de decidir se algumas das conclusões
contingentes de nível mais baixo são falsas. Esse teste objetivo de falsidade é o
que faz o sistema dedutivo, em cuja construção temos grande liberdade, um
sistema dedutivo de hipóteses científicas. O homem propõe um sistema de
hipóteses: a Natureza dispõe da sua verdade ou falsidade. O homem inventa um
sistema científico e depois descobre se o sistema se harmoniza ou não com o
fato observado.” 16
De acordo com a lógica do falseacionismo dogmático, a ciência cresce
mediante o repetido derrubamento de teorias com a ajuda de fatos concretos. Por
exemplo, de acordo com essa concepção, a teoria gravitatória dos vértices de
Descartes foi refutada — e eliminada — pelo fato de se moverem os planetas em
elipses e não em círculos cartesianos; a teoria de Newton, contudo, explicava com
êxito os fatos então disponíveis, tanto os que tinham sido expl icados pela teoria
de Descartes quanto os que a haviam refutado. Por isso a teoria de New ton
substituiu a teoria de Descartes. De maneira semelhante, segundo os
falseacionistas, a teoria de Newton, por sua vez, foi refutada — provando-se que
era falsa — pela anomalia do periélio de Mercúrio, que Einstein, por sua vez,
explicou. Desse modo, a ciência avança através de especulações ousadas, que
nunca são demonstradas nem mesmo probalizadas mas algumas das quais, mais
tarde, são eliminadas por refutações concretas e conclusivas e logo substituídas
por novas especulações ainda mais ousadas, e, pelo menos no início, não - -
refutadas.

16. Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, pp. 367-8. Sobre a “incor- rigibilidade”
dos fatos observados de Braithwaite, cf. o seu ensaio, “The Re- levance of Psychology to
Logic”, 1938. Embora no trecho citado Braithwaite dê uma resposta vigorosa ao problema da
objetividade científica, em outro passo ele assinala que “excetuando -se as generalizações
diretas de fatos observáveis ... a refutação completa já é tão impossível quanto a prova
completa” (Scientific Explanation, p. 19). Veja também mais adiante, à p. 138, nota de rodãpé
n.° 86.

117
O falseacionismo dogmático, no entanto, é insustentável. Repou sa sobre
duas suposições falsas e sobre um critério demasiado rigoroso de demarcação
entre o científico e o não-científico.
' 1 A primeira suposição é que há uma fronteira natural, psicológica, entre as
proposições teóricas ou especulativas de um lado e as proposições fatuais ou
observacionais (ou básicas) de outro. (Isto, naturalmente, faz parte do “enfoque
naturalista” do método científico. 17
A segunda suposição é que se uma proposição satisfaz ao critério
psicológico de ser fatual ou observacional (ou básica), ela é verdadei ra; é
possível afirmar que foi demonstrada a partir dos fatos. (Cha marei a esta a
doutrina da prova observacional (ou experimentalJ. 18
Essas duas suposições asseguram às contundentes refutações dos
falseacionistas dogmáticos uma base empírica a partir da qual a falsidade provada
pode ser transferida, pela lógica dedutiva, à teoria que está sendo testada.
Tais suposições são completadas por um 'critério de demarcaçãoT* só são
“científicas” as teorias que impedem certos estados de cõisas observáveis e,
portanto, são fatualmente refutáveis. Ou, uma teoria será "científica” se tiver uma
base empírica. 19
Mas as duas suposições são falsas. A psicologia depõe contra a primeira, a
lógica contra a segunda e, finalmente, o julgamento meto dológico depõe contra o
critério de demarcação. Discutirei cada um deles de per si.
(l)jum primeiro olhar endereçado a uns poucos exemplos ca racterísticos
solapa a primeira suposição. Galileu afirmava-se capaz de “observar” montanhas
na lua e manchas no sol, e que tais “observações” refutavam a teoria tradicional
de que os corpos celestes são

17. Cf. Logik der Forschung, 1934, de Popper, seção 10.


18. Sobre essas suposições e sua critica, cf. Popper, Logik der Forschung, 1934,
seções 4 e 10. Ê por causa dessa suposição que — seguindo Popper — chamo a esta classe
de falseacionismo naturalista. As “proposições básicas” de Popper não se devem
confundir com as proposições básicas discutidas nesta seção; cf. mais adiante, à p. 129,
nota de pé de página n.° 47.
Importa assinalar que essas duas suposições são também partilhadas por muitos
justificacionistas que não são falseacionistas: eles podem acrescentar às provas
experimentais “provas intuitivas” — como fez Kant — ou “provas indutivas” — como fez
Mill. O nosso falseacionista só aceita provas experimentais.

19. A base empírica de uma teoria é o conjunto dos seus falseadores potenciais:
o conjunto das proposições observacionais que podem refutá -la.

118
bolas impecáveis de cristal. Mas suas “observações” não eram “ob- servacionais”
no sentido de serem observadas unicamente pelos sentidos, a credibilidade delas
dependia da credibilidade do telescópio do observador — e da teoria ótica do
telescópio — violentamente contestada pelos contemporâneos. Não foram as
observações — puras, não- -teóricas — de Galileu que se defrontaram com a teoria
aristotélica, senão as “observações” de Galileu à luz da sua teoria ótica que se
defrontaram com as “obsrevações dos aristotélicos à luz da teoria aristotélica dos
céus. 20 Isso nos deixa com duas teorias discrepantes, prima facie em igualdade de
condições. Alguns empiristas podem conceder esse ponto e concordar em que as
“observações” de Galileu não eram observações genuínas; mas ainda sustentam que
há uma “demarcação natural” entre as afirmações impressas diretamente pelos sen-
tidos numa mente vazia e passiva — só estas constituem “conhecimento imediato”
autêntico — e as afirmações sugeridas por sensações impuras, impregnadas de
teorias. Com efeito, todas as classes de teorias justificacionistas do conhecimento
que reconhecem os sentidos por origem (sejam eles uma origem, ou sejam a
origem) do conhecimento estão sujeitas a conter uma psicologia da observação. Tais
psicologias especificam o estado “correto”, “normal”, “saudável”, “sem
preconceitos”, “cuidadoso” ou “científico” dos sentidos — ou melhor, o estado da
mente como um todo — em que eles observam a verdade tal como ela é. Por
exemplo, Aristóteles — e os estóicos -—- pensavam que a mente correta era a
mente sadia do ponto de vista médico. Os pensadores modernos reconheceram que,
para a mente ser correta, não lhe basta ter “saúde”. A mente correta de Descartes é
temperada no fogo da dúvida cética, que não deixa nada a não ser a solidão final do
cogito em que o ego pode ser restabelecido e, uma vez encontrada a mão
orientadora de Deus, reconhecer a verdade. Todas as escolas do moderno
justificacionismo podem ser caracterizadas pela psicote- rapia particular com a qual
se propõem preparar a mente para receber a graça da verdade provada no curso de
uma comunhão mística. Para os empiristas clássicos, em particular, a mente correta
é uma tabula rasa, esvaziada de todo conteúdo original, libertada de todos os pre-
conceitos da teoria. Transpire, porém, da obra de Kant e Popper — e da obra dos
psicólogos influenciados por eles — que essa psicote- rapia empirista nunca pode
ter êxito. Pois não há, nem pode haver, sensações não-impregnada de expectátivas
e, portanto, não há de-

20. A propósito, Galileu também mostrou — com a ajuda da sua ótica — que, se fosse
uma bola de cristal sem jaça, a lua seria invisível. Galileu, Dialogo dei Massimi Sistemi, 1632.

11 9
marcação natural (isto é, psicológica) entre as proposições observa- cionais e as
teóricas.21
' (2) Mas mesmo que houvesse uma demarcação natural des sa espécie, a
lógica ainda assim destruiria a segunda suposição do falseacionismo dogmático.
Pois o valor-de-verdade das proposições “obser- vacionais” não pode ser
indubitavelmente decidido: nenhuma proposição jatual pode ser provada a partir de
uma experiência. As proposições só se podem derivar de outras proposições, não
se podem derivar de fatos: não se pode provar afirmações com experiências —
“como não se podem provar dando murros na mesa.” 22 Este é um dos pontos
básicos da lógica elementar, mas ainda hoje compreendido relativamente por
pouca gente. 23
Se não se podem provar, as proposições fatuais são falíveis. Se são falíveis,
os choques entre teorias e proposições fatuais não são “falseamentos” mas apenas
discrepâncias. Nossa imaginação pode desempenhar um papel maior na
formulação de “teorias” do que na formulação de “proposições fatuais”, 24 mas
ambas são falíveis. Assim sendo, r\ão podemos provar teorias e tampouco podemos
refutá-las.52 A demarcação entre as “teorias” francas, não-provadas, e

21. É verdade que a maioria dos psicólogos que se voltaram contra a idéia do
sensacionalismo justificacionista o fizeram sob influência de filósofos pragmatistas, como
William James, que negava a possibilidade de qualquer es pécie de conhecimento objetivo.
Mas, mesmo assim, a influência de Kant através de Oswald Ktilpe, Franz Brentano e a
influência de Popper através de Egon Brunswick e Donald Campbell influíram na formação
da psicologia moderna; e se a psicologia vier um dia a sobrepujar o psicologismo, i sso se de-
verá à maior compreensão da linha principal de filosofia objetivista de Kant e Popper.

22. Cf. Popper, Logik der Forschurtg, 1934, seção 29.


23. Parece que o primeiro filósofo a dar ênfase a isto foi Fries em 1837 (cf. Popper,
Logik der Forschung, 1934, seção 29, nota de rodapé n.° 3). Tra- ta-se, naturalmente, de um
caso especial da tese geral de que as relações lógicas, como a probabilidade ou a consistência,
se referem a proposições. Assim, por exemplo, a proposição “a natureza é consistente” é falsa
(ou, se preferirem, carente de significado), pois a natureza não é uma proposição (nem uma
conjunção de proposições).

24. A propósito, até isso é duvidoso. Cf. mais adiante, pp. 155 e seguintes.

25. Como diz Popper; "Nunca se poderá apresentar uma refutação conclusiva de uma
teoria”; os que esperam uma refutação infalível antes de eli minar uma teoria terão de esperar
para sempre e “nunca se beneficiarão da experiência" (.Logik der Forschung, 1934, seção 9).

120
a ‘base empírica” forte, provada, não existe: todas as proposições da ciência são
teóricas e incuravelmente falíveis. 2fi
( 3 ) Finalmente, mesmo que houvesse uma demarcação natural entre os
enunciados da observação e as teorias, e mesmo que o valor - -de-verdade dos
enunciados da observação pudesse ver estabelecido de modo indubitável, o
falseacionismo dogmático ainda assim seria inútil para eliminar a classe mais
importante das comumente consideradas teorias científicas. Pois mesmo que as
experiências pudessem provar relatórios experimentais, o seu poder de refutação
ainda assim seria miseravelmente restrito: são exatamente as teorias cientíjicas
mais admiradas que simplesmente falham em proibir qualquer estado observável de
coisas.
Em apoio da última alegação, contarei primeiro uma histór ia característica
e, a seguir, proporei um argumento geral.
A história é a respeito de um caso imaginário de mau compor tamento
planetário. Valendo-se da mecânica de Newton, da sua lei da gravitação, ( N ) , e
das condições iniciais aceitas, /, um físico da era pré-einsteiniana calcula o
caminho de um planetazinho re- cém-descoberto, p . Mas o planeta se desvia da
trajetória calculada. O nosso físico newtoniano considera, acaso, que o desvio
era proibido pela teoria de Newton e, portanto, uma vez estabelecido, refuta a
teoria N I Não. Sugere que deve existir um planeta p ’ , até então desconhecido,
que perturba a trajetória de p . Calcula a massa, a órbita, etc., desse planeta
hipotético e, em seguida, pede a um astrônomo experimental que teste sua
hipótese. O planeta p ' é tão pequeno que nem o maior dos telescópios
disponíveis pode observá-lo: o astrônomo experimental solicita uma verba de
pesquisa a fim de construir um telescópio ainda maior. 27 Em três anos o novo
telescópio fica

26. Tanto Kant quanto o seu seguidor inglês, Whewell, compreenderam que todas as
proposições científicas, quer a priori, quer a posteriori. são igualmente teóricas; mas ambos
sustentavam que elas são igualmente demonstrá- veis. Os kantianos viam claramente que as
proposições da ciência são teóricas no sentido de que não são escritas por sensações na tabula
rasa de uma mente vazia, nem induzidas ou deduzidas de tais proposições. Uma proposi - i ção
fatual é apenas um gênero especial de proposição teórica. Nisto Popper sé colocou ao lado de
Kant contra a versão empirista do dogmatismo. Popper, todavia, deu um passo à frente: em sua
concepção, as proposições da ciência não são teóricas mas também falíveis, conjecturais para
sempre.

27. Se o minúsculo planeta conjectural estivesse fora do alcance até dos maiores
telescópios óticos possíveis, ele poderia experimentar um instrumento totalmente novo (como
um radiotelescópio) que lhe permitisse “observá -lo", isto é, interrogar a Natureza a respeito
dele, ainda que apenas de forma in-

121
pronto. Se o planeta desconhecido p’ fosse descoberto seria saudado cotno uma
nova vitória da ciência newtoniana. Mas não o é. Porventura o nosso cientista
abandona a teoria de Newton e sua idéia do planeta perturbador? Não. Sugere que
uma nuvem de poeira cósmica esconde o planeta de nós. Calcula a localização e as
propriedades dessa nuvem e solicita uma verba de pesquisa para enviar um satélite
ao espaço a fim de pôr à prova os seus cálculos. Se os instrumentos do satélite
(possivelmente instrumentos novos, baseados numa teoria pouco testada ainda)
registrassem a existência da nuvem hipotética, o resultado seria saudado como uma
vitória extraordinária da ciência newtoniana. Mas a nuvem não é encontrada. Por
acaso o nosso cientista abandona a teoria de Newton, juntamente com a idéia do
planeta perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não. Sugere a existência de
um campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do
satélite. Um novo satélite é enviado ao espaço. Se o campo magnético fosse
encontrado, os newtonianos comemorariam o encontro como uma vitória
sensacional. Mas ninguém o encontra. Isso é considerado como uma refutação da
ciência newtoniana? Não. Ou se propõe outra engenhosa hipótese auxiliar o u . . .
toda a história é sepultada nos poentos volumes das publicações especializadas, e
nunca mais se toca no assunto. 28
Essa história dá a entender vigorosamente que até a mais respeitada teoria
científica, como a dinâmica e a teoria da gravitação de Newton, pode falhar em
proibir qualquer estado observável de coisas. 29 De fato, algumas teorias científicas
só impedirão a ocorrência de um acontecimento em alguma região espaço-temporal
finita especificada (ou, em poucas palavras, um “acontecimento singular”) se nenhum
outro fator (possivelmente escondido em algum canto espaço-temporal distante e
não-especificado do universo) tiver alguma influência sobre ela. Mas, nesse caso,
tais teorias nunca con-

direta. (A nova teoria “observacional” talvez não fosse adequadamente inteligível, e muito menos
severamente testada, mas ele não se importaria com isso, como Galileu não se importou.)
28. Pelo menos enquanto um novo programa de pesquisa não suplantar o programa de
Newton, que explica este fenômeno, anteriormente recalcitrante. Nesse caso, o fenômeno será
exumado e entronizado como “experiência crucial”; cf. mais adiante, pp. 190 e seguintes.
29. Popper pergunta: “Que espécie de respostas clínicas refutaria, para satisfação do
analista, não só um diagnóstico particular mas a própria psicanálise?” (Conjectures and
Rejutations, p. 38, nota de rodapé n.° 3.) Mas que espécie de observação refutaria, para satisfação
dos newtonianos, não só determinada versão mas também a própria teoria newtoniana?

122
tradizem sozinhas uma afirmação "básica"; cotradizem, quando muito, a conjunção
de um enunciado básico que descreve um acontecimento espaço-temporalmente
singular e de um enunciado universal de não-existência que afirma que nenhuma
outra causa pertinente se encontra em ação em algum lugar do universo. E o
falseacionista j dogmático não pode afirmar, de maneira alguma, que tais enuncia -
dos universais de não-existência pertencem à base empírita: qtie po-' dem ser
observados e provados pela experiência.
Outra maneira de dizer a mesma coisa é declarar que algumas te orias
científicas são normalmente interpretadas como se contives sem uma cláusula
ceteris paribus' M: em tais casos é sempre uma teoria específica, juntamente com
essa cláusula, que se pode refutar. Mas tal refutação é irrelevante para a teoria
específica que está sendo testada porque, substituindo a cláusula ceteris paribus
por outra diferente, a teoria específica poderá sempre ser mantida, digam o que
disserem os testes.
Nessas condições, o processo de refutação “inexorável" do fal - seacionismo
dogmático deixa de funcionar em tais casos mesmo que haja uma base empírica
firmemente estabelecida para servir de plataforma de lançamento para a seta do
modus tollens: o alvo principal continua irremediavelmente esquivo. 31 E o fato é
que são exatamente as teorias mais importantes, “maduras”, da história da ciência
que são prima facie irrefutáveis dessa maneira. 32 Ademais, pelos padrões do
falseacionismo dogmático todas as teorias probabilísticas também figuram nessa
categoria: pois nenhuma amostra finita poderá jamais refutar > uma teoria
probabilística universal; 33 as teorias probabilísticas, como as teorias com uma
cláusula ceteris paribus, não têm base empírica. Mas então o falseacionista
dogmático relega as teorias científicas mais importantes, como ele próprio o
reconhece, à metafísica, onde a discussão racional — que consiste, de acordo com
os seus

30. [Acrescentada no prelo]: Essa cláusula "ceteris paribus" não precisa ser
normalmente interpretada como premissa separada. Sobre uma discussão, veja mais
adiante, à p. 231.
31. A propósito, podemos persuadir o falseacionista dogmático de que o seu critério
de demarcação foi um erro sumamente ingênuo. Se ele o abandonar mas retiver suas duas
suposições básicas, terá de eliminar da ciência as teorias e consider ar o crescimento desta
última como acumulação de enunciados básicos provados. Isso. com efeito, é a fase final do
empirismo clássico depois de evaporar -se a esperança de que os fatos podem provar ou,
pelo menos. refutar teorias.

32. Isso não é coincidência; cf. mais adiante, pp. 217 e seguintes.
33. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, capítulo VIII.

123
padrões, em provas e refutações — não tem lugar, visto que uma teoria
metafísica não pode ser provada nem refutada. O critério de demarcação do
falseacionismo dogmático, dessa maneira, é assim ainda vigorosamente
antiteórico.
(Além disso, pode argumentar-se facilmente que as cláusulas ceteris paribus
não são exceções, senão a regra na ciência. A ciência, afinal de contas, precisa ser
separada de uma loja de curiosidades onde engraçadas singularidades locais —
ou cósmicas — são coli- gidas e expostas. O enunciado “todos os britânicos
morreram de câncer do pulmão entre 1950 e 1960” é logicamente possível, e
podia até ter sido verdadeiro. Mas se foi apenas a ocorrência de um evento com
mínimas probabilidades, teria apenas um valor de curiosidade para o excêntrico
coletor de fatos, seria um macabro valor de entre tenimento, mas nenhum valor
científico. Só se pode dizer que uma proposição é científica quando e la visa a
expressar uma conexão causai; essa conexão entre ser britânico e morrer de
câncer do pulmão pode até nem ser tencionada. Semelhantemente, o enunciado
“todos os cisnes são brancos”, se fosse verdadeiro, seria uma simples curio -
sidade, a não ser que afirmasse que o fato de ser um cisne causa a brancura. Mas
nesse caso num cisne preto não refutaria essa proposição, visto que poderia
apenas indicar outras causas operando simultaneamente. Assim, “todos os cisnes
são brancos” é uma singularidade e facilmente refutável ou uma proposição
científica com uma cláusula ceteris paribus e, portanto irrefutável. A tenacidade
de uma teoria contra a evidência empírica seria então um argumento mais a favor do
que contra a sua qualificação como "científica". A "irrefutabilidade” tornar-se-ia
uma marca distintiva da ciência.) 34
Resumindo: os justificacionistas clássicos só admitiam teorias provadas; os
justificacionistas neoclássicos, teorias prováveis: os fal - seacionistas dogmáticos
compreenderam que em nenhum desses casos eram admissíveis as teorias.
Decidiram admitir teorias se fossem refutáveis — refutáveis por um número
finito de observações. Mas mesmo que existam tais teorias refutáveis — as que
podem ser contraditadas por um número finito de fatos observáveis — ainda
estão logicamente demasiado próximas da base empírica. Por exemplo, nos
termos do falseacionista dogmático, uma teoria como “Todos os pla netas se
movem em elipses” pode ser refutada por cinco observa ções; por conseguinte, o
falseacionista dogmático a considerará científica. Uma teoria como “Todos os
planetas se movem em círculos”

34. Sobre um caso muito mais forte, cf. mais adiante, seção 3.

124
pode ser refutada por quatro observações; por conseguinte, o falsea cionista
dogmático a considerará mais científica ainda. A culminância da cientificidade
será uma teoria como “Todos os cisnes são brancos”, que pode ser refutada por
uma única observação. Por outro lado, ele rejeitará todas as teorias probabilísticas
juntamente com as de Newton, Maxwell, Einstein, por não-científicas, uma vez
que nenhum número finito de observações poderá refutá-las.
Se aceitarmos o critério de demarcação do falseacionismo dog mático, e
também a idéia de que os fatos podem provar proposições “fatuais”, teremos de
declarar que as teorias mais importantes, se não todas elas, propostas na história
da ciência são metafísicas, que a maior parte do progresso aceito, se não todo ele,
é pseudoprogresso, que quase todo, se não todo, o trabalho feito é irracional. Se,
todavia, ainda aceitando o critério de demarcação do falseacionismo dog mático,
negarmos que os fatos podem provar proposições, acabaremos por certo no mais
completo ceticismo: nesse caso, toda ciência será, sem dúvida, metafísica
irracional e deverá ser rejeitada. As teorias científicas não são apenas igualmente
impossíveis de ser provadas, e igualmente improváveis, mas também são igualmente
irrefutáveis. Mas_o reconhecimento de que não só as proposições teóricas mas
todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapso total de todas as
formas de justificacionismo dogmático como teorias da racionalidade científica.

(b) Falseacionismo metodológico. A "base empírica”.


O colapso do falseacionismo dogmático sob o peso dos argu mentos
falibilísticos nos traz de volta ao início. Se todas as afirmações científicas são
teorias falíveis, só podemos criticá-las por serem inconsistentes. Mas nesse caso,
em que sentido, se houver algum, a ciência é empírica? Se as teorias científicas
não podem ser provadas, ''riem probabilizadas, nem refutadas, os céticos parecem
ter finalmente razão: a ciência não passa de uma vã especulação e não existe
progresso no conhecimento científico. Ainda podemos opor -nos ao ceticismo?
Podemos salvar a crítica científica do falibilismo? É possível ter uma teoria
falibilística do progresso científico? Em particular, se a crítica científica é falível,
baseados em que poderemos algum dia eliminar uma teoria?
Uma resposta sumamente intrigante nos é fornecida pelo falseacionismo
metodológico. O falseacionismo metodológico é uma classe de
convencionalismo;’portanto, a fim de compreendê -lo, precisamos primeiro
discutir o convencionalismo em geral.

125
Há uma demarcação importante entre as teorias "passivista” e "ativista” do
conhecimento. Sustentam os “passivistas” que o verda deiro conhecimento é a
marca impressa pela Natureza numa mente perfeitamente inerte: a atividade
mental só pode resultar em parcialidade e distorção. A escola passivista mais
influente é o empirismo clássico. Os “ativistas” sustentam que não podemos ler o
livro da Natureza sem atividade mental, sem interpretá -lo à luz das nossas
expectativas ou teorias. 35 Agora os' ativistas conservadores sustentam que nós
nascemos com nossas expectativas básicas; com elas transformamos o mundo no
“nosso mundo” mas, depois, temos de viver para sempre na prisão do nosso
mundo. A idéia de que vivemos e morremos na prisão de nossos “referenciais
conceituais” foi desenvolvida primeiramente por Kant; os kantianos pessimistas
pensavam que o mundo real é para sempre incognoscível por causa dessa pri são,
ao passo que os kantianos otimistas pensavam que Deus criou nosso referencial
conceituai para ajustá-lo ao mundo. 36 Mas os ativistas revolucionários acreditam
que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e também substituídos
por novos e melhores referenciais; somos nós que criamos nossas “prisões” e
também podemos, com espírito crítico, demoli-las. 37
Novos passos do ativismo conservador para o ativismo revolucionário
foram dados por Whewell e depois por Poincaré, Milhaud e Le Roy. Whewell
afirmava que as teorias são desenvolvidas por ensaio-e-erro — nos “prelúdios das
épocas indutivas” — por uma longa consideração essencialmente a priori, que ele
denominava “intuição progressiva”. As “épocas indutivas” são seguidas por
“seqüelas das épocas indutivas”: desenvolvimentos cumulativos de teorias

35. Essa demarcação — e terminologia — deve-se a Popper; cf. especialmente sua


Logik der Forschung, 1934, seção 19, e seu The Open Society and its Enemies, 1945, capítulo
23 e a nota de pé de página n.° 3 do capítulo 25.
36. Nenhuma versão do ativismo conservador explicou por que a teoria gravitacional
de Newton deveria ser invulnerável; os kantianos restringiam -se à explicação da tenacidade da
geometria euclidiana e da mecânica newtoniana. A respeito da gravitação e da ótica
newtonianas (ou outros ramos da ciência), assumiam uma posição ambígua e, ocasionalmente,
indutivista.
37. Não incluo Hegel entre os "ativistas revolucionários”. Para Hegel e seus
seguidores, a mudança verificada nas referências conceptuaís é um pro cesso predeterminado,
inevitável, em que a criatividade individual ou a crí tica racional não desempenham um papel
essencial. Os que correm na frente estão tão errados quanto os que ficam atrás dessa
"dialética”. O homem inteligente não é o que cria uma “prisão" melhor, nem o que demole
com espírito crítico a prisão velha, mas o que está sempre em harmonia com a história. É
assim que a dialética explica a mudança sem crític a.

126
auxiliares. 38 Poincaré, Milhaud e Le Roy eram avessos à idéia de prova pela
intuição progressiva e preferiam explicar o continuado êxito histórico da
mecânica newtoniana por uma decisão metodológica tomada por cientistas: depois
de um período considerável de êxito empírico inicial, os cientistas podem decidir
não permitir que a teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem
(ou dissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliares ou outros
“estratagemas convencionalistas”. 39 Esse convencionalismo conservador, no
entanto, tem a desvantagem de rios incapacitar para sair das prisões que nós
mesmos nos impusemos, depois de se haver escoado o primeiro período de
ensaio-e-erro e de haver sido tomada a grande decisão. Ele não pode resolver o
problema da eliminação das teorias que triunfaram durante um longo período. De
acordo com o convencionalismo conservador, as experiêncais podem ter força
bastante para refutar teorias jovens, mas não têm força para refutar teorias velhas,
estabelecidas: à proporção que a ciência cresce, a força da evidência empírica
diminui.40

Os críticos de Poincaré recusaram-se a aceitar sua idéia de que, embora os


cientistas construam seus referenciais conceituais, chega uma ocasião em que
esses referenciais se transformam em prisões que não podem ser demolidas. Essa
crítica deu origem a duas escolas rivais

38. Cf. Whewell, History of the Inductive Sciences, from the Eearliest to the Present
Time, 1837; Philosophy of the Inductive Sciences, Founded upon th e History, 1840; e Novum
Organum Renovatum, 1858.
39. Cf. especialmente Poincaré, “Les géometries non euclidiennes”, 1891; e La Science
et l’Hypothèse, 1902; Milhaud. "La Science Rationelle”, 1896; e Le Roy, "Science et
Philosophie”, 1889, e “Un Positivisme Nouveau”, 1901. Foi um dos principais méritos
filosóficos dos convencionalistas dirigir os refletores para o fato de que qualquer teoria pode
ser salva das refutações por “estratagemas convencionalistas”. (A expressão "estratagema
convencionalista” é de Popper, que discute com espírito crítico o convencionalismo de Poincaré
em sua Logik der Forschung, especialmente nas seções 19 e 20.)

40. Poincaré elaborou primeiro o seu convencionalismo somente em re lação à


geometria (cf. o seu ensaio “Les géometries non euclidiennes”). Depois Milhaud e Le Roy
generalizaram a idéia de Poincaré para cobrir todos os ramos da teoria física aceita. La
Science et l’Hypothèse de Poincaré começa com uma vigorosa crítica do bergsoniano Le Roy,
contra o qual ele defende o caráter empírico (falseável ou “indutivo”) de toda a física, com
exceção da geometria e da mecânica. Duhem, por seu turno, criticou Poincaré, em cuja
concepção havia uma possibilidade de derrubar até a mecânica newtoniana.

127
de convencionalismo revolucionário: o simplicismo de Duhem e o falseacionismo
metodológico de Popper. 41
Duhem aceita a posição dos convencionalistas de que nenhuma teoria física
desmorona jamais sob o peso de “refutações”, mas afiança que ela ainda pode
desmoronar sob o peso de “reparos contínuos e de inúmeros esteios emaranhados”,
quando as “colunas comidas pelos vermes” não podem suportar por mais tempo “o
sdifício vacilante”; 42 a teoria perde sua simplicidade original e precisa ser subs-
tituída. Mas o falseamento é entregue então ao gosto subjetivo ou, na melhor das
hipóteses, à moda científica, e deixa-se muita margem à adesão dogmática a uma
teoria favorita. 13
Popper dispôs-se a encontrar um critério que fosse, ao mesmo tempo, mais
objetivo e mais agressivo. Ele não poderia aceitar a debilitação do empirismo,
inerente até ao enfoque de Duhem, e propôs uma metodologia que faculta às
experiências serem poderosas até na ciência “madura”. O falseacionismo
metodológico de Popper é convencionalista e falseacionista a um tempo, mas ele
“difere dos convencionalistas [conservadores] por sustentar que ps enunciados
decididos por consenso não são [espaço-temporalmente] universais mas [espaço-
temporalmente] singulares” 44 ; e difere do falseacionista dogmático por sustentar
que o valor-de-verdade de tais afirmações não pode ser provado por fatos mas, em
alguns casos, pode ser decidido por consenso. 45

41. Os loci classici são La Théorie Physique, Son Objel et Sa Structure, 1905, de
Duhem, e a Logik der Forschung de Popper. Duhem não era um convencionalista
revolucionário coerente. De maneira muito semelhante a Whe- well, achava que as mudanças
conceptuais são apenas preliminares da “classificação natural" final — ainda que talvez
distante: “Quanto mais se aperfeiçoa uma teoria, tanto mais apreendemos que a ordem lógica
em que ela arranja as leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontoiógica.” Em particular,
recusou-se a ver a mecânica de Newton realmente desmoronando e caracterizou a teoria da
relatividade de Einstein como a manifestação de uma “c orrida frenética e febril no encalço de
uma idéia nova”, que “converteu a física num verdadeiro caos, onde a lógica se desgarra e o
bom senso foge espavorido” (Prefácio — de 1914 — para a segunda edição de sua obra
supracitada).

42. Duhem, La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, capítulo VI, seção
10.
43. Sobre uma discussão adicional do convencionalismo, veja mais adiante, pp. 228-
233.
44. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.
45. Nesta seção discuto a variante “ingênua’’ do falseacionismo metodológico de
Popper. Desse modo, em todo o correr da seção, “falseacionismo metodológico” quer dizer
“falseacionismo metodológico ingênuosobre essa "ingenuidade”, cf. mais adiante, pp. 140-141.

128
O convencionalista conservador (ou “justificacionista metodológico”, se se
quiser) torna não-falseáveis por decreto algumas teorias (espaço-temporalmente)
universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua
beleza. O nosso convencionalista revolucionário popperiano (ou “falseacionista
metodológico”) torna não-falseáveis por decreto alguns enunciados (espaço- -
temporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato de existir ná ocasião
uma “técnica pertinente” tal que “quem quer que a tenha aprendido” será capaz de
decidir que o enunciado é “aceitável”. 46 Um enunciado dessa ordem pode ser
cognominado “observa- cional” ou “básico”, mas apenas entre aspas. 47 Com
efeito, a própria seleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, que
não se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essa decisão é então
seguida de uma segunda espécie de decisão relativa à separação do conjunto de
enunciados básicos aceitos do resto.
Essas duas decisões correspondem às duas suposições do falsea- cionismo
dogmático. Mas há diferenças importantes. Acima de tudo, o falseacionista
metodológico não é um justificacionista, não tem ilusões a respeito de “provas
experimentais” e tem plena consciência da falibilidade das suas decisões e dos
riscos que está assumindo.
O falseacionista metodológico.compreende que nas “técnicas experimentais”
do cientista estão envolvidas teorias falíveis, 48 à “luz” das quais ele interpreta os
fatos. Apesar disso, “aplica” essas teorias, encara-as no contexto dado, não como
teorias que estão sendo testadas, mas como t conhecimento não-problemático de
fundo “que nós aceitamos (tentativamente) como não-problemático enquanto testa-
mos a teoria”. 49 Ele pode chamar a essas teorias — e as afirmações cujo valor-de-
verdade decide à sua luz — “observacionais”: mas isto é apenas um modo de falar
que herdou do falseacionismo naturalista. 50 O falseacionista metodológico usa
nossas teorias mais bem sucedidas como extensões dos nossos sentidos e amplia a
extensão das

46. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 27.


47. Op. cit. seção 28. Sobre a não-basicidade desses enunciados metodo- logicamente
"básicos”, cf. por exemplo Popper, Logik der Forschung, 1934, passim e Popper, The Logic of
Scientific Discovery, 1959, p. 35, nota de rodapé n.” 2.

48. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, fim da seção 26 e também seu ensaio
“Remarks on the Problems of Demarcation and Rationality”, pp. 291 -2.

49. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 390.


50. Efetivamente, Popper, cauteloso, colocou “observacionais” entre as pas; cf. sua
Logik der Forschung, seção 28.

129
teorias que podem ser aplicadas no procedimento de teste muito além da gama de
teorias estritamente observacionais do falseacionista dogmático. Imaginemos, por
exemplo, que se descubra uma grande ra- dioestrela com um sistema de
radioestrelas satélites descrevendo órbitas ao seu redor. Gostaríamos de testar
alguma teoria gravitacional nesse sistema planetário — assunto de considerável
interesse. Imaginemos agora que Jodrell Bank consiga proporcionar um conjunto
de coordenadas espaço-temporais dos planetas que contradiga a teoria.
Tomaremos esses enunciados como falseadores potenciais. Está claro que tais
enunciados básicos não são “observacionais” no sehtido usual mas apenas
‘“observacionais”’. Eles descrevem planetas que nem o olho humano nem os
instrumentos óticos podem alcançar. Chega-se ao seu valor-de-verdade por meio
de uma “técnica experimental”. Essa “técnica experimental” baseia-se na
“aplicação” de uma teoria bem corroborada de radiótica. Chamar
“observacionais” a essas afirmações outra coisa não é senão um modo de dizer
que, no contexto do seu problema, isto é, no procedimento de teste de nossa
teoria gravitacional, o falseacionista metodológico usa a radiótica sem espírito
crítico, como “conhecimento de fundo”. A necessidade de decisões para demarcar
a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático é um
51
traço característico dessa classe de falseacionismo metodológico . (Esta situação, na
verdade, não difere da “observação” de Galileu dós satélites de Júpiter: além
disso, como assinalaram com razão alguns contemporâneos de Gali leu, ele se
apoiava numa teoria ótica virtualmente inexistente — então menos corroborada e
até menos bem expressa do que a radiótica atual. Por outro lado, chamar
“observacionais” aos relatos do nosso olho humano só indica que nos “apoiamos”
em alguma vaga teoria fisiológica da visão humana. 52 )
\ Essa consideração mostra o elemento convencional em conceder
— num dado contexto — um status (metodologicamente) “observa- cional” a
uma teoria. 53 De maneira semelhante, há um considerável elemento convencional
na decisão relativa ao valor-de-verdade real de um enunciado básico que fazemos
depois de haver decidido que

51. Essa demarcação desempenha um papel não só no primeiro mas também no


quarto tipo de decisões do falseacionista metodológico. (Sobre a quarta decisão, veja mais
adiante, p. 134.)
52. Sobre uma discussão fascinante, veja Feyerabend, “Problems of Em - piricism
II”, 1969.
53. Ficamos a imaginar se não seria melhor acabar com a terminologia do
falseacionismo naturalista e rebatizar as teorias observacionais com o nome de “teorias de
pedra de toque” (“touchstone theories”).

130
“teoria observacional” aplicar. Uma única observação pode ser o resultado
fortuito de algum erro trivial; no intuito de reduzir tais riscos, os falseacionistas
metodológicos prescrevem algum controle de segurança. O mais simples desses
controles consiste em repetir a experiência (o número de vezes é uma questão de
convenção), fortificando assim o falseador pçtencial por meio de uma “hipótese
fal- seadora bem corroborada”. 54
O falseacionista metodológico também assinala que, na realida de, essas
convenções são institucionalizadas e endossadas pela comunidade científica; a
lista de falseadores “aceitos” é fornecida pelo veredito dos cientistas
experimentadores. 55
É assim que o falseacionista metodológico estabelece sua “base empírica”.
(Ele usa aspas a fim de “dar uma ênfase irônica” à expressão. 56 ) Essa “base”
dificilmente poderá ser chamada de “base” pelos padrões justificacionistas: não
há nada provado no que diz respeito a ela — ela denota “estacas colocadas em um
pântano”. 57 Com efeito, se essa “base empírica” colide com uma teoria, a teoria
pode ser dita “falseada”, mas não é falseada no sentido em que é refutada. O
“falseamento” metodológico é muito diferente do falseamento dog mático. Se uma
teoria for falseada, provou-se que é falsa; se for “falsificada”, ainda poderá ser
verdadeira. Se seguirmos essa espécie de “falseamento” pela “eliminação” real de
uma teoria, poderemos acabar eliminando uma teoria verdadeira e aceitando uma
falsa (possibilidade totalmente repugnante ao justificacionista antiquado).
Não obstante, é exatamente isso que o falseacionista metodo- , lógico nos
recomenda que façamos. O falseacionista metodológico compreende que, se
quisermos conciliar o falibilismo com a racionalidade (não-justificacionista),
precisamos encontrar um jeito de eliminar algumas teorias. Se não o conseguirmos,
o crescimento daj ciência não será mais do que um caos cada vez maior.
Por conseguinte, o falseacionista metodológico sustenta que “[se quisermos]
fazer funcionar o método de seleção por eliminação

54 Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22. Muitos filósofos passaram por
alto a importante restrição de Popper segundo a qual umenunciado básico não tem força para refutar co
hipótese falseadora bem corroborada.

55. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.


56. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 387.
57. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30; cf. também a seção
29: “A Relatividade dos Enunciados Básicos”.

131
e assegurar a sobrevivência apenas das teorias mais aptas, devemos tornar severa
sua luta pela vida”. 58 Depois que uma teoria tiver sido falseada a despeito do
risco envolvido, precisa ser eliminada: “[com as teorias só trabalhamos] enquanto
elas suportam os testes”. 59 A eliminação deve ser metodologicamente conclusiva:
60
“Em geral encaramos um falseamento intersubjetivamente testável como definiti-
vo. . . Uma avaliação corroborativa feita em data ulterior. .. pode substituir um
60
grau positivo de corroboração por um negativo, mas não vice-versa. Essa é a
explicação do falseacionista metodológico sobre como sair de um atoleiro: “É
sempre a experiência que nos impede de seguir um caminho que não conduz a
parte alguma.” 61
O falseacionista metodológico separa a rejeição da refutação, que o
falseacionista dogmático havia fundido. 62 É um falibilista, mas o falibilismo não
lhe enfraquece a posição crítica; converte proposições falíveis numa “base” para
uma política de linha dura. Com esse pretexto, propõe um novo critério de
demarcação: somente são “científicas” as teorias — isto é, proposições não-
“observacionais”
— que proíbem certos estados de coisas “observáveis” e, portanto, podem ser
“falseadas” e rejeitadas; ou, em poucas palavras, uma teoria é "científica” (ou
",aceitável”) se tiver uma “base empírica”. Esse critério põe de manifesto, com
nitide#, a diferença entre o falseacionismo dogmático e o metodológicoí 63

58. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 134. Em outros lugares, Popper
enfatiza que esse método não “assegura” a sobrevivência do mais apto. A seleção natural
pode desandar: é possível que os mais aptos pereçam e monstros sobrevivam.

59. Popper, “Induktionslogik und Hypothesenwahrscheinlichkeit”, 1935.


60. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.
61. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.
62. Essa espécie de “falseamento” metodológico, à diferença do falsea
mento dogmático (refutação), é uma idéia pragmática, metodológica. Mas en tão que é o que
devemos exatamente entender por ela? Responde Popper — que porei de lado — que o
“falseamento” metodológico indica a "necessidade urgente de su bstituir uma hipótese
falseada por uma hipótese melhor” (Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 87,
nota de rodapé n.° 1). Eis aí uma excelente ilustração do processo que descrevi em meu
ensaio “Proofs and Refutations”, de19634, por cujo intermédio a discussãocríticatransfere o
problema original sem mudar necessariamente os velhostermos. Os subprodu
tos desses processos são transferências de significado. Sobre uma discussão adicional, cf.
mais adiante, à p. 149, nota de rodapé n.° 127, e p. 193, nota de rodapé n.° 245.

63. O critério de demarcação do falseacionista dogmático era o seguinte: uma teoria


será “científica” se tiver uma base empírica (veja mais acima, à p. 118).

132
Esse critério metodológico de demarcação é muito mais liberal do que o
dogmático. O falseacionismo metodológico abre novas ave nidas para a crítica: um
número muito maior de teorias pode ser qualificado de “científico”. Já vimos que
existem mais teorias “obser- vacionais” do que teorias observacionais 04 e,
portanto, há mais enunciados “básicos” do que enunciados básicos. 05 Além disso,
as teorias probabilísticas fazem jus agora à qualificação de “científicas”; em bora
não sejam falseáveis, podem facilmente tornar-se “falseáveis” por uma decisão
adcional (de terceiro tipo) que o cientista pode tomar especificando certas regras
de rejeição capazes de tornar a evidência estatisticamente interpretada
“inconsistente” com a teoria pro- babilística”. r,fi
Mas nem essas três decisões são suficientes para permitir -nos “falsear” uma
teoria que não pode explicar nada “observável” sem uma cláusula ceteris
paribus.67 Nenhum número finito de “observações” será bastante para “falsear”
uma teoria nessas condições. Entretanto, se for esse o caso, como se pode
razoadamente defender uma metodologia que afirma “interpretar leis naturais ou
teorias como ... enunciados parcialmente decidíveis, isto é, que não são, por
razões lógicas, verificáveis mas, de um modo assimétrico, falseá veis. ..”? 158
Como se podem interpretar teorias, como a teoria newto-

64. Veja mais acima. pp. 118-119.


65. A propósito, em sua Logik der Forschung, 1934, Popper não parece ter visto com
clareza este ponto. Escreve ele: “É reconhecidamente possível interpretar o conceito de um
evento observável num sentido psicologista. Em- prego-o, porém, num sentido tal que ele bem
pode ser substituído por ‘um vento que envolve posição e movimento de corpos físicos
macroscópicos' ”, (Logik der Forschung, seção 28.) À luz da nossa discussão, por exemplo, po-
demos considerar um posítron que passa através de uma câmara de Wilson no momento to
como um evento “observável”, a despeito do caráter não -ma- croscópico do posítron.

66. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 68. Com efeito, esse falseacionismo
metodológico é a base filosófica de alguns dos desenvolvimentos mais interessantes da
estatística moderna. Todo o enfoque Neyman-Pearson repousa no falseacionismo metodológico.
Cf. também Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, capítulo VI. (Infelizmente, Braithwaite
reinterpreta o critério de demarcação de Popper como se este separasse proposições
significativas de proposições carentes de significado, em lugar de separar proposições cientí -
ficas de proposições não-científicas.)

67. Cf. mais acima, pp. 122-4.


68. Popper, “Ein Kriterium des empirischen Charakters theoretischer Sys -
teme”, 1933.

133
niana da dinâmica e da gravitação, de “unilateralmente decidíveis”? 6S Como
podemos fazer em casos assim genuínas “tentativas de suprimir teorias falsas —
de encontrar os pontos fracos de uma teoria a fim de rejeitá-la se ela for falseada
pelo teste”? 70 Como podemos levá-las ao domínio da discussão racional? O
falseacionista metodológico resolve o problema tomando mais uma decisão (de
quarto tipo): quando ele testa uma teoria juntamente com uma cláusula cete- ris
paribus e descobre que essa conjunção foi refutada, precisa decidir se deve tomar
a refutação também como refutação da teoria específica. Por exemplo, pode
aceitar o periélio “anômalo” de Mercúrio como refutação da tripla conjunção N}
da teoria de Newton, das condições iniciais conhecidas e da cláusula ceteris
paribus. Em seguida, testa “severamente” 71 as condições iniciais e pode decidir
relegá-las ao “conhecimento de fundo não-problemático”. Essa decisão implica
na refutação da dupla conjunção N2 da teoria de Newton e da cláusula ceteris
paribus. Agora lhe cabe tomar a decisão crucial: se também relega a cláusula
ceteris paribus ao fundo comum do “conhecimento de fundo não-problemático”.
Será isso o que fará, se lhe parecer que a cláusula ceteris paribus está bem
corroborada.
Como se pode testar severamente uma cláusula ceteris paribus? Pressupondo
que há outros fatores influentes, especificando tais fatores e testando as
suposições específicas. Se muitas forem refutadas, a cláusula ceteris paribus será
considerada bem corroborada.
A decisão, porém, de “aceitar” uma cláusula ceteris paribus é muito
arriscada mercê das graves conseqüências que implica. Se se decidir aceitá -la
como parte desse conhecimento de fundo os enunciados que descrevem o periélio
de Mercúrio desde a base empírica de N2 são convertidos na base empírica da
teoria específica de Newton Nt e o que era antes uma simples “anomalia” em
relação a Nlt passa a ser agora uma prova crucial contra ela, seu fal seamento.
(Podemos chamar a um acontecimento descrito por um enunciado A uma
“anomalia em relação a uma teoria T’, se A for um falseador potencial da
conjunção de T e uma cláusula ceteris paribus, mas torna-se um falseador
potencial da própria T depois de haver decidido relegar a cláusula ceteris paribus
ao “conhecimento de fundo não-

70. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 133.


71. Sobre uma discussão desse importante conceito da metodologia pop - periana, cf.
meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, pp. 397 e seguintes.

134
-problemático.” 72) como, para o nosso selvagem falseacionista, os falseamentos
são metodologicamente conclusivos, 73 a decisão fatal eqüivale à eliminação
metodológica da teoria de Newton, irraciona- lizando o trabalho subseqüente nela.
Se o cientista fugir a essas decisões ousadas, “nunca se beneficiará da
experiência”, “acreditando, talvez, que é sua obrigação defender um sistema bem -
sucedido contra a crítica enquanto nao tiver sido conclusivamente refutado”.7i
Degenerará num apologista que sempre proclamará que “as discre - pâncias que se
afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e
desaparecerão com o avanço de nosso entendimento”. 75 Mas para o falseacionista
isto é “exatamente o inverso da atitude crítica própria do cientista”, 76 e não é
permissível. Para usar uma das expressões favoritas do falseacionista metodoló -
gico, a teoria “precisa ser obrigada a deixar a cabeça de fora”.
O falseacionista metodológico vê-se numa situação séria quando chega o
momento de decidir onde traçar a demarcação, nem que seja apenas num contexto
bem definido, entre o problemático e o não- -problemático. A situação é mais
dramática ainda quando ele tem de tomar uma decisão sobre cláusu las ceteris
paribus, quando lhe cabe promover um dentre as centenas de “fenômenos
anômalos” numa “experiência crucial”, e decidir que nesse caso a experiência foi
“controlada”. 77
Assim, com a ajuda desse quarto tipo de decisão, 78 o nosso falseacionista
metodológico conseguiu finalmente interpretar como “científicas” até teorias
como a teoria de Newton. 70

72. Sobre uma “explicação" melhorada, veja mais adiante, p. 195, nota de rodapé n.°
251.
73. Cf. mais acima, à p. 132, o texto correspondente às notas de pé de página n.°' 59 e
60.
74. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.
75. Ibid.
76. Ibid.
77. Pode dizer-se que o problema da “experiência controlada” nada mais é que o
problema de arranjar condições experimentais de maneira que reduza ao mínimo o ri sco
envolvido nessas decisões.
78. Esse tipo de decisão pertence, num sentido importante, à mesma ca tegoria a que
pertence a primeira: separa, por decisão, o conhecimento pro blemático do conhecimento não-
problemático. Cf. mais acima, à p. 30, o texto correspondente à nota de rodapé n.° 51.

79. Nossa exposição mostra claramente a complexidade das decisões necessárias à


definição do “conteúdo empírico” de uma teoria — isto é, o conjunto dos seus falseadores
potenciais. O “conteúdo empírico” depende da nossa decisão sobre as “teorias observacionais”
que são nossas e as anomalias

135
Com efeito, não há razão para que ele não deva dar mais um
passo. Por que não decidir que uma teoria — que nem essas quatro
decisões podem converter numa teoria empiricamente fal seável — é
falseada se entra em conflito com outra teoria que é científica por
alguns dos motivos anteriormente especificados e é igualmente bem
corroborada? so Afinal de contas, se rejeitamos uma teoria porque
verificamos que um dos seus falseadores potenciais é verdadeiro à
luz de uma teoria observacional, por que não rejeitar outra teoria
por completar diretamente com uma que pode ser relegada ao co-
nhecimento de fundo não-problemático? Isso nos permitiria, por um
quinto tipo de decisão, eliminar até teorias “sintaticamente metafí-
sicas”, isto é, teorias que, como enunciados do tipo “todos -alguns”
ou enunciados puramente existenciais, 81 devido a sua forma lógica,
não podem ter falseadores potenciais espaço-temporalmente singu-
lares.
Resumindo: o falseacionista metodológico oferece uma solução interessante
ao problema de combinar a crítica vigorosa com o fali- bilismo. Não só oferece
uma base filosófica para o falseamento depois que o falibilismo puxou o tapete
debaixo dos pés do falseacionista dogmático, mas também amplia de modo
considerável a extensão dessa crítica. Colocando o falseamento num cenário
novo, salva o atraente código de honra do falseacionista dogmático: que a ho -
nestidade científica consiste em especificar, de antemão, uma expe riência de tal
ordem que, se o resultado contradisser a teoria, esta terá de ser abandonada. 82

que devera ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar o conteúdo


empírico de diferentes teorias científicas a fim de verificar qual é o “mais científi co”, ver-
nos-emos envolvidos num sistema de decisões comple - xíssimo e, portanto,
irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classes respectivas de “enunciados
relativamente atômicos” e .seus “campos de aplicação”. (Sobre o significado desses termos
(muito) técnicos, cf. Popper, Logik der Forschung, seção 38.) Mas uma comparação dessa
natureza só é possível quando uma teoria suplanta outra (cf. Popper, The Logic of
Scientific Discovery, 1959, p. 401, nota de rodapé n.° 7). E mesmo assim pode haver di fi-
culdades (as quais, todavia, não se somariam à irremediável “incomensura - bilidade”).

80. Isto foi sugerido por J. D. Wisdom: cf. seu ensaio de 1963: “The Refutability of
'Irrefutable’ Laws”.
81. Por exemplo: “Todos os metais têm um solvente”; ou “Existe uma substância
que pode transformar todos os metais era ouro”. Sobre discussões dessas teorias, cf.
especialmente Watkins, “Between Analytical and Empirical”, 1957, e Watkins, “When are
Statements Empirical?”, 1960. Mas cf. mais adiante, pp. 154-5 e pp. 227-8.

82. Veja mais acima, p. 116.

136
O falseacionismo metodológico representa um avanço conside rável para
além do falseacionismo dogmático e do convencionalismo conservador.
Recomenda decisões arriscadas. Mas os riscos são tão ousados que atingem as
raiaà da temeridade e a gente pergunta a si mesmo se não haverá um meio de
atenuá-los.
Examinemos primeiro, com mais atenção, os riscos envolvidos.
As decisões desempenham um papel crucial nessa metodologia
— como em qualquer classe de convencionalismo. As decisões, todavia, podem
levar-nos desastrosamente para o mau caminho. O falseacionista metodológico é
o primeiro a admiti-lo. Mas isso, argumenta ele, é o preço que temos de pagar
pela possibilidade de progresso.
Cumpre apreciar a atitude diabolicamente atrevida do nosso falseacionista
metodológico. Ele se tem na conta de um herói que, defrontando -se com duas
alternativas catastróficas, teve a coragem de refletir friamente sobre os méritos
relativos de cada uma e escolheu o menor dos males. Uma das alternativas era o
falibilismo cético, com sua atitude de “vale tudo”, o abandono desesperado de
todos os padrões intelectuais, e com estes a idéia do progresso cie ntífico. Nada
pode se restabelecido, nada pode ser rejeitado, nada sequer pode ser comunicado:
o crescimento da ciência é um crescimento do caos, uma verdadeira Babel.
Durante dois mil anos, cientistas e filósofos de espírito científico escolheram
ilusões justificacionistas de alguma espécie para escapar a esse pesadelo. Alguns
afirmaram que temos de escolher entre o justificacionismo indutivista e o irra-
cionalismo: “Não vejo nenhuma saída, fora a afirmação dogmática de que
conhecemos o princípio indutivo ou algum equivalente; a única alternativa é jogar
fora quase tudo que a ciência e o bom senso consideram como conhecimento”. 83
O nosso falseacionista metodológico rejeita orgulhosamente esse
escapismo: ousa medir todo o impacto do falibilismo é, aind a assim, escapar ao
ceticismo através de uma atrevida e arriscada política con- vencionalista, sem
dogmas. Tem plena consciência dos riscos mas insiste em que é preciso escolher
entre uma espécie de falseacionismo metodológico e o irracionalismo. Oferece um
jogo em que temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor
jogar do que desistir. 84

83. Russell, “Reply to Critics”, 1943, p. 683.


84. Estou certo de que alguns acolherão o falseacionismo metodológico como filosofia
“existencialista” da ciência.

137
Com efeito, esses críticos do falseacionismo ingênuo, que não oferecem
nenhum método alternativo de crítica, são inevitavelmente impelidos para o
irracionalismo. Por exemplo, o argumento confuso de Neurath de que o
falseamento e a conseqüente eliminação de uma hipótese podem resultar em “um
obstáculo ao progresso da ciência”, 85 não terá peso algum enquanto a única
alternativa que ele parece oferecer é o caos. Hempel, sem dúvida, está certo ao
acentuar que a “ciência apresenta vários exemplos [quando] o conflito entre uma
teoria altamente confirmada e uma sentença experimental recal - citrante
ocasional puder ser resolvida pela anulação desta última em lugar de sacrificar a
primeira” 8B ; não obstante, ele admite não poder oferecer nenhum outro “padrão
fundamental” além do falseacionismo ingênuo. 87 Neurath — e, aparentemente,
Hempel — rejeita o falseacionismo como “pseudo-racionalismo” 85 ; mas onde está
o “racionalismo”? Popper advertia já em 1934 que a metodologia per missiva de
Neurath (ou melhor, a sua falta de metodologia) tornaria a ciência não-empírica
e, portanto, irracional: “Precisamos de um conjunto de regras para limitar a
arbitrariedade de “suprimir” (ou “aceitar”) uma sentença protocolar. Neurath
deixa de dar essas regras e, assim, inadvertidamente, atira o empirismo pela
janela. . . Todo sistema se torna defensável se nos for permitido (e toda a gente
tem essa permissão, no entender de Neurath) simplesmente “suprimir” uma
sentença protocolar por ser inconveniente’’. 89 Popper concorda com Neurath em
que todas as proposições são faííveis; mas defende com vigor o ponto crucial de
que não podemos fazer

85. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, p. 356.


86. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 621. Agassi, em seu
ensaio de 1966, “Sensationalism", segue Neurath e Hempel, sobretudo às pp. 16 e seguintes. É
divertido observar que Agassi, ao defender esse ponto de vista, pense estar pegando em armas
contra “toda a literatura relativa aos métodos da ciência” .
Com efeito, muitos cientistas tinham plena consciência das dificuldades inerentes à
“confrontação da teoria e dos fatos”. (Cf. Einstein, “Autobiogra - phical Notes”, 1949, p. 27.)
Vários filósofos simpáticos ao falseacionismo en fatizam que “o processo de refutação de uma
hipótese científica é mais complicado do que parece à primeira vista” (Braithwaite, Scientific
Explanation, 1953, p. 20). Mas apenas Popper ofereceu uma solução construtiva, racional.

87. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 622. As agudas “teses
sobre a certeza empírica” de Hempel não fazem outra coisa senão tirar o pó dos velhos
argumentos de Neurath — e alguns de Popper — (contra Carnap, creio eu); deploravelmente,
contudo, ele não menciona seus predecessores nem seus adversários.

88. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935.


89. Popper. Logik der Forschung, 1934, seção 26.

138
progresso sem uma estratégia ou método racional firme para guiar- nos quando
elas colidem. 90
Mas a estratégia firme da classe do falseacionismo metodológico discutida
até aqui não será firme demais ? As decisões que ela advogada não estarão fadadas a
ser demasiado arbitrárias ? Alguns podem até sustentar que a única coisa que
distingue o falseacionismo metodológico do dogmático é q ue ele é falibilista da boca
para fora\

Criticar uma teoria da crítica é quase sempre muito difícil. O falseacionismo


naturalista era relativamente fácil de refutar, pois repousava numa psicologia
empírica da percepção: bastava mostrar que ele era falso. Mas como se pode
falsear um falseacionismo metodológico? Nenhum desastre pode jamais refutar
uma teoria não-jus- tificacionista da racionalidade. Ademais, como podemos
reconhecer algum dia um desastre epistemológico? Não temos meios para julgar
se a verossimilhança das nossas teorias sucessivas aumenta ou dimi nui. 91 Até o
momento, ainda não desenvolvemos uma teoria geral da crítica nem mesmo para
as teorias científicas, quanto mais para as teorias da racionalidade 92 ; portanto, se
quisermos falsear nosso falseacionismo metodológico, teremos de pôr mãos à obra
antes de ter uma teoria sobre como fazê-lo.
Se observarmos a história da ciência, se tentarmos ver como alguns dos
falseamentos mais célebres aconteceram, teremos que chegar à conclusão de que
algumas delas ou são claramente irracionais ou se apóiam em princípios de
racionalidade radicalmente diferentes dos princípios que acabamos de discutir.
Primeiramente, o nosso falseacionista deve deplorar o fato de que teóricos
obstinados contestem com freqüência vereditos experimentais e os invertam. Na
concepção falseacionista da “lei e da ordem” científica que descrevemos não há
lugar para tais apelos bem-sucedidos. Outras dificuldades surgem do falseamento
de teorias a que se acrescenta uma cláusula ceteris pa-

90. O ensaio de Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, mostra que


ele jamais apreendeu o argumento simples de Popper.
91. Estou empregando aqui o termo “verossimilhança” no sentido de Popper: a
diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade de uma teoria. Sobre os riscos
envolvidos na sua avaliação, cf. meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”,
1968, especialmente as pp. 395 e seguintes.

92. Tentei desenvolver uma teoria geral da critica em meus trabalhos de 1971 e 1972.

139
ribusP Seu falseamento, tal como ocorre na história real, é prima facie irracional
segundo os padrões do nosso falseacionista. Segundo estes padrões os cientistas
parecem ser com freqüência irracionalmente lentos: por exemplo, oitenta e cinco
anos decorreram entre a aceitação do pcriclio dc Mercúrio como anomalia e sua
aceitação como falseamento da teoria de Newton, apesar de ser a cláusula ceteris
paribus razoavelmente bem corroborada. Por outro lado, os cientistas parecem,
não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu e seus discípulos, por exemplo,
aceitaram a mecânica celeste helio- cêntrica de Copérnico apesar das abundantes
evidências contra a rotação da Terra; e Bohr e seus discípulos aceitaram uma
teoria de emissão da luz embora esta última contrariasse a bem corroborada teoria
de Maxwell.
De fato, não é difícil ver pelo menos duas características cruciais, comuns
ao falseacionismo dogmático e ao nosso falseacionismo metodológico, que
destoam claramente da verdadeira história da ciência: a saber (1) um teste é — ou
deve-se fazer que seja — uma luta, de dois adversários, entre a teoria e a experiência
de modo que, na confrontação final, só as duas se defrontem; e ( b ) o único resultado
interessante dessa confrontação é o falseamento (conclusivo): ‘‘[aí únicas genuínas]
descobertas são refutações de hipóteses científicas.” 84 Entretanto, a história da
ciência sugere que (1’) os testes são — pelo menos — lutas, de três adversários,
entre as teorias rivais c a experiência e (2’) algumas das experiências mais
interessantes resultam, prima faciej antes em confirmação do que em falseamento.
Mas se a história da ciência — como parece ser o caso — não confirma
nossa teoria da racionalidade científica, temos duas alternativas. Uma delas é
abandonar os esforços para dar uma explicação racional do êxito da ciência. O
método científico (ou “lógica da descoberta"), concebido como disciplina da
avaliação racional das teo

93. O falseamento das teorias depende do alto grau de corroboração da cláusula


cetcris paribus. Tal corroboração, todavia, muitas vezes falta. Eis aí por que o falseacionismo
nietodológico pode aconselhar-nos a confiar em nosso “instinto científico" (Popper, Logik der
Forschung, 1934, seção 18, nota de rodapé n." 2) ou cm nosso “palpite" (Braithwaite,
Scientific Explanation, 1953, p. 20).

94. Agassi, “How are Facts Discovered?” 1959, chama à idéia de ciência de Popper
“seientia negativa" (Agassi, “The Novelty of Popper’s Philo- sophy of Science", 1968).

140
rias científicas — e dos critérios de progresso — desaparece. Está claro que ainda
podemos tentar explicar mudanças em “paradigmas” em termos de psicologia
social. 95 Esse é o caminho de Polanyi e de Kuhn. 96 A outra alternativa é tentar, ao
menos, reduzir o elemento convencional do falseacionismo (não podemos de
maneira alguma eliminá-lo) e substituir as versões ingênuas do falseacionismo
metodológico — caracterizadas pelas teses (1) e (2) acima —- por uma versão
sofisticada que daria um novo fundamento lógico ao falseamento e, por esse modo,
salvaria a metodologia e a idéia de progresso científico. Este é o caminho de
Popper, e o caminho que pretendo seguir.
(c) Falseacionismo metodológico sofisticado versus falseacionismo metodológico
ingênuo. Transferência progressiva e degenerativa de problemas.
O falseacionismo sofisticado difere do falseacionismo ingênuo assim nas
regras de aceitação (ou “critério de demarcação”) como nas regras de falseamento
ou eliminação.
Para o falseacionista ingênuo qualquer teoria que se possa interpretar como
experimentalmente falseável é “aceitável” ou “científica”. 97 Para o sofisticado
uma teoria só será “aceitável” ou “científica” se tiver um excesso corroborado de
conteúdo empírico em relação à sua predecessora (ou rival), isto é, se levar à
descoberta de fatos novos. Essa condição pode ser analisada em duas cláusulas: a
nova teoria tem um excesso de conteúdo empírico (“ aceitabilidadei”) e parte
desse excesso de conteúdo é verificada (aceitabilida

95. Dever-se-ia mencionar aqui que o cético kuhniano ainda fica com
o que eu denominaria o “dilema do cético cientifico": qualquer cético científico
ainda tentará explicar mudanças em crenças e encarará sua própria teo ria psicológica como
uma teoria que, sendo mais que simples crença, em certo s entido é “científica”. Enquanto
tentava apresentar a ciência como mero sistema de crenças com o auxílio da sua teoria da
aprendizagem estímulo-resposta, Hume nunca ventilou o problema de saber se sua teoria da
aprendizagem também se aplica a si própria. E m termos contemporâneos, podemos perguntar
se a popularidade da filosofia de Kuhn indica que as pessoas lhe reconhecem a verdade. Nesse
caso, ela seria refutada. Ou essa popularidade indica que as pessoas a consideravam como
atraente moda nova? Nesse caso, ela seria “verificada”. Mas gostaria Kuhn dessa
“verificação”?

96. Feyerabend, que contribuiu provavelmente mais do que ninguém


para a difusão das idéias de Popper, parece agora ter passado para o campo
inimigo. Cf. o seu intrigante ensaio “Against Method”, 1970.
97. Cf. mais acima, p. 132.

141
de 2 ”). A primeira cláusula pode ser conferida instantaneamente 98 por uma análise
lógica a priori\ a segunda só pode ser conferida era- piricamente e isso talvez
leve um tempo indefinido.
Para o falseacionista ingênuo uma teoria é falseada por um enunciado
“observacional” (“fortificado” 99 ) que conflita com ela (ou que ele decida
interpretar como conflitando com ela). Para o sofisticado uma teoria científica T
só será falseada se outra teoria T' tiver sido proposta com as seguintes
características: (1) T' tem um excesso de conteúdo empírico em relação a T\ isto
é, prediz fatos novos, a saber, fatos improváveis à luz de T 10 °, ou mesmo
proibidos por ela; (2) 7” explica o êxito anterior de T, isto é, todo o conteúdo
não-refutado de T está incluído (dentro dos limites de erro observacional) no
conteúdo de T’; e (3) parte do conteúdo excessivo de 7” é corroborado. 101
A fim de poder avaliar tais definições, precisamos compreender - lhes os
antecedentes problemáticos e suas conseqüências. Primeiro, precisamos lembrar-
nos da descoberta metodológica dos convencio- nalistas de que nenhum resultado
experimental pode jamais matar uma teoria; qualquer teoria pode ser salva de
exemplos contrários por alguma hipótese auxiilar ou por u ma adequada
reinterpretação de seus termos. Os falseacionistas ingênuos resolveram esse
problema relegando — em contextos cruciais — as hipóteses auxiliares ao reino
do conhecimento de fundo não-problemático, eliminando-as do modelo dedutivo
de situação de teste e obrigando dessa maneira a escolhida a um isolamento
lógico, em que ela se converte num alvo fácil para o ataque de experimentos de
teste. Mas como esse processo não oferecia orientação adequada a uma
reconstrução racional da história da ciência, podemos também repensar
completamente nosso enfoque. Por que visar o falseacionismo a qualquer preço?
Por que não impor certos padrões aos ajustamentos teóricos com os quais nos é
permitido salvar uma teoria? Alguns desses padrões, na verdade, são conheci dos
há séculos e vemo-los expressos em epigramas seculares dirigidos contra as
explicações ad hoc, os subterfúgios vazios, as eva

98. Mas cf. mais adiante, pp. 191-3.


99. Cf. mais acima, p. 131, o texto correspondente à nota de pé de pá gina n.° 54.

100. Emprego “prediçáo” num sentido lato, que inclui “pós -dição”.
101. Sobre uma discussão pormenorizada dessas regras de aceitação e rejeição e sobre
referências à obra de Popper, cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”,
1968, pp. 375-90. Sobre alguma restrições (concernentes à continuidade e à consistência
como princípios reguladores), cf. mais adiante, pp. 161-2 e 173-180.

142
sivas, os truques lingüísticos. 102 Já vimos que Duhem prenunciou esses padrões
em termos de “simplicidade” e “bom senso”. 103 Mas quando a falta de
“simplicidade” no cinto protetor dos ajustamentos teóricos atinge o ponto em que
a teoria precisa ser abandonada? 101 Em que sentido foi a teoria coperniciana, por
exemplo, “mais simples” que a ptolemaica? 105 A vaga noção da “simplicidade’
duhemiana deixa a decisão, como o falseacionista ingênuo argumentou
corretamente, à mercê do gosto e da moda. 1(Mi
Pode-se melhorar o enfoque de Duhem? Popper melhorou-o. Sua solução —
uma versão sofisticada de falseacionismo metodoló gico — é mais objetiva e mais
rigorosa. Popper concorda com os convencionalistas em que as teorias e
proposições fatuais podem sempre harmonizar-se com a ajuda de hipóteses
auxiliares: concorda em que o problema consiste em como demarcar entre os
ajustamentos científico e pseudocientífico, entre as mudanças racionais e irracio-
nais da teoria. De acordo com Popper, salvar uma teoria com a aju da de hipóteses
auxiliares que satisfazem a certas condições bem definidas representa progresso
científico; mas salvar uma teoria com a ajuda de hipóteses auxiliares que não
satisfazem a essas condições, representa degeneração. Popper chama a essas
hipóteses auxiliares inadmissíveis hipóteses ad hoc, meros expedientes
lingüísticos, “estratagemas convencionalistas”. 107 Mas nesse caso qualquer teoria

102. Molière, por exemplo, ridicularizou os médicos do seu Malade hiw- ginaire, que
ofereciam a virtus dormitiva do ópio como resposta à pergunta sobre a razão por que o ópio
produzia sono. Pode-se até argumentar que o famoso dito de Newton hypolheses non fingo era
realmente dirigido contra explicações ad hoc — como sua própria explicação das forças
gravitacionais por um modelo do éter a fim de responder às objeções cartesianas.

103. Cf. mais acima, pp. 127-8.


104. A propósito, Duhem concordava com Bernard que as experiências por si sós —
sem considerações de simplicidade — podem decidir o destino de teorias em fisiologia. Mas na
física, argüia ele, não podem (La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, capítulo
VI, seção 1).
105. Koestler assinala corretamente que apenas Galileu criou o mito de que a teoria
coperniciana era simples (Koestler, The Sleepwalkers, 1959, p. 476); de fato, “o movimento da
terra [não tinhal feito muita coisa para simplificar as velhas teorias, pois embora os equantes
objetáveis houvessem desaparecido, o sistema ainda possuía um grande número de círculos
auxiliares” (Dreyer, History of the Planetary Systems from Thales to Kepler, 1906, capítulo
XIII).

106. Cf. mais acima, pp. 127-8.


107. Popper, Logik der Forschung, 1934, seções 19 e 20. Discuti com alguns detalhes —
sob os títulos de "exclusão-monstro”, "exclusão da exceção”, “ajustamento-monstro” —
estratagemas como os que aparecem na matemática informal, quase empírica; cf. meu ensaio.
“Proofs and Refutations”.

143
científica precisa ser avaliada juntamente com suas hipóteses auxilia - res,
condições iniciais, etc., e, sobretudo, com suas predecessoras pa ra podermos ver
a espécie de mudança que foi produzida. Está visto que, nesse caso, avaliamos
uma série de teorias e não teorias isoladas.
Agora nos é fácil compreender por que formulamos os critérios de
aceitação e rejeição do falseacionismo metodológico como o fizemos. 1 " 8 Mas
talvez valha a pena reformulá-los um pouco, expressando-os explicitamente em
termos de séries de teorias.
Tomemos uma série de teorias, Tx, T2, Tj. . . em que cada teoria
subseqüente resulta da adição de cláusulas auxiliares à teoria an terior (ou das
reinterpretações semânticas da teoria anterior) a fim de acomodar alguma
anomalia, tendo cada teoria pelo menos tanto conteúdo quanto o conteúdo não-
refutado da sua predecessora. Digamos que uma série de teorias nessas condições
será teoricamente progressiva (ou “constituirá uma transferência de problemas
teoricamente progressiva”) se cada nova teoria tiver algum excesso de conteúdo
empírico em relação à sua predecessora, isto é, se ela predisser algum fato novo,
até então inesperado. Digamos que uma série teoricamente progressiva de teorias
será também empiricamente progressiva (ou “constituirá uma transferência de
problemas empiricamente progressiva”) se parte desse conteúdo empírico
excessivo for também corroborado, isto é, se cada teoria nova nos conduzir à
descoberta real de algum fato novo. 109 Finalmente, seja-nos permitido chamar
progressiva à transferência de problemas se ela for, ao mesmo tempo, teórica e
empiricamente progressiva, e degenerativa se não o for. 110 Só “aceitamos” as
transferências de problemas como “científicas” se elas forem pelo menos
teoricamente progressivas; se

108. Cf. mais acima, p. 141.


109. Se já conheço P, “O cisne A é branco”, Pco ‘‘Todos os cisnes
são brancos” não representa progresso porque só pode conduzir à descoberta de outros fatos
semelhantes, como Pi: “O cisne B é branco”. As chamadas “generalizações empíricas” não
constituem progresso. Um fato novo deve ser improvável ou mesmo impossível à luz do
conhecimento anterior. Cf. mais acima, p. 141, e mais adiante, pp. 191 e seguintes.

110. A propriedade da expressão “transferência de problemas” para uma


série de teorias, em lugar de problemas, pode ser contestada. Escolhi -a, em parte, por não
haver encontrado alternativa mais apropriada — "transferência de teorias” soa horrivelmente
— e, em parte, porque as teorias são sempre problemáticas, nunca solucionam todos os problemas que se propõ
mais natural “programa de pesquisa” susbstituirá “transferência de problemas” nos contextos
mais importantes.

144
não o forem, “rejeitamo-las" como “pseudocientíficas”. O progresso mede-se pelo
grau em que uma transferência de problemas é progressiva, pelo grau em que a
série de teorias nos conduz à descoberta de fatos novos. Consideramos “falseada”
uma teoria da série quando ela é suplantada por uma teoria com um conteúdo
corroborado mais elevado. 111
Essa demarcação entre as transferências progressvias e degene rativas de
problemas projeta nova luz sobre a avaliação de explicações científicas — ou,
melhor, progressivas. Se apresentarmos uma teoria para resolver uma contradição
entre uma teoria anterior e um exemplo contrário de tal maneira que a nova
teoria, em lugar de oferecer uma explicação (científica) que aumente o conteúdo,
só ofereça uma reinterpretação (lingüística) que diminui o conteúdo, a
contradição se resolverá de modo meramente semântico, não-cientí- fico. Um fato
dado só será explicado cientificamente se um fato novo também for explicado com
ele.n2
Dessa maneira, o falseacionismo sofisticado transfere o proble ma da
avaliação de teorias para o problema da avaliação de séries de teorias. Só de uma
série de teorias se pode dizer que é científica ou não-científica, nunca de uma
teoria isolada; aplicar o termo “científico” a vma única teoria é incorrer num erro
de categoria. 113

111. Sobre “falseamento" de certas séries de teorias (“programas de


pesquisa”) em oposição ao “falseamento" de umateoria no interior da série,
veja mais adiante, pp. 191 e seguintes.
112. Com efeito, no manuscrito original do meu ensaio intitulado “Chan-
ges in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, escrevi: "Uma teoria sem excesso de
corroboração não tem excesso de poder explanatório; portanto, de acordo com Popper, não
representa crescimento e não é “científica"; devemos dizer, pois que ela não tem poder
explanatório” (p. 386). Suprimi a metade grifada da sentença pressionado por meus colegas,
para os quais ela soava muito excêntrica. Agora me arrependo de tê -lo feito.

113. A fusão de “teorias" e “séries de teorias” de Popper impediu-o de comunicar com


melhor êxito as idéias básicas do falseacionismo sofisticado. Seu emprego ambíguo redundou
em formulações desconcertantes como “O marxismo [como centro de uma série de teorias ou
de um “programa de pesquisa”] é irrefutável” e, ao mesmo tempo, “O marxismo [como
conjunção especial desse centro, de algumas hipóteses auxiliares, de condições iniciais e de
uma cláusula ceteris paribus] foi refutado.” (Cf. Popper, Conjectures and Rejutations, 1963.)
Claro está que não erramos no dizer que uma teoria isolada, singular, é “cient ífica”
quando representa um progresso sobre a sua predecessora, en quanto compreendemos
claramente que nessa formulação avaliamos a teoria como resultado de certo desenvolvimento
histórico e no contexto desse desenvolvimento.

145
O tradicional critério empírico para julgar satisfatória uma teoria era a
concordância com os fatos observados. Nosso critério empírico para uma série de
teorias é a £rodugão_dgJat 9Sjxayjas. A idéia de crescimento e o conceito de caráter
empírico estão soldados num só.
Essa forma revisada do falseacionismo metodológico tem muitos traços
novos. Primeiro, nega que, “no caso de uma teoria científica, nossa decisão depende
dos resultados dos experimentos. Se estes confirmarem a teoria, poderemos aceitá -la
até encontrar uma teoria melhor. Se a contradisserem, rejeitá-la-emos.” 114 Nega que
“o que finalmente decide o destino de uma teoria é o resultado de um teste, isto é,
uma concordância em torno de enunciados básicos”. 115 Contrariando o
falseacionismo ingênuo, nenhuma experiência, nenhum relato experimental, nenhum
enunciado de observação ou hipótese falseadora de baixo nível bem corroborada pode
levar sozinha ao falseamento. llf’ Não há jalseamento antes da emergência de.Mtna teo-
ria melhor.117 Mas nesse caso o caráter distintamente negativo do falseacionismo
ingênuo desaparece; a crítica torna-se mais difícil, e também positiva, construtiva.
Mas é claro que, se depender da emergência de teorias melhores, da invenção de
teorias que antecipam fatos novos, o falseamento não será simplesmente uma
relação ..entrp a teoria e a base empírica, mas uma relação múltipla entre às teorias
concorrentes, a “base empírica” original e o crescimento empírico resultante da
lu
competição. Pode dizer-se assim que o falseamento tem “caráter histórico”. Além
disso, algumas teorias que dão origem

114. Popper, The Open Society and its Enemies, vol II, p. 233. A atitude mais
sofisticada de Popper vem à tona na observação de que “conse qüências concretas e práticas
podem ser mais diretamente testadas pela experiência” (ibid., o grifo é meu).

115. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.


116. Sobre o caráter pragmático do ‘falseamento’ metodológica, cf. mais
acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62.
117. Na maioria dos casos, antes de falsear uma hipótese, temos outra
na manga do paletó (Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 87, nota de pé de
página n.° *1). Como o demonstra nosso argumento, precisamos ter uma. Ou, como disse
Feyerabend: “A melhor crítica é proporcionada pelas teorias que podem substituir as ri vais
por elas eliminadas” (“Reply to Cri- ticism”, 1965, p. 227). Observa ele que, em alguns casos,
“as alternativas serão indispensáveis ao propósito da refutação” (ibid. p. 254). Mas de acordo
com o nosso argumento a refutação sem uma alternativa mostra apenas a pobreza
da nossa imaginação no fornecer uma hipótese de salvamento. Veja também
1
mais adiante, p. 148, nota de rodapé n.° 123.

118. Cf. o meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic’*, 1968, pp. 387, e
seguintes.

146
ao falseamento são freqüentemente propostas depois da “evidência contrária”.
Isso pode parecer paradoxal a pessoas doutrinadas no falseacionismo ingênuo. Na
realidade, essa teoria epistemológica da relação entre a teoria e a experiência
difere nitidamente da teoria epistemológica do falseacionismo ingênuo. O próprio
termo “evidência contrária” tem de ser abandonado no sentido de que nenhum re -
sultado experimental precisa ser interpretado diretamente como evi dência
contrária. Se ainda quisermos conservar esse termo tradicional, te remos de
redefini-lo do seguinte modo: “a evidência contrária de 7Y é um exemplo
corroborante de 7' 2 incompatível com T, ou independente de 7"i (coin a condição
de que T2 seja uma teoria que explique satisfatoriamente o sucesso empírico de
7,). Isso mostra que a “evidência contrária crucial" — ou ‘‘experiências cruciais"
— pode ser reconhecida como tal entre muitas anomalias, apenas mediante a
percepção tardia, à luz de alguma teoria que suplante a anterior. 119
Desse modo, o elemento crucial 110 falseamento é saber se a nova teoria
oferece alguma informação nova, excedente, comparada com sua predecessora, e
se parte dessa informação excedente é corroborada. Os justificacionistas
avaliaram os casos “confirmadores” de uma teoria; os falseacionistas ingênuos
puseram em destaque os casos “refutados”; para os falseacionistas metodológicos
os casos corroboradores — mais raros — de informação excedente é que são os
cruciais e recebem toda a atenção. Já não nos interessam os mi lhares de casos
triviais de verificação nem as centenas de anomalias prontamente acessíveis: os
poucos casos cruciais de verificação de excedente são decisivos. 120 Essa
consideração reabilita — e reinter- preta — o velho provérbio: Exemplum docet,
exempla obscurant.
O “falseamento” no sentido do falseacionismo ingênuo (evidência contrária
corroborada) não é condição suficiente para eliminar

119. No espelho deformante do falseacionismo ingênuo, as novas teorias que


substituem as velhas teorias refutadas nascem não-refutadas. Por conseguinte, os
falseacionistas ingênuos não acreditam que haja uma diferença importante entre anomalias e
evidências contrárias cruciais. Para eles, anomalia
é um eufemismo desonesto de evidência contrária. Mas na história real novas ( teorias nascem
refutadas: herdam muitas anomalias da teoria velha. Freqüentemente, além disso, somente a
nova teoria prediz dramaticamente o fato que funcionará como evidência. contrária crucial
contra sua predecessora, ao passo que “velhas” anomalias podem continuar perfeitamente
como “novas” anomalias.
Tudo isso ficará mais claro quando apresentarmos a idéia do “programa de pesquisa”:
cf. mais adiante, pp. 166 e 218 e seguintes.

120. O falseacionismo sofisticado prenuncia uma nova teoria da apren dizagem -, cf.
mais adiante, p.

147
uma teoria específica; apesar de centenas de anomalias conhecidas, não
consideraremos que a teoria está falseada (isto é, eliminada) enquanto não
tivermos outra melhor. 121 Nem o “falseamento” no sentido ingênuo é necessário
ao falseamento no sentido sofisticado: uma transferência progressiva de
problema não precisa ser entremeada de “refutações”. A ciência pode crescer
sem “refutações” que lhe mostrem o caminho. Os falseacionistas ingênuos
sugerem um crescimento linear da ciência, no sentido de que as teorias são
seguidas de poderosas refutações, que as eliminam; tais refutações, por seu
turno, são seguidas de novas teorias. 122 É perfeitamente possível que teorias
sejam apresentadas “progressivamente” em tão rápida suces são que a
“refutação” da enésima surja apenas como corroboração da enésima-primeira. A
febre de problemas da ciência é muito mais suscitada pela proliferação de
teorias rivais do que pela proliferação de exemplos contrários ou anomalias.
Isso mostra que o slogan da proliferação de teorias é muito mais importante
para o falseacionismo sofisticado do que para o falseacionismo ingênuo. Para
este último a ciência cresce através do repetido derrubamento experimental de
teorias; novas teorias rivais propostas antes de tais “derrubamentos” podem
acelerar o crescimento mas não são absolutamente necessárias 123; a proliferação

121. É claro que a teoria 7” pode ter excesso de conteúdo empírico corroborado em
relação a outra teoria T, ainda que ambas, T e 7” sejam refutadas. O conteúdo empírico nada
tem com a verdade nem com a falsidade. Conteúdos corroborados também podem ser
comparados independentemente do conteúdo refutado. Assim podemos ver a racionalidade da
eliminação da teoria de Newton em favor da teoria de Einstein, conquanto se possa dizer qu e
a teoria de Einstein — como a de Newton — nasceu "refutada”. Temos apenas de lembrar-nos
de que “confirmação qualitativa” é um eufemismo de “desconfirmação quantitativa”. (Cf.
meu ensaio “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, pp. 384 -6.)

122. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 85, p. 279 de tradução inglesa de
1959.
123. É verdade que se permite que certo tipo de proliferação de teorias rivais
desempenhe um papel heurístico acidental no falseamento. Em muitos casos o falseamento
heuristicamente “depende da [condição] de que um nú mero assaz .grande e assaz diferente de
teorias seja oferecido” (Popper, “What is Dialectic?” 1940). Por exemplo, podemos ter uma
teoria T aparentemente não-refutada. Mas pode ser que se proponha uma nova te oria T',
incompatível com T, que também se ajuste aos fatos disponíveis: as diferenças são menores do
que a amplitude do erro observacional. Em tais casos a incompatibilidade nos incita a
aprimorar nossas “técnicas experimentais” e, assim, a refinar a "bas e empírica”, de sorte que
tanto T quanto 7” (ou incidentalmente as duas) podem ser falseadas: "Precisamos de uma
nova teoria a fim de descobrir onde
constante de teorias é opcional, mas não é compulsória. Para o fal seacionista
sofisticado a proliferação de teorias não pode esperar que as teorias aceitas sejam
“refutadas” (ou que os protagonistas passem por uma crise kuhniana de
confiança). 124 Ao passo que o falseacionismo ingênuo sublinha “a urgência de
substituir uma hipótese falseada por outra melhor”, 125 o falseacionismo
sofisticado sublinha a ' urgência de substituir qualquer hipótese por outra melhor.
O falsea mento não pode “compelir o teórico a procurar uma teoria me -
lhor”, 126 simplesmente porque o falseamento não pode preceder a teoria melhor .
A transferência de problema do falseacionismo ingênuo para o
falseacionismo sofisticado envolve uma dificuldade semântica. Para o
falseacionista ingênuo a “refutação” é um resultado experimental que, por força
de suas decisões, é levado a conflitar com a teoria que está sendo testada. Mas de
acordo com o falseacionismo sofisticado não se devem tomar tais decisões antes
que o alegado “caso refuta- dor” se tenha transformado no caso confirmador de
uma teoria nova e melhor. Por conseguinte, sempre que toparmos com termos
como “refutação”, “falseamento”, “contra-exemplo”, devemos verificar em cada
caso se esses termos são aplicados em virtude de decisões tomadas pelo
falseacionista ingênuo ou. pelo falseacionista sofisticado. 127
O falseacionismo metodológico sofisticado oferece novos padrões t para a
honestidade intelectual. A honestidade justificacionista exigia a aceitação apenas
do que estava provado e a rejeição de tudo o que não estivesse provado. A
honestidade neojustificacionista exigia a especificação da probabilidade de
qualquer hipótese à luz da evidência empírica disponível. A honestidade do
falseacionismo ingênuo

era deficiente a teoria antiga” (Popper, Conjectures and Re/utations, 1963, p. 246). Mas
o papel dessa proliferação é acidental no sentido de que, uma vez
refinada a base empírica, a luta se trava entre essa base empírica refinada e a teoria T
que está sendo testada; a teoria rival 7" agiu apenas como cata -
lisadora. (Veja também mais acima, p. 146, nota de rodapé n.° 117.)
124. Cf. Também Feyerabend, “Reply to Criticism", 1965, pp. 254-5.
125. Popper, The Logic of Scientijic Discovery, 1959. p. 87. nota de
pé de página n.° *1.
126. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.
127. Cf. também mais acima, p. 132, nota de pé de página n.° 62.
[Acrescentado no prelo:] Talvez fosse melhor no futuro abandonar de todo essas
expressões, assim como abandonamos expressões como “prova indutiva (ou
experimental)”. Assim poderemos chamar às anomalias de “refutações” (ingênuas) e, de
teorias “falseadas” (sofisticadamente) às teorias "suplantadas”. Nossa linguagem comum
está impregnada não só de dogmatismo “indutivista” mas também de dogmatismo
falseacionista. Uma reforma nesse sentido já devia ter sido feita.

149
exigia o teste da teoria falseável e a rejeição das teorias não-falseá- veis e das
falseadas. Finalmente, a honestidade do falseacionismo_so- fisticado exigia que se
tentasse olhar para as coisas de pontos He ! vista diferentes, apresentando novas
teorias que antecipassem fatos | novos, e rejeitando teorias que tivessem sido
suplantadas por outras, mais vigorosas.
O falseacionismo metodológico sofisticado mistura várias tradições
diferentes. Dos empiristas herdou a determinação de aprender principalmente
com a experiência. Dos kantianos tirou o enfoque ativista da teoria do
conhecimento. Com os convencionalistas aprendeu a importância das decisões em
metodologia.
Eu gostaria de pôr aqui em relevo mais um traço distintivo do empirismo
metodológico sofisticado: o papel crucial do excedente de corro boração. Para o
indutivista, aprender alguma coisa sobre uma nova teoria é aprender até que
ponto a evidência confirmada a sustenta; a respeito de teorias refutadas nada se
aprende (aprender, afinal de contas, é edificar conhecimento provado ou
provável). Para o falseacionista dogmático, aprender alguma coisa acerca de uma
teoria é aprender se ela foi refutada ou não; em relação a teorias confirmadas
nada se aprende (não se pode provar nem probabilizar coisa alguma), a respeito
de teorias refutadas aprende-se que elas são refutadas. 128 Para o falseacionista
sofisticado, aprender alguma coisa no tocante a uma teoria é aprender, em
primeiro lugar, que novos fatos foram por ela antecipados; com efeito, para a
espécie de empirismo popperiano que advogo, a única evidência pertinente é a
antecipada por uma teoria, e a empiricidade (ou caráter científico) e o progresso
teórico estão ligados inseparavelmente. 12!'
A idéia não é inteiramente nova. Em sua famosa carta a Con- ring em 1678,
por exemplo, Leibnitz escreveu: “A maior recomendação de uma hipótese (depois
da verdade [provada]) é poder fazer com sua ajuda predições até a respeito de
fenômenos ou experiências não-tentadas.” 130 A concepção de Leibnitz foi
amplamente aceita

128. Sobre uma defesa da teoria de “aprender com a experiência”, cf. Agassi,
"Popper on Learning from Experience”, 1969.
129. Tais observações mostram que “aprender com a experiência” é uma idéia
normativa; portanto, todas as teorias puramente “empíricas” da aprendizagem não atinam
com o âmago do problema.
130. Cf. Leibnitz, Carta a Conring, 1678. A expressão entre colchetes mostra que
Leibnitz colocava esse critério em segundo lugar e entendia que as melhores teorias são as
provadas. Desse modo, a posição de Leibnitz — como a de Whewell — está muito longe do
falseacionismo sofisticado em pleno desenvolvimento.

150
pelos cientistas. Mas como a avaliação de uma teoria científica, an tes de Popper,
significava avaliação de seu grau de justificação, essa posição foi considerada
insustentável por alguns lógicos. Em 1843, por exemplo, Mill queixa -se,
horrorizado: “parece que se pensa que uma hipótese... faz jus a uma recepção
mais favorável se, além
de explicar todos os fatos anteriormente conhecidos,conduziu à antecipação e à predição de outros, que a
conflitava não só com o justificacionismo mas também com o pro - babilismo; por
que um acontecimento antecipado pela teoria provocaria mais do que se já fosse
conhecido anteriormente? Enquanto a prova fosse o único critério do caráter
científico de uma teoria, o critério de Leibnitz só poderia ser considerado como
irrelevante. 132 Outrossim, a probabilidade de uma teoria dada a evidência não
pode sofrer a influência, como Keynes observou, do momento em que a evidência
foi produzida: a probabilidade de uma teoria dada a evi dência só pode depender
da teoria e da evidência, 133 e não de ter sido esta produzida antes ou depois
daquela.
Apesar dessa crítica justificacionista convincente, o critério persistiu entre
alguns dos melhores cientistas, visto que lhes expressava a vigorosa aversão pelas
explicações meramente ad hoc, que “embora expressem realmente os fatos [que se
propõem explicar] não são corroboradas por quaisquer outros fenômenos”. 131
Mas foi apenas Popper quem reconheceu que a incompatibilidade prima
facie entre as poucas observações estranhas e casuais contra as hipóteses ad hoc
de um lado e o imenso edifício de filosofia justificacionista do conhecimento
precisa ser solucionada demolin

131. Mill, A System of Logic, Racionative and Inductive, fíeing a Con - nected View of
lhe Principies of Evidence, and lhe Methods of Scientific In - vestigation, 1843, vol. II, p. 23.

132. Esse era o argumento de J. S. Mill (ibid.). Ele dirigiu-o contra Whewell, segundo
o qual “a confluência de induções” ou predição bem -sucedida de acontecimentos improváveis
verifica (isto é, prova) uma teoria. (Whewell, Novum Organum Renovatum, 1858, pp. 95-6.) A
contradição básica, sem dúvida, da filosofia da ciência, tanto de Whewell quanto de Duhem, é
a fusão que eles operam entre o poder de predição e a verdade provada. Popper se~ parou os
dois.

133. Keynes. A Treatise on Probability, 1921, p. 305. Mas cf. o meu ensaio, “Changes
in the Problem of Inductive Logic”, de 1968, p. 394.
134. Este é o comentário crítico de Whewell sobre uma hipótese auxiliar ad hoc da
teoria da luz de Newton (Whewell, Novum Organum Renovatum, vol. II, p. 317.)

151
do-se o justificacionismo e apresentando novos critérios não- -justificacionistas
para avaliar teorias científicas baseadas no caráter anti adhoc.

Atentemos para alguns exemplos. A teoria de Einstein não é melhor que a


de Newton porque a teoria de Newton foi “refutada” e a de Einstein não o foi;
existem muitas “anomalias” conhecidas na teoria einsteiniana. A teoria de
Einstein é melhor do que — isto é, representa progresso quando comparada com
— a teoria de Newton armo 1916 (isto é, as leis da dinâmica, a lei da gravitação,
o conjunto conhecido de cõndições iniciais; “menos” a lista de anomalias
conhecidas, como o periélio de Mercúrio) porque explicava tudo que a teoria de
Newton explicara com êxito, e explicava também, até certo ponto, algumas
anomalias conhecidas e, além disso, proibia aconteciment os como a transmissão
da luz ao longo de linhas retas perto de grandes massas, a cujo respeito a teoria
de Newton nada dissera, mas que haviam sido permitidos por outras teorias
científicas bem corroboradas do tempo; ademais, pelo menos parte do inespe- j
rado excedente de conteúdo einsteiniano era de fato corroborada (por exemplo,
pelas experiências do eclipse).
Por outro lado, de acordo com esses padrões sofisticados, a teo ria de
Galileu, segundo a qual o movimento natural dos objetos ter restres era circular,
não introduziu melhoramento algum visto que não proibiu nada que não tinha
sido proibido pelas teorias pertinentes que ele, Galileu, pretendia melhorar (isto
é, pela física aristotélica e pela cinemática celeste coperniciana). Essa teoria era
portanto ad hoc e portanto — do ponto de vista heurístico — sem valor. 135
Um belo exemplo de teoria que satisfazia apenas à primeira parte do
critério de progresso de Popper (excedente de conteúdo), mas não à segunda parte
(excedente corroborado de conteúdo) foi dado pelo próprio Popper: a teoria de
Bohr-Kramers-Slater de 1924, cujas novas predições foram todas refutadas, 136

135. Na terminologia do meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”,


de 1968, essa teoria era “ad hoc,’’ (cf. op. cit., p. 389, nota de rodapé n.° 1); o exemplo me
foi originalmente sugerido por Paul Feyerabend como paradigma de uma valiosa teoria ad
hoc. Mas cf. mais adiante, p. 174, especialmente a nota de rodapé n.° 194.

136. Na terminologia do meu ensaio "Changes in the Probl em of Inductive Logic”,


de 1968, essa teoria não era “ad hoc^’, mas “ad hoc 2 " (cf. op. cit., p.
389, nota de rodapé n.° 1). Sobre uma ilustração simples, porém artificial, veja ibid., p. 387,
nota de pé de página n.° 3. (Sobre ad hoc v cf. mais adiante, p. 217, nota de pé de página n.°
323.)

152
Consideremos finalmente quanto convencionalismo subsiste no
falseacionismo sofisticado. Menos, por certo, do que no falseacionismo ingênuo.
Precisamos de menos decisões metodológicas. A “decisão de quarto tipo”,
essencial à versão ingênua, 137 tornou-se completamente redundante. Para mostrá-
lo basta-nos compreender que quando uma teoria científica, que consiste em
algumas “leis da natureza”, condições iniciais, teorias auxiliares (mas sem
cláusula ceteris paribus) conflita com algumas proposições fatuais, não
precisamos decidir que parte — explícita ou “oculta” — cumpre substituir. Po
demos tentar substituir qualquer parte e só quando esbarramos num explicação da
anomalia com a ajuda 3è alguma mudança aumenta dora do conteúdo (ou hipótese
auxiliar), e a natureza a corrobora passamos a eliminar o complexo “refutado”.
Assim, o falseament sofisticado é um processo mais lento, porém possivelmente
mais se guro, do que o falseamento ingênuo.

Tomemos um exemplo. Suponhamos que a trajetória de um planeta difira da


trajetória prevista. Alguns concluem disso que o fato refuta a dinâmica e a teoria
gravitacional aplicadas; as condições iniciais e a cláusula ceteris paribus foram
engenhosamente corroboradas. Outros concluem que o fato refuta as condições
iniciais usadas nos cálculos; a dinâmica e a teoria gravitacional têm sido soberba -
mente corroboradas nos últimos duzentos anos e todas as sugestões relativas a
fatores adicionais em jogo falharam. Outros, todavia, concluem que o fato refuta
a suposição implícita de que não havia outros fatores em jogo além dos uqe foram
tomados em consideração: é possível que essas pessoas sejam motivadas pelo
princípio metafísico de que qualquer explicação é apenas aproximativa devido à
infinita complexidade dos fatores envolvidos na determinação de um único
acontecimento. Devemos, acaso, elogiar o primeiro tipo como “ crítico", renegar o
segundo como “mercenário” e condenar o terceiro por “apologético”? Não. Não
precisamos concluir coisa alguma dessa “refutação”. Nunca rejeitamos uma teoria
específica simplesmente por decreto. Quando se nos depara uma
incompatibilidade como a mencionada, não precisamos decidir quais os
ingredientes da teoria que consideramos problemáticos nem os que considera mos
não-pro- blemáticos: basta-nos considerar todos eles problemáticos à luz do
enunciado básico aceito conflitante e tentar substituí -los. Conseguindo substituir
algum ingrediente de modo “progressivo” (isto é, de modo que o substituto tenha
mais conteúdo empírico corroborado do que o original), diremos que está
“falseado”.

137. Cf. mais acima, p. 133.

153
Tampouco necessitamos da decisão de quinto tipo do falseacio- nista
ingênuo. 1 - 18 A fim de mostrá-lo atentemos de novo para o problema das teorias
(sintaticamente) metafísicas — e para o problema de sua retenção e eliminação.
A solução “sofisticada” é óbvia. Retemos uma teoria sintaticamente metafísica
enquanto os casos problemáticos podem ser explicados por mudanças que
aumentam o conteúdo nas hipóteses auxiliares associadas a ela. i:i# Tomemos, por
exemplo, a metafísica cartesiana C: “Em todos os processos naturais há um
mecanismo de relógio regulado por princípios (a priori) que o animam.” Isso é
sintaticamente irrefutável: não colide com nenhum “enunciado básico” espaço-
temporalmente singular. Está claro que pode colidir com uma teoria refutável
como N: “a gravitação é uma força igual a fmi m2/r 1 que age a distância". Mas N
só colidirá com C se a “ação a distância” for interpretada literalmente e tal vez,
além disso, como representando uma verdade final, irredutível a uma causa mais
profunda. (Popper a chamaria de interpretação “essencia - lista”.)
Alternativamente podemos considerar a “ação a distância” como causa indireta.
Nesse caso, interpretamos “ação a distância” figurativamente, considerando-a
como uma síntese para algum mecanismo oculto de ação por contato. (Podemos
chamá-la de interpretação “nominalista”.) Nessas condições, podemos tentar
explicar N por C — o próprio Newton e diversos físicos franceses do século
XVIII tentaram fazê-lo. Se uma teoria auxiliar que leva a cabo essa explicação
(ou, se quiserem, “redução”) produz fatos novos ou seja, é “independentemente
testável”), a metafísica cartesiana deve ser considerada boa, científica, empí rica,
geradora de uma transferência progressiva de problemas. Uma teoria metafísica
(sintaticamente) progressiva produz uma transferência progressiva sustentada em
seu cinto protetor de teorias auxiliares. Se a redução da teoria à estrutura
“metafísica” não produz um novo conteúdo empírico, e muito menos fatos novos,
a redução representa uma transferência flegene- rativa de problemas; é um mero
exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para sustentar sua “metafísica” a
fim de explicar a gra-

138. Cf. mais acima, p. 136.


139. Só podemos formular essa condição com notável clareza em fun ção da metodologia
dos programas de pesquisa que será explicada no § 3: conservamos uma teoria sintaticamente
metafísica como “núcleo’’ de um programa de pesquisa, enquanto a sua heurística positiva
associada produz uma transferência progressiva de problema no “cinto protetor" das hipóteses
auxiliares. Cf. mais adiante, pp. 166-7.

154
vitação newtoniana é um exemplo notável de uma redução meramente lingüística
dessa natureza. 140
Assim, não eliminamos uma teoria (sintaticamente) metafísica se ela colidir
com uma teoria científica bem corroborada, como su- 1 gere o falseacionismo
ingênuo. Eliminámo-la se ela produz uma trans- / ferência degenerativa a longo
prazo e quando há uma metafísica rival, melhor, para substituí-la. A metodologia
de um programa de pesqui- j sa com um núcleo “metafísico” não difere da
metodologia de um programa de pesquisa com um núcleo “refutável”, exceto,
talvez, no que concerne ao nível lógico das incoerências que são a força con- ;
dutora do programa. 141
(Cumpre acentuar, todavia, que a própria escolha da forma ló gica em que se
há de expressar a teoria depende, em grande parte, da nossa decisão
metodológica. Por exemplo, em vez de formular a metafísica carte siana como um
enunciado do tipo ‘todos-alguns”, podemos formulá-la como um enunciado do
tipo “todos. . todos os processos naturais são mecanismos de relógios”. Um
“enunciado básico” que o contradissesse seria: “a é um processo natural e não é
um mecanismo de relógio”. A questão é saber se, de acordo com as “técnicas
experimentais”, ou melhor, com as teorias interpretativas do momento, “x não é
um mecanismo de relógio” pode ou não ser “estabelecido”. Assim a escolha
racional da forma lógica de uma teoria depende do estado do nosso conhecimento;
por exemplo, o que hoje é um enunciado metafísico do tipo “todos -alguns” pode
tornar-se, amanhã, com a mudança do nível de teorias observacionais, um
enunciado científico do tipo “todos. . .”. Já afirmei que somente séries de teorias e
não teorias isoladas podem ser classificadas como científicas ou não-científicas;
agora indiquei que até a
forma lógica de uma teoria só pode ser racionalmenteescolhida com
base numa avaliação crítica do estado do programa de pesquisa em que ela está
encaixada.)
Entretanto, as decisões do primeiro, do segundo e do terceiro tipos do
falseacionismo ingênuo 142 não podem ser evitadas mas,

140. Esse fenômeno foi descrito num belo trabalho de Whewell intitu lado “On the
Transformation of Hypotheses in the History of Science” (1851); mas ele não pôde explicá -lo
metodologicamente. Em lugar de reconhecer a vitória do programa newtoniano progressivo
sobre o programa cartesiano degenerativo, entendeu ser essa a vitória da verdade provada
sobre a falsidade. Acerca de uma discussão geral da demarcação entre a redução
progressiva e a redução degenerativa, cf. Popper, “A Realist View of Logic, Physics and
History”, de 1969.

141. Cf. mais acima, p. , nota de rodapé n.°


142. Cf. mais acima, pp. e

155
tava T, aplicou 7’,. Interpretou o que viu à luz de I,: e o resultado foi Rt. No
entanto, no modelo monoteórico da teoria explicativa submetida a teste essa teoria
interpretativa não aparece.
E se Th a teoria interpretativa, for falsa? Por que não “aplicar ” T em lugar
de T, e sustentar que os pesos atômicos precisam ser números inteiros? Nesse
caso, este será um “fato concreto” à luz de T, e T, será derrubada. Talvez novos
processos purificadores adicionais devam ser inventados e aplicados.
O problema, portanto, não é quando devemos aferrar-nos a uma “teoria"
diante de “fatos conhecidos" e quando não devemos. O problema não é o que fazer
quando “teorias” colidem com “fatos”. Uma “colisão” dessa natureza só é
sugerida pelo “modelo dedutivo monoteórico”. O fato de uma proposição ser um
“fato" ou uma “teoria" no contexto de uma situação de teste depende da nossa de-
cisão metòdológica. A^“base empírica de uma teoria” é uma noção monoteóriòa,
é relativa a uma estrutura dedutiva monoteórica. Podemos empregá-la como
primeira aproximação; mas em caso de “apelo” feito pelo teórico, precisamos
usar um modelo pluralístico. No modelo pluralístico a colisão não se verifica
“entre teorias e fatos” mas entre duas teorias de alto nível: entre uma teoria
interpretativa para fornecer os fatos e uma teoria explanatória para explicá-los; e a
teoria interpretativa pode estar num nível tão elevado quanto á teoria
explanatória. O choque, portanto, já não se verifica entre uma teoria de nível
logicamente mais elevado e uma hipótese falseadora de nível inferior. O
problema não deveria ser colocado em termos de se saber se uma “refutação" é
real ou não. O problema é como reparar uma contradição entre a “teoria
explanatória” que está sendo testada e as teorias “interpretativas” — explícitas ou
ocultas; ou, se quiserem, o problema é saber que teoria considerar como a teoria
interpretativa, que fornece os fatos “concretos” e que teoria considerar como a
teoria explanatória, que “tentativamente’’ os explica. Num modelo monoteórico
consideramos a teoria de nível mais elevado como uma teoria explanatória que
será julgada pelos "fatos” obtidos de fora (pelo experimentador autorizado); no
caso 3e conflito rejeitamos a explicação. 148 Num modelo pluralístico podemos

148. A decisão de usar um modelo monoteórico é claramente vital para o


falseacionista ingênuo, pois lhe permite rejeitar uma teoria sob o único pretexto da evidência
experimental. Está de acordo com a necessidade que ele tem de dividir nitidamente, pelo
menos numa situação de teste, o corpo da ciência em dois: o problemático e o não -
problemático (Cf. mais acima, p. 130.) Só a teoria que ele decide considerar problemática é
por ele articulada em seu modelo dedutivo de crítica.
decidir, alternativamente, considerar a teoria de nível mais elevado como teoria
interpretativa para julgar os "fatos” obtidos de fora; em caso de conflito podemos
rejeitar os “fatos” como “monstros”. Num modelo pluralístico de teste, várias
teorias — mais ou menos dedutivamente organizadas — estão soldadas umas nas
outras.
Só esse argumento bastaria para mostrar a correção da conclusão, extraída
de um argumento anterior diferente, de que as experiências simplesmente não
derrubam teorias, de que nenhuma teoria proíbe um estado de coisas especificável
de antemão. 119 Não se trata de propormos uma teoria e a Natureza poder gritar
NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias, e a Natureza poder gritar
INCOMPATÍVEIS. 150
O problema é então transferido do velho problema de substituir úma teoria
refutada por “fatos” para o novo problema de como resolver incompatibilidades
entre teorias intimamente associadas. Qual das teorias mutuamente incompatíveis
deve ser eliminada? O falseacionista sofisticado pode responder com facilidade à
pergunta: precisamos tentar substituir primeiro uma, depois a outra, depois j
talvez as duas, e optar pela nova organização, que proporciona o | maior aumento
de conteúdo corroborado, que proporciona a trans-/ ferência mais progressiva de
problemas. 151
Estabelecemos assim um processo de apelo para o caso de querer o teórico
contestar a sentença negativa do experimentador. O teórico pode exigir que o
experimentador especifique sua “teoria inter-

149. Cf. mais acima, p. 120.


150. Seja-me aqui permitido responder a uma possível objeção: "Por
certo não precisamos de que a Natureza nos diga que um conjunto de teorias é
inconsistente. A inconsistência — à diferença da falsidade — pode ser determinada sem a
ajuda da Natureza”. Mas o “NÃO” real da Natureza numa metodologia monoteórica assume
a forma de um “falseador potencial” fortificado, isto é, uma sentença que, nessa maneira de
falar, afirmamos ter sido proferida pela Natureza e que é a negação da nossa teoria. A
“INCONSISTÊNCIA” real da Natureza numa metodogia pluralística assume a forma de um
enunciado “fatual” expresso à luz de uma das teorias envolvidas, queproclamamos ter sido proferida pela Natureza e q
propostas, produz um sistema inconsistente.

151. Por exemplo, em nosso exemplo anterior (cf. mais acima, p. 129 e seguintes)
alguns podem tentar substituir a teoria gravitacional por uma nova e outros podem tentar
substituir a radiótica por uma nova: escolhemos o processo que oferece o crescimento mais
espetacular, a transferência mais progressiva de problemas.

159
pretativa”, 152, podendo então substituí-la -— para contrariedade do
experimentador — por outra melhor, a cuja luz sua teoria originalmente
“refutada” recebe uma avaliação positiva. 153
Mesmo esse apelo, porém, não pode fazer mais do que adiar a decisão
convencional. Pois a sentença do tribunal de apelação também não é infalível.
Quando decidimos se é a substituição da teoria “interpretativa” ou a substituição
da teoria “explanatória” que produz fatos novos, precisamos decidir outra vez
acerca da aceitação ou rejeição de enunciados básicos. Nesse caso, porém,
teremos apenas adiado — e possivelmente melhorado — a decisão; não a teremos
evitado. 154 As dificuldades que dizem respeito à base empírica com as quais se
defrontoil o falseácionismo “ingênuo” também não podem ser evitadas pelo
falseacionismo “sofisticado”. Mesmó~ que consideremos “fatual” uma teoria,
isto é, se a nossa imaginação limitada, de movimentos lentos, não puder oferecer
uma alternativa para ela (como Feyerabend costumava dizê-lo), precisamos
tomar, Jielo menos ocasional e temporariamente, decisões a respeito do seu
valor- -de-verdade. Mesmo assim, a experiência continua sendo, num sentido
importante, o ",árbitro imparcial” 155 da controvérsia científica.

152. A crítica não presume uma estrutura dedutiva plenamente inteligível: cria-a. (A
propósito, esta é a tese principal do meu ensaio de 1963 -4, "Proofs and Refutations”.)

153. Um exemplo clássico desse modelo é a relação entre Newton e Flamsteed, o


primeiro astrônomo real. Newton, por exemplo, visitou Flamsteed no dia 1.° de setembro de
1694, quando trabalhava o dia inteiro em sua teoria lunar; pediu -lhe que reinterpretasse
alguns dos seus dados, que lhe contradiziam a própria teoria; e explicou-lhe exatamente como
deveria proceder. Flamsteed obedeceu e escreveu a Newton no dia 7 de outubro: “Depois que o
senhor foi para casa, examinei minhas observações para determinar as maio res equações da
órbita da terra e considerar os lugares da lua nessas ocasiões. .. Verifico que (se, como o
senhor afirma, a terra se inclina para o lado em que está a lua) o senhor pode descontar cerca
de 20” dela...” Assim Newton criticava e corrigia constantemente as teorias observaçionals cie
Flamsteed. Newton ensinou-lhe, por exemplo, uma teoria melhor do poder de refração da
atmosfera; Flamsteed aceitou-o e corrigiu seus “dados” originais. Pode compreender -se a
constante humilhação e a fúria crescente desse grande observador ao ver seus dados criticados
e aprimorados por um homem que, como el e mesmo confessava, não fazia observações por si
próprio: e desconfio muito de que foi esse sentimento a origem de uma rancorosa controvérsia
entre ambos.

154. O mesmo se aplica ao terceiro tipo de decisão. Se só rejeitarmos uma hipótese


aleatória por outra que, ao nosso entender, a suplanta, a forma exata das “regras de rejeição”
se tornará menos importante.
155. Popper, The Open Society and Its Enemies, 1945, vol. II, capítulo
23, p. 218.

160
Não poderemos livrar-nos do problema da “base empírica”, se qui- ) sermos aprender
com a experiência 15e; mas podemos tornar nosso aprendizado menos dogmático —
mas também menos rápido e me- I nos dramático. Encarando como problemáticas
algumas teorias obser- . vacionais podemos tornar mais flexível nossa metodologia,
mas não podemos expressar e incluir todo o “conhecimento de fundo” (ou ,
“ignorância de fundo”?) em nosso modelo dedutivo crítico. Esse processo está
fadado a realizar-se aos poucos e é preciso traçar uma linha convencional a
qualquer tempo dado.

Há uma objeção até para a versão sofisticada do falseacionismo


metodológico à qual não se pode responder sem fazer uma conces são ao
“simplismo” duhemiano. A objeção é o chamado “paradoxo de rodeios” (“tacking
paradox”). De acordo com nossas definições, acrescentar hipóteses de baixo nível
completamente desconexas a uma teoria dada pode constituir uma “transferência
progressiva”. É difícil eliminar tais transferências provisórias sem exigir que as
asserções adicionais devam ser ligadas à asserção original mais intimamente do
que por simples conjunção. Claro está que isso é uma espécie de requisito de
simplicidade que asseguraria a continuidade na série de teorias que, segundo se
pode dizer, constitui uma transferência de problemas.
Isso nos conduz a novos problemas. Pois um dos traços cruciais do
falseacionismo sofisticado é substituir o conceito de teoria, como ) conceito da
descoberta, pelo da série de teorias. Ê uma sucessão de teorias e não uma teoria
determinada que se avalia como científica I óu pseudocientífica. Mas os elementos
dessa série de teorias costu- . mam estar ligados por notável continuidade, que os
solda em progra- 'l mas de pesquisa. Essa continuidade — que lembra a “ciência nor-
mal” kuhniana — desempenha um papel vital na história da ciência;/ os principais
problemas da lógica da descoberta só podem ser satis-j fatoriamente discutidos na
estrutura de uma metodologia dos pro-i gramas de pesquisa.

3. UMA METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE


PESQUISA CIENTIFICA
Discuti o problema da avaliação objetiva do crescimento científico em
termos de transferências progressivas e degenerativas de pro-

156. Agassi, portanto, está errado em sua tese de que "os relatos de observação podem
ser aceitos como falsos e, por conseguinte, assim se elimina o problema da base empíric a”
(Agassi, "Sensationalism”, 1966, p. 20).

161
blemas em séries de teorias científicas. As mais importantes dessas séries no
crescimento da ciência caracterizam-se por certa continuidade que liga seus
elementos. Essa continuidade se desenvolve de um aut êntico programa de
pesquisa esboçado a princípio. O programa consiste em regras metodológicas;
algumas nos dizem quais são os caminhos de pesquisa que devem ser evitados
(heurística negativa), outras nos dizem quais são os caminhos que devem ser
palmilhados (heurística positiva) . 157
A própria ciência como um todo pode ser considerada um imen so programa
de pesquisa com a suprema regra heurística de Popper: “arquitetar conjeturas que
tenham maior conteúdo empírico do que as predecessoras.” Essas regras
metodológicas podem ser formuladas, como Popper assinalou, como princípios
metafísicos. 158 Por exemplo, a regra anticonvencionalista úniversal contra a
exclusão da exceção pode ser formulada como o princípio metafísico: “A
natureza não admite exceções”. Por isso é que Watkins chamava a tais regras
“metafísica influente”. 159
Mas o que tenho sobretudo em mente não é a ciência como um todo, senão
programas particulares de pesquisa, como o conhecido por “metafísica
cartesiana”. A metafísica cartesiana, isto é, a teoria mecanicista do universo —
de acordo com a qual o universo é um itnenso mecanismo de relógio (e um
sistema de vórtices) que tem o impulso como única causa do movimento —
funcionou como poderoso princípio heurístico. Desestimulava o trabalho em
teorias científicas que — como [a versão “essencialista” da] teoria de Newton de
ação a distância — fossem incompatíveis com ela (heurística negativa) e, de outro
lado, estimulava o trabalho sobre hipóteses auxi-

157. Pode-se assinalar que a heurística negativa e a positiva dão uma definição tosca
(implícita) do “referencial conceptual” (e conseqüentemente da linguagem. O reconhecimento
de que a história da ciência é a história dos programas de pesquisa mais do que dás teorias
pode, portanto, sêF visto como uma justificação parcial do ponto de vista de que a história da
ciência é a história de estruturas conceptuais ou das linguagens científicas.
■" 158. Popper, Logik der Forschung, 1934, seções II e 70. Uso “metafí

sicos” como termo técnico do falseacionismo ingênuo: uma proposição contin gente será
“metafísica” se não tiver “falseadores potenciais”.
159. Watkins, "Influential and Confirmable Metaphysics”, 1958. Watkins adverte que
“a lacuna lógica entre os enunciados e as prescrições no campo metafísico -metodológico é
ilustrado pelo fato de poder uma pessoa rejeitar uma doutrina [metafísica] em sua forma de
exposição de fatos enquanto lhe subscre ve a versão prescritiva" (Ibid., pp. 356-7).

162
liares que poderiam tê-la salvo da aparente evidência contrária — como as elipses
keplerianas (heurística positiva) . 160
(a) Heurística negativa: o “núcleo” do programa.
Todos os programas de pesquisa científica podem ser caracterizados pelo
“núcleo”. A heurística negativa do programa nos proibe dirigir o modus tollens
para esse “núcleo”. Ao invés disso, precisamos utilizar nosso engenho para
articular ou mesmo inventar “hipóteses auxiliares”, que formam um cinto de
proteção em torno do núcleo, e precisamos redirigir o modus tollens para elas. Ê
esse cinto de proteção de hipóteses auxiliares que tem de suportar o impacto dos
testes e ir se ajustando e reajusando, ou mesmo ser completamente substituído,
para defender o núcleo assim fortalecido. O programa de pesquisa será bem-
sucedido se tudo isso conduzir a uma transferência progressiva de problemas,
porém mal sucedido se con- dilzlr a uma transferência degenerativa de
problemas.
O exemplo clássico de programa de pesquisa bem-sucedido é á teoria
gravitacional de Newton; talvez seja até o mais bem-sucedido programa de pesquisa
já levado a cabo. Quando foi produzido pela primeira vez, viu -se submerso num
oceano de "anomalias” (ou, se quiserem, de “contra -exemplos”), 161 e enfrentou a
oposição das teorias observacionais que sustentavam tais anomalias. Os newtonia - !
nos, contudo, transformaram, com tenacidade e engenho brilhantes, ' um contra -
exemplo depois do outro em exemplos corroborativos, í principalmente derrubando as
teorias observacionais originais a cuja 1 luz essa “evidência contrária” foi
estabelecida. No processo, eles mes- j mos produziram novos contra-exemplos, que
novamente resolviam. 1 “Converteram cada nova dificuldade numa nova vitória do
seu pro- I grama”. 162
No programa de Newton a heurística negativa nos sugere que desviemos o
modus tollens das três leis da dinâmica e da lei de gravi- tação de Newton. Esse
“núcleo” é “irrefutável” por decisão metodo-

160. Sobre esse programa de pesquisa cartesiano, cf. Popper, “Philoso- phy and
Physics”, 1958, e Watkins, “Influential and Confirmable Metaphysics”, pp. 350 -1.

161. Sobre o esclarecimento dos conceitos de “exemplo contrário” e “anomalia”,


cf. mais acima, p. 133, e sobretudo mais adiante, p. 195, o texto correspondente à nota de
pé de página n.° 251.
162. Laplace, Exposition du Système du Monde, 1796, livro IV, capítulo ii.

163
lógica de seus protagonistas: as anomalias só devem conduzir a mu danças no
cinto “protetor” da hipótese auxiliar, “observacional” e das condições iniciais. 163
Dei um microexemplo inventado de uma transferência progressiva
newtoniana, de problemas. 164 Se o analisarmos, veremos que cada elo sucessivo
nesse exercício prediz um fato novo; cada passo representa um aumento do
conteúdo empírico: o exemplo constitui uma transferência teórica coerentemente
progressiva. Outrossim, cada predição se verifica no fim; embora em três ocasiões
subseqüentes as predições pareçam ter sido momentaneamente “refutadas”. 165 Ao
passo que o “progresso teórico” (no sentido aqui descrito) pode ser verificado
imediatamente, 166 o “progresso empírico” não pode, e num programa de pesquisa
somos, àk vezes, frustrados por uriiã longa série de “refutações” antes que
hipóteses auxiliares, engenhosas e felizes, capazes de aumentar o conteúdo,
convertam — retrospectivamente — uma cadeia de derrotas numa ressòáhtè
Kistõría"^ê sucesso, quer revendo alguns “fatos” falsos, quer acrescentando
novas hipóteses auxiliares. Podemos dizer então que precisamos exigir de cada
passo de um programa de pesquisa que aumente consistente- mente o conteúdo:
que cada passo constitua uma transferência teórica consistentemente progressiva de
problemas. Além disso, só precisamos, pelo menos de vez em quando, que se veja
que o aumento de conteúdo foi retrospectivamente corroborado; o programa como
um todo deve também exibir uma transferência empírica intermitentemente
progressiva. Não exigimos que cada passo produza imediatamente um fato novo
observado. Nosso termo “intermitentemente” dá suficiente amplitude racional para
a adesão dogmática a um programa em face de “refutações” prima facie.
A idéia da “heurística negativa” de um programa de pesquisa científica racionaliza
de forma considerável o convencionalismo clássico. Podemos decidir racionalmente
não permitir que “refutações” ! transmitám falsidade ao núcleo enquanto aumenta o
conteúdo empírico corroborado do cinto protetor de hipóteses auxiliares. Nossa

163. O núcleo real de um programa não emerge, na realidade, comple tamente


armado — como Atenas da cabeça de Zeus. ge^envolve-se. ads poucos, por um longo
processo preliminar de ensaio-e-erro. Neste ensaio não se discute o citado processo.

164. Cf. mais acima, pp. 120-1.


165. A “refutação” foi, todas as vezes, desviada com êxito para “lemas ocultos”; isto
é, para lemas que emergem, por assim dizer, da cláusula ceteris paribus.

166. Mss cf. mais adiante, pp. 190-2.

164
abordagem, porém, difere do convencionalismo justificacionista de Poincaré no
sentido de que, à diferença de Poincaré, sustentamos que . na hipótese de o
programa deixar de antecipar fatos novos, e quando isso acontecer, o seu núcleo
talvez tenha de ser abandonado; isto é, o nosso núcleo, à diferença do de Poincaré,
pode desintegrar-se em certas condições. Nesse sentido estamos com Duhem,
segundo o qual era preciso tomar em consideração essa possibilidade; 107 mas para,
Duhem a razão da desintegração é puramente estética, 188 ' ao passo ^ que pára nóá
èlã ê sobretudo lógica e empírica.

(b) Heurística positiva: a construção do “cinto de proteção" e a


relativa autonomia da ciência teórica.
Os programas de pesquisa, além da sua heurística negativa, ca racterizam-se
também pela sua heurística positiva.
Até os programas mais rápida e coerentemente progressivos de pesquisa só
podem digerir sua “evidência contrária” aos poucos: as anomalias nunca se
esgotam de todo. Não se deve pensar, porém, que anomalias ainda não -explicadas
— “quebra-cabeças” como Kuhn lhes poderia chamar — são compreendidas ao
acaso, e o cinto de proteção construído de maneira eclética, sem nenhuma ordem
preconcebida. A ordem costuma ser decidida no gabinete do teórico, in-
dependentemente das anomalias conhecidas. Poucos cientistas teóricos
empenhados num programa de pesquisa dão indevida atenção a “refutaçõ es”. Eles
têm uma política de pesquisa a longo prazo que as antecipa. Essa política, ou
ordem, de pesquisa é exposta — com maiores ou menores minúcias — na
heurística positiva do programa de pesquisa. A heurística negativa especifica o
“núcleo" do progra- ) ma, que é “irrefutável” por decisão metodológica dos seus
protagonistas; a heurística positiva consiste num conjunto parcialmente arti culado
de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as “variantes
refutáveis” do programa de pesquisa, e sobre como modi-, ficar e sofisticar o cinto
de proteção “refutável”.
A heurística positiva do programa impede que o cientista se confunda no
oceano de anomalias. A heurística positiva apresenta um programa que inclui uma
cadeia de modelos, cada vez mais complicados, que simulam a realidade: a atenção
do cientista focaliza-se na construção dos modelos de acordo com as instruções
que figuram

167. Cf. mais acima, p.


127.
168. Ibid.

165
na parte positiva do programa. Ele ignora os contra-exemplos reais, os “dados”
disponíveis. 169 Newton elaborou primeiro o seu programa para um sistema
planetário com um ponto fixo como sol e um único ponto como planeta. Desse
modelo, derivou sua lei do inverso do quadrado para a elipse de Kepler. Mas esse
modelo foi proibido pela própria terceira lei da dinâmica de Newton e, portanto,
precisou ser substituído por outro em que tanto o sol quanto o planeta gira vam em
torno do seu centro comum de gravidade. A mudança não foi motivada por
nenhuma observação (os dados não sugeriram aqui “anomalia” alguma) mas por
uma dificuldade teórica no desenvolvimento do programa. Em seguida, Newton
desenvolveu o programa para um número maior de planetas, como se houvesse
apenas forças heliocêntricas mas não houvesse forças interplanetárias. Ato contí-
nuo, desenvolveu a hipótese de não serem o sol e os planetas pontos - -massa, mas
bolas-massa. E para essa mudança tampouco precisou da observação de uma
anomalia; a densidade infinita era proibida por uma teoria (não-expressa) que
servia de critério e, por conseguinte, os planetas tinham que ter extensão. A
mudança supunha consideráveis dificuldades matemáticas, retardou o trabalho de
Newton — e atrasou a publicação dos Principia por mais de um decênio. Tendo
solucionado esse “enigma”, ele pôs-se a trabalhar em esferas giratórias e suas
oscilações. A seguir, admitiu a existência de forças interplanetárias e começou a
trabalhar em perturbações. Nesse ponto principiou a olhar com maior ansiedade
para os fatos. Muitos eram magnificamente explicados (qualitativamente) pelo
modelo, muitos não o eram. Foi então que começou a trabalhar com planetas
irregulares, em lugar de planetas redondos, etc.
Newton desprezava as pessoas que, à semelhança de Hooke, tropeçavam
num primeiro modelo ingênuo mas não tinham a tenacidade nem capacidade para
desenvolvê-lo e transformá-lo num programa de pesquisa, e encaravam uma
primeira versão, um mero aparte, como uma “descoberta”. Sustou a publicação
até que o seu programa logrou uma notável transferência progressiva. 170

169. Quando um cientista (ou matemático) tem uma heurística positiva, recusa -se a
ser atraído para a observação. “Deita-se em seu sofá, fecha os olhos e esquece -se dos dados 1 ’.
(Cf. meu ensaio, “Proofs and Refutations”, 1963 -4, especialmente às pp. 300 e seguintes, onde
se encontra um estudo circunstanciado de um programa dessa natureza.) Ocasionalmente, é
claro, ele fará à Natureza uma pergunta ladina, e sentir -se-á animado pelo SIM da Natureza,
mas não se sentirá desanimado pelo seu NÀO.

170. Seguindo Cajori, Reichenbach dá uma explicação diferente do atra so da


publicação dos Principia de Newton: “Para seu desapontamento ele descobriu que os
resultados observacionais não concordavam com os seus

166
A maioria, se não todos, os “enigmas” newtonianos, que conduziram a uma
série de novas variantes que se sucediam umas às outras era previsível ao tempo
do primeiro modelo ingênuo de Newton, que sem dúvida os previu, como os
devem ter previstos os seus colegas; Newton deve ter tido plena consciência da
falsidade berrante de suas primeiras variantes. Nada mostra com maior clareza a
existência de uma heurística positiva num programa de pesquisa do que este fato;
por isso se fala em “modelos”, em programas de pesquisa. Um “ modelo” é um
conjunto de condições iniciais (possivelmente jühto com algumas teorias
observacionais) que se sabe condenado a ser substitíudo durante o subseqüente
desenvolvimento do programa, e que até se sabe, mais ou menos, como o será.
Isso mostra mais uma vez o quanto são irrelevantes as “r efutações” de qualquer
variante específica num programa de pesquisa. A existência delas é plenamente
esperada, a heurística positiva lá está como estratégia não só para as predizer
(produzir) mas também para as digerir. Com efeito, se se expuser clarament e a
heurística positiva, as dificuldades do programa serão muito mais matemáticas do
que empíricas. 17'
Pode formular-se a “heurística positiva” de um programa de pesquisa como
um princípio “metafísico”. Pode formular-se, por exemplo, da seguinte maneira o
programa de Newton: “os planetas são essencialmente piões giratórios de forma
aproximadamente esférica e dotados de gravitação”. Essa idéia nunca foi
rigidamente mantida: os planetas não são apenas gravitacionais, possuem também,
por exemplo, características eletromagnéticas que podem influenciar- lhes o
movimento. Desse modo, a heurística positiva, em geral, é mais flexível do que a
negativa. Além disso, acontece ocasionalmente que, quando um programa de
pesquisa entra numa fase degenerativa, uma revoluç ãozinha ou uma transferência
criativa em sua heurística

cálculos. Entretanto, em lugar de propor uma teoria qualquer, por mais bo nita que fosse, antes
dos fatos, Newton engavetou o manuscrito da sua teoria. Uns vinte anos mais tarde, depois que
uma expedição francesa realizou novas medições da circunferência da terra, Newton constatou
que as cifras em que baseara o seu teste eram falsas e que os novos resultados concordavam
com seus cálculos teóricos. Só depois disso publicou sua lei... A história de New ton é uma das
mais notáveis ilustrações do método da ciência moderna” (Rei - chenbach, The Rise oj Scienlijic
Philosophy, 1951, pp. 101-2). Feyerabend crtica o relato de Reichenbach (Feyerabend, "Reply
to Criticism”, 1965, p. 229), mas não apresenta um funda mento lógico alternativo.
171. Sobre esse ponto cf. Truesdell, “The Program toward Rediscove - ring the Rational
Mechanics in the Age of Reason”, 1960.

167
positiva pode empurrá-lo de novo para a frente. 472 É melhor, portanto, separar o
“núcleo” dos princípios metafísicos mais flexíveis que expressam a heurística
positiva.
Das nossas considerações se depreende que a heurística positiva avança aos
poucos, com dificuldade, e com descaso quase completo das “refutações”; pode
parecer que as “verificações”, 173 mais do que as refutações, fornecem os pontos
de contato com a realidade^ Conquanto se deve assinalar que qualquer
“verificação” da enésima-pri- meira versão do programa é uma refutação da
enésima versão, não podemos negar que sempre se prevêem algumas derrotas das
versões subseqüentes: são as “verificações” que mantêm o programa em an -
damento, apesar dos casos recalcitrantes.
Podemos avaliar os programas de pesquisa, mesmo depois da sua
“eliminação”, pela sua força heurística; quantos fatos novos produziram, até onde
ia “a capacidade deles para explicar suas refutações no decorrer do crescimento”?
174

(Podemos avaliá-los também pelo estímulo que dão à matemá tica. As


dificuldades reais para o cientista teórico nascem mais das dificuldades
matemáticas do programa do que das anomalias. A grandeza do programa
newtoniano procede, em parte, do desenvolvi mento — por newtonianos — da
análise infinitesimal clássica, pré- -condição crucial do seu bom êxito.)
De modo que a metodologia dos programas de pesquisa científica explica a
relativa autonomia da ciência teórica: fato ínstorico cuja racionalidade não pode
ser explicada pelos primeiros falseàcio- nistas. Os problemas racionalmente
escolhidos por cientistas que trabalham em poderosos programas de pesquisa são
determinados pela heurística positiva do programa, muito mais do que pelas
anomalias psicologicamente preocupantes (ou tecnologicamente urgentes). Em -
bora arroladas, as anomalias são postas de lado na esperança de“q'ue j se
transformem, com o tempo, em corroborações do programa. Só

172. A contribuição de Soddy para o programa de Prout ou a contribuição de Pauli


para o programa de Bohr (a antiga teoria quântica) são exemplos típicos dessas
transferências criativas.
173. Uma “verificação” é uma corroboração do excesso de conteúdo no programa em
expansão. Mas uma “verificação”, naturalmente, não verifica um programa: apenas lhe
mostra a força heurística.
174. Cf. meu ensaio “Proofs and Refutations”, 19634, pp. 324 -30. Infelizmente, em
1963-4 eu ainda não fizera uma clara distinção terminológica entre teorias e programas de
pesquisa, o que me prejudicou a exposição de um programa de pesquisa da matemática
informal, quase empírica.

168
precisam concentrar sua atenção em anomalias os cientistas empe nhados em
exercícios de ensaio-e-erro 175 ou que trabalham numa fase degenerativa de um
programa de pesquisa quando a heurística positiva perde o gás. (É claro que tudo
isso há de parecer repugnante aos falseacionistas ingênuos, segundo os quais,
depois que uma teoria é “refutada” pela experiência (segundo o livro de regras
deles), é irracional (e desonesto) continuar a desenvolvê -la: cumpre substituir a
velha teoria “refutada” por uma teoria nova, não-refutada.)

(c) Duas ilustrações: Prout e Bohr.


A dialética da heurística positiva e negativa num programa de pesquisa
pode ser melhor esclarecida por meio de exemplos. Esbo çarei, portanto, alguns
aspectos de dois programas de pesquisa espetacularmente bem-sucedidos: o
programa de Prout 17íi , baseado na idéia de que todos os átomos são compostos de
átomos de hidrogênio, e o programa de Bohr, baseado na idéia de que a emissão
da luz se deve a elétrons que saltam de uma órbita para outra no interior dos
átomos.
(Ao redigir o estudo de um caso histórico deve-se, creio eu, adotar o seguinte
procedimento: (1) faz-se uma reconstrução racional; (2) tenta-se cotejar essa
reconstrução racional com a história real e criticar tanto a reconstrução racional
por falta de historicidade quanto a história real por falta de racionalidade. Dessa
maneira, todo estudo histórico deve ser precedido de um estudo heurístico: a
história da ciência sem a filosofia da ciência é cega. Neste estudo não é minha
intenção entrar seriamente na segunda fase.)

(c 1) Prout: um programa de pesquisa que avança num oceano de


anomalias.
Num ensaio anônimo de 1815, Prout afirmou que os pesos atô micos de
todos os elementos químicos puros eram números inteiros. Ele sabia muito bem
que as anomalias eram abundantes, mas disse que elas surgiam porque as
substâncias químicas tal como costumavam se apresentar eram impuras: isto é, as
“técnicas experimentais” pertinentes que existiam nessa época não mereciam
confiança ou, em outras palavras, as teorias “observacionais” contemporâneas, a
cuja luz foram estabelecidos os valores-de-verdade dos enunciados

175. Cf. mais adiante, p. 216.


176. Já mencionado mais acima, pp. 156-
8.

169
básicos de sua teoria, eram falsas. 177 Os defensores da teoria de Prout
lançaram-se, portanto, numa grande aventura: derrubar as teorias que
proporcionavam a evidência contrária à sua tese. Para isso era -lhes preciso
revolucionar a química analítica estabelecida na quela época e,
correspondentemente, revisar as técnicas experimen tais com que se haviam de
separar os elementos puros. 178 A teoria de Prout, na realidade, derrotou as
teorias anteriormente aplicadas na purificação de substâncias químicas, uma
depois da outra. Mesmo assim, os químicos cansaram-se do programa de
pesquisas e renunciaram a ele, visto que os sucessos ainda estavam longe de
indicar uma vitória final. Stas, por exemplo, frustrado por alguns casos
obstinados e recalcitrantes, concluiu em 1860 que a teoria de Prout “não tinha
fundamentos”. 179 Outros, porém, se sentiram mais animados pelo progresso do
que desanimados pela falta de sucesso completo. Marignac, por exemplo,
retrucou imediatamente que “embora [ele estivesse convencido de que] as
experiências de Monsieur Stas são perfeitamente exatas, [não há prova] de que
as diferenças observadas entre seus resultados e os requeridos pel a lei de Prout
não podem ser explicadas pelo caráter imperfeito dos métodos expe -
rimentais”. 180 Como disse Crookes em 1886: “Não poucos químicos de
reconhecida eminência consideram que temos aqui [na teoria de Prout] uma
expressão da verdade, mascarada por alguns fenômenos residuais ou colaterais
que ainda não conseguimos eliminar.” 181 Isto

177. Tudo isso, infelizmente, é mais reconstrução racional do que his tória verdadeira.
Prout negou a existência de quaisquer anomalias. Ele afir mava. por exemplo, que o peso
atômico do cloro era exatamente 36.
178. Prout estava ciente de alguns traços metodológicos básicos do seu programa.
Permitam-nos citar as primeiras linhas do seu ensaio de 1815, "On the Relation between the
Specific Gravities of Bodies in their Gaseous State and the Weights of their Atoms”: “O autor
do ensaio que se segue submete-o à apreciação do público com a maior desconfiança... Ele se
fia, contudo, de que sua importância será percebida e de que alguém lhe empreenderá o exame
e, assim, verificará ou refutará suas conclusões. Se estas se revelarem errôneas, novos fatos
ainda poderão ser trazidos à luz, ou velhos fatos poderão ser me lhor estabelecidos, mas se elas
vierem a verificar-se, uma luz nova e interessante se projetará sobre toda a ciência da
química.”

179. Clerk Maxwell estava do lado de Stas: ele acreditava ser impossí vel que houvesse
dois tipos de hidrogênio, “pois se algumas [moléculas] fos sem de massa ligeiramente maior do
que outras, temos meios de separar as moléculas de massas di ferentes, uma das quais seria um
pouco mais densa do que a outra. Como isso não pode ser feito, temos de admitir [que todas
são iguais]” (Maxwel, Theory of Heat, 1871).

180. Marignac, “Commentary on Stas’ Researches on the Mutual Rela - tions of Atomic
Weights”, 1850.
181. Crooks, Discurso Presidencial Dirigido à Seção de Química da British
Association, 1886.

170
é, devia haver alguma falsa suposição oculta adicional nas teorias
“observacionais” em que se baseavam as “técnicas experimentais” para a
purificação química e com cuja ajuda foram calculados os pesos atômicos; no
entender de Crookes mesmo em 1886 “alguns pesos atômicos atuais
representavam tão-somente um valor médio”. 182 Com efeito, Crookes prosseguiu
no afã de dar a essa idéia uma forma científic a (aumentadora de conteúdo):
propôs novas teorias concretas de “fracionamento”, um novo “Demônio
classifica- dor”. 183 Infelizmente, todavia, suas novas teorias observacionais re-
velaram-se tão falsas quanto ousadas e, sendo incapazes de antecipar um fato
novo sequer, foram eliminadas da história da ciência (ra cionalmente construída).
Como se verificou uma geração depois, uma suposição oculta básica escapou aos
pesquisadores: a de que dois elementos puros devem ser separáveis por métodos
químicos. A idéia de que dois elementos puros diferentes podem comportar -se de
maneira idêntica em todas as reações químicas mas podem ser separados por
métodos físicos exigia uma mudança, uma “ extensão ” do conceito de “elemento
puro” que constituía uma mudança — uma expansão da extensão do conceito — do
próprio programa de pesquisa. 184 Essa transferência revolucionária, altamente
18S
criativa, foi tomada apenas pela escola de Rutherford ; e então, “depois de inú-
meras vicissitudes e das mais convincentes refutações aparentes, a hipótese
levantada tão ligeiramente por Prout, médico de Edimbur - go, em 1815, tornou-
se, um século mais tarde, a pedra angular das modernas teorias da estrutura dos
átomos”. 181 ’ Esse passo criativo, no entanto, foi, de fato, apenas um resultado
colateral do progresso num programa de pesquisa diferente e, com efeito,
distante; carecendo desse estímulo externo, os proutianos nunca pensaram em
tentar, por exemplo, construir máquinas centrífugas poderosas para separar
elementos.
(Quando se elimina uma teoria “observacional” ou “interpre- tativa”, as
mensurações “precisas” levadas a cabo no interior do re

182. Ibid.
183. Ibid., p. 491.
184. Sobre “estiramento de conceito”, cf. meu ensaio, “Proofs and Re - futations",
1963-4, parte IV.
185. A transferência é antecipada no fascinante Relatório Apresentado à Reunião
Geral Anual da Chemical Society, em 1888, por Crookes, onde ele indica que a solução deveria
ser buscada numa nova demarcação entre o “físico” e o “químico”. Mas a antecipação
permaneceu filosófica; coube a Rutherford e a Soddy o desenvolvimento dela e sua
transformação, depois de 1919, em teoria científica.

186. Soddy, The Interpretation of the Atom, 1932, p. 50.


ferencial desprezado podem parecer — considerando-as retrospectivamente —
um tanto tolas. Soddy ridicularizou a “precisão experi mental” a suas próprias
custas: “Há, sem dúvida, algo semelhante a uma tragédia, ou capaz de
transcendê-la, no destino que se abateu de repente sobre a obra a que dedicou
sua vida a distinta galáxia de químicos do século XIX, reverenciados com razão
pelos seus contemporâneos como representando o cúmulo da perfeição da
mensu- ração científica exata. Os resultados que conseguiram com tanto es forço
parecem, pelo menos por enquanto, tão despidos de interesse e de importância
quanto a determinação do peso médio de uma cole ção de garrafas, algumas
cheias e algumas mais ou menos vazias.” 187
Acentuemos que, à luz da metodologia dos programas de pes quisa aqui
proposta, nunca houve uma razão racional para eliminar o programa de Prout. O
programa, com efeito, produzia uma bela e progressiva transferência, ainda que,
nos intervalos, surgissem consideráveis transtornos. 188 Nosso esboço mostra
como um programa de pesquisa pode desafiar um volume considerável de
conhecimento científico aceito; plantado, por assim dizer, num ambiente hostil,
pouco a pouco o sujeito se transformou.
Outrossim, a história real do programa de Prout ilustra bem demais até que
ponto o justificacionismo e o falseacionismo ingênuo estorvaram e ret ardaram o
progresso da ciência. (A oposição à teoria atômica no século XIX foi fomentada
por ambos.) Uma elaboração da influência da má metodologia sobre a ciência
pode ser um programa de pesquisa recompensador para o historiador da ciência.

(c 2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre fundamentos


inconsistentes.
Um rápido resumo do programa de pesquisa de Bohr sobre a emisão da luz
(no princípio da física quântica) ilustrará ainda mais
— e até expandirá — nossa tese. 189

187. Ibid.
188. Esses transtornos induzem inevitavelmente muitos cientistas individuais a
arquivar ou a jogar fora o programa e a participar de outros progra mas de pesquisa em que
acontece a heurística positiva oferecer, na ocasião, êxitos mais fáceis: a história da ciência não
pode ser cabalmente compreendida sem a psicologia das multidões. (Cf. mais abaixo, pp. 219-
22.)
189. Esta seção pode impressionar novamente o historiador menos como esboço do que
como caricatura; mas espero que sirva ao seu propósito (Cf. mais acima, p. 169). Alguns
enunciados não devem ser tomados com uma pitada, senão com toneladas de sal.

172
A história do programa de pesquisa de Bolir pode ser caracteri zada por (1
) seu problema inicial; (2) sua heurística negativa e sua heurística positiva; (3)
os problemas que ele tentou resolver no decurso do seu desenvolvimento; e (4)
seu ponto de degeneração (ou, se quiserem, seu “ponto de saturação") e,
finalmente, (5) o programa pelo qual foi ultrapassado.
O problema básico era o enigma de como os átomos de Ruther- ford (isto
é, minúsculos sistemas planetários com elétrons que des crevem órbitas em torno
de um núcleo positivo) podem permanecer estáveis; pois, de acordo com a teoria
bem corroborada de Mawell- Lorentz do eletromagnetismo, eles deviam
desintegrar-se. Mas a teoria de Rutherford também era bem corroborada. A
sugestão de Bolir consistia em ignorar por ora a incongruência e desenvolver
conscientemente um programa de pesquisa cujas versões “refutáveis" fossem
incompatíveis com a teoria de Maxwell-Lorentz. 11 '" Ele propôs cinco postulados
como núcleo do seu programa: “(1) que a radiação de energia [no interior do
átomo] não é emitida (nem absorvida) da maneira contínua presumida na
eletrodinâmica comum, mas apenas durante a passagem dos sistemas entre
diferentes estados “estacionários". (2) Que o equilíbrio dinâmico dos sistemas
nos estados estacionários é governado pelas leis ordinárias da mecânica, ao
passo que essas leis não vigem em relação à passagem dos sistemas entre os
diferentes estados. (3) Que a radiação emitida durante a transição de um sistema
entre dois estados estacionários é homogênea, e que a relação entre a freqüência
v e a quantidade total de energia emi tida E c dada por E = liv, sendo li a
constante de Planck. (4) Que os diferentes estados estacionários de um sistema
simples, composto de um elétron que gira em torno de um núcleo positivo, são
determinados por uma condição: que o quociente entre a energia total, emi tida
durante a formação da configuração, e a freqüência da revolução do elétron seja
um múltiplo inteiro de l/2/i. Presumindo-se que a órbita do elétron é circular,
essa suposição eqüivale à suposição de que o momento angular do elétron em
torno do núcleo é igual a um múltiplo inteiro de h/2n . (5) Que o estado
“permanente" de qualquer sistema atômico, isto é, o estado de máxima energia
emitida, é

190. Isto. naturalmente, é mais um argumento contra a tese de I. O. Wisdom de que as


teorias metafísicas podem ser refutadas por uma confli tante e bem corroborada teoria
científica (Wisdom, "The Refutability of Trre- rulable’ Laws". 1963). Cf. também mais acima.
p. 136. texto correspondente à nota de rodapé n." 80, e pp. 154 -55.

173
determinado por uma condição: que o momento angular de cada elétron em
torno do centro de sua órbita seja igual a h/nr 1!M
Temos de avaliar a diferença metodológica crucial entre a in -
compatibilidade introduzida pelo programa de Prout e a incompati bilidade
introduzida pelo programa de Bohr. O programa de pesquisa de Prout declarou
guerra à química analítica do seu tempo: sua heurística positiva destinava -se a
derrubá-la e a substituí-la. Mas o programa dc pesquisa de Bohr não continha
uma intenção semelhante: sua heurística positiva, ainda que fosse totalmente
bem-sucedida, teria deixado sem solução a incompatibilidade com a teoria de
Maxwell-Lorentz. 1 '-’-
Para sugerir uma idéia dessa natureza fazia-se mister uma coragem maior
que a de Prout; a idéia cruzou a mente de Einstein mas este a achou inaceitável e
rejeitou-a. I!,:l De fato, alguns dos mais importantes programas de pesquisa da
história da ciência enxerta- vam-se em programas mais antigos com os quais eram
francamente incompatíveis. Por exemplo, a astronomia coperniciana foi “enxer -
tada” na física aristotélica; o programa de Bohr foi enxertado no programa de
Maxwell. Tais “enxertos" são irracionais para o justi ficacionista e para o
falseacionista ingênuo, nenhum dos quais aprova o crescimento sobre
fundamentos incompatíveis. Por isso são habitualmente escondidos por
estratagemas ad hoc — como a teoria de Ga- lileu da inércia circular ou a
correspondência de Bohr e, mais tarde, o princípio da complementaridade —
cujo único propósito era esconder a “deficiência". 191 À medida que o jovem
programa enxertado se fortalece, a coexistência pacífica c hega ao fim, a
simbiose torna-se competitiva e os defensores do novo programa tentam
substituir completamente o velho programa.
Talvez tenha sido o sucesso do seu “programa enxertado” que mais tarde
induziu erroneamente Bohr a acreditar que tais incompa tibilidades fundamentais
em programas de pesquisa podem e devem

191. Bohr, “On the Constitution of Atoms and Molecules", 1913, p. 874.
192. Bohr sustentava nessa ocasião que a teoria de Maxwell e Lorentz finalmente teria
de ser substituída (a teoria do fóton de Einstein já indicara essa necessidade).

193. Hevesy, “Carta a Rutherford em 14.10.1913”; cf. também mais acima. p. 166,
texto correspondente à nota de rodapé n.“ 170.
194. Em nossa metodologia não há necessidade de tais estratagemas pro tetores ad hoc.
Por outro lado, eles serão inofensivos enquanto forem clara mente vistos como problemas e não
como soluções.

174
ser tolerados em princípio, que não apresentam nenhum problema sério e que
basta a gente acostumar-se com elas. Bohr tentou, em 1922, abaixar os padrões
da crítica científica; argumentava ele que “o máximo que se pode exigir de uma
teoria [isto é, programa] é que a classificação [que ela estabelece] seja empurrada
tão longe que possa contribuir para o desenvolvimento do campo de observa ção
pela predição de novos fenômenos." 195
(Esse enunciado de Bohr é semelhante ao de d’Alembert quando se lhe
deparou a incompatibilidade nos fundamentos da teoria infi - nitesimal: “Allez en
avant et la foi vous viendra." De acordo com Margenau, “é compreensível que, na
excitação provocada pelo êxito, os homens passassem por alto uma malformação
na arquitetura da teoria; pois o átomo de Bohr se apoia como uma torre barroca
na base gótica da eletrodinâmica clássica.” 198 Na realidade, porém, a
“malformação” não foi “passada por alto”: todos tinham consciência dela, e
apenas a ignoraram — mais ou menos — durante a fase progressiva do
programa. 197 Nossa metologia de programas de pes quisa mostra a racionalidade
dessa atitude, mas também mostra a irracionalidade da defesa de tais
“malformações” depois de encerrada a fase progressiva.
Nesse ponto, deve-se ressaltar que nas décadas de 30 e 40 Bohr abandonou
a exigência de “novos fenômenos” e preparou-se para “proceder à tarefa
imediata de coordenar as múltiplas evidências relativas aos fenômenos atômicos,
que se acumulavam dia a dia na exploração desse novo campo de
conhecimento”. 108 Isso indica que Bohr, a esse tempo, voltara a “salvar os
fenômenos”, ao passo que Einstein insistia, sarcástico, em que “toda teoria é
verdadeira contanto que se associem adequadamente seus símbolos com
quantidades observadas”. 199 )
200
Mas a compatibilidade — num sentido forte do termo — deve continuar
a ser um princípio regulador importante (acima do

195. Bohr, "The Structure of the Atom”, 1922; o grifo é meu.


196. Margenau, The Nature of Physical Reality, 1950, p. 311.
197. Sommerfeld ignorou-o mais do que Bohr: cf. mais adiante, p. 185, nota de rodapé
n.° 227.
198. Bohr, “Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Phy sics”,
1949, p. 206.
199. Citado em Schrõdinger, "Might perhaps Energy be merely a Statis - tical
Concept?”, 1958, p. 170.
200. Duas proposições serão inconsistentes se sua conjunção não tiver modelo, isto é,
se não houver interpretação dos seus termos desc ritivos em que a conjunção é verdadeira. Mas
no discurso informal empregamos maior

175
requisito da transferência progressiva de problemas); e as inconsis tências
(incluindo anomalias) devem ser vistas como problemas. A razão é simples. Se a
ciência visa à verdade, deve visar à consistência; se ela renuncia à consistência,
renuncia à verdade. Afirmar que “devemos ser modestos em nossas
exigências”, 201 que devemos resignar-nos às inconsistências — fracas ou fortes
— continua a ser um vício metodológico. P or outro lado, isso não quer dizer
que a descoberta de uma inconsistência — ou de uma anomalia — precisa deter
imediatamente o desenvolvimento de um programa: pode ser racional colocar a
inconsistência em quarentena temporária, ad hoc, e prosseguir com a heurística
positiva do programa. Isso tem sido feito até em matemática, como o revelam os
exemplos dos primórdios do cálculo infinitesimal e da teoria ingênua de
conjuntos 202

número de termos formativos do que no discurso formal: a alguns termos des critivos se dá
uma interpretação fixa. Nesse sentido informal duas proposições podem ser (fracamente)
inconsistentes em face das interpretações comuns de alguns termos característicos ainda que
formalmente, numa interpretação não- -tencionada, elas possam ser consistentes. Por exemplo,
as primeiras teorias do spin eletrônico eram inconsistentes com a teoria especial da
relatividade se se desse a “spin” sua interpretação comum (“forte”) e ele fosse, por esse modo,
tratado como um termo formativo; mas a incompat ibilidade desaparece quando “spin” é
tratado como um termo descritivo não-interpretado. A razão por que não devemos renunciar
com demasiada facilidade às interpretações comuns é porque essa emasculação de significados
pode emascular a heurística positiva do programa. (Por outro lado, tais transferências de
significado podem ser progressivas em alguns casos: cf. mais acima, p. 154.)
Sobre a demarcação progressiva entre os termos formativos e descritivos no discurso
informal, cf. meu ensaio, “Proofs and Refutations”, 1963-4, 9(b), especialmente p. 335, nota de
pé de página n.° 1.

201. Bohr, "The Structure of the Atom”, 1922, último parágrafo.


202. Os falseacionistas ingênuos tendem a considerar esse liberalismo co mo um crime
contra a razão. O seu principal argumento reza deste teor: “Se tivéssemos de aceitar
contradições, teríamos de abrir mão de toda a espécie de atividade científica: o que significaria
um colapso total da ciência. Isso pode mostrar-se provando que se se admitirem dois
enunciados contraditórios, qualquer tipo de enunciado terá de ser admitido-, pois de um par de
enunciados contraditórios se poderá inferir validamente qualquer enunciado, seja ele qual
for... Uma teoria que envolve uma contradição, por conseguinte, é inteira mente inútil como
teoria” (Popper, “What is Dialectic?”, 1940). Manda a justiça que se frise que Popper, aqui,
está argumentando contra a dialética hege - liana, em que a inconsistência se torna uma
virtude; e está absolutamente certo quando lhe assinala os perigos. Mas Pop per nunca analisou
padrões de progresso empírico (ou não-empírico) sobre fundamentos inconsistentes; com efei-
to, na seção 24 da sua Logik der Forschung (1934), ele faz da consistência e da falseabilidade
requisitos obrigatórios de qualquer teoria científ ica. Discuto esse problema mais
circunstanciadamente em meu ensaio intitulado “History of Science and its Rational
Reconstructions”, de 1970.
(Desse ponto de vista, o “princípio de correspondência” de Bohr
desempenhou interessante papel duplo em seu progr ama. De um lado, funcionou
como princípio heurístico importante, que sugeriu inúme ras hipóteses
científicas, as quais, por seu turno, conduziram a fatos novos, mormente no
campo da intensidade das linhas do espectro. 203 De outro lado, funcionou
também como mecanismo de defesa, que “tentou utilizar na máxima extensão os
conceitos das teorias clássicas da mecânica e da eletrodinâmica, a despeito do
contraste entre essas teorias e o quantum de ação”, 204 em lugar de enfatizar a
urgência de um programa unificado. Nesse segundo papel reduziu o grau de pro-
blematicidade do programa. 205 )
Não há dúvida de que o programa de pesquisa da teoria quân - tica como
um todo foi um “programa enxertado” e, por conseguinte, repugnante aos físicos
de concepções profundamente conservadoras, como Planck. Existem duas
posições extremas e igualmente irracionais em relação ao programa enxertado.
A posição conservadora consiste em sustar o novo programa até que a
incompatibilidade básica com o velho tenha sido, de um modo ou de outro ,
reparada: é irracional trabalhar sobre fundamentos in compatíveis. Os
“conservadores” concentrarão seus esforços em eli minar a incompatibilidade
explicando (aproximadamente) o postulado do novo programa em termos do
velho: parece-lhes irracional continuar com o novo programa sem uma redução
bem-sucedida do gênero mencionado. O próprio Planck escolheu esse caminho.
Não teve êxito, apesar da década de trabalho intenso que lhe dedicou. 20 ' 1 Por
conseguinte, a observação de Laue, segundo a qual sua palestra do dia 14 de
dezembro de 1900 foi “a data do nascimento da teoria quântica” não é
totalmente exata: essa foi a data do nascimento do

203. Cf., por exemplo, Kramers, "Das Korrespondenzprinzip und der Schalenbau des
Atoms”, de 1923.
204. Bohr, "Light and Life”, 1933.
205. Em seu ensaio de 1954, "The Statistical Interpretation of Quantum Mechanics”,
Born apresenta um vigoroso relato do princípio de correspon dência que sustenta
robustamente essa dupla avaliação: “A arte de adivinhar fórmulas corretas, que se a partam
das clássicas e que, no entanto, as contêm como um caso -limite. .. foi levada a um alto grau de
perfeição.”
206. Sobre a história fascinante dessa longa série de malogros frustran tes, cf.
Whittaker, History of the Theories of Aether and Electricity (1953), vol. II, pp. 103-4. O
próprio Planck dá uma dramática descrição desses anos: “Minhas fúteis tentativas de
enquadrar o quantum elementar de ação na teoria clássica continuaram por alguns anos e me
custaram grande soma de esforços. Muitos dos meus colegas viram nisso algo que beirava a
tragédia...” (Planck, Scientific Autobiography, 1947).

177
programa de redução de Planck. A decisão de prosseguir com fun damentos
temporariamente incompatíveis tomou-a Einstein em 1905, mas até ele hesitou
em 1913, quando Bohr voltou a fazer progressos.
A posição anárquica em relação a programas enxertados é louvar a
anarquia nos fundamentos como virtude e considerar a incom patibilidade [fraca]
propriedade básica da natureza ou limitação final do conhecimento huma no,
como o fizeram alguns seguidores de Bohr.
A posição racional é melhor caracterizada pela posição de Newton, que
enfrentou uma situação até certo ponto semelhante à situação discutida. A
mecânica cartesiana do impulso, em que foi original mente enxertado o programa
de Newton, era (fracamente) incompatível com a teoria newtoniana da
gravitação. Newton trabalhava não só em sua heurística positiva (com êxito) mas
também num programa reducionista (sem êxito), e desaprovou tanto os carte -
sianos que, como Huyghens, entendiam não valer a pena perder tempo com um
programa “ininteligível”, quanto alguns dos seus dis cípulos temerários que,
como Cotes, entendiam que a incompatibili dade não apresentava problema
algum. 207
A posição racional em relação a programas “enxertados” é, pois, explorar-
lhes a força heurística sem se resignar ao caos fundamental em que ela está
crescendo. De um modo geral, essa atitude dominou a velha teoria quântica de
antes de 1925. Na nova teoria quântica, pós-1925, a posição “anarquista” passou
a dominar e a física quântica moderna, em sua “interpretação de Copenhague”,
tomou-se um dos principais porta-estandartes do obscurantismo filosófico. Na
nova teoria, o notório “princípio de complementaridade” de Bohr entro - nizou a
incompatibilidade [fraca] como um traço básico e final da natureza, e fundiu o
positivismo subjetivista, dialética antilógica e até a filosofia da linguagem
comum numa aliança ímpia. Depois de 1925, Bohr e seus colaboradores
introduziram uma nova e sem precedentes diminuição dos padrões críticos para
teorias científicas. Isto levou a uma derrota da razão dentro da física moderna e a
um culto

207. Está visto que um programa reducionista só é científico quando explica mais do
que se propunha explicar; a não ser assim, a redução não é científica (cf. Popper, "A Realist
View of Logic, Physics and History”, 1969). Quando a redução não produz um novo conteúdo
empírico e muito menos fatos novos, a redução representa uma transferência degenerativa de
problema
— é um mero exercício lingüístico. Os esforços cartesianos para apoiar sua metafísica a fim
de poder interpretar a gravitação newtoniana em seus termos, representam um exemplo
notável de uma redução dessa natureza puramente lingüística. Cf. mais acima, p. 155, nota de
rodapé n.° 140.

178
anarquista do caos incompreensível. Einstein protestou: “A tranqüi lizante
filosofia — ou religião? — de Heisenberg-Bohr é tão delicadamente planejada
que, por ora, fornece um macio travesseiro para o verdadeiro crente”. 208 Por
outro lado, os padrões demasiado altos de Einstein podem muito bem ter sido a
razão que o impediu de descobrir (ou talvez apenas de publicar) o modelo de
Bohr e a mecânica ondulatória.
Einstein e seus aliados não venceram a batalha. Os compêndios de física,
hoje em dia, estão cheios de enunciados como este: “Os dois pontos de vista, a
força quântica e a força do campo eletromagnético são complementares no
sentido de Bohr. Essa complementaridade é uma das grandes consecuções da
filosofia natural em que a interpretação de Copenhague da epistemologia da
teoria quântica resolveu o conflito secular entre as duas teorias da luz, a teoria
corpuscular e a teoria ondulatória. Desde as propriedades de reflexão e de
propagação retilínea de Hero de Alexandria no primeiro século d e nossa era,
diretamente através das propriedades interferenciais e e ondulatórias de Young e
Maxwell no século XIX, essa controvérsia estendeu-se violenta. A eoria
çuântica da radiação, durante o último meio século, de uma forma notavelmente
hegeliana, solucionou completamente a dicotomia”. 209

208. Einstein, Carta a Schrõdinger de 31.5.1928. Entre os críticos do “anarquismo" dc


Copenhague deveríamos mencionar — alem de Einstein — Popper, Landé, Schrõdinger,
Margenau, Blokhinzev, Bohm, Fényes e Jánossy. Sobre uma defesa da interpretação de
Copenhague, cf. Hcisenberg, “The De - velopment of the lnterpretation of Quantum Theory",
1955; sobre uma crítica enérgica e recente, cf. Popper, “Quantum Mechanics without ‘The
Òbserver"', 1967. Em seu ensaio de 1968-9, “On a Recent Critique of Complementarity”,
Feyerabend se utiliza de algumas inconsistências e vacilações da posição de Bohr para um
tosco falseamento apologético da filosofia de Bohr. Feyerabend desfigura a atitude crítica de
Popper, Landé e Margenau em relação a Bohr, não dá ênfase suficiente à oposição de Einstein
e parece ter-se esquecido completamente de que, em alguns dos seus primeiros trabalhos, ele
era mais poppe- riano do que o próprio Popper acerca dessa questão.

209. Power, lntroduclory Quantum Electrodynamics, 1964, p. 31 (o grifo é meu).


“Completamente” é tomado aqui de forma literal. Como lemos em Nature (222, 1969, pp. 1034-
5): “É absurdo pensar que qualquer elemento fundamental da teoria [quântica] pode ser falso..
Os argumentos de que os resultados científicos são sempre temporários não procedem.
Temporárias são as concepções dos filósofos sobre a física moderna, porque eles ainda não
compreenderam quão profundamente os descobrimentos da física quântica influem em toda a
epistemologia... A afirmativa de que a linguagem comum é a última fonte da não-ambigüidade
da descrição física verifica-se da maneira mais convincente pelas condições observacionais da
física quântica.”

179
Voltemos agora à lógica da descoberta da velha teoria quântica e, em
particular, concentremo-nos em sua heurística positiva. O plano de Bohr era
descobrir primeiro a teoria do átomo de hidrogênio. Seu primeiro modelo devia
basear-se num núcleo fixo de próton com um életron numa orbita circular; em
seu segundo modelo ele quis calcular uma órbita elíptica num plano fixo; depois,
pretendeu eliminar as restrições claramente artificiais do núcleo fixo e do plano
fixo; depois, pretendeu eliminar as restrições claramente artificiais do núcleo
fixo e do plano fixo; em seguida, pensou em tomar em consideração o possível
giro do elétron 210 e, por fim, esperou estender o seu programa à estrutura de
átomos e moléculas complicadas e ao efeito de campos eletromagnéticos sobre
eles, etc., etc. Tudo isso estava planejado desde o princípi o: a idéia de que os
átomos eram análogos a sistemas planetários prenunciou um longo, difícil mas
otimista programa e indicou claramente a política de pesquisa. 211 “Dir-se-ia
nessa ocasião — no ano de 1913 — que a chave autêntica dos espectros fora
finalmente encontrada, como se apenas* fossem necessários tempo e paciência
para resolver completamente os seus enigmas.” 212
O famoso primeiro ensaio de Bohr, em 1913, continha o passo inicial do
programa de pesquisa. Continha o seu primeiro modelo (chamar -lhe-ei M{ ) que já
predizia fatos até então não-preditos por nenhuma teoria anterior: os
comprimentos de onda das linhas do espectro de emissão do hidrogênio.
Conquanto alguns desses comprimentos de ondas fossem conhecidos antes de
1913 — a série de Balmer (1885) e a série de Paschen (1908) — a teoria de Bohr
predizia muito mais do que as duas séries conhecidas. E os testes

210. Isso é reconstrução racional. Em realidade, Bohr só aceitou essa idéia em sua
Carta a Nature de 1926.
211. Além dessa analogia, havia outra idéia básica na heurística positiva de Bohr: o
"princípio da correspondência”, que ele já indicava em 1913 (cf. o segundo dos seus cinco
postulados citados acima, à p. 173), mas que só desenvolveu mais tarde, quando passou a usá-
lo como princípio orientador na solução de alguns problemas dos modelos sofisticados mais
recentes (como as intensidades e os estados de polarização). Uma singularidade dessa segunda
parte da sua heurística positiva era que Bohr não acreditava na sua versão metafísica:
supunha tratar-se de uma regra temporária até a substituição do eletromagnetismo clássico (e
possivelmente da mecânica).

212. Davisson, "The Discovery of Electron Waves”, 1937. Euforia semelhante foi
experimentada por MacLaurin em 1748 diante do programa de New ton: “fundando-se na
experimentação e na demonstração, a filosofia [de Newton] não falhará enquanto a razão ou a
natureza das coisas não tiverem mudado... [Newton] deixou à posteridade pouco mais para
fazer além de observar o céu e computar de acordo com o s seus modelos” (MacLaurin,
Account of Sir Isaac Newton’s Philosophical Discoveries, 1748, p. 8).

180
logo corroboraram o seu novo conteúdo: uma série adicional de Bohr foi
descoberta por Lyman em 1914, outra por Brackett em 1922 e uma terceira por
Pfund em 1924.
Visto que as séries de Balmer e Paschen eram conhecidas antes de 1913,
alguns historiadores apresentam a história como exemplo de “ascensão indutiva”
baconiana: (1) o caos das linhas do espectro,
(2) uma “lei empírica” (Balmer), (3) a explicação teóri ca (Bohr). Isto se
parece, sem dúvida, com os três “pavimentos” (“floors”) de Whewell. Mas o
progresso da ciência pouco se teria atrasado se nos faltassem os louváveis
ensaios e erros do engenhoso mestre-escola suíço: a linha principal especulativa
da ciência, levada adiante pelas ousadas especulações de Planck, Rutherford,
Einstein e Bohr teriam produzido dedutivamente os resultados de Balmer, como
enunciados- -testes de sua teoria, sem o chamado “pioneirismo” de Balmer. Na
reconstrução racional da ciência há escassa recompensa para os trabalhos dos
descobridores de “conjeturas ingênuas”. 213
Na verdade, o problema de Bohr não consistia em explicar as séries de
Balmer e Paschen, mas em explicar a estabilidade paradoxal do átomo de
Rutherford. Além disso, Bohr nem sequer ouvira falar nessas fórmulas antes de
escrever a primeira versão do seu trabalho. 214
Nem todo o conteúdo novo do primeiro modelo de Bohr foi corroborado. O
de Bohr, por exemplo, afirmava predizer todas as linhas do espectro de emissão
do hidrogênio. Mas havia uma prova experimental da existência de uma série de
hidrogênio, ao passo que, de acordo com a M\ de Bohr, não deveria haver
nenhuma. A série anômala era a série ultravioleta de Pickering -Fowler.

213. Uso aqui “conjectura ingênua” como termo técnico no sentido do meu ensaio
“Proofs and Refutations”, de 1963-4. Sobre o estudo de um caso e uma crítica minuciosa do
mito da “base indutiva” da ciência (natural ou matemática) cf. ibid., seção 7, especialmente pp.
298-307, onde mostro que a “conjectura ingênua” de Descartes e Euler de que para todos os
poliedros V—E+F=2 era irrelevante e supérflua para o desenvolvimento ulterior; como
exemplos adicionais podemos mencionar que os esforços de Boyle e seus su cessores para
estabelecer pv = RT não influíram no desenvolvimento teórico ulterior (a não ser para
desenvolver algumas técnicas experimentais), assim como as três leis de Kepler podem ter sido
supérfluas para a teoria newtonia na da gravitação.
Sobre uma discussão adiciona] desse ponto, cf. mais adiante, p. 216.

214. Cf. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Mechanics,


1966.

181
Pickering descobriu essa série em 1896 no espectro da estrela Puppis.
Fowler, depois de haver descoberto sua primeira linha tam bém no sol em 1898,
produziu toda a série num tubo de descarga que continha hidrogênio e hélio. É
verdade que se poderia argumentar que a linha-monstro nada tinha que ver com o
hidrogênio —- afinal de contas, o sol e Puppis contêm muitos gases e o tubo de
descarga também continha hélio. Efetivamente, a linha não poderia ter sido
produzida num tubo de hidrogênio puro. Mas a “técnica experimental” de
Pickering e Fowler, que conduziu a uma hipótese falseadora da lei de Balmer,
possuía uma base teórica plausível, embora nunca severamente te stada: (a) a
série deles tinha o mesmo número de convergência da série de Balmer e,
portanto, foi considerada como uma série de hidrogênio e (b) Fowler deu uma
explicação plausível da razão por que o hélio não poderia ser responsável pela
produção das séries. 215
Bohr, todavia, não ficou muito impressionado com os físicos experimentais
“autorizados”. Não lhes contestou a “precisão experi mental” nem a
“fidedignidade das observações”, mas contestou-lhes a teoria observacional. Na
verdade, propôs uma alternativa. Primeiro, elaborou um novo modelo (M2 ) do
seu programa de pesquisa: o modelo do hélio ionizado, com um próton duplo a
cuja volta um elétron descrevia uma órbita. Ora, esse modelo prediz uma série
ultravioleta no espectro do hélio ionizado que coincid e com a série de Pickering-
Fowler. Isso constituía uma teoria rival. Bohr sugeriu, então, uma “experiência
crucial”: predisse que a série de Fowler pode ser produzida, possivelmente com
linhas até mais fortes, num tubo cheio de uma mistura de hélio e cloro . Ademais,
explicou aos

215. Fowler, "Observations of the Principal and Other Series of Lines in the Spectrum
of Hydrogen”, 1912. Incidentemente, sua teoria “observacional” foi propiciada pelas
“investigações teóricas de Rydberg”, que, “na ausência de uma prova experimental rigorosa,
[ele] considerava como justificativa de [sua] conclusão [experimental] ” (p. 65). Mas seu colega
teórico, o Professor Nicholson, referiu-se três meses depois aos achados de Fowler como “con-
firmações de laboratório da dedução teórica de Rydberg” (Nicholson, “A Po- ssible Extension
of the Spectrum of Hydrogen”, 1913). Essa historieta, creio eu, corrobora minha tese favorita
de que a maioria dos cientistas tende a entender um pouco mais de ciência do que os peixes de
hidrodinâmica.
No Relatório do Conselho Endereçado à Nonagésima Terceira Reunião Geral Anual da
Royal Astronomical Society, a “observação [de Fowler] em experiências de laboratório” de
novas “linhas de hidrogênio que durante tanto tempo se furtaram aos esforços dos físicos” é
descrita como “um progresso de grande interesse” e como “um triunfo do trabalho
experimental bem dirigido”.

182
experimentadores, sem sequer olhar para o aparelhamento deles, o papel
catalisador do hidrogênio na experiência de Fowler e de clo ro na experiência por
ele sugerida. 216 Em realidade, ele estava certo. 217 Dessa maneira, a primeira
derrota aparente do programa de pesquisa converteu-se numa vitória retumbante.
A vitória, contudo, foi imediatamente posta em dúvida. Fowler reconheceu
que sua série não era uma série de hidrogênio, mas uma série de hélio.
Assinalou, porém, que o ajustamento-monstro de Bohr 218 ainda falhava: os
comprimentos de ondas na série de Fowler diferem significativamente dos
valores preditos pela M2 de Bohr. Desse modo, a série, embora não refute A/,,
ainda refuta M2 e, mercê da íntima conexão entre M, e M2, solapa M,! 219
Bohr rejeitou o argumento de Fowler: é claro que ele nunca pretendera que
M2 fosse levado muito a sério. Seus valores tinham por base um cálculo tosc o,
baseado no elétron que descrevia uma órbita em torno de um núcleo fixo; é claro
que essa órbita se descreve em torno do centro comum de gravidade; é claro que
cumpre substituir, como acontece quando se enfrentam problemas de dois
corpos, a massa por massa reduzida: m’ e = m e / [1 + ( m / e mn)]. 228 Esse
modelo modificado era o M 3 de Bohr. E o próprio Fowler precisou admitir que
Bohr tinha razão outra vez. 221
A aparente refutação de M2 converteu-se numa vitória para M}\ e era claro
que M2 e teriam sido desenvolvidos dentro do progra

216. Bohr, Carta a Rutherford de 6.3.1913.


217. Evans, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913. Sobre um exemplo
semelhante de um físico teórico que ensina um experimentador aman te de refutações o que ele
— experimentador — realmente observara, cf. mais acima, p. 160, neta de pé de página n.°
153.
218. Ajustamento-monstro: transformar um exemplo contrário, à luz de uma nova
teoria, em um exemplo. Cf. meu ensaio. “Proofs and Refutations’’, de 1963 -4, pp. 127 e
seguintes. Mas o "ajustamento-monstro” de Bohr era em- piricamente “progressivo”: predizia
um fato novo (o aparecimento da linha 4686 em tubos que não continham hidrogênio).

219. Fowler, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913.


220. Bohr, “The Spectra of Helium and Hydrogen”, 1913. Esse ajustamento-monstro
também era “progressivo”: Bohr predisse que as observações de Fowler deviam ser
ligeiramente imprecisas e que a "constante” de Rydberg devia ter uma estrutura fina.

221. Fowler, “The Spectre of Helium and Hydrogen”, 1913. Mas ele notou, cético, que
o programa de Bohr ainda não explicara as linhas do espectro do hélio comum, não-ionizado.
Entretanto, logo abandonou o seu ceticismo e entrou a participar do programa de pesquisa de
Bohr (Fowler, “Series Lines in Spark Spectra”, 1914).

183
ma de pesquisa — talvez até Mn ou M 20 — sem nenhum estímulo da observação
ou da experiência. Foi nessa fase que Einstein disse da teoria de Bohr: “É uma
das maiores descobertas.” 222
O programa de pesquisa de Bohr continuou, então, como fora planejado. O
passo seguinte consistia em calcular órbitas elípticas. Isso foi feito por
Sommerfeld em 1915, mas com um resultado inespe rado: o número aumentado de
possíveis órbitas regulares não aumentou o número de possíveis níveis de
energia, de modo que parecia não haver possibilidade de uma experiência crucial
entre a teoria elíptica e a circular. Entretanto, os elétrons descrevem órbitas em
torno do núcleo com altíssima velocidade de sorte que, ao acelerarem seu
movimento, sua massa deve mudar de maneira notável, se a mecânica
einsteiniana for exata. Com efeito, calculando tais correções relativistas,
Sommerfeld conseguiu um novo conjunto de níveis de energia e, assim, a
“estrutura fina” do espectro.
A transferência para o novo modelo relativista exigia muito maior
habilidade matemática e muito mais talento do que o desen volvimento dos
primeiros modelos. A realização de Sommerfeld foi principalmente
matemática. 223
Por curioso que pareça, as duplicações do espectro de hidrogênio já tinham
sido descobertas em 1891 por Michelson. 224 Moseley assinalou imediatamente
após a primeira publicação de Bohr que “ela não explica a segunda linha mais
fraca encontrada em cada espectro”. 225 Bohr não se deixou impressionar,
convencido que estava de que a heurística positiva do seu programa de pesquisa,
a seu tempo, explicaria e até corrigiria as observações de Michelson. 221 ’’ E foi o
que aconteceu. A teoria de Sommerfeld, naturalmente, era incompatível com as
primeiras versões de Bohr; as experiências da estrutura fina
— com as velhas observações corrigidas! — forneceram a prova crucial em seu
favor. Inúmeras derrotas dos primeiros modelos de Bohr

222. Cf. Hevesy, “Carta a Rutherford de 14.10.1913”. “Quando eu lhe falei do espectro
de Fowler, os grandes olhos de Einstein pareceram maiores ainda e ele me disse: “Nesse caso é
uma das maiores descobertas.”
223. Sobre os aspectos matemáticos vitais dos programas de pesquisa, veja mais acima,
p. 168.
224. Michelson, “On the Application of Interference Methods to Spec - troscopic
Measurements, I-II”, 1891-2, especialmente as pp. 287-9. Michelson nem sequer menciona
Balmer.
225. Moseley, “Letter to Nature”, 1914.
226. Sommerfeld, “Zur Quantentheorie der Spektrallinien”, 1916, p. 68.

184
foram convertidas por Sommerfeld e sua escola de Munique em vitórias do
programa de pesquisa de Bohr.
É interessante notar que, assim como Einstein se aborreceu e moderou sua
marcha no meio do progresso espetacular da física quân- tica por volta de 1913,
Bohr se aborreceu e moderou sua marcha por volta de 1916; e assim como Bolir,
em 1913, tomara a iniciativa de Einstein, assim Sommerfeld tomou a iniciativa
de Bohr em 1916. A diferença entre a atmosfera da escola de Copenhague de
Bohr e a da escola de Munique de Sommerfeld era notável: “A [escola de] Muni-
que usava formulações mais concretas e era, portanto, compreendida com maior
facilidade; fora bem sucedida na sistematização dos espec tros e no emprego do
modelo vetorial. [A escola de] Copenhague, no entanto, acreditava que ainda não
se descobrira uma linguagem adequada para os novos [fenômenos], mostrava -se
reticente em face de formulações demasiado definidas, expressava -se com maior
cautela e em termos mais gerais e era, portanto, muito mais difícil de com -
preender.” 227
Nosso esboço mostra que uma transferência progressiva pode emprestar
credibilidade — e uma base lógica — a um programa inconsistente. Em seu
necrológio de Planck, Born descreve com vigor esse processo: “Claro está que a
mera introdução do quantum de ação não significa ainda que se estabeleceu uma
verdadeira Teoria Quân- tica. . . Já aludimos às dificuldades que a introdução do
quantum de ação na teoria clássica solidamente estabelecida encontrou desde o
princípio. Elas têm aumentado gradativamente em vez de diminuir; e conquanto
a pesquisa em sua marcha, tenha passado por cima de algumas, as lacunas
restantes na teoria são as que mais consternam o físico teórico consciencioso.
Com efeito, o que na teoria de Bohr serviu como base das leis de ação foram
hipóteses que todo físico da geração anterior, teria sem dúvida, categoricamente
rejeitado. Poder-

227. Hund, “Gõttingen, Copenhagen, Leipzig im Rückblick”, 1961. Isto é discutido


com alguns pormenores no ensaio de Feyerabend intitulado “On a Recent Critique of
Complementarity”, de 1968-9, pp. 83-7. Mas o trabalho de Feyerabend é pesadamente
preconceituoso. O objetivo principal da sua análise é passar por alto o anarquismo
metodológico de Bohr e mostrar que Bohr se opunha à interpretação de Copenhague do novo
(depois de 1925) programa quântico. A fim de fazê-lo, Feyerabend, de um lado, dá uma ênfase
exagerada à infelicidade de Bohr no que concerne à inconsistência do velho (anterior a 1925)
programa quântico e, de outro lado, empresta demasiada importância ao fato de Sommerfe ld
preocupar-se menos do que Bohr com a problematicidade dos fundamentos inconsistentes do
velho programa.

185
se-ia conceder perfeitamente que, dentro do átomo, certas órbitas quan - tizadas
(isto é, escolhidas pelo princípio quântico) desempenhassem um p apel especial;
mas algo menos fácil de aceitar era a suposição adicional de que os elétrons que
se movem nessas órbitas curvilíneas e, portanto, acelerados, não irradiam
energia. Mas um teórico que tivesse sido educado na escola clássica teria
considerado monstruoso e quase inconcebível que a freqüência do quantum de
luz emitida fosse diferente da freqüência do quatum emissor. Mas como são os
números [ou melhor, as transferências progressivas de problemas] que decidem,
viraram-se as mesas. Embora no princípio fosse uma questão de ajustar com o
menor esforço possível um elemento novo e estranho num sistema existente
geralmente considerado estabelecido, o intruso, depois de haver conquistado uma
posição segura, assumiu a ofensiva', e agora parece estar a pique de mandar pelos
ares o velho sistema em algum ponto. A única pergunta que se pode fazer é esta:
em que ponto, e até que ponto, isso acontecerá? 228
Uma das coisas mais importantes que se aprendem estudando os programas
de pesquisa é que relativamente poucas experiências são de fato importantes. A
orientação heurística que o físico teórico recebe de testes e “refutações” é de
ordinário tão trivial que o procedimento de teste em larga escala — ou até uma
excessiva preocupação com os dados já disponíveis — pode ser uma perda de
tempo. Na maioria dos casos dispensamos refutações que nos digam que a teoria
está urgentemente necessitada de substituição: a heurística positiva do pro grama
nos impele para a frente de qualquer maneira. De mais a mais, dar uma seve ra
“interpretação refutável” à versão incipiente de um programa é uma perigosa
crueldade metodológica. As primeiras ver sões podem até “aplicar-se” somente a
casos “ideais” não-existentes; pode-se levar decênios de trabalho teórico para
chegar aos primeiros fatos novos e mais tempo ainda para chegar a versões
interessantemente testáveis dos programas de pesquisa, na fase em que as refuta -
ções já não são previsíveis à luz do próprio programa.
A dialética dos programas de pesquisa, portanto, não é necessaria mente
uma série alternada de conjecturas especulativas e refutações empíricas. A
interação entre o desenvolvimento do programa e as verificações empíricas pode
ser muito variada — o modelo realmente realizado depende apenas do acidente
histórico. Permitam-nos mencionar três variantes típicas.

228. Bom, “Max Karl Ernst Ludwig Planck”, 1948, p. 180; os grifos são
meus.

186
(1) Imaginemos que cada uma das três primeiras versões con secutivas,
H1, H 2 , H 3 prediz alguns fatos novos com êxito mas outros sem êxito, isto é, cada
versão é corroborada e, por seu turno, refutada. Finalmente se propõe H 4 , que
prediz alguns fatos novos mas resiste aos testes mais severos. A transferência de
problemas é progressiva e também temos um excelente exemplo em que se
alternam popperiana- mente conjecturas e refutações. 239 As pessoas admirarão
esse fato como um exemplo clássico de trabalho teórico e experimental que
caminha de mãos dadas.
(2) Outro modelo poderia ter sido um Bohr solitário (possivel mente sem
que Balmer o precedesse), elaborando H 1, H2 , H 3 , H 4 mas, por uma questão de
autocrítica, retendo a publicação até H 4 . Depois H 4 é testado: todas as evidências
se revelam corroborações de H 4 , a primeira (e única) hipótese publicada. O
teórico — sentado à sua mesa — é visto aqui trabalhando à frente do
experimentador: temos um período de relativa autonomia do progresso teórico.
(3) Imaginemos agora que todas as evidências empíricas mencionadas
nesses três modelos já estão ali ao tempo da invenção de H1, H 2 , H 3 , H 4 . Nesse
caso, H1, H 2 , H 3 e H 4 não representarão uma transferência de problemas
empiricamente progressiva e, portanto, embora todas as evidências lhe apoiem as
teorias, o cientista precisa continuar a trabalhar para provar o valor científico do
seu programa. 230 Tal estado de coisas pode ser provocado por já ter um pro-
grama de pesquisa mais antigo (desafiado pelo que conduziu a H1, H 2 , H 3 , H 4 )
produzido todos esses fatos — ou por haver dinheiro em demasia, do governo,
destinado à obtenção de dados acerca das linhas do espectro, te ndo as tentativas
tropeçado com todos os dados. O últi mo caso, todavia, é muito pouco provável
pois, como Cullen costumava dizer, “o número de fatos falsos, à solta pelo
mundo, excede infinitamente o das teorias falsas” 231 ; na maioria desses casos o
programa de pesquisa colidirá com os “fatos” disponíveis, o teórico exami

229. Nos três primeiros modelos não envolvemos complicações tais como apelos bem -
sucedidos contra o veredito dos cientistas experimentais.
230. Isso mostra que se as mesmas teorias e a mesma evidência forem racionalmente
reconstruídas em diferentes ordens de tempo, poderão constituir uma transferência
progressiva ou uma transferência degenerativa. Cf. também meu ensaio “Changes in the
Problem of Inductive Logic”, de 1968, p. 387.
231. Cf. McCulloch, The Principies of Political Economy: With a Sketch of the
Rise and Progress of the Science, 1825, p. 21. Sobre um vigoroso argumento acerca da extrema
improbabilidade de um modelo dessa natureza, veja mais abaixo, pp. 156-7.

187
nará as “técnicas experimentais” do experimentador e, tendo derru bado e
substituído suas teorias observacionais, corrigirá seus fatos produzindo, por
essa meneira, fatos novos.' 232
Concluída essa excursão metodológica, voltemos ao programa de Bohr.
Nem todos os desenvolvimentos do programa foram previstos e planejados no
esboçar-se pela primeira vez a heurística positiva. Quando algumas lacunas
curiosas apareceram nos modelos sofistica dos de Sommerfeld (algumas linhas
perdidas nunca apareceram), Paulo propôs uma hipótes e auxiliar profunda (o seu
“princípio de exclusão”) que não só explicou as lacunas conhecidas mas também
remodelou a teoria incipiente do sistema periódico de elementos e antecipou
fatos então desconhecidos.
Não é minha intenção apresentar aqui um relato c ircunstanciado do
desenvolvimento do programa de Bohr. Mas o seu estudo porme norizado do
ponto de vista metodológico é uma verdadeira mina de ouro: seu progresso
maravilhosamente rápido — sobre fundamentos inconsistentes! — foi
emocionante, a beleza, a originalidade e o sucesso empírico de suas hipóteses
auxiliares, propostas por cientistas brilhantes e até geniais, não tiveram
precedente na história da física. 233 De vez em quando, a versão seguinte do
programa exigia apenas uma melhoria trivial, como a substituição da massa pela
massa reduzida. De vez em quando, entretanto, para chegar à versão seguinte,
fazia-se mister uma nova matemática sofisticada, como a matemática do pro -
blema de n-corpos, ou novas teorias auxiliares físicas sofisticadas. A matemát ica
ou a física adicionais eram tiradas de alguma parte do conhecimento existente
(como a teoria da relatividade) ou inventadas

232. Talvez se deva mencionar que a mania da coleção de dados — e da “exagerada”


precisão também — impede até a formação de hipóteses “empíricas” ingênuas como a de
Balmer. Se Balmer tivesse tido conhecimento dos espectros finos de Michelson, teria acaso
encontrado sua fórmula? Ou, se os dados de Tycho Brahe tivessem sido mais precisos, a lei
elíptica de Kepler teria sido algum dia apresentada? O mesmo se aplica à primeira versão
ingênua da lei geral dos gases, etc. A conjectura de Descartes e Euler sobre os poliedros talvez
nunca tivesse sido feita não fora a escassez de dados; cf. meu ensaio de 1963 -4, intitulado
“Proofs and Refutations”, pp. 298 e seguintes.

233. "Entre o aparecimento da grande trilogia de Bohr em 1913 e o adven to da


mecânica ondulatória em 1925, surgiu grande número de estudos que desenvolviam as idéias
de Bohr numa impressionante teoria de fenômenos atômicos. Foi um esforço coletivo e os
nomes dos físicos que contribuíram para isso constituem uma lista imponente: Bohr, Bom,
Epstein, Debye, Schwarz- schild, Wilson...” (Ter Haar, The Old Quantum Theory, 1967, p.
43).

188
(como o princípio de exclusão de Pauli). No último caso temos uma
“transferência criativa” da heurística positiva.
Mas até esse grande programa chegou a um ponto em que sua força
heurística se esgotou. Multiplicaram-se as hipóteses ad hoc e não puderam ser
substituídas por explicações aumentadoras de conteúdo. Por exemplo, a teoria
dos espectros (faixa) moleculares de Bohr predisseram a seguinte fórmula para
as moléculas diatômicas:

h
v= ________ [(m + 1) 2 - m 2 ]
8 π2 I

Mas a fórmula foi refutada. Os adeptos de Bohr substituíram o termo m²


por m(m + 1): este se ajustava aos fatos mas era tristemente ad hoc.
Veio depois o problema de alguns desdobramentos não explicados nos
espectros de álcalis. Landé explicou-os em 1924 por uma “regra divisória
relativista” ad hoc; Goudsmit e Uhlenbeck em 1925, pelo giro do elétron. Se a
explicação de Landé era ad hoc, a de Goudsmit e Uhlenbeck também se revelou
inconsistente com a teoria especial da relatividade: pontos de superfí cie no
elétron aumentado tinham de viajar mais depressa do que a luz, e o elétron tinha
até de ser maior do que o átomo todo. 234 Fazia-se mister muita coragem para
propô-lo (Kronig teve a idéia primeiro, mas absteve-se de publicá-la por supô- la
inadmissível. 235 )
Mas a temeridade em se propor veementes inconsistências não colheu
novas recompensas. O programa ficou para trás da descoberta de “fatos”.
Anomalias não-digeridas inundavam o campo. Com inconsistências cada vez
mais estéreis e hipóteses cada vez mais ad hoc, começara a fase degenerativa do
programa de pesquisa: este princi- paira — para usarmos uma das frases
favoritas de Popper — “a perder

234. Uma nota de rodapé no trabalho deles diz o seguinte: “Deveria observar -se que
[de acordo com a nossa teoria] a velocidade periférica do eléctron excederia de maneira
considerável a velocidade da luz” ílJhlenbeck e Goudsmit, “Ersetzung der Hypothese von
unmechanischen Zwang durch eine Forderung bezüglich des inneren Verhaltens jedes
einzelnen Electrons”, 1925).
235. Jammer, The Conceptual Development of Quantum Meclianics, 1966, pp. 146-8 e
151.

189
seu caráter empírico”. 236 Tampouco se poderia esperar que muitos problemas,
como a teoria das perturbações, fossem resolvidos dentro dele. Logo apareceu
um programa de pesquisa rival: a mecânica ondula- tória. Não somente o novo
programa, até em sua primeira versão (de Broglie, 1924), explicava as condições
quânticas de Planck e de Bohr; mas também conduzia a um fato novo
emocionante, a experiência de Davisson-Germer. Em suas versões ulteriores,
ainda mais sofisticadas, oferecia soluções para problemas que tinham estado
completamente fora do alcance do programa de pesquisa de Bohr, e explicava as
teorias ad hoc subseqüentes do citado programa por teorias que satis faziam a
elevados padrões metodológicos. A mecânica ondulatória não tardou a alcançar,
vencer e substituir o programa de Bohr.
O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programa de Bohr estava
degenerando. Mas isso não passou de coincidência. Ficamos a perguntar-nos o
que teria acontecido se de Broglie tivesse escrito e publicado seu estudo em
1914 em lugar de fazê-lo em 1924.

(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da racionalidade


instantânea.
Seria um erro supor que precisamos conser var um programa de pesquisa
até que se tenha esgotado toda a sua força heurística, que não devemos
apresentar um programa rival antes de haverem todos concordado em que foi
provavelmente atingido o ponto de degenera- ção. (Embora se possa
compreender a irritação do físico quando, no meio da fase progressiva de um
programa de pesquisa, se lhe depara uma proliferação de vagas teorias
metafísicas que não estimulam nenhum progresso empírico. 237 ) Nunca devemos
permitir que um programa de pesquisa se converta num Weltanschauung, ou
numa espécie de rigor científico, arvorando-se em árbitro entre a explicação e a
não- -explicação, como o rigor matemático se arvora em árbitro entre a prova e a
não-prova. Esta, infelizmente, é a posição que Kuhn tende

236. Sobre uma excelente descrição dessa fase degenerativa do programa de Bohr, cf.
Margenau, The Nature o/ Physical Reality, 1950, pp. 311-3.
Na fase progressiva de um programa o principal estímulo heurístico pro vém da
heurística positiva: as anomalias são largamente ignoradas. Na fase degenerativa a força
heurística do programa some aos poucos. Na ausência de um programa rival essa situação
pode refletir-se na psicologia dos cientistas por uma hipersensibilidade inusitada às
anomalias e por uma sensação de "crise” kuhniana.

237. Isto é o que mais deve ter irritado Newton na “cética proliferação de teorias”
pelos cartesianos.

190
a advogar: na verdade, o que ele denomina “ciência normal" nada mais é que um
programa de pesquisa que logrou monopólio. Mas, em realidade, o s programas
de pesquisa só lograram monopólio completo em raras ocasiões e, mesmo assim,
por períodos relativamente curtos, a despeito dos esforços de alguns cartesianos,
newtonianos e bohria- nos. A história da ciência tem sido, c deve ser, uma história d e
programas de pesquisa competitivos (ou, se quiserem, de "paradigmas"), mas não tem sido,
nem deve vir a ser, uma sucessão de períodos de ciência normal: quanto antes se iniciar a
competição, tanto melhor para o progresso. O “pluralismo teórico” é preferível no
“monismo teórico”: nesse ponto Popper e Feyerabend estão certos e Kuhn está
errado. 238
A idéia de programas de pesquisa científica concorrentes conduz - nos ao
problema: como são eliminados os programas de pesquisai Transpirou de nossas
considerações anteriores que uma transferência degenerativa de problemas não é
uma razão mais forte para eliminar um programa de pesquisa do que uma
“refutação" antiquada ou uma “crise” kuhniana. Pode haver alguma razão objetiva
(em oposição às razões sociopsicológicas) para rejeitar um programa, isto é, para eli -
minar-lhe o núcleo e o programa a fim de construir cintos protetores? Nossa resposta, em
linhas gerais, resume-se nisto: uma razão objetiva dessa natureza é
proporcionada por um programa de pesquisa rival que explica o êxito anterior de
seu rival e o suplanta por uma demons tração adicional de força heurística.™
O critério da “força heurística", no entanto, depende muito de como
interpretamos a "novidade fatual'’. Até agora temos presumido que se pode
imediatamente determinar se uma nova teoria prediz ou

238. Não obstante, há qualquer coisa para ser dita ao menos a respeito de algumas
pessoas que se aferram a um programa de pesquisa até que ele atinge seu “ponto de
saturação"; desafia-se então um novo programa a responder pelo pleno sucesso do velho. O
fato de um argumento rival ter podido, ao ser proposto pela primeira vez, explicar todo o
sucesso do primeiro programa; não constitui argumento contra isso; não se pode predizer o
crescimento de um programa de pesquisa — capaz de estimular importantes teorias auxiliares
próprias imprevisíveis. Outrossim, se uma versão An de um pro grama de pesquisa é
matematicamente equivalente a uma versão A m de um rival P 2 devemos desenvolver os dois: a
força heurística deles ainda pode ser multo diferente.

239. Emprego aqui "força heurística" como termo técnico a fim de caracterizar a
força de um programa de pesquisa para antecipar teoricamente fatos novos em seu
crescimento. Eu poderia empregar, naturalmente, "poder éxplanatório": cf. mais acima, p.
145, nota de pé de página n. u 112.

191
não um fato novo. 240 Mas a novidade de uma proposição fatual muitas vezes só
pode ser vista depois da passagem de um longo período. A fim de mostrá-lo,
começarei com um exemplo.
A teoria de Bohr implicava logicamente a fórmula de Balmer para as
linhas de hidrogênio como conseqüência. 241 Tratava-se de um fato novo?
Poderíamos sentir-nos tentados a negá-lo, uma vez que a fórmula de Balmer,
afinal de contas, era bem conhecida. Mas esta é uma meia verdade. Balmer
apenas “observou” Bt : que as linhas de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer.
Bohr predisse B2\ que as diferenças nos níveis de energia em diferentes órbitas do
elétron de hidrogênio obedecem à fórmula de Balmer. Agora podemos dizer que B\
já encerra todo o conteúdo puramente “observacional” de B2. Mas dizê-lo
pressupõe que pode haver um “nível observacional” puro, não conta minado pela
teoria, e impermeável à mudança teórica. Com efeito, Bi só foi aceito porque as
teorias óticas, químicas e outras aplicadas por Balmer foram bem corroboradas e
aceitas como teorias interpretati- vas, sempre passíveis de ser postas em dúvida.
Talvez fosse possível argumentar que podemos “purgar” até B{ de suas
pressuposições teóricas, e chegar ao que Balmer realmente “observou”, que
poderia ser expresso num asserção mais modesta, B0: que as linhas emitidas em
certos tubos em determinadas circunstâncias bem especificadas (ou no correr de
uma “experiência controlada” 242 ) obedecem à fórmula de Balmer. Ora, alguns
argumentos de Popper mostram que nunca chegaremos, dessa maneira, a nenhum
mínimo “observacional” concreto; pode mostrar-se facilmente que teorias
“observacionais” estão envolvidas em B 0 . 24:i Por outro lado, como o programa de
Bohr, depois de um longo desenvolvimento progressivo, havia mostrado sua
força heu

240. Cf. mais acima, p. 142, texto correspondente à nota de pé de página n.° 98, e p. 164,
texto correspondente à nota de pé de página n.° 166.
241. Cf. mais acima, p. 180.
242. Cf. mais acima, p. 135, nota de pé de página n.° 77.
243. Um dos argumentos de Popper é particularmente importante: "Há
uma crença generalizada de que o enunciado ‘Vejo que esta mesa aqui é bran ca’ possui alguma
profunda vantagem sobreo enunciado ‘Esta mesa aqui é
branca’, do ponto de vista da epistemologia. Mas do ponto de vista da ava
liação dos seus possíveis testes objetivos, o primeiro enunciado, ao falar sobre mim, não
parece mais seguro do que o segundo, que fala a respeito da mesa aqui” (Logik der
Forschung, 1934, seção 27). Neurath faz um comentário carac- teristicamente estúpido acerca
desse trecho: “Para nós esses enunciados proto- colares têm a vantagem de ter maior
estabilidade. Podemos conservar o enunciado ‘As pessoas no século XVI viram espadas de fogo
no céu’ ao mesmo tempo que riscamos ‘Havia espadas de fogo no céu”’ (Neurath,
“Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, p. 362).

192
rística, o próprio núcleo se teria tornado bem corroborado 2,4 e, portanto,
qualificado como teoria “observacional” ou interpretativa. Mas nesse caso B2 não
será visto como mera reinterpretação teórica de Bu e sim como um fato novo por
méritos próprios.
Tais considerações emprestam nova ênfase ao elemento retros pectivo de
nossas avaliações e conduzem a uma liberalização subseqüente de nossos
padrões. Um novo programa de pesquisa que acabasse de entrar na competição
poderia começar explicando “fatos antigos” de um modo novo, mas poderia levar
muito tempo para produzir fatos “genuinamente novos”. Por exemplo, a teor ia
cinética do calor pareceu ir, durante décadas, a retoque dos resultados da teoria
fenomenológica antes de alcançá-la finalmente com a teoria de Eins- tein-
Smoluchowski do movimento browniano, em 1905. Depois disso, o que antes
parecera uma reinterpretação especulativa de fatos velhos (acerca do calor, etc.)
revelou-se uma descoberta de fatos novos (acerca de átomos).
Tudo isso dá a entender que não devemos pôr de lado um programa de
pesquisa incipiente só porque não conseguiu, até esse momento, alcançar poderoso
rival. Não devemos abandoná-lo se ele, supondo-se que o rival não estivesse
presente, constituísse uma transferência progressiva de problemas. 245 E devemos,
por certo, considerar um fato recém-interpretado como um fato novo, ignorando as
insolentes pretensões à prioridade de coletores amadores de fatos. Enquanto um
programa incipiente de pesquisa puder ser racionalmente reconstruído como
transferência progressiva de problemas, deverá ser resguardado durante algum
tempo de um poderoso rival estabelecido.
Tais considerações, de um modo geral, ressaltam a importância da
tolerância metodológica, e deixam ainda sem resposta a pergunta sobre como são
eliminados os programas de pesquisa. O leitor pode

244. Esta observação, a propósito, define um 'grau de corroboração’ para os núcleos


'irrefutáveis' dos programas de pesquisa. A teoria de Newton (iso lada) não tinha conteúdo
empírico e, no entanto, nesse sentido era altamente corroborada.

245. A propósito, na metodologia dos programas de pesquisa, o significado pragmático


de "rejeição” [de um programa] toma-se cristalinamente claro: significa a decisão de parar de
trabalhar nele.
246. Alguns podem considerar — cautelosamente — esse período abrigado de
desenvolvimento como “pré-científico" (ou “teórico”); e só estão preparados para reconhecer-
lhe o caráter verdadeiramente científico (ou "empírico”) quando ele começa a produzir fatos
“genuinamente novos” — mas, nesse caso, o seu reconhecimento terá de ser retroativo.

193
até desconfiar de que tanto destaque dado à falibilidade liberaliza, ou melhor,
abranda nossos padrões a ponto de imbuir-nos de ceticismo radical. Até as
célebres “experiências cruciais”, nesse caso, não terão força para derrubar um
programa de pesquisa; tudo vale. 2 ' 7
Mas essa desconfiança é infundada. Dentro de. um programa de pesquisa
as “experiências cruciais menores” entre versões subseqüentes são muito comuns.
As experiências “decidem” facilmente entre enési- ma e enésima-primeira versão
científica, visto que a enésima-primeira não somente é inconsistente com a
enésima, mas também a suplanta. Se a enésima-primeira versão possui mais
conteúdo corroborado à luz do mesmo programa e à luz das mesmas teorias
observacionais bem corroboradas, a eliminação é um assunto relativamente de
rotina (só relativamente, pois mesmo aqui a decisão pode estar sujeita a uma
apelação). Os processos de apelação também são ocasionalmente fá ceis: em
muitos casos a teoria observacional contestada, longe de ser bem corroborada, é
de fato uma suposição mal expressa, ingênua, “escondida”; só a contestação
revela a existência da suposição oculta, e lhe provoca a expressão, o teste e a
queda. Vez por outra, contudo, as próprias teorias observacionais estão inseridas
em algum programa de pesquisa e, nesse caso, o processo de apelação conduz
um choque entre dois programas: em tais circunstâncias podemos precisar de
uma “experiência crucial importante
Quando dois programas de pesquisa competem entre si, seus primeiros
modelos “ideais" geralmente tratam de diferentes asp ectos da questão (assim,
por exemplo, o primeiro modelo da ótica simicor- puscular de Newton descrevia
a refração da luz, o primeiro modelo da ótica ondulatória de Huyghens descrevia
a interferência luminosa). À medida que se expandem, os programas de pesq uisa
rivais invadem, pouco a pouco, o território uns dos outros e a enésima versão do
primeiro será flagrantemente, dramaticamente incompatível com a enési ma
versão do segundo. 248 Realiza-se repetidamente uma experiência e, como
resultado, enquanto o primeiro é derrotado nessa batalha, o segundo vence. Mas
a guerra não acabou: a qualquer programa de pesquisa é lícito sofrer algumas
derrotas dessa natureza. A única de

247. Incidentalmente, pode dizer-se com razão que o conflito entre a falibilidade e a
crítica é o problema principal — e a força propulsora — do programa da pesquisa popperiano
na teoria do conhecimento.
248. Um caso especialmente interessante de competição dessa natureza é a simbiose
competitiva, quando se enxerta um programa novo num prog rama velho, incompatível com
ele; cf. mais acima, p. 174.

194
que ele precisa para reabilitar-se é produzir uma enésima-primeira versão (ou n
+ k) aumentadora de conteúdo e uma verificação de parte do seu novo conteúdo.
Se a reabilitação, depois de um esforço sustentado, não se verificar, a
guerra estará perdida e a experiência original será vista, retrospectivamente,
como tendo sido “crucial”. Mas se o programa derrotado for um programa
jovem, que se desenvolve depressa, e se decidirmos dar suficiente c rédito aos
seus êxitos pré-científicos, experiências pretensamente cruciais dissolver-se-ão
uma depois da outra na esteira da sua investida. Mesmo que seja um programa
velho, estabelecido e “cansado”, perto do seu “ponto natural de saturação”, 249 o
programa derrotado pode continuar a resistir por muito tempo e a manter -se com
engenhosas inovações aumentadoras de conteúdo, ainda que estas não sejam com
o sucesso empírico. É muito difícil derrotar um programa de pesquisa sustentado
por cientistas talentosos e imaginativos. Alternativamente, defensores teimosos
do programa derrotado podem oferecer explicações ad hoc das experiências ou
uma “redução” ad hoc do programa vitorioso ao programa derrotado. Mas
devemos rejeitar tais esforços como não-científicos. 250
Nossas considerações explicam por que experiências cruciais só são vistas
como cruciais décadas mais tarde. De um modo geral, as elipses de Kepler só
foram admitidas como prova crucial a favor de Newton e contra Descartes uns
cem anos depois da reivindicação de Newton. O comportamento anômalo do
pcriclio de Mercúrio foi conhecido, durante decênios, como uma das muitas
dificuldades ainda não resolvidas do programa de Newton; mas só o fato de que
a teoria de Einstein o explicava melhor transformou uma abo rrecida anomalia
numa brilhante “refutação” do programa de pesquisa de Newton. 251

249. Não existe essa coisa que se poderia denominar "ponto natural de saturação”; em
meu ensaio,' “Proofs and Refutations”, 1963 -4, sobretudo nas páginas 327-8, eu era mais
hegeliano e supunha que existisse; agora uso a expressão com ênfase irônica. Não há uma
limitação predizível nem determi- nável que se possa impor à imaginação humana na invenção
de novas teorias aumentadoras de conteúdo, nem à “astúcia da razão” ( List der Vernunft) no
recompensá-las com algum sucesso empírico ainda que elas sejam falsas ou ainda que a nova
teoria tenha menos verossimilhança — no sentido de Popper
— do que a sua predecessora. (Provavelmente todas as teorias científicas já
proclamadas pelos homens são falsas: ainda assim poderão ser recompensadas pelo sucesso
empírico e até apresentar uma crescente verossimilhança.)

250. Sobre um exemplo, cf. mais acima. p. 155. nota de rodapé n.° 140.
251. Dessa maneira, uma anomalia num programa de pesquisa é um jertômeno que
consideramos como algo que deve ser explicado em função do programa. De um modo mais
geral, podemos falar, seguindo Kuhn. acerca de

195
Young afirmou que sua experiência da dupla fenda em 1802 constituiu uma
experiência crucial entre o programa corpuscular e o programa ondulatório da
ótica; sua afirmação, todavia, só foi reconhecida muito mais tarde, depois que
Fresnel desenvolveu o programa ondulatório muito mais “progressivamente” e se
tornou claro que os newtonianos não poderiam igualar -lhe a força heurística. A
anomalia, já conhecida havia décadas, só recebeu o título honorífico de
refutação, e a experiência o de “experiência crucial”, depois de um longo
período de desenvolvimento desigual dos dois programas rivais. O movimento
browniano esteve, durante quase um século, bem no meio do campo de batalha
antes de ser visto derrotando o programa de pesquisa fe- nomenológica e fazendo
pender a balança da guerra em favor dos atomistas. A “refutação” da série de
Balmer feita por Michelson foi ignorada por toda uma geração até que o
triunfante programa de pesquisa de Bohr passou a dar-lhe o necessário apoio.
Talvez valha a pena esmiuçar alguns exemplos de experiências cujo caráter
“crucial” só se tomou manifesto a posteriori. Examinarei primeiro a célebre
experiência de Michelson e Morley em 1887, que, segundo se diz, falseou a
teoria do éter e “conduziu à teoria da relati vidade”; depois, as experiências de
Lummer e Pringsheim, as quais, afirma-se, falsearam a teoria clássica da
radiação e “conduziram à teoria quântica”. 252 Finalmente, discutirei uma
experiência que muitos físicos imaginaram que se revelaria contrária às leis da
conservação mas que, na verdade, acabou sendo sua mais triunfante
corroboração.

(d 1) A experiência de Michelson e Morley


Michelson foi o primeiro a idear uma experiência no intuito de pôr à prova
as teorias contraditórias de Fresnel e Stokes acerca da influência do movimento
da terra sobre o éter, 253 durante a visita que

"enigmas": um "enigma” num programa é um problema que encaramos como um desafio a


esse programa. Um "enigma” pode ser resolvido de três maneiras: solucionando -o dentro do
programa original (a anomalia transforma -se em exemplo); neutralizando-o, isto é,
solucionando-o dentro de um programa independente, indiferente (a anomalia desaparece);
ou, por mim, solucionando-o dentro de um programa rival (a anomalia converte -se num
exemplo contrário).
252. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.
253. Cf. Fresnel, “Lettre à François Arago sur ITnfluence du Mouve- ment Terrestre
dans quelques Phénomènes Optiques”, 1818; Stokes, “On the Aberration of Light”, 1845, e
“On FresnePs Theory of the Aberration of Light”, 1846. Sobre uma excelente e breve
exposição cf. Lorentz, Versuch einer Theo- rie der electrischen und optischen Erscheinungen
in bewegten Kõrpen, 1895.

196
fez ao instituto de Helmholtz em Berlim no ano de 1881. De acordo com a teoria
de Fresnel, a terra se move através de um éter em repou so, mas o éter dentro da
terra é parcialmente carregado com ela; a teoria de Fresnel, por conseguinte,
exigia que a velocidade do éter fora da terra em relação à terra fosse positiva
(isto é, supunha a existência de um “vento de éter”). De acordo com a teoria de
Stokes, a terra arrastava o éter e imediatamente sobre a sua superfície a ve-
locidade do éter era zero (isto é, não havia vento de éter na super fície). Stokes
julgou, a princípio, que as duas teorias eram observacio- nalmente equivalentes;
com adequadas suposições auxiliares, por exemplo, ambas explicavam a
aberração da luz. Michelson, porém, proclamava que sua experiência de 1881,
experiência crucial entre as duas, provava a teoria de Stokes. 254 Sustentava ele
que a velocidade da terra em relação ao éter era muito menor do que a supunha a
teoria de Fresnel. Na realidade, concluía que de sua experiência “se infere a
conclusão necessária de que a hipótese [de um éter estacionário] é errôneo. Essa
conclusão contradiz frontalmente a explicação do fenômeno da aberração, o qual.
. . pressupõe que a terra se move através do éter, permanecendo este em
repouso”. 255 Como acontece freqüentemente, Michelson, o experimentador,
recebeu uma lição de um teórico. Lorentz, o principal físico teórico do período,
no que Michelson descreveu mais tarde como “uma análise muito circ uns-
tanciada. . . de toda a experiência”, 256 mostrou que Michelson “interpretou
erroneamente” os fatos e que o que ele observara, com efeito, não contrariava a
hipótese do éter estacionário. Lorentz demonstrou que os cálculos de Michelson
estavam errados; a teoria de Fresnel predizia apenas a metade do efeito que
Michelson calculara. lorentz concluiu que a experiência de Michelson não
refutava a teoria de Fresnel e tampouco provava a de Stokes. Lorentz prosseguiu
mostrando que a teoria de Stokes era inconsistente: presumia que o éter à
superfície da terra estava em repouso em relação a esta última e exigia que a
velocidade relativa tivesse um potencial; mas as duas condi ções são
incompatíveis. Entretanto, ainda que Michelson tivesse refutado uma teoria do
éter estacionário, o programa continuaria in tocado: podem-se imaginar
facilmente várias outras versões do programa do éter, que predizem valores
muito pequenos para os ventos

254. Isso transpira, obliquamente, da seção final do seu ensaio de 1881 intit ulado,
“The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether”.
255. Michelson, “The Relative Motion of the Earth and the Luminife rous Ether”, 1881,
p. 128. O grifo é meu.
256. Michelson e Morley, "On the Relative Motion of the Earth and the Luminif erous
Ether”, 1887, p. 335.

197
de éter e ele, Lorentz, imediatamente produziu a sua. A teoria testável e Lorentz
submeteu-a, orgulhosamente, ao veredito da experiência. 257 Michelson,
juntamente com Morley, aceitou o desafio. A velocidade relativa da terr a no
tocante ao éter pareceu de novo ser zero, contra riando a teoria de Lorentz. Desta
vez, porém, mais cauteloso na interpretação dos seus dados, Michelson até
pensou na possibilidade de que o sistema solar pudesse ter -se movido como um
todo na direção oposta à da terra; portanto, decidiu repetir a experiência “a
intervalos de três meses e, assim, evitar toda e qualquer incerteza”. 258 Em seu
segundo trabalho, Michelson já não fala em “conclusões necessárias” nem em
“contradições diretas”. Apenas é de opinião que, da sua experiência, “parece, de
tudo o que precede, razoadamente certo que, se houver algum movimento
relativo entre a terra e o éter luminífero, este terá de ser pequeno',
suficientemente pequeno para refutar de todo a explicação de Fresnel da
aberração” 259 Assim, nesse trabalho, Michelson ainda afirma ter refutado a teoria
de Fresnel (e também a nova teoria de Lorentz); mas nele não se lê uma única
palavra acerca de sua velha afirmativa, feita em 1881, de que refutara “a teoria
do éter estacionário” em geral. (Pois acreditava que, para poder fazê - lo, ser-lhe-
ia preciso testar o vento do éter também em grandes altitu des, “no pico de uma
montanha isolada, por exemplo”. 260
Ao passo que alguns teóricos do éter — como Kelvin — não se fiavam da
“habilidade experimental”, 261 de Michelson, Lorentz assinalou que, apesar da
afirmativa ingênua de Michelson, nem a sua

257. Lorentz, "De 1’Influence du Mouvement de la Terra sur les Phéno - mènes
Lumineux”, 1886. Sobre a incompatibilidade da teoria de Stokes, cf. também o ensaio de
Lorentz de 1892 intitulado, “Stokes' Theory of Aberra - tion”.

258. Michelson e Morley, “On the Relative Motion of the Earth and the Luminiferous
Ether”, 1887, p. 341. Mas Pearce Williams assinala que ele nunca o fez. (Pearce William s,
Relativity Theory: Its Origins and Impact on Modem Thought, 1968, p. 34.)

259. Ibid. p. 341. O grifo é meu.


260. Michelson e Morley, “On the Relative Motion of the
Earth and the Luminiferous Ether”, 1887. Como se depreende desse reparo, Michelson
compreendia que sua experiência de 1887 era perfeitamente compatível com
um vento de éter mais alto. Em seu trabalho de 1920, isto é, trinta e três
anos mais tarde, Max Born afirmou que da experiência de 1887 “precisamos concluir que o
vento de éter não existe”. (O grifo é meu.)
261. Kelvin disse no Congresso Internacional de Física de 1900 que “a única nuvem
[existente] no céu claro da teoria [do éter] era o resultado nulo da experiência Michelson -
Morley” (cf. Miller, “Ether-Drift Experiments at Mount Wilson”, 1925) e imediatamente
persuadiu Morley e Miller, que ali estavam, a repetir a experiência.

198
nova experiência “fornece subsídios para a questão pela qual foi em -
preendida”. 2 ® 2 Pode considerar-se a teoria de Fresnel perfeitamente como uma
teoria interpretaliva, que interpreta os fatos, em lugar de ser refutável por eles e,
como Lorentz mostrou, “a importância da experiência de Michelson e Morley
reside antes no fato de poder ela ensinar-nos alguma coisa sobre as mudanças das
dimensões'' 2*™: as dimensões dos corpos são afetadas pelo seu movimento
através do éter. Lorentz elaborou essa “transferência criativa” dentro do progra -
ma de Fresnel com grande engenho e por essa maneira afirmou haver “afastado a
contradição entre a teoria de Fresnel e o resultado de M ichelson”. 264 Mas admitiu
que, “sendo a natureza das forças moleculares inteiramente desconhecidas para
nós, é impossível testar a hipótese”; 265 pelo menos por enquanto ela não pode
predizer fatos novos. 266

262. Lorentz, “The Relative Motion of the Earth and the Ether”, 1892.
263. Ibid. O grifo é meu.
264. Lorentz, Versuch einer Theorie der electrischen und optischen Ers - cheinungen
in bewegten Kõrpern, 1895.
265. Lorentz, “Stokes’ Theory of Aberration”, 1892.
266. Ao mesmo tempo, independentemente de Lorentz, Fitzgerald produziu uma
versão testável dessa "transferência criativa” que foi logo refutada pelas experiências de
Trouton, Rayleigh e Brace: era teórica mas não empi - ricamente progressiva. Cf. Whittaker,
From Euclid to Eddington, 1947, p. 53 e Whittaker, History of the Theories of Aether and
Elecfricity, vol. II, 1953, pp. 28-30.
Existe uma concepção amplamente difundida da "ad hocidade" da teoria de Fitzgerald.
Mas os físicos contemporâneos queriam dizer que a teoria era ad hoc, (cf. mais acima, p. 152,
nota de rodapé n.° 136): que não havia "evidência independente [positivo]” dela. (Cf. por
exemplo. Larmor “On the Ascer- tained Absence of Effects of Motion through the Aether, in
Relation to the Constitution of Matter, and on the Fitzgerald -Lorentz Hypothesis 1 ’, 1904, p.
624.) Mais tarde, sob a influência de Popper, o termo "ad hoc" foi principalmente usado no
sentido de ad hoc,, que não havia teste independente possível para ele. Mas, como mostram as
experiências refutantes, é um erro proclamar, como faz Popper, que a teoria de Fitzgerald era
ad hoc, (cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 20). Isso mostra mais uma vez a
importância de separar ad hoc, de ad hoc 2 .
Quando Grünbaum, em seu ensaio de 1959, “The Falsifiability of the Lorentz -Fitzgerald
Contraction Hypothesis”, mostrou o erro de Popper, este o reconheceu, mas replicou que a
teoria de Fitzgerald era, sem dúvida, mais ad hoc do que a de Einstein (Popper, “Testability
and ‘ad-Hocness’ of the Contraction Hypothesis”, 1959), e que isso proporciona outro “ . . .
excelente exemplo de 'graus de ad hocidade' e de uma das principais teses do [seu] livro
— que os graus de ad hocidade se relacionam (inversamente) com os graus de testabilidade e
importância”. A diferença, porém, não é simplesmente uma questão de graus de ad hocidade,
única que pode ser medida pela testabilidade. Cf. também mais adiante, p. 216.

199
Nesse intervalo, em 1897, Michelson levou a cabo a experiência
longamente planejada de medir a velocidade do vento do éter no topo das
montanhas. Não encontrou nenhum. Como supusera haver provado a teoria de
Stokes que predizia um vento de éter a uma altitude maior, sentiu -se perplexo.
Se a teoria de Stokes continuasse correta, o gra diente da velocidade do éter teria
de ser muito reduzido. Michelson teve de concluir que “a influência da terra
sobre o éter se estendia a distâncias da ordem do diâmetro da terra”.'' 5117 Supôs
que este fosse um resultado “improvável” e concluiu que, em 1887, obtivera a
conclusão errada da sua experiência: era a teoria de Stokes que devia de ser
rejeitada e a de Fresnel que devia de ser aceita; e decidiu aceitar qualquer
hipótese auxiliar razoável para salvá-la, incluindo a teoria de Lorentz de
1892. 2fi8 Agora parecia preferir a contração Fitz- gerald-Lorentz e, por volta de
1904, seus colegas em Case estavam tentando descobrir se essa contração varia
com materiais diferentes. 269
Enquanto a maioria dos físicos tentava interpretar as experiên cias de
Michelson dentro da estrutura do programa do éter, Einstein, sem tomar
conhecimento de Michelson, Fitzgerald e Lorentz, mas es timulado sobretudo
pela crítica de Mach dirigida à mecânica newto niana, chegou a um novo e
progressivo programa de pesquisa. 270 Esse novo programa não só “predisse” e
explicou o resultado da experiência de Michelson e Morley mas também
vaticinou uma série imensa de fatos com os quais até então ninguém sonhara e
que obtiveram dramáticas corroborações. Só então, vinte e cinco anos depois,
veio a experiência de Michelson e Morley a ser encarada c omo “a maior
experiência negativa da história da ciência”. 271 Mas isso não poderia ser visto
instantaneamente. Ainda que a experiência fosse negativa, uma coisa não ficara
muito clara: negativa exatamente em relação ao quêl Além disso, em 1881,
Michelson também a julgava positiva:

267. Michelson, “On the Relative Motion of the Earth and the Ether”, 1897, p. 478.

268. Lorentz, com efeito, comentou de pronto: “Embora [Michelson] considere


improvável uma influência de tão longo alcance da terra, eu, ao contrár io, a esperaria”
(Lorentz, "Concerning the Problem of the Dragging Along of the Ether by the Earth”; o grifo
é meu).
269. Morley e Miller, Carta e Kelvin, 1904.
270. Houve considerável controvérsia a respeito dos antecedentes histó - rico-
heurísticos da teoria de Einstein, à luz da qual este enunciado pode reve - lar-se falso.

271. Bernal, Science in History, 1965, p. 530. Para Kelvin, em 1905, foi apenas uma
“nuvem no céu claro”; cf. mais acima, p. 198, nota de pé de página, 261.
ele sustentava que havia refutado a teoria de Fresnel, porém verificado a de Stokes.
O próprio Michelson e depois Fitzgerald e Lorentz ex plicaram o resultado
272
positivamente dentro do programa do éter. Como se dá com todos os resultados
experimentais, sua negatividade em relação ao programa velho só mais tarde foi
estabelecida, pela lenta acumulação de tentativas ad hoc para explicá-la dentro do
velho programa em fase de degeneração e pelo gradativo estabelecimento de um
novo e vitorioso programa progressivo em que ela se tornou um caso positivo. Mas
a possibilidade de reabilitação de alguma parte do programa velho “que
degenerava” nunca poderia ser excluída racionalmente.
Só um processo extremamente difícil e indefinidamente longo pode
estabelecer um programa de pesquisa capaz de suplantar o seu rival; e não
convém empregar a expressão “experiência crucial” com excessiva precipitação.
Mesmo quando se vê eliminado pelo seu pre- decessor, um programa de pesquisa
não é eliminado por uma experiência “crucial”; e ainda que uma experiê ncia
crucial desse gênero seja mais tarde posta em dúvida, o novo programa de
pesquisa não pode ser sustado sem uma vigorosa e progressiva ascensão do
velho programa. 273 A negatividade e a importância da experiência de Mi chelson
e Morley residem sobretudo na transferência progressiva no novo programa de
pesquisa a que ele veio emprestar poderoso apoio, e sua “grandeza” é apenas um
reflexo da grandeza dos dois programas envolvidos.
Seria interessante fazer uma análise minuciosa das transferências rivais
envolvidas nas fortunas declinantes da teoria do éter. Mas sob a influência do
falseacionismo ingênuo, a fase degenerativa mais inte ressante da teoria do éter,
depois da “experiência crucial" de Michel-

272. De fato, o excelente compêndio de física de Chwols on dizia, em 1902, que a


probabilidade da hipótese do éter estava à beira da certeza. (Cf. Einstein, “Uber die
Entwicklung unserer Anschauungen über das Wesen und die Konstitution der Strahlung”,
1909, p. 817.)
273. Polanyi conta-nos, com gusto, que, em 1925, em seu discurso presidencial
pronunciado perante a American Physical Society, Miller anunciou possuir, a despeito dos
relatórios de Michelson e Morley, “esmagadora evidência” de um redemoinho de éter; apesar
de tudo, o público se manteve fiel à teori a de Einstein. Polanyi tira disso a conclusão de que
nenhuma “estrutura ‘objetivista’” pode ser responsabilizada pela aceitação ou rejeição de teo -
rias por parte do cientista (Polanyi, Personal Knowledge, Towards a Post - criticai Philosophy,
1958, pp. 12-14). Minha reconstrução, todavia, faz da tenacidade do programa de pesquisa
einsteiniano, em face da pretensa evidência contrária, um fenômeno completamente racional e
por esse modo solapa a mensagem mística e “pós -crítica” de Polanyi.

201
son, é simplesmente ignorada pela maioria dos einsteinianos. Acre ditam eles
que a experiência de Michelson e Morley, sozinha, derrotou a teoria do éter,
cuja tenacidade se deveu exclusivamente ao conserva - cionismo obscurantista.
Por outro lado, o período pós-Michelson da teoria do éter é examinado com
espírito crítico pelos antieinsteinianos, para os quais a teoria do éter não sofreu
revés algum: o que é bom na teoria de Einstein estava essencialmente na teoria
do éter de Lorentz e a vitória de Einstein só se deve à mo da positivista. Na
realidade, porém, a longa série de experiências de Michelson de 1881 a 1935,
realizadas com a finalidade de pôr à prova versões subseqüentes do programa
do éter, fornece um exemplo fascinante de transferência degenerativa de
problemas. 274 (Mas os programas de pesquisa podem sair de depressões
degenerativas. Todos sabem que a teoria do éter de Lorentz pode ser facilmente
fortalecida de maneira que se torna, num sentido interessante, equivalente à
teoria do não-éter de Einstein. 275 No contexto de uma “transferência criativa”
importante o éter ainda pode voltar. 276 )

274. Um sinal típico da degeneração de um programa, não discutido neste ensaio, é a


proliferação de “fatos" contraditórios. Usando uma teoria falsa como teoria interpretativa,
podem conseguir-se — sem comentar nenhum “equívoco experimentai” — proposições fatuais
contraditórias, resultados expe rimentais incongruentes. Michelson, que se manteve fiel ao éter
até o fim, viu-se principalmente frustrado pela incompatibilidade dos fatos que obteve por
intermédio das suas mensurações ultraprecisas. Sua experiência de 1887 “mostrou” que não
havia vento de éter sobre a superfície da terra. Mas a aberração “mostrou” que havia.
Ademais, sua própria experiência de 1925 (ou nunca mencionada ou, como no trabalho de
Jaffe em 1960, Michelson and the Speed of Light, apresentada incorretamente) também
“provou” que havia (cf. Michelson e Gale, “The Effect of the Earth’s Rotation on the Velocity
of Light”, 1925, e, sobre uma crítica aguda, Runge, “Ãthe r und Relativitátstheo- rie”, 1925).

275. Cf. por exemplo Ehrenfest, “Zur Krise der Lichtãther -Hypothese”, 1913, pp. 17-
18, citado e discutido por Dorling em seu ensaio de 1968, “Lenght Contraction and Clock
Synchronisation: The Empirical Equivalence of the Einsteinian ad Lorentzian Theories”. Não
se deve esquecer, contudo, que duas teorias específicas, embora matemática (e
observacionalmente) equivalentes, po dem estar engastadas em diferentes programas de
pesquisa rivais, e a força da heurística positiva desses programas pode ser diferente. Esse
ponto foi passado por alto pelos que propuseram tais provas de equivalência (um bom exemplo
é a prova de equivalência entre o enfoque da física quântica de Schrõdinger e o de
Heisenberg). Cf. também mais acima, p. , nota de pé de página n.°

276. Cf. por exemplo Dirac, “Is there an Aether?”, 1951: “Se reexami namos a questão
à luz do conhecimento atual, descobriremos que o éter já não é excluído pela relatividade,
podemos agora apresentar boas razões para postular um éter.” Cf. também o parágrafo final
de Rabi, “Atomic Structure”, 1961, e Prokhovnik, The Logic of Special Relativity, 1967.

202
O fato de avaliarmos retrospectivamente as experiências explica por que,
entre 1881 e 1886, a experiência de Michelson não foi sequer mencionada na
literatura. Com efeito, quando um físico francês, Po- tier, mostrou a Michelson
o seu erro de 1881, Michelson decidiu não publicar uma nota de correção. Ele
explica o motivo dessa decisão numa carta a Rayleigh em março de 1887:
“Tenho tentado repetidamente, mas debalde, interessar meus amigos científicos
nessa experiência, e nunca publiquei a correção (envergonho-me de confessá-lo)
por sentir-me desanimado pela pouca atenção que o trabalho recebia, e não achar
que valesse a pena.” 277 Essa carta, a propósito, foi a resposta a uma carta de
Rayleigh chamando a atenção de Michelson para o trabalho de Lorentz, que
desencadeou a experiência de 1887. Mas mesmo depois de 1887, e até depois de
1905, não se considerava a experiência de Michelson e Morley, de um modo
geral, como refutação da existência do éter, e com muita razão. Isso talvez
explique por que Michelson não recebeu o seu Prêmio Nobel (em 1907), por
“refutar a teoria do éter”, mas “por seus instrumentos óticos de pre cisão e pelas
investigações espectroscópicas e metodológicas levadas a efeito com a ajuda
deles” 278 ; e por que a experiência de Michelson e Morley não foi sequer
mencionada nos discursos de apresentação. Em sua Nobel Lecture, Michelson
não fez alusão a ela; e calou o fato de que, embora pudesse haver originalmente
ideado seus instrumentos para medir com precisão a velocidade da luz, viu-se
compelido a aprimorá-los para testar algumas teorias específicas do éter, tendo
sido a “precisão” da sua experiência de 1887 motivada, em grande parte, pela
crítica teórica de Lorentz: fato que a literatura contemporânea clássica nunca
menciona. 279
Finalmente, tendemos a esquecer que, ainda que a experiência de
Michelson e Morley tivesse mostrado a existência de um “vento

277. Shankland, “Michelson-Morley Experiment", 1964, p. 29.


278. O grifo é meu.
279. O próprio Einstein tendia a acreditar que Michelson inventara o seu
interferômetro com a finalidade de testar a teoria de Fresnel. (Cf. Einstein, “Gedenkworte auf
Albert A. Michelson”, 1931.) A propósito, as primeiras experiências de Michelson acerca das
linhas do espectro — como o seu ensaio “On the Application of Interference Methods to
Spectroscopic Measurements, I-1I”, 1891-2 •—• foram também importantes para as teorias do
éter do seu tempo. Michelson só superenfatizava o seu sucesso em “mensurações precisas”
quando se via frustrado pela falta de êxito no avaliar-lhes a importância para as teorias.
Einstein, que não gostava da precisão por amor da precisão, per guntou-lhe por que dedicava a
ela tanta energia. A resposta de Michelson foi “porque a achava divertida”. (Cf. Einstein,
Carta a Shrõdinger de 31.5.1928.)

203
de éter”, o programa de Einstein poderia ter sido vitorioso. Quando Miller,
ardente defensor do clássico programa do éter, publicou sua sensacional
afirmação de que a experiência de Michelson e Morley estava sendo feita com
desleixo e que de fato havia um vento de éter, o noticiarista de Science escreveu,
jubiloso, que “os resultados do Professor Miller derrubam radic almente a teoria
da relatividade”. 270 No entender de Einstein, contudo, ainda que Miller tivesse
relatado o verdadeiro estado de coisas “ [só] a forma atual da teoria da relati-
vidade” teria de ser abandonada. 281 Com efeito, Synge assinalou que os
resultados de Miller, mesmo tomados pelo seu valor aparente, não conflitam com
a teoria de Einstein: o que conflita é a explicação de Miller. Pode substituir -se
com facilidade a teoria auxiliar de corpos rígidos existente por uma teoria nova,
de Gardner e Synge e, nesse caso, os resultados de Miller serão totalmente
digeridos pelo programa de Einstein. 282

(d 2) As experiências de Lummer e Pringsheim


Discutamos outra chamada experiência crucial. Planck afirmava que as
experiências de Lummer e Pringsheim, que “refuta vam” as leis da radiação de
Wien, Rayleigh e Jeans no princípio do século “conduziram” — ou “até deram
origem” — à teoria quântica. 283 Mais uma vez, porém, o papel dessas
experiências é muito mais complicado e está perfeitamente de acordo com o
nosso enfoque. Não se trata simplesmente de que as experiências de Lummer e
Pringsheim puseram fim ao enfoque clássico, mas que também foram muito bem
explicadas pela física quântica. De um lado, algumas versões primitivas da
teoria quântica dc Einstein exigem a lei de Wein e, portanto, não foram menos
refutadas pelas experiências de Lummer e Pringsheim do que a teoria clássica. 281
Por outro lado se ofereceram várias explicações

280. Science, 1925.


281. Einstein, “Neue Experimente tiber den Einfluss der Erdbewegung a uf die
Lichtgeschwindigkeit relativ zur Erde”, 1927. O grifo é meu.
282. Synge, "Effects of Acceleration in the Michelson-Morley Experi- ment”, 1952^4.

283. Planck, “Zwanzig Jahre Arbeit am Physikalischen Weltbilt”, 1929. Na seção 30 de


sua Logik der Forschung, 1934, e à p. 37 do seu Thirty Years that Shook Pliysics, 1966, Popper
e Gamow, respectivamente, utilizam-se dessa locução. É evidente que os enunciados de
observação não "conduzem” a uma teoria unicamente determinada.

284. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, 1967, p. 18. Um programa de pesquisa
que se desenvolve geralmente começa explicando “leis empíricas” já refutadas — e isso, à luz
do meu enfoque, pode ser racionalmente encarado como um sucesso.

204
clássicas da fórmula de Planck. Na reunião de 1913 da Associação Britânica para
o Progresso da Ciência, por exemplo, houve uma reu nião especial sobre radiação,
à qual assistiram, entre outros, Jeans Rayleigh, J. J. Thompson, Larmor,
Rutherford, Bragg, Poynting, Lorentz, Pringsheim e Bohr. Pringsheim e Rayleigh
mantiveram-se estu- dadamente neutros em relação às especulações quânticas
teóricas, mas o Professor Love “representava os pontos de vista mais velhos e
sustentava a possibilidade de explicar os fatos da radiação sem adotar a teoria
dos quanta. Criticou a aplicação da teoria da eqüipartição da energia, sobre a
qual repousa parte da teoria quântica. A evidência máxima para a teoria quântica
é a concordância com a experiência da fórmula de Planck relativa à emissividade
de um corpo negro. Do ponto de vista matemático pode haver muitas outras
fórmulas que concordariam igualmente com as experiências. Ventilou -se uma
fórmula devida a A. Korn, que deu resultados numa ampla esfera e mostrou
concordar tão bem com a experiência quanto a fórmula de Planc k. Numa
afirmação adicional de que os recursos da teoria comum não estão esgotados, ele
mostrou que pode ser possível estender a outros casos o cálculo, devido a
Lorentz, da emissividade de uma cha pa fina. Para esse cálculo nenhuma
expressão analítica simples representa os resultados em toda a série de
comprimentos de ondas, e pode ser que, no caso geral, não exista nenhuma
fórmula simples aplicável a todos os comprimentos de ondas. A fórmula de
Planck, com efeito, pode não ser nada mais que uma fórmula e mpírica." 2sr ’ Um
exemplo de explicações clássicas deveu-se a Callendar: “A discordância entre a
conhecida fórmula de Wien e a experiência no to cante à partição da energia em
plena radiação explicar-se-á prontamente se supusermos que ela representa
apenas a energia intrínseca. O valor correspondente da pressão deduz -se com
muita facilidade mediante referência ao princípio de Carnot, como Lorde
Rayleigh indicou. A fórmula que propus (Phil. Mag., outubro de 1913) é sim-
plesmente a soma da pressão e da densidade da energia assim obtidas, e concorda
de modo muito satisfatório com a experiência, tanto no que concerne à radiação
quanto no que concerne ao calor específico. Prefiro-a à fórmula de Planck (entre
outras razões) por não se poder conciliar esta última com a termodinâmica
clássica e envolver a concepção de um quantum, ou unidade indivisível de ação,
que é inadmissível. Em minha teoria, a magnitude física correspondente, que

285. Nature, ''Physics at lhe British Association’’, 1913 -14.

205
denominei em outro lugar molécula de calórico, não é necessariamente
indivisível, mas tem uma relação muito simples com a energia intrín seca do
átomo, que é tudo o que se requer para explicar o fato de poder a radiação, em
casos especiais, ser emitida em unidades atômicas, que são múltiplos de uma
magnitude determinada.” 286
É possível que estas citações tenham sido tediosamente longas mas, pelo
menos, tornam a mostrar, de forma convincente, a ausência de experiências
cruciais instantâneas. As refutações de Lummer e Pringsheim não eliminaram a
abordagem clássica do problema da radiação. A situação pode ser melhor
descrita se assinalarmos que a fórmula “ad hoc" original de Planck 287 — que se
ajustou aos dados de Lummer e Pringsheim (e os corrigiu) — poderia ser
explicada progressivamente pelo novo programa quântico teórico, 288 ao passo que
nem sua fórmula “ad hoc”, nem seus rivais “semi-empíricos” poderiam ser
explicados pelo programa clássico, exceto à custa de uma transferência
degenerativa de problemas. A propósito, o desenvolvimento “progressivo”
dependia de uma “transferência criativa”: a substituição (por Einstein) da
estatística de Boltzman-Maxwell pela de

286. Callendar, “The Pressure of Radiation and Carnot’s Principie”, 1914.


287. Estou-me referindo à fórmula de Planck tal como foi dada em seu trabalho de
1900, “Über eine Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung”, em que ele admitiu que
depois de haver tentado provar durante muito tempo que “a lei de Wien deve ser
necessariamente verdadeira”, a “lei” foi refutada. Por isso ele deixou de provar leis eternas
sublimes para “construir expressões completamente arbitrárias”. Claro está, todavia, que toda
teoria física se revela “completamente arbitrária" pelos padrões justificacionistas. Com efeito,
a fórmula arbitrária de Planck contou essa parte da história em sua autobiografia científica.)
É claro que, num sentido importante, a fórmula original da radiação de Planck era
"arbitrária”, “formal”, “ad hoc”: mais uma fórmula isolada que não fazia parte do progra ma
de pesquisa. (Cf. adiante, p. 217, nota de pé de página n.° 323.) Como ele mesmo o disse:
"Ainda que se presuma a validade absolutamente precisa da fórmula da radiação, enquanto
ela ocupar a posição de uma lei descoberta por uma intuição feliz, não se poderá esperar que
possua mais que uma importância formal. Por essa razão, no mesmo dia em que a formulei,
principiei a dedicar-me à tarefa de conferir-lhe um verdadeiro sentido físico” (Scientific
Biography, p. 41). Mas a importância principal de “confer ir à fórmula um sentido físico” — e
não necessariamente unj “verdadeiro sentido físico” — é que uma interpretação dessa
natureza conduz com freqüência a um programa sugestivo de pesquisa e ao crescimento.

288. Primeiro pelo próprio Planck, em seu ensaio de 1900, “Zur Theorie des Gesetzes
der Energieverteilung im Normalspektrum”, que “fundou” o programa de pesquisa da teoria
quântica.

206
Bose-Einstein. 289 A progressividade do novo desenvolvimento foi cla ríssima: na
versão de Planck ele predizia corretamente o valor da constante de Boltzman-
Planck e na versão de Einstein predizia uma série estonteante de fatos novos
adicionais. 290 Mas antes da invenção das novas hipóteses auxiliares do programa
velho — novas, porem tristemente ad hoc —, antes do desenrolar do programa
novo, e antes da descoberta dos novos fatos que indicavam uma transferência
progressiva de problemas neste último, a importância objetiva das expe riências
de Lummer-Pringsheim era muito limitada.

(d 3 ) Desintegração beta versus leis da conservação.


Finalmente, contarei a história de uma experiência que quase se tornou “a
maior experiência negativa na história da ciência”. A his tória também ilustra as
supremas dificuldades que encontramos para decidir exatamente o que
aprendemos com a experiência, o que esta “prova’ e o que “refuta”. A parte da
experiência submetida a exame será a “observação” da desintegração beta, de
Chadwick, em 1914. A história mostra uma experiência apresentando, a
princípio, um enigma de rotina num programa de pesquisa, depois quase
promovida ao posto de “experiência crucial”, e depois novamente rebaixada para
apresentar um (novo) enigma de rotina, tudo isso dependendo de todo o mutável
panorama teórico e empírico. A maioria dos relatos convencionais, confundidos
por essas mudanças, prefere falsificar a história. 291
Quando Chadwick descobriu o espectro contínuo da desintegra ção
radioativa beta em 1914, ninguém supôs que esse curioso fenô meno tivesse
alguma relação com as leis da conservação. Ofereceram-

289. Isso Já tinha sido feito por Planck, mas apenas inadvertidamente e, por assim
dizer, por engano. Cf. Ter Haar, The Old Quantum Theory, de 1967, p. 18. Com efeito, o papel
de Pringsheim e Lummer foi estimular a análise crítica das deduções informais na teoria
quântica da radiação, deduções carregadas de “lemas ocultos” vitais, expressos apenas no
desenvolvimento subseqüente. Um passo importantíssimo nesse “proceso de articulação” foi o
de Ehrenfest, “Welche Züge der Lichtquantenhypothese spielen in der Theo - rie der
Warmestrahlung eine wesentliche Rolle?”, 1911.

290. Cf., por exemplo, a lista de 1910 de Joffé (Joffé, “Zur Theorie der
Strahlungserscheinungen”, 1911, p. 547).
291. Notável exceção parcial é o relato de Pauli (Pauli, "Zur ãlteren und neueren
Geschichte des Neutrinos”, 1958). Nas linhas que se seguem tento, ao mesmo tempo, corrigir a
história de Pauli e mostrar que sua racionalidade pode ser facilmente vista à luz do nosso
enfoque.

207
se em 1922 duas engenhosas explicações rivais, ambas dentro da es trutura da
física atômica da época, uma de L. Meitner, outra de C. D. Ellis. De acordo
com a Srta. Meitner, os elétrons eram, em parte, elétrons primários do núcleo e,
em parte, elétrons secundários da envoltória eletrônica. De acordo com o Sr.
Ellis, eram todos elétrons primários. Ambas as teorias continham sofisticadas
hipóteses auxiliares, mas ambas predisseram fatos novos. Os fatos preditos se
contradisseram uns aos outros e o testemunho experimental sustentou Ellis
contra Meitner.- 112 A Srta. Meitner apelou; o “tribunal de apelação”
experimental recusou-lhe apoio, mas sentenciou que uma hipótese auxiliar
crucial da teoria de Ellis tinha de ser rejeitada. 293 O resultado da briga foi um
empate.
Mesmo assim ninguém pensaria que a experiência de Chadwick des afiasse
a lei da conservação da energia, se Bohr e Kramers, exa tamente na ocasião da
controvérsia entre Ellis e Meitner, não tivessem chegado à conclusão de que só
poderiam desenvolver uma teoria coerente se renunciassem ao princípio da
conservação da energia em processos simples. Um dos traços principais da
fascinante teoria de Bohr-Kramers-Slater em 1924 era que as leis clássicas da
conservação da energia e do momento tinham sido substituídas por leis estatísti -
cas. 294 Essa teoria (ou, melhor, “programa”) foi imediatamente “refutada” e
nenhuma das suas conseqüências corroborada; com efeito, nunca foi
suficientemente desenvolvida para explicar a desintegração beta. Mas a despeito
do abandono imediato do programa (não só por causa das “refutações” que lhe
opuseram as experiências de Compton- Simon e de Bothe-Geiger, mas também
por causa da emergência de um poderoso rival: o programa Heisenberg -
Schrõdinger 295 ), Bohr permaneceu convencido de que as leis não-estatísticas da
conservação

292. Ellis e Wooster, "The Average Energy of Desintegration of Radium E”, 1927.

293. Meitner e Orthmann, “Über eine absolute Bestimmung der Ener - gie der
primáren — Strahlen von Radium E”, 1930.
294. Slater só cooperou com relutância no sacrifício do princípio de conservação.
Escreveu a van der Waerden em 1964: “Como você suspeitava, a idéia da conservação
estatística da energia e do momento foi posta em teoria por Bohr e Kramers, contrariando o
meu ponto de vista.” Van der Waerden faz comicamente o que pode para exonerar Slater do
crime terrível de ser responsável por uma teoria falsa (van der Waerde, Source of Quantum
Mechanics, 1967.

295. Popper não tem razão quando sugere que essas “refutações” foram suficientes
para provocar a derrocada da teoria. (Popper. Gonjectures and Refutations, p. 242.)

208
teriam de ser finalmente abandonadas e que a anomalia da desintegra ção beta só
seria explicada quando essas leis fossem substituídas; e, nessa ocasião, a
desintegração beta seria vista como uma experiência crucial contrária às lei s da
conservação. Conta-nos Gamow que Bohr tentou usar a idéia da não-conservação
da energia na desintegração beta para uma engenhosa explicação da produção
aparentemente eterna de energia nas estrelas. 290 Só Pauli, em seu anseio
mefistofélico de desafiar o Senhor, permaneceu conservador 297 e engenhou, em
1930, sua teoria do neutrino para explicar a desintegração beta e salvar o
princípio da conservação da energia. Comunicou sua idéia numa carta faceta
dirigida a uma conferência em Tübingen —- pois em vez de ir à conferência ele
preferiu ficar em Zurique para assistir a um baile. 298 Aludiu a ela, pela primeira
vez, numa conferência pública em 1931 em Pasadena, mas não permitiu que a
conferência fosse publicada, porque se sentia “inseguro” em relação à idéi a.
Bohr, nessa ocasião (1932), ainda pensava que — pelo menos em física nuclear
— talvez fosse preciso “renunciar à própria idéia do equilíbrio da energia”. 299
Pauli decidiu afinal publicar sua palestra sobre o neu trino, que pronunciou na
conferência de Solvay em 1933, conquanto “ a recepção do congresso,
excetuando-se dois jovens físicos, fosse céi : ca”. 300 Mas a teoria de Pauli possuía
méritos metodológicos. Salvou não só o princípio da conservação da energia mas
também o princípio da conservação do spin e da estatística: explicava não só o
espectro da desintegração beta mas também, ao mesmo tempo, a “anomalia

296. Gamow, Thirty Years that Shook Physics, 1966, pp. 72-4. Bohr nunca publicou
essa teoria (que, tal como se achava não poderia ser testada) “ma s tinha-se a impressão” —
escreveu Gamow — “de que ele não ficaria muito surpreendido se ela fosse verdadeira”.
Gamow não precisa a data da teoria não-publicada, mas parece que Bohr se ocupou dela em
1928-9, quando Gamow trabalhava em Copenhague.

297. Cf. a divertida peça “Fausto” produzida no instituto de Bohr em 1932; publicada
por Gamow como apêndice do seu livro Thirty Years that Shook Phyhics, 1966.

298. Cf. Pauli, "Zur alteren und neueren Geschichte des Neutrinos”,
1958.
299. Bohr, “Light and Life”, 1933. Ehrenfest também ficou do lado de Bohr contra o
neutrino. O descobrimento do nêutron, levado a efeito por Chadwick em 1932, abalou -lhes
apenas levemente a oposição: eles ainda temiam a idéia de uma partícula sem carga e até,
possivelmente, sem massa (em repouso), e tendo apenas spin “desencorpado”.

300. Wu, “Beta Decay”, 1966.

209
do nitrogênio”. 301 Consoante os padrões Whewellianos, essa “confluên cia de
induções” deveria ter sido suficiente para estabelecer a respeita bilidade da teoria
de Pauli. De acordo, porém, com os nossos critérios, fazia -se mister a predição
bem-sucedida de alguns fatos novos. Isso também foi propiciado pela teoria de
Pauli, que tinha uma conseqüência observável interessante: se estivesse certa, os
espectros-^ teriam de ter uma área superior clara. Essa questão, na oportunidade,
não ficou decidida, mas Ellis e Mott passaram a interessar -se 302 e, logo, um
aluno de Ellis, Henderson, mostrou que as experiências confirma vam o programa
de Pauli. 303 Bohr não se deixou impressionar. Sabia que, se se encetasse algum
dia um programa importante baseado na conservação estatística da energia, o
cinto crescente de hipóteses auxiliares daria conta da evidência de aspecto mais
negativo.
De fato, nesses anos, a maioria dos físicos mais notáveis supôs que na
física nuclear as leis da conservação da energia e do aumento deixariam de
funcionar. 304 A razão foi exposta claramente por Lise Meitner, que só em 1933
admitiu a derrota: “Todas as tentativas para defender a validade da lei da
conservação da energia também em processos simples exigiam um segundo
processo [na desintegração beta]. Mas esse processo não foi encontrado...” 305 :
isto é, o programa de conservação relativo ao núcleo mostrava uma transferência
de problema empiricamente degenerativo. Fizeram-se diversas tentativas
engenhosas para explicar o espectro contínuo de emissão beta sem presumir a
existência de uma “partícula ladra”. 301 '’ Embora tenham

301. Sobre uma fascinante discussão dos problemas abertos apresentados pela
desintegração beta e pela anomalia do nitrogênio, cf. a Conferência
Faraday de Bohr em 1930, lida antes mas publicada depois da solução de Pauli (Bohr,
“Chemistry and the Quantum Theory of Atomic Constitution”, 1930, especialmente as pp.
380-3).
302. Ellis e Mott, “Energy Relations in the /3-Ray Type of Radioactive
Desintegrations”, 1933.
303. Henderson, “The Upper Limits of the Continuous /J-ray Spectra
of Thorium C and C 11 ”, 1934.
304. Mott, "Wellenmechanik und Kernphysik”, 1933. Heisenberg, no seu célebre
trabalho de 1932, em que apresentou o modelo próton-nêutron do núcleo, assinalou que “Em
virtude do colapso da conservação da energia na decomposição beta não se pode dar uma
definição única da energia aglutina- dora do elétron dentro do nêutron” (p. 164).

305. Meitner, “Kernstruktur”, 1933, p. 132.


306. Como, por exemplo, Thomson, “On the Waves associated with
/J-rays, and the Relation between Free Electrons and theis Waves”, 1929, e Kudar, “Der
wellenmechanische Charakter des /J-Zerfalls, I-II-III”, 1929-30.

210
sido discutidas com grande interesse, 307 essas tentativas foram abandonadas
porque não conseguiram estabelecer uma transferência pro gressiva.
Nesse ponto, Fermi entrou em cena. Em 1933-4 ele reinterpretou o
problema da emissão beta na estrutura do pr ograma de pesquisa de uma nova
teoria quântica. Dessa maneira, deu início a um pequeno e novo programa de
pesquisa do neutrino (que mais tarde veio a ser o programa das interações
fracas). Calculou alguns dos primeiros modelos toscos. 308 Se bem sua teoria
ainda não tivesse predito nenhum fato novo, deixou claro que isto era apenas
uma questão de algum trabalho futuro.
Dois anos se passaram e a promessa de Fermi ainda não se tinha cumprido.
Mas o novo programa de física quântica desenvolveu -se depressa, pelo menos no
que dizia respeito aos fenômenos não-nuclea- res. Bohr convenceu-se de que
algumas das idéias originais básicas do programa Bohr -Kramers-Slater se
achavam agora firmemente engastadas no novo programa quântico e que o
programa novo resolvera os problemas teóricos intrínsecos do velho programa
quântico sem tocar nas leis da conservação. Por isso mesmo, Bohr acompanhou o
trabalho de Fermi com simpatia e, em 1936, numa insólita seqüência de
acontecimentos, apoiou-o publicamente, conquanto a sua atitude, pelos nossos
padrões, fosse um tanto prematura.
Em 1936 Shankland ideou um novo teste de teorias rivais de espalhamento
de fótons. Seus resultados pareciam dar apoio à teoria refugada de Bohr -
Kramers-Slater e solapar a confiabilidade de experiências que, mais de uma
década antes, a refutavam. 3 " 1 ’ O trabalho de Shankland causou sensação. Os
físicos que detestavam a nova tendência deram-se pressa a saudar a experiência
de Shankland. Dirac, por exemplo, não tardou a dar as boas -vindas ao programa
“refutado” de Bohr-Kramers-Slater, que voltava, escreveu um artigo incisivo
contra a “chamada eletrodinâmica quântica” e exigiu “uma profunda alteração
das idéias teóricas atuais, envolvendo um afastamento das leis da conservação \a
fim de) obter uma mecânica quântica relati-

307. Sobre uma discussão interesantíssima, cf. Rulherford, Chadwick e Ellis, Radiations
from Radioactive Substances, 1930, pp. 335-6.
308. Fermi, “tentativo di una teoria deiremissione dei raggi ‘beta"’, 1933 e “Versuch
einer Theorie der /3-Strahlen. I”, 1934.
309. Shankland, “Michelson-Morley Experiment”, 1936.
vista satisfatória”. 310 No artigo, Dirac tomou a sugerir que a desintegração beta
pode muito bem revelar-se uma peça de evidência crucial contra as leis da
conservação e ridicularizou a “nova partícula inobservável, o neutrino,
especialmente postulado por alguns investi gadores na tentativa de preservar a
conservação da energia, presumindo que a partícula inobservável lograria o
equilíbrio”. 311 Logo depois Peierls se juntou à discussão e sugeriu que a
experiência de Shankland talvez fosse até capaz de refutar a conservação
estatística da energia. E acrescentou: “Isso também parece satisfatório, depois
que tiver sido abandonada a conservação particularizada.” 312
No instituto de Boh em Copenhague, as experiências de Shankland foram
imediatamente repetidas e postas de lado. Jacobsen, co lega de Bohr, relatou
esses fatos numa carta a Nature. Os resultados de Jacobsen foram acompanhados
por uma carta do próprio Bohr, que saiu firmemente a campo contra os rebeldes
e em defesa do novo programa quântico de Heisenberg. Empenhou -se,
sobretudo, na defesa do neutrino contra Dirac: “Observe-se que as razões para
dúvidas sérias no tocante à rigorosa validade das leis da conservação no pro -
blema da emissão dos raios-/ 3 dos núcleos atômicos foram agora em grande parte
removidas pelo acordo sugestivo entre a prova experi mental, que aumenta
rapidamente, tocante aos fenômenos dos raios-£ e as conseqüências das
hipóteses do neutrino de Pauli, tão nota velmente desenvolvidas na teoria de
Fermi.” 313
Em sua primeira versão, a teoria de Fermi não teve nenhum sucesso
empírico notável. Com efeito, até os dados disponíveis, espe cialmente no caso
de RaE, em que centralizou a pesquisa da emissão beta, contradiziam
vigorosamente a teoria de Fermi de 1933-4. Ele queria tratar desses dados na
segunda parte do seu trabalho, que, todavia, nunca se publicou. Ainda que se
interprete a teoria de Fermi de 1933-4 como a primeira versão de um programa
flexível, por volta de 1936 não era possível detectar nenhum sinal sério de uma
transferência progressiva. 314 Mas Bohr desejava colocar sua autoridade

310. Dirac, "Does Conservation of Energy Hold in Atomic Processes?”,


1936.
311. Ibid.
312. Peierls, “Interpretation of Shankland’s Experiment”, 1936.
313. Bohr, “Conservation Laws in Quantum Theory”, 1936.
314. Entre 1933 e 1936, vários físicos ofereceram alternativas ou pro puseram
mudanças ad hoc da teoria de Fermi; cf., por exemplo, Becke e Sitte, “Zur Theorie des /J -
Zerfalls”, 1933, Bethe e Peierls, “The ‘Neutrino’”, 1934,

212
por trás da ousada aplicação de Fermi ao núcleo do novo grande pro grama de
Heisenberg; e como a experiência de Shankland e os ata ques de Dirac e Peierls
haviam focalizado na desintegração beta a crítica do novo grande programa, ele
pôs nas nuvens o programa do neutrino de Fermi, que prometia preencher uma
lacuna sensível. Esse último desenvolvimento, sem dúvida, poupou a Bohr uma
dramática humilhação: os programas baseados nos princípios da conserv ação
progrediram, ao mesmo tempo que não se fez nenhum progresso no campo
rival. 315
A moral da história, mais uma vez, é que o status de uma experiência tão
“crucial” depende do status da competição teórica em que se acha envolvida. À
maneira que crescem ou minguam as fortunas dos campos concorrentes, a
interpretação e a avaliação da experiência podem mudar.
Nosso folclore científico, no entanto, está impregnado de teorias de
racionalidade instantânea. A história que contei, falseada na maioria dos relatos,
foi reconstruída nos termos de alguma teoria errônea da racionalidade. Até nas
exposições mais populares abundam esses falseamentos. Permitam-me mencionar
dois exemplos.
Num ensaio aprendemos o seguinte acerca da desintegração beta: “Quando
esta situação foi enfrentada pela primeira vez, as alternativas

Konopinski e Uhlenbeck, “On the Fermi theory of /} -radioactivity", 1935. Wu e Moszkowski


escreveram, em 1966, que “a teoria [isto é, o programai dc desintegração beta de segundo Fermi,
se sabe agora, prediz com
da desintegração, mas também a forma dos espectros beta". Mas acentuam que “logoa no teoria
começode Fermi topou infelizmente
ativos artificiais, RaE era o único candidato que satisfazia belamente a muitos requisitos
experimentais como uma fonte $ para a investigação da forma do seu espectro. Como
poderíamos ter sabido que o espectro 0 de RaE se revelaria apenas um caso muito especial, um
caso cujo espectro, na verdade, só foi compreendido muito recentemente? Sua dependência
peculiar da energia desafiava o que se esperava da simples teoria de Fermi da desintegração /J
e retardou de forma considerável o ritmo do progresso inicial da teoria fisto é. do programa]”
(Wu e Moszkowski, Beta Decay, 1966, p. 6).

315. É muito duvidoso que o programa do neutrino de Fermi fosse progressivo ou


degenerativo mesmo entre 1936 e 1950; e depois de 1950 o vere- dito ainda não está
cristalinamente claro. Discutirei, porém, o assunto em outro lugar qualquer. (A propósito,
Schrõdinger defendeu a interpretação estatística dos princípios de conservação a despeito do
seu papel crucial no desenvolvimento da nova física quântica; cf. seu ensaio intitulado, “Might
perhaps Energy be merely, a Statistical Concept?”, 1958.)

213
pareciam sombrias. Os físicos tinham de aceitar o desmoronamento da lei da
conservação da energia ou supor a existência de uma partícula nova e não-vista.
Essa partícula, emitida juntamente com o próton e o elétron na desintegração do
nêutron, poderia salvar o pilar central da física ficando com a energia faltante.
Isso aconteceu no começo da década de 1930, quando a introdução de uma nova
partícula não era o assunto casual de hoje. Não obstante, só depois da mais breve
das vacilações, os físicos ootaram nela segunda alternativa.” 3,6 Está claro que as
alternativas discutidas foram bem mais do que duas e que a “vacilação” não foi,
por certo, “a mais breve”.
Num conhecido comnêndio de filosofia da ciência aprendemos que (1) “a
lei (ou princípio) da conservação da energia foi seria mente contestada pelas
experiências sobre a desintegração dos raios beta. cujo resultado não poderia ser
negado”; que (2) apesar disso, a lei não foi abandonada, presumindo -se a
existência de uma nova espécie de entidade (chamada “neutrino”) a fim de
estabelecer a concordância entre a lei e os dados experimentais”; e que (3) “a
razão fundamental dessa suposição é que a rejeição da lei da conser vação
privaria grande parte do nosso conhecimento físico de sua coerência
sistemática”. 317 Mas os três pontos estão errados; (1) está errado porque
nenhuma lei pode ser “seriamente contestada” só por experiências; ( 2) está
errado porque não se elaboram hipóteses científicas só para preencher lacunas
entre os dados e a teoria, senão para predizer fatos novos; e (3) está errado
porque, na ocasião, parecia aue só a rejeição da lei da conservação asseguraria a
“coerência sistemática” do nosso conhecimento físico.

(d 4) Conclusão. O resultado do desenvolvimento contínuo.


Não existem esperiências cruciais, pelo menos não existem se por elas se
entenderem experiências capazes de derrubar instantaneamente um programa de
pesquisa. Com efeito, quando um programa de pes quisa sofre uma derrota e é
suplantado por outro, podemos — numa longa visão retrospectiva — chamar
crucial a uma experiência se se verificar que ela propiciou uma corroboração
espetacular do programa vitorioso e o fracasso do programa derrotado (no
sentido de que nunca foi “explicada progressivamente — ou, numa palavra,
“expli-

316. Treiman, “The Weak Interactions”, 1959; o grifo é meu.


317. Nagel, The Structure of Science, 1961, pp. 65-6.
318. Cf. mais acima, p. 145, nota de pé de página n.° 112.

214
cada” 318 — pelo programa derrotado). Está visto, porém, que os cientistas nem
sempre julgam corretamente situações heurísticas. Um cientista precipitado pode
afirmar que sua experiência derrotou um programa, e par tes da comunidade
científica podem até, precipitadamente, aceitar-lhe a afirmativa. Mas se um
cientista do campo “derrotado” apresentar, alguns anos depois, uma explicação
cienlífica da pretensa “experiência crucial” no programa pretcnsamcnte
derrotado, o título honorífico pode ser retirado e a "experiência crucial" pode
converter-se, de uma derrota, numa nova vitória para o programa.
Os exemplos abundam. Fizeram-se muitas experiências no século XVIII
que foram, de um ponto de vista histórico-sociológico, amplamente aceitas como
evidência “crucial” contra a lei da queda livre de Galileu e a teoria da gravitação
de Newton. No século XIX houve diversas “experiências cruciais” baseadas em
mensurações da velocidade da luz que “refutavam” a teoria corpuscular e que,
mais tarde, se revelaram errôneas à luz da teoria da relatividade. Tais “experiên -
cias cruciais” foram depois eliminadas dos compêndios justificacio - nistas como
manifestações de vergonhosa miopia ou até de inveja. (Recentemente
reapareceram em alguns manuais, desta feita para ilustrar a inevitável
irracionalidade das modas científicas.) Entretanto, nos casos em que
“experiências” ostensivamente “cruciais” foram, de fato, confirmadas mais tarde
pela derrota do programa, os historiadores tacharam de estúpidos, invejosos e
aduladores do pai do programa de pesquisa em apreço os que a elas resistiram.
(“Sociológos do conhecimento” que estão na moda — ou “psicólogos do
conhecimento” — tendem a explicar posições em termos puramente sociais ou
psicológicos quando, na realidade, elas são determinadas por princí pios de
racionalidade. Um exemplo típico é a explicação da oposição de Einstein ao
princípio da complementaridade de Bohr sob a alega ção de que “em 1926
Einstein tinha quarenta e sete anos. Quarenta e sete anos podem ser a plenitude
da vida, mas não para físicos”. 319 )

319. Bernstein, A Comprehensible World: On Modem Science and its Origins, 1961, p.
129. A- fim de avaliar elementos progressivos e degenerativos em transferências de problema
rivais precisamos compreender as idéias envolvidas. Mas a sociologia do conhecimento serve
com freqüência de cobertura de sucesso para a ignorância: a maioria dos sociólogos do
conhecimento não entende as idéias nem mesmo se interessa por elas; limita -se a observar os
modelos sociopsicológicos de comportamento. Popper costumava contar uma história a
respeito de um “psicólogo social", o Dr. X, que estudava o compor tamento de um grupo de
cientistas. Tendo participado de um seminário de física no intuito de estudar a psicologia da
ciência, observou a "emergência de um líder”, o “efeito de agrupamento em torno” em alguns
e a “reação de

215
À luz de minhas considerações, a idéia da racionalidade instantâ nea pode
ser vista como utópica. Mas essa idéia utópica é a marc a registrada da maior
parte das epistemologias. Os justificacionistas queriam que as teorias científicas
fossem provadas antes até de ser publicadas; os probabilistas esperavam que
uma máquina pudesse dar instantaneamente o valor (grau de confirmação) de
uma teoria, em fase da evidência; os falseacionistas ingcnuos esperavam que a
eliminação fosse ao menos o resultado instantâneo do veredito da expe-
riênciar. 320 Espero haver demonstrado que todas essas teorias da racionalidade
instantânea — e de aprendizado instantâneo — fracassam. Os estudos de casos
desta seção mostram que a racionalidade trabalha muito mais devagar do que a
maioria das pessoas tende a pensar e, mesmo assim, falivelmente. A coruja de
Minerva voa ao cair da noite. Também espero ter mostr ado que a continuidade na
ciência, a tenacidade de algumas teorias, a racionalidade de certa dose de dog -
matismo só poderão ser explicados se interpretarmos a ciência como um campo
de batalha onde pelejam programas de pesquisa muito mais do que teorias
isoladas. Pode compreender-se muito pouco do crescimento da ciência quando o
nosso paradigma de uma quantidade apreciável do conhecimento científico é
uma teoria isolada como “Todos os cisnes são brancos”, que permanece à
distância, sem se achar envolvida num programa importante de pesquisa. Meu
relato implica um novo critério de demarcação entre a "ciência matura”, que con-
siste em programas de pesquisa, e "ciência imatura”, que consiste simplesmente
num remendado padrão de ensaio-e-erro. 321 Podemos, por exemplo, fazer uma
conjectura, vê-la refutada e depois salva por uma hipótese auxiliar que não é ad
hoc nos sentidos discutidos anteriormente. Ela talvez prediga fatos novos, alguns
dos quais podem até

defesa" em outros, a correlação entre a idade, o sexo e o comportamento agressivo, etc. (O


Dr. X afirmava ter usado algumas técnicas sofisticadas de pequenas amostras de estatística
moderna.) No fim do entusiástico relato Popper perguntou ao Dr. X: ‘‘Qual era o problema
que o grupo estava discutindo?” O Dr. X ficou surpreso: “Por que pergunta? Não prestei
atenção às palavras! Afinal de contas, que é o que tem isso com a psicologia do
conhecimento?”.
320. É claro que os falseacionistas ingênuos talvez levem algum tempo para chegar ao
“veredito da experiência”: a experiência tem de ser repetida e considerada com espírito
crítico. Mas depois que a discussão termina num acordo entre os entendidos, e assim se torna
“aceito” um “enunciado básico”, e se decide qual foi a teoria específica atingida por ele, o
falseacionista ingênuo terá pouca paciência com os que ainda “prevaricarem”.

321. A elaboração dessa demarcação nos dois parágrafos seguintes foi melhorada no
prelo, depois de discussões inestimáveis com Paul Meehl em Minneapolis em 1969.

216
ser corroborados. 322 Ainda assim é possível alcançar-se tal “progresso” com uma
série arbitrária e remendada de teorias desconexas. Mas para os bons cientistas
esse progresso témporário não será satisfatório; eles poderão até rejeitá -lo por
não ser genuinamente científico. Qualificarão tais hipóteses auxiliares
simplesmente de “formais”, “arbitrárias”, “empíricas”, “semi -empíricas”, ou
mesmo “ad hoc".™
A ciência matura consiste em programas de pesquisa em que se antecipam
não só fatos novos mas também, num sentido importante, novas teorias auxiliares;
a ciência madura — á diferença do ensaio- -e-erro corriqueiro — tem “força
heurística”. Não nos esqueçamos de que na heurística positiva de um programa
poderoso, desde o começo, há um esquema geral de construção dos cintos
protetores: essa força heurística gera a autonomia da ciência teórica.* 21
O requisito do crescimento contínuo é minha reconstrução racional do
requisito amplamente reconhecido da “unidade" ou “beleza” da ciência. Ele
focaliza a fraqueza de dois tipos — aparentemente muito diferentes — da
teorização. Primeiro, mostra a fraqueza de programas que, como o marxismo ou
o freudismo, são sem dúvida, “unificados”, e dão um apanhado geral da espécie
de teorias auxiliares que usarão na absorção de anomalias, mas que pla nejam
infalivelmente suas teorias auxiliares reais na esteira de fatos sem, ao mes mo
tempo, antecipar outros. (Que fato novo predisse, o marxismo, digamos, desde
1917?) Em segundo lugar, mostra séries remendadas.

322. Anteriormente, em meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive


Logic”, distingui, acompanhando Popper, dois critérios de ad- -hocidade. Chamei ad hoc, às
teorias que prediziam fatos novos mas falhavam completamente: nada do seu excesso de
conteúdo foi corroborado (cf. também mais acima, à p. 152, nota de pé de página n. D 135, e p.
152, nota de pé de página n.° 136).

323. A fórmula da radiação de Planck — dada em seu ensaio de 1900, “Über eine
Verbesserung der Wienschen Spektralgleichung” — é um bom exemplo: cf. mais acima, p. 206,
nota de rodapé n.° 287. Podemos chamar a essas hipóteses, que não são ad hoc,, nem ad hoc s ,
mas ainda insatisfatórias no sentido especificado no texto, ad hoc*. Esses três empregos de ad
hoc — infalivelmente pejorativos — proporcionarão um verbete satisfatório ao Oxford English
Dictionary.
É curioso notar que os termos “empírico" e "formal" são usados como sinônimos do
nosso ad hoca.
Em seu brilhante ensaio de 1967, "Theory Testing in Psychology and Physics: a
Methodological Paradox”, Meehl refere que na psicologia contemporânea — especialmente na
psicologia social — muitos pretensos “programas de pesquisa” consistem, na realidade, em
cadeias de estratagemas ad hoci.

324. Cf. mais acima, p. 168.

217
destituídas de imaginação, de ajustamentos “empíricos” corriqueiros, •tão
freqüentes, por exemplo, na moderna psicologia social. Com a ajuda das
chamadas “técnicas estatísticas”, tais ajustamentos podem fazer algumas
predições “novas” e podem até fazer com que nelas apareça algumas sementes
sem importância de verdade. Mas essas teorizações não têm idéia unificadora,
não têm força heurística, não têm continuidade. Não significam um autêntico
programa de pesquisa e são, de um modo geral, inteiramente sem valor. 325
Conquanto baseado no de Popper, meu relato da rac ionalidade científica
afasta-se de algumas das suas idéias gerais. Endosso até certo ponto não só o
convencionalismo de Le Roy em relação às teorias, mas também o
convencionalismo de Popper em relação às proposições básicas. Neste sentido os
cientistas (e, como já demonstrei, os matemáticos também 326 ) não são
irracionais quando tendem a ignorar exemplos contrários ou, como preferem
chamar-lhes, exemplos “recalcitrantes” ou “residuais”, e seguem a seqüência de
problemas tal como foi prescrita pela heurística positiva do seu programa, e
elaboram — e aplicam — suas teorias sem dar-lhes maior atenção. 327

325. Depois de ler o ensaio de Meehl, “Theory Testing in Psychology and Physics”
(1967) e o de Lykken, “Statistical Significance in Psychological Research” (1968) ficamos a
imaginar se a função das técnicas estatísticas nas ciências sociais não é, principalmente,
fornecer um maquinismo para produzir corroborações espúrias e, desse modo, uma aparência
de “progresso científico” onde, na verdade, não há nada mai s que um acréscimo de lixo
pseudo-inte- lectual. Meehl escreve que "nas ciências físicas, o resultado habitual de um
aperfeiçoamento do modelo exprimental, da instrumentação ou da massa nu mérica de dados,
é aumentar a dificuldade da "barreira observaciona l” que a teoria física do interesse precisa
sobrepujar com êxito; ao passo que na psi cologia e em algumas ciências aliadas do
comportamento, o efeito costumeiro dessa melhoria na precisão experimental é fornecer uma
barreira que a teoria transpõe com maior facilidade”. Ou, como disse Lykken: “A
importância estatística [em psicologia] talvez seja o atributo menos importante de uma boa
experiência; nunca é condição suficiente para se afirmar que uma teoria foi utilmente
corroborada, que se estabeleceu um fato empírico significativo, ou que um relato da
experiência deve ser publicado.” Parece-me que a maior das teorizações condenadas por
Meehl e Lykken talvez seja ad hoto. Desse modo, a metodologia dos programas de pesquisa
talvez nos ajude a elaborar as leis para deter essa poluição intelectual, capaz de destruir
nosso meio cultural antes até que a poluição industrial e do tráfego destrua nosso meio físico.

326. Cf. meu ensaio de 1963-4 intitulado “Proofs and Refutations”.


327. Assim se esvai a assimetria metodológica entre os enunciados universais e os
singulares. Podemos adotar qualquer um dos dois por convenção: no “núcleo” decidimos
“aceitar” enunciados universais; na “base empírica”, enunciados singulares. A assimetria
lógica entre os enunciados universais e os singulares só é fatal para o indutivista dogmático
que só quer aprender com

218
Contrariando a moral falseacionista de Popper, os cientistas freqüente e
racionalmente proclamam “que os resultados experimentais não merecem
confiança, ou que as discrepâncias que se afirmam existir entre os resultados
experimentais e a teoria são apenas aparentes e desaparecerão com o progresso
do nosso entendimento”. 328 Pode ser que, ao fazê-lo, eles não estejam “adotando
o próprio inverso da atitude crítica que. . . é a atitude apropriada ao cientista”. 320
Popper, na verdade, tem razão ao acentuar que “a atitude dogmática de afer rar-se
a uma teoria pelo maior tempo possível é de considerável im portância. Sem ela,
talvez nunca descobríssemos o que há numa teoria
— abriríamos mão da teoria antes de ter uma oportunidade real de descobrir -lhe
a força: e, em conseqüência disso, nenhuma teoria seria jamais capaz de
representar o seu papel de trazer ordem ao mundo, de preparar -nos para
acontecimentos futuros, de chamar nossa atenção para acontecimentos que, de
outro modo, nunca observaríamos”. 330 Assim, o “dogmatismo” da “ciência
normal” não impede o crescimento enquanto o combinamos com o
reconhecimento poppe- riano de existência de uma ciência normal, progressiva e
boa e de uma ciência normal, degenerativa e má, e enquanto mantemos a de-
terminação de eliminar, sob certas condições objetivamente definidas, alguns
programas de pesquisa.
A atitude dogmática na ciência — que explicaria seus períodos estáveis —
foi descrita por Kuhn como um traço fundamental da “ciência normal”. 331 Mas a
estrutura conceptual de Kuhn para lidar com a continuidade na ciência é
sociopsicológica: a minha é norma tiva. Olho para a continuidade na ciência
através de “óculos popperia-

a experiência e a lógica. É claro que o convencionalista pode "aceitar” a assi metria lógica: ele
não tem de ser (embora possa sê-lo) também um indutivista. “Aceita” enunciados universais,
mas não porque afirma deduzi-los (ou induzi- los) dos singulares.

328. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.


329. Ibid.
330. Popper, “What is Dialectic?”, primeira nota de pé de página. Encontramos um
reparo semelhante em seu livro Conjectures and Rejutations, 1963, p. 49. Mas esses reparos
estão em contradição prima facie com algumas de suas observações (Logik der Forschung,
1934) (citadas mais acima, à p. 135 e, por conseguinte, só podem ser interpretados como sinais
de uma percepção popperiana cada vez mais aguda de uma anomalia não -digerida em seu
próprio programa de pesquisa.

331. Com efeito, meu critério de demarcação entre a ciência madura e a imatura pode
ser interpretado como absorção popperiana da idéia de “nor malidade” de Kuhn como marco
distintivo de ciência [madura]; e também

219
nos”. Onde Kuhn vê “paradigmas”, também vejo “programas de pesquisa”
racionais.

4. O PROGRAMA DE PESQUISA POPPERIANO VERSUS O


PROGRAMA DE PESQUISA KUHNIANO

Sumariemos agora a controvérsia Kuhn-Popper.


Mostramos que Kuhn está certo quando faz objeçõés ao falsea cionismo
ingênuo e quando acentua a continuidade do crescimento científico, a tenacidade
de algumas teorias científicas. Mas Kuhn está errado ao pensar que, pondo de
lado o falseacionismo ingênuo, pôs de lado, por essa maneira, todas as classes
de falseacionismo. Kuhn opõe objeções a todo o programa popperiano de
pesquisa e exclui qualquer possibilidade de reconstrução racional do
crescimento da ciência. Numa sucinta comparação entre Hume, Camap e Popper,
Watkins assinala que o crescimento da ciência é indutivo e irracional segundo
Hume, indutivo e racional segundo Carnap, não-indutivo e racional segundo
Popper. 332 Mas a comparação de Watkins pode ser estendida para acrescentar
que ele é não-indutivo e irracional segundo Kuhn. No entender de Kuhn não pode
333
haver lógica, mas apenas psicologia da descoberta . Na concepção de Kuhn, por
exemplo, as anomalias e incoerências sempre abundam na ciência, mas em perío-
dos “normais” o paradigma dominante assegura um padrão de cres cimento
finalmente derrubado por uma “crise”. Não existe nenhuma cau sa racional
determinada para o aparecimento de uma “crise” kuhniana. “Crise” é um
conceito psicológico; é um pânico contagioso. Emerge então um novo
“paradigma”, incomensurável com o seu pre- decessor. Não existem padrões
racionais para a sua comparação. Cada

reforça meu argumento anterior contra considerar os enunciados altamente falseáveis como
eminentemente científicos. (Cf. mais acima, p. 123.)
A propósito, essa demarcação entre ciência madura e ciência imatura já aparece em
meus ensaios “Infinite Regress and the Foundations of Mathe- matics” (1962) e “Proofs and
Refutations” (1963-4), onde chamei à primeira "adivinhação dedutiva” e à segunda “ensaio -e-
erro ingênuo”. (Veja, por exemplo, no ensaio de 1963-4, a seção 7(e): "Adivinhação dedutiva
contra adivinhação ingênua”.)

332. Watkins, “Hume, Carnap and Popper”, 1968, p. 281.


333. Kuhn, “Logic of Discovery or Psychology of Research?” 1965. Mas essa posição
já se acha implícita em sua obra de 1962, The Structure of Scientific Revolutions.

220
paradigma contém seus próprios padrões. A crise leva embora não só as velhas
teorias e regras, mas também os padrões que nos fizeram respeitá -las. O novo
paradigma traz uma racionalidade totalmente nova. Não há padrões
superparadigmáticos. A mudança é um efeito de adesão de última hora. Assim
sendo, de acordo com a concepção de Kuhn, a revolução científica é irracional,
uma questão de psicologia das multidões.
A redução da filosofia da ciência à psicologia da ciência não começou com
Kuhn. Uma onda anterior de “psicologismo" seguiu- se ao desmoronamento do
justifícacionismo. Para muitos, o justifica- cionismo representava a única forma
possível de racionalidade: o fim do justifícacionismo significava o fim da
racionalidade. O colapso da tese de que as teorias científi cas são prováveis, de
que o progresso da ciência é cumulativo, fez que os justificacionistas entrassem
em pânico. Se “descobrir é provar" e nada é provável, não pode haver
descobertas, apenas proclamações de descobertas. Os justificacionistas
desapontados — ex-justificacionistas — cuidavam que a elaboração de padrões
racionais era uma atividade inútil e que a única coisa que se pode fazer é estudar
— e imitar — a Mente Científica, tal como é exemplificada em cientistas
famosos. Depois do colapso da física newtoniana, Popper elaborou padrões
críticos novos, não-justi- ficacionistas. Alguns dos que já haviam sabido do
colapso da racionalidade justificacionista ficaram sabendo, em sua maioria por
ouvir dizer, dos coloridos slogans de Popper que sugeriam o ingênuo. Achando-
os insustentáveis, identificaram o colapso do ingênuo com o fim da própria
racionalidade. A elaboração de padrões racionais foi novamente considerada
uma empresa inútil; o melhor que se pode fazer, tornaram eles a pensar, é
estudar a Mente Científica.' 1 ' 1 ' A filosofia crítica seria substituída pelo que
Polanyi denominou filosofia “pós-crítica”. Mas o programa de pesquisa
kuhniano contém um novo traço: não devemos estudar a mente do cientista
individual, mas a mente da Comunidade Científica. A psicologia individual é
substituída pela psicologia social; a imitação dos grandes cientistas pela
submissão à sabedoria coletiva da comunidade.
Mas Kuhn fez vista grossa para a falseacionismo sofisticado de Popper e
para o programa de pesquisa que ele iniciou. Popper subs

334. A propósito, assim como alguns ex-justificacionistas anteriores dirigiram a onda


do irracionalismo cético, assim agora alguns ex-falseacionistas dirigem a nova onda do
irracionalismo cético e do anarquismo. Isso está melhor exemplificado em Feyerabend,
“Against Method”, 1970.

221
tituiu o problema central da racionalidade clássica, o velho problema dos
fundamentos pelo novo problema do crescimento crítico-falível, e pô-se a elaborar
padrões objetivos desse crescimento. Neste ensaio tentei desenvolver um pouco
mais o seu programa. Creio que este pequeno desenvolvimento é suficiente para
escapar às censuras de Kuhn. 335
A reconstrução do progresso científico como proliferação de programas
rivais de pesquisa e transferências progressi vas e degenerativas de problemas
fornece uma imagem da atividade científica que é de muitas maneiras diferente
da imagem proporcionada pela sua reconstrução como uma sucessão de teorias
ousadas e seus dramáticos derrubamentos. Seus principais aspectos foram
desenvolvidos das idéias de Popper e, em particular, da sua condenação dos
estratagemas “convencionalistas”, isto é, diminuidores de conteúdo. A prin cipal
diferença em relação à versão original de Popper, creio eu, é que na minha
concepção a crítica não mata nem deve matar — tão depressa quanto Popper
imaginava. A crítica destrutiva, puramente negativa, como a "refutação” ou a
demonstração de uma inconsistência não elimina um programa. A crítica de um
programa é um processo longo e amiúde frustrante, e os programas em desen-
336
volvimento devem ser tratados sem severidade , Pode-se, naturalmente, mostrar a
degeneração de um programa de pesquisa, mas só a crítica construtiva pode, com
a ajuda de programas de pesquisa rivais, obter êxitos reais; e os res ultados
espetaculares e dramáticos só se tornam visíveis a posteriori e através da
reconstrução racional.

335. De fato, como eu já havia mencionado, meu conceito de um "programa de


pesquisa” pode ser interpretado como um objetivo, uma reconstru ção "do terceiro mundo” do
conceito sociopsicológico de “paradigma” de Kuhn: desse modo a “transferência de gestalt"
kuhniana pode ser executada sem que seja preciso, para isso, tirar os óculos popperianos.
(Não tratei da afirmativa de Kuhn e Feyerabend de que as te orias não podem ser
eliminadas por nenhum motivo objetivo mercê da “incomensura- bilidade” das teorias rivais.
As teorias incomensuráveis não são incompatíveis entre si nem comparáveis no que concerne
ao conteúdo. Mas, segundo um dicionário, podemos torná -las incompatíveis e tornar-lhes o
conteúdo comparável. Se quisermos eliminar um programa, necessitamos de determinação
metodológica. Essa determinação é o centro do falseacionismo metodológico; por exemplo,
nenhum resultado de amostragem estatística é inc ompatível com uma teoria estatística a não
ser que as façamos incompatíveis com a ajuda das regras popperianas de rejeição. Cf. mais
acima, p. 132.)

336. A relutância dos economistas e de outros cientistas sociais em aceitar a


metodologia de Popper pode dever-se em parte, ao efeito destrutivo do falseacionismo ingênuo
sobre os programas de pesquisa que estão come çando.

222
Kuhn mostrou, por certo, que a psicologia da ciência revela verdades
importantes e, de fato, tristes. Mas a psicologia da ciência não é autônoma; pois
o crescimento — racionalmente reconstruído — da ciência se verifica
essencialmente no mundo das idéias, no “terceiro mundo" de Platão e de Popper,
no mundo do conhecimento inteligível, que o independe de sujeitos do
conhecimento.' 1 ' 17 O programa de pesquisa de Popper visa a uma descrição desse
crescimento científico objetivo. 338 O programa de pesquisa de Kuhn parece visar a
uma descrição da mudança na mente científica (‘normal”) (individual ou
comunal). 339 Mas a imagem-espelho do terceiro mundo na mente do indivíduo —
- até na mente dos cientistas “normais”

337. O primeiro mundo é o mundo material, o segundo é o mundo da consciência, o


terceiro é o mundo das proposições, da verdade, dos padrões: o mundo do conhecimento
objetivo. Os loci classici modernos sobre o assunto são os dois ensaios de Popper,
“Epistemology without a Knowing Subject” e “On the Theory of the Objective Mind”, ambos
de 1968; cf. também o impressionante programa de Toulmin exposto em seu trabalho de 1967,
“The Evolutionary Development of Natural Science”. Cumpre mencionar aqui que muitos
trechos de Popper em sua Logik der Forschung (1934) e até em suas Conjectures and
Refutations (1963) parecem descrições de um contraste psicológico entre a Mente Crítica e a
Mente Indutivista. Mas os termos psicolo- gístas de Popper podem ser reinterpretados, numa
grande extensão, em termos do terceiro mundo: veja Musgrave, "The Objectivism of Popper’s
Epistemology”, 1974.

338. Com efeito, o programa de Popper estende -se além da ciência. Os conceitos de
transferências “progressivas” e “degenerativas” de problemas e a idéia da proliferação de
teorias podem ser generalizadas para abranger qualquer espécie de discussão racional e, assim,
servir de instrumentos para uma teoria geral da crítica; cf. meus trabalhos “Popper zum
Abgrenzungs- und Induktionsproblem” e “History of Science and its Rational Recons -
tructions”, ambos de 1971. Meu ensaio de 1963 -4, “Proofs and Refutations”, pode ser visto
como a história de um programa progressivo e nã o-empírico de pesquisa; e meu ensaio de 1968,
“Changes in the Problem of Inductive Logic” contém a história de um programa degenerativo
e não-empírico de lógica indutiva.)

339. Estados de espírito reais, crenças, etc., pertencem ao segundo mundo; estados do
espírito normal pertencem a um limbo entre o segundo e o terceiro. O estudo das mentes
científicas reais pertence à psicologia; o estudo da mente “normal” (ou "sadia”, etc.) pertence
à filosofia psicologista da ciência. Existem duas espécies de filosofias psicologistas da ciência.
De acordo com uma delas não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia de cientistas
individuais. De acordo com a outra, há uma psicologia da mente “científica”, "ideal” ou
"normal”: isso transforma a filosofia da ciência numa psicologia da mente ideal e, ademais,
oferece uma psicoterapia para transformar nossa mente na mente ideal. Discuto
circunstanciadamente alhures esse segundo tipo de psicologismo. Kuhn não parece haver
notado a distinção.

223
— é geralmente unia caricatura do original; e descrever essa caricatura sem
relacioná-la com o terceiro mundo original pode perfei tamente redundar na
caricatura de uma caricatura. Não se pode compreender a história da ciência
sem levar em conta a interação dos três mundos .

APÊNDICE

POPPER, O FALSEACIONISMO E A “TESE DUHEM -QUINE”

Popper começou como falseacionista dogmático na década de 1920; mas


logo compreendeu a insustentabilidade de sua posição e não publicou coisa
alguma antes de inventar o falseacionismo metodológico. Idéia de todo nova
na filosofia da ciência, tem sua ori gem claramente em Popper, que a aventou
como solução para as dificuldades do falseacionismo dogmático. Com efeito,
o conflito entre as teses de que a ciência é crítica e falível ao mesmo tempo é
um dos problemas centrais da filosofia popperiana. Embora oferecesse uma
formulação coerente e uma crítica do falseacionismo dogmático, Popper
nunca fez uma distinção nítida entre o falseacionismo ingênuo e o sofisticado.
Num ensaio anterior, 340 distingui três Poppers: Pop- per 0 , Popperi e Popper 2 .
Popper 0 é o falseacionista dogmático que nunca publicou uma palavra: foi
inventado — e “criticado” — primeiro por Ayer e depois por muitos outros. 341
Espero que este ensaio

340. Cf. meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic”.
341. Ayer parece ter sido o primeiro a atribuir o falseacionismo dogmá tico a Popper.
(Ayer também inventou o mito de que, de acordo com Popper, a “confutabilidade definida”
era um critério não só do caráter empírico mas também do caráter significativo da
proposição: cf. o seu Language, Truth and Logic, 1936, capítulo 1, p. 38 da segunda edição.)
Ainda hoje, muitos filósofos (cf. Juhos, Über die empirische Induktion”, 1966, ou Nagel,
“What is True and False in Science: Medawar and t he Anatomy of Research”, 1967) criticam
o homem-de-palha Popper. Em seu livro publicado em 1967, The Art of the Soluble,
Medawar chamou ao falseacionismo dogmático "uma das idéias mais vigorosas” da
metodologia de Popper. Ao fazer uma crítica do livro de M edawar, Nagel criticou-o por
“endossar” o que ele também acredita serem "afirmações de Popper” (Nagel, “What is True
and False in Science: Medawar and the Anatomy of Research”, 1967, p. 70). A crítica de
Nagel convenceu Medawar de que “o ato de falseamento não está imune ao erro humano”
(Medawar, lnduction and Intuition in Scientific Thought,

224
acabe matando o seu fantasma. Popper, é o falseacionista ingênuo e Popper 2 é o
falseacionista sofisticado. O verdadeiro Popper desen- volveu-se passando da
versão dogmática para a versão ingênua do falseacionismo metodológico na
década de 1920 e chegou às 'regras de aceitação” do falseacionismo sofisticado
na década de 1950. Mar- cou-lhe a transição o haver ele acrescentado ao
requisito original de testabilidade o “segundo" requisito de “testabilidade
independente” 342 e, a seguir, o “terceiro” requisito de que alguns desses testes
independentes resultassem em corroborações. 343 Mas o verdadeiro Popper nunca
abandonou suas primeiras (ingênuas) regras de falseamento. Ele tem exigido, até
o presente, que “se estabeleçam de antemão os critérios de refutação: urge que
haja consenso em torno das situações observáveis, se realmente observadas, que
significam que a teoria está refutada”. 344 Ele ainda interpreta “falseamento”
como resultado de um duelo entre a teoria e a observação, sem que outra teoria
melhor esteja necessariamente envolvida. O verdadeiro Popper nunca explicou
circunstanciadamente o processo de apelação por cujo inter médio alguns
“enunciados básicos aceitos” podem ser eliminados. Desse modo, o verdadeiro
Popper consiste em Popperi com alguns elementos de Popper 2 .
A idéia de uma demarcação entre as transferências progressivas e as
degenerativas de problemas, como foi discutida neste trabalho, baseia -se na obra
de Popper: sua demarcação, na verdade, é quase idêntica ao seu célebre critério
demarcatório entre a ciência e a metafísica. 3 *5

1969, p. 54). Medawar e Nagel, porém, não souberam ler Popper: a Logik der Forschung deste
último é a mais forte das críticas ao falseacionismo dogmático que já se escreveu.
Pode ter-se uma visão caridosa do erro de Medawar: para cientistas brilhantes cujo
talento especulativo se viu frustrado sob a tirania de uma lógica indutivista da descoberta, o
falseacionismo, até em sua forma dogmática, estava destinado a ter um tremendo efeito
liberatório. (Além de Medawar, outro detentor do Prêmio Nobel, Eccles, aprendeu com'
Popper a substituir sua cautela original por uma arrojada especulação falseável: cf. Eccles,
“The Neurophysiological Basis of Experience”, 1964, pp. 274-5.)

342. Popper, “The Aim of Science”, 1957.


343. Popper, Cotxjectures and Refutations, 1963, pp. 242 e seguintes.
344. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 38, nota de pé pá
gina n.° 3.
345. Se o leitor estiver em dúvida quanto à autenticidade de minha reformulação do
critério de demarcação de Popper, releia as partes impor tantes de Popper (Logik der
Forschunjç), tendo Musgrave (“On a Demarcation Dispute”, 1968) por guia. Musgrave
escreveu o supracitado ensaio contra

225
Originalmente, Popper só tinha em mente o aspecto teórico das
transferências de problemas, o que é lembrado na seção 20 da sua Logik der
Forschung e desenvolvido em seu The Poverty of Histori- cism. 3M Só depois
ajuntou uma discussão do aspecto empírico das transferências de problemas em
suas Conjectures and Rejutations, 347 Entretanto, a condenação de Popper aos
“estratagemas convencionalistas”, em certos sentidos, é muito forte e, em
outros, muito fraca. É muito forte pois, segundo Popper, uma nova versão de um
programa progressivo nunca adota um estratagema diminuidor de conteúdo para
absorver uma anomalia, e nunca diz coisas como esta: “todos os corpos são
newtonianos, exceto dezessete corpos anômalos”. Mas visto que sempre
abundam anomalias não explicadas, admito tais formulações; uma explicação é
um passo dado à frente (isto é, “científica”) quando explica pelo menos algumas
anomalias prévias que não foram explicadas “cientificamente” por sua
predecessora. Enquanto as anomalias forem consideradas problemas autênticos
(embora não necessariamente urgentes), pouco importa que as dramati zemos
como “refutações” ou que as despojemos de dramaticidade como “exceções”: a
diferença, nesse caso, é apenas lingüística. (O grau de tolerância de
estratagemas ad hoc nos permite progredir até sobre fundamentos inconsistentes.
As transferências de problemas podem então ser progressivas a despeito das
inconsistências. 348 ) Entretanto, a condenação de Popper dos estratagemas
diminuidores de

Bartley, que, no seu trabalho do mesmo ano, "Theories of Demarcation between Science and
Metaphysics”, atribuiu erroneamente a Popper o critério de demarcação do falseacionismo
ingênuo, tal como foi formulado mais acima, à p. 109.

346. Em sua Logik der Forschung (1934), Popper preocupou-se principalmente com
uma proscrição dos ajustamentos ad hoc subreptícios. Popper (Popper,) exige que o objetivo
de uma experiência crucial potencialmente negativa seja apresentado juntamente
com a teoria, e depois que a sentença
do júri experimental seja humildemente aceita. Disso se segue que os estra
tagemas convencionalistas, que depois da sentença torcem retrospectivamente a teoria original
a fim de escapar à sentença, são eo ipso excluídos. Mas se admitirmos a refutação e depois
reformularmos a teoria com a ajuda de um estratagema ad hoc, podemos admiti-lo como
“nova" teoria; e se ela for testável, Popper, a aceitará para uma nova crítica: “Sempre que
descobrimos que um sistema foi salvo por um estratagema convencionalista , tomamos a testá-
lo, e rejeitamo-lo, se as circunstâncias o exigirem” (Popper, Logik der Forschung, seção 20).

347. Sobre detalhes, cf. meu ensaio “Changes in the Problem of Inducti-
veLogic”, 1968, especialmente as pp. 388-90.
348. Cf. mais acima, pp. 174 e seguintes. Essa tolerância raro se encontra, se é que se
encontra alguma vez, em compêndios de método científico.
conteúdo é também demasiado fraca: não pode lidar, por exemplo, com o
“paradoxo de rodeios”, 349 e não condena estratagemas 350 ad hoc }, que só são
eliminados pelo requisito de que as hipóteses auxi- liares deveriam ser formadas
de acordo com a heurística positiva de um programa de pesquisa autêntica. Esse
novo requisito nos leva ao problema da continuidade na ciência.
O problema da continuidade na ciência foi levantado por Popper e seus
seguidores há muito tempo. Quando propus minha teoria do crescimento baseado
na idéia de programas de pesquisa concor rentes, tornei a seguir, e tentei
melhorar, a tradição popperiana. O próprio Popper, e m sua Logik der Forschung,
já sublinhara a importância heurística da “metafísica influente”, 351 e foi visto
por alguns membros do Círculo de Viena como defensor da perigosa
metafísica. 352 Quando o seu interesse pelo papel da metafísica revi veu na década
de 1950, ele escreveu um “Epílogo Metafísico” inte ressantíssimo a respeito de
“programas de pesquisa metafísica” para o seu PostScript: After Twenty Years —
no prelo desde 1957. 353

349. Cf. mais acima, p. 160.


350. Cf. mais acima, à p. 217, nota de rodapé n.° 323.
351. Cf., por exemplo, sua Logik der Forschung, fim da seção 4; cf. também seu ensaio
de 1968 intitulado “Remarks on the Problems of Demar - cation and Rationality”, p. 93. Não
nos esqueça que tal importância foi negada à metafísica por Comte e Duh em. As pessoas que
mais fizeram para inverter a maré antimetafísica na filosofia e na historiografia da ciência
foram Burtt, Popper e Koyré.

352. Na crítica que fizeram do livro, Carnap e Hempel trataram de defender Popper
dessa acusação (cf. Carnap, Crítica do livro de Popper, Logik der Forschung, 1953, e Hempel,
Crítica do livro de Popper, Logik der Forschung, 1937). Hempel escreveu: “[Popper] acentua
vigorosamente certas características do seu enfoque, comuns com as características do enfo que
de alguns pensadores que seguem uma orientação metafísica. Espera -se que esse valioso
trabalho não seja mal interpretado como se tencionasse per mitir o advento de uma metafísica
nova, talvez até logicamente defensável.”

353. Uma passagem desse PostScript merece ser aqui citada: “O ato-
mismo é um .. . excelente exemplo de uma teoria metafísica não -testável, cujainfluência sobre a
ciência excedeu a de muitas teorias testáveis... A
mais recente e mais ampla até agora foi o programa de Faraday, Maxwell,
Einstein, de Broglie e Schrodinger, de conceber o mundo... em termos de campos contínuos...
Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou, muito antes de tornar -se testável, como
programa para a ciência, indicando a direção em que se podem encontrar satisfatórias teori as
explanatórias de ciência, e possibilitando algo semelhante a uma avaliação da profundidade de
uma teoria. Em biologia, a teoria da evolução, a da célula e a da infecção bacteriana
desempenharam papéis semelhantes, pelo menos durante algum tempo. Em psi cologia, o
sensualismo, o atomismo (isto é, a teoria de que todas as expe riências são compostas de últimos
elementos, tais como, por exemplo, os

227
Popper, no entanto, não associava a tenacidade com a irrefutabilidade
metodológica, mas com a irrefutabilidade sintática. Por “metafísica” entendia
enunciados sintaticamente especificáveis como enunciados do tipo “todos -
alguns” e enunciados puramente existenciais. Nenhum enunciado básico poderia
entrar em conflito com eles devido a sua forma lógica. Nesse sen tido, por
exemplo, “para todos os metais há um solvente” seria ‘metafísico”, ao passo que
a teoria da gravitação de Newton, tomada isoladamente, não o seria. 351 Na
década de 195Ü, Popper também suscitou o problema crítico das teorias
metafísicas e sugeriu soluções. 355 Agassi e Watkins publicaram diversos estudos
interessantes sobre o papel dessa “metafísica” da ciência, que todos ligavam à
continuidade do progresso científico. 350 Meu tratamento difere do deles porque
vou muito mais longe do que eles no apagar a demarcação entre “ciência” [de
Popper] e “metafísica” [de Popper] : nem sequer emprego mais o termo
“metafísico”. Só me refiro a programas de pesquisa científica cujo núcleo é
irrefutável não por razões sintáticas mas por razões metodológicas que nad a têm
que ver com a forma lógica. Em segundo lugar, separando nitidamente o
problema descritivo do papel psicológico-histórico da metafísica do problema
normativo de distinguir os programas de pesquisa progres sivos dos programas de
pesquisa degenerativos, desenvolvi o problema além do que eles já o tinham
feito.

dados dos sentidos) e a psicanálise devem ser mencionados como programas de pesquisa
metafísica... Até asserções puramente existenciais têm -se revelado, às vezes, sugestivas e
proveitosas na história da ciência, ainda que nunca tenham feito parte dela. Efetivamente,
poucas teorias metafísicas exerceram maior influência sobre o desenvolvimento da ciência do
que a seguinte teoria puramente metafísica: "Existe uma substância capaz de transformar

metais vis em ouro (isto é, a pedra filosofal)”, embora se trate de uma


teoria não-falseável, que nunca foi verificada e na qual, hoje em dia, nin guém acredita.”

354. Cf. especialmente Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 66. Na edição de
1959 ele acrescentou uma nota de rodapé esclarecedora (nota de rodapé n.° *2) a fim de
acentuar que nos enunciados metafísicos do tipo todos- -alguns o quantificador existencial
precisa ser interpretado como “ilimitado”; mas, naturalmente, ele já deixara esse pormenor
absolutamente claro na seção 15 do texto original.

355. Cf. especialmente o seu livro Conjectures and Refutations, 1963, pp. 198-9
(publicado pela primeira vez em 1958).
356. Cf. os ensaios de Watkins, “Between Analytic and Empirical” (1957) e
“Influential and Confirmable Metaphysics” (1958) e os de Agassi, “The Confusion between
Physics and Metaphysics in the Standard t Histories of Sciences” (1962) e "Scientific
Problems and Their Roots in Metaphysics” (1964).

228
Finalmente, eu gostaria de discutir a "tese Duhem-Quine” e sua relação com
o falseacionismo. 357
De acordo com a “tese Duhem-Quine”, em havendo imaginação suficiente,
qualquer teoria (quer consista numa proposição, qúer consista numa conjunção
finita de muitas proposições) pode ser salva permanent emente da “refutação” por
algum ajustamento adequado no conhecimento de fundo cm que está incluída.
Como diz “aconteça o que acontecer, qualquer pronunciamento pode ser
considerado verdadeiro, se fizermos ajustamentos suficientemente drásticos em
outros pontos do sistema. . . Inversamente, nenhum enunciado é imune à
revisão.” 358 De mais a mais, o “sistema” é nada menos que “o con junto da
ciência”. “Uma experiência recalcitrante pode ser acomo dada por uma de várias
reavaliações alternativas em vários pontos alternativos do sistema total
[incluindo a possibilidade de reavaliar a própria experiência recalcitrante].” 539
Essa tese tem duas interpretações muito diferentes. Em sua interpretação
fraca apenas afirma a impossibilidade do atingimento expe rimental direto de um
alvo teórico rigorosamente especificado e a pos sibilidade lógica de modelar a
ciência de maneiras muito diferentes. A interpretação fraca só atinge o
falseacionismo dogmático e não o metodológico: apenas nega a possibilidade de
uma refutação de qualquer componente separado de um sistema teórico.
Em sua interpretação forte a tese Duhem-Quine exclui qualquer regra de
seleção racional entre as alternativas; essa versão é incompatível com todas as
formas de falseacionismo metodológico. As dua s interpretações não foram
claramente separadas, embora a diferença seja metodologicamente vital. Duhem
parece ter conservado apenas a interpretação fraca: para ele a seleção é uma
questão de “sagacidade”: precisamos escolher sempre certo a fim de chegar mais
perto da “classificação natural”. 380 Por outro lado, Quine, na tra

357. Esta parte final do Apêndice foi acrescentada no prelo.


358. Quine, From a Logical Point of View, 1953, capítulo ii.
359. Ibid. A cláusula entre os colchetes é minha.
360. Segundo Duhem, uma experiência nunca pode condenar sozinha uma teoria
isolada (tal como o núcleo de um programa de pesquisa): para uma “condenação” dessa
natureza também precisamos de "senso comum”, "sa gacidade” e bom instinto metafísico que
nos conduza na direção de (ou para) "certa ordem eminentíssima”, (Veja o fim do Apêndice
da segunda edição do seu livro publicado em 1906, La Théorie Physique, Son Objet et Sa
Structure.

229
dição do pragmatismo norte-americano de James e Lewis, parece manter uma
posição muito próxima da interpretação forte. 361
Examinemos agora mais atentamente a tese Duhem-Quine. Façamos uma
“experiência recalcitrante” expressa num “enunciado de observação” O'
incompatível com uma conjunção de enunciados teó ricos (e “observacionais”) h u
h 2. . . hn, I 1, I2. . . In , em que h são teorias e I1 as condições iniciais
1

correspondentes. No “modelo dedutivo”, h 1 . . . h n , I 1 . . . I n logicamente


supõem O; obser va-se, porém, que O' supõe não-O. Suponhamos também que as
pre missas são independen tes e todas necessárias para deduzir O.
Nesse caso podemos restaurar a consistência alterando qualquer uma das
sentenças do nosso modelo dedutivo. Seja, por exemplo, h\\ “sempre que um fio
estiver carregado com um peso que exceda o que caracteriza o esforç o de fração
do fio, este se romperá”; seja h 2: “o peso característico para esse fio é 1 libra”;
seja /i 3 : “o peso colocado neste fio foi de 2 libras”. Seja, finalmente, O:
“colocou-se um peso de ferro de 2 libras sobre o fio localizado na posição
espaço- -tempo P e este não se rompeu”, Pode resolver-se o problema de muitas
maneiras. Para dar alguns exemplos: (1) Rejeitamos h\\ substituímos a expressão
“é carregado com um peso” por “é puxado por uma força”; introduzimos uma
nova condição inicial: havia um ímã (ou uma força até então desconhecida).
escondido no forro do laboratório. (2) Rejeitamos /i 2 ; propomos que o esforço de
tração dependa do grau de umidade dos fios; o esforço de tração do fio real,
desde que ele se umedeceu, foi de 2 libras. (3) Rejeit amos O; o fio não se
rompeu; apenas se observou que ele não se rompeu, mas o professor que propôs
h, & h 2 & h } era um conhecido burguês liberal e seus assistentes revolucionários
de laboratório viram-lhe as hipóteses sistematicamente refutadas quando, na
realidade, elas foram confirmadas. (5) Rejeitamos ft 3 ; o fio não era um “fio”, era
um “su- perfio”, e os “superfios” nunca se rompem. 31 ’ 2 Poderíamos prosse

361 . Quine fala de enunciados que têm "distâncias variáveis de uma peri feria
sensocial" e estão, assim, mais ou menos expostos à mudança. Mas tanto a periferia
sensorial quanto a métrica são difíceis de definir. Segundo Quine, “as considerações que
dirigem [o homem] na deformação da própria herança científica para ajustar -se às suas
continuadas periferias sensociais são racionais, pragmáticas” (Quine, From a Logical Point
of View, 1953). Mas o “pragmatismo” para Quine, como para James ou Le Roy, não passa
de conforto psicológico: e parece-me irracional chamar a isso "racional”.

362. Sobre tais “defesas resumidoras de conceitos” e “refutações amplia- doras de


conceitos", cf. meu ensaio de 1963-4, intitulado "Proofs and Refutations”.

230
guir indefinidamente. Na verdade, há um número infinito de possi bilidades de
substituir — em havendo imaginação suficiente — qualquer uma das premissas
(no modelo dedutivo) invocando uma mudança em alguma parte distante do nosso
conhecimento total ( f o r a do modelo dedutivo) e por essa maneira restaurar a
consistência.
Podemos formular esa observação trivial dizendo que “cada teste é um
desafio ao conjunto do nosso conhecimento”? Não vejo nenhuma razão para não o
fazer. A resistência de alguns falseacionistas a esse “dogma holístico do caráter
‘global’ de todos os testes” 363 deve- se apenas a uma fusão semântica de duas
noções diferentes de “teste” (ou “desafio”) que um resultado experimental
recalcitrante apresenta ao nosso conhecimento.
A interpretação popperiana de um ‘‘teste" (ou “desafio”) é que o resultado
(O) contradiz (“desafia”) uma conjunção finita, bem especi ficada de premissas
( T ) : O & T não podem ser verdadeiros. Mas nenhum protagonista do argumento
Duhem-Quine negaria esse ponto.
A interpretação quineana do “teste” (ou “desafio") é que a substituição de O
& T pode invocar alguma mudança também fora de O e T. O sucessor de O & T
pode ser incompatível com H em alguma parte distante do conhecimento. Mas
nenhum popperiano negaria esse ponto.
A fusão das duas noções de procedimento de teste conduziu a alguns mal -
entendidos e erros lógicos. Algumas pessoas sentira m intuitivamente que o
modus tollens da refutação pode “repercutir” nas premissas muito distantes em
nosso conhecimento toíal e, portanto, viram-se apanhadas na ideia de que a
“cláusula ceteris- paribus" é uma premissa que se associa conjuntivamente às
premissas óbvias. Logra-se, porém, essa “repercussão” não pelo modus tollens
mas como resultado da substituição subseqüente do nosso modelo dedu tivo
original. 364

363. Popper, Conjectures and Refutation, 1963, capítulo 10, seção XVI.
364. O locus classicus desta confusão é a crítica teimosa de Popper levada a efeito
por Canfield e Lehrer em seu ensaio de 1961, “A Note on Prediction and Deduction”;
Stegmüller seguiu-os ao pântano lógico no seu trabalho de
1966 a que deu o título de ‘‘Explanation, Prediction, Scient ific Systematization and
Non-Explanalory Information” (p. 7). Coffa contribuiu para a elucidação do problema num
ensaio publicado em 1968: “Deductive predictions”.
Infelizmente, minha própria fraseologia neste trabalho em certos lugares dá a
entender que a “cláusula ceteris paribus” tem de ser uma premissa independente na teoria
que está sendo testada. Minha atenção foi chamada para essa falha facilmente reparável por
Colin Howson.

231
Desse modo, a “tese fraca de Quine” mantém-se trivialmente. Mas a “tese
forte de Quine” encontrará vigorosa oposição não só do falseacionista ingênuo
mas também do sofisticado.
O falseacionista ingênuo insiste em que, se tivermos uma série
inconsistente de enunciados científicos, primeiro teremos de escolher dentre eles
(1) uma teoria que esteja sendo testada (para servir de noz)\ depois precisamos
escolher (2) um enunciado básico aceito (para servir de martelo) e o resto será
conhecimento de fundo não- -contestado (para servir de bigorna). E para dar a
devida força a essa postura, precisamos oferecer um método de “endurecer” o
“martelo” e a “bigorna” para poder quebrar a “noz” e, assim, realizar uma
“experiência crucial negativa”. Mas a “adivinhação” ingênua dessa divisão é
demasiado arbitrária, não nos dá nenhum endureciment o sério. (Grünbaum, por
outro lado, aplica o teorema de Bayes para mostrar que, pelo menos em certo
sentido, o “martelo” e a “bigorna” têm altas probabilidades posteriores e,
portanto, são “duras” bastante para ser usadas como quebra -nozes. 365 )
O falseacionista sofisticado permite que qualquer parte do corpo da ciência
seja substituído mas só sob a condição de que seja substituído de modo
“progressivo”, de sorte que a substituição ante cipe com êxito fatos novos. Em
sua reconstrução racional do falseamento, “experiências cruciais negativas” não
desempenham papel algum. Ele não vê nada de errado num grupo de cientistas
brilhantes conspirando para acondicionar tudo o que podem no seu programa de
pesquisa (“referencial conceituai”, se quiserem) favorito com um núcleo
sagrado. Enquanto o gênio — e a sorte — lhes permitem expandir o programa
“progressivamente”, enquanto permanecerem

365. Grünbaum assumiu anteriormente uma posição de falseacionismo dog mático e


afirmou, referindo-se aos seus estudos interessantes de geometria física, que podemos
verificar falsidade de algumas hipóteses científicas (por exemplo, “The Falsifiability of the
Lorentz-Fitzgerald Contraction Hypothesis”, de 1959, e “The Duhemian Argument”, de
1960). Ao primeiro desses ensaios seguiu-se o ensaio de Feyerabend, “Comments on
Griinbaum’s ‘Law and Convention in Physical Theory’” (1959), em que o autor argumentou
que “as refutações só são finais enquanto faltam explicações alternativas engenhosas e não -
triviais da evidência”. Em seu trabalho de 1966, intitulado “The Falsifiability of a
Component of a Theoretical System”, Grünbaum modifica sua posição e depois, em resposta
à crítica de Mary Hesse (Hesse, Crítica de Grünbaum, 1968) e outros, restringiu -a ainda
mais: “Pelo menos em alguns casos, podemos determinar a falsidade de uma hipótese
componente para todas as finalidades cientí ficas, embora não possamos falseá-la além de
qualquer possibilidade de reabilitação subseqüente” (Grünbaum, “Can We Ascertain the
Falsity of a Scientific Hypothesis?” 1969, p. 1.092).

232
leais ao seu núcleo, eles terão permissão para fazê -lo. E se um gênio aparecer
decidido a substituir (“progressivamente”) uma teoria não- -contestada e
corroborada, que não lhe agrada por motivos filosófi cos, estéticos ou pessoais,
felicidades para ele. Se dois grupos desenvolvendo programas rivais de pesquisa
competirem, o que tiver mais talento criativo tenderá a ser bem-sucedido — a
não ser que Deus o castigue com uma extrema falta de êxito empírico. A direção
da ciência é determinada principalmente pela imaginação criativa hu mana e não
pelo universo de fatos que nos cercam. A imaginação criativa tem probabilidades
de encontrar uma nova evidência corro- boradora até para o programa mais
“absurdo”, se a busca for convenientemente orientada. 366 Essa busca de uma nova
evidência corrobo- radora é perfeitamente permissível. Os cientistas sonham com
fantasias e depois se empenham numa caçada altamente seletiva de fatos novos
que se ajustem a essas fantasias. Esse processo pode ser d escrito como a “ciência
criando seu próprio universo” (enquanto nos lembrarmos de que aqui se usa
“criando” num sentido provocativo- -idiossincrático). Uma escola brilhante de
estudiosos (patrocinada por uma sociedade rica desejosa de financiar alguns
testes bem planejados) pode ter êxito na execução de qualquer programa fantás -
tico ou, alternativamente, se tiver inclinação para tanto, no derruba - mento de
qualquer pilar arbitrariamente escolhido do “conhecimento estabelecido”.
O falseacionista dogmático erguerá as mãos aos céus horrorizado por esse
enfoque. Verá o espectro do instrumentalismo de Bellar - mino erguer-se do
entulho debaixo do qual o êxito newtoniano da “ciência provada” o havia
enterrado. Acusará o falseacionista sofis ticado de construir sistemas
procustianos arbitrários e forçar os fatos a ajustar -se a eles. Pode até brandi-lo
como revitalização da profana aliança irracionalista entre o pragmatismo tosco
de James e o volun- tarismo de Bergson, triunfantemente vencido por Russell e
Steb-

366. Um exemplo típico dessa natureza é o princípio de Newton de atra ção


gravitacional, de acordo com o qual os corpos se atraem uns aos outros instantaneamente de
imensas distâncias. Huyghens descreveu a idéia como “ab surda”, Leibnitz como “oculta”, e os
melhores cientistas do tempo “entraram a indagar como [Newton] pudera dar -se a tanto
trabalho fazendo um número tão grande de investigações e cálculos difíceis sem outro
fundamento além desse mesmo princípio” (cf. Koyré, Newtonian Studies, 1965, pp. 117-18).
Eu já sustentara anteriormente que não é verdade que o mérito do progresso teórico pertence
ao teórico, mas que o sucesso empírico é apenas uma questão de sorte. Se o teórico for mais
imaginativo, é mais provável que o seu programa teórico obtenha, pel o menos, algum sucesso
empírico. Cf. meu ensaio, "Changes in the Problem of Inductive Logic", 1968, pp. 387 -90.

233
bing. :!G? Mas o nosso falseacionismo sofisticado combina “instrumen- talismo”
(ou “convencionalismo”) com um vigoroso requisito empi - rista que nem os
“salvadores de fenômenos” medievais, como Bel- larmino, nem pragmatistas
como Quine e nem bergsonianos como Le Roy tinham apreciado: o requisito de
Leibnitz-Whewell-Popper de que a construção — bem planejada — de
compartimentos há de prosseguir muito mais depressa do que o registro de fatos
que devem ser guardados neles. Enquanto esse requisito for satisfeito, pouco im-
portará que acentuemos o aspecto “instrumental” dos programas de pesquisa
imaginativos para descobrir fatos novos e fazer prediç ões merecedoras de fé, ou
que acentuemos a “verossimilhança” poppe- riana crescente e putativa (isto é, a
diferença estimada entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade) de
suas versões sucessivas. 368 O falseacionismo sofisticado combina assim os
melhores elementos do voluntarismo, do pragmatismo e das teorias realistas do
crescimento empírico.
O falseacionista sofisticado não toma o partido de Galileu nem
o do Cardeal Bellarmino. Não toma o partido de Galileu porque afirma que
todas as nossas teorias básicas podem ser igualmente absurdas e inverossímeis
para a mente divina; e não toma o partido de Bellarmino, a não ser que o cardeal
concordasse em que as teorias científicas ainda podem conduzir, a longo prazo,
a conseqüências cada vez mais verdadeiras e cada vez menos falsas e, nesse sen-
tido estritamente técnico, podem ter crescente “verossimilhança”. 369

367. Cf. Russell, The Philosophy of Bergson (1914), Russel, History of Western
Philosophy (1946) e Stebbing, Pragmatism and French Voluntarism (1914). lustificacionista,
Russell desprezava o convencionalismo: “Assim como a vontade subiu na escala, o
conhecimento desceu. Essa foi a mudança mais notável que se verificou na disposição de
espírito da filosofia do nosso tempo, preparada por Rousseau e Kant..." (History of Western
Philosophy, p. 787). Popper, naturalmente, foi buscar parte da sua inspiração em Kant e
Bergson. (Cf. sua Logik der Forschung, 1934, seções 2 e 4).

368. Sobre “verossimilhança” cf. Popper, Conjectures and Rejutations,


1963, capítulo 10, e mais adiante, a nota de pé de página seguinte; sobre "fide-
dignidade” cf. meu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Lo gic”, pp. 390-405
e também meu trabalho de 1971, “Popper zum Abgrenzungs - und Induktionsproblem”.

369. “Verossimilhança” tem dois significados distintos, que não se devem confundir.
Primeiro, o termo pode ser usado para significar a intuitiva seme lhança à verdade da teoria;
nesse sentido, no meu entender, todas as teorias científicas criadas pela mente humana são
igualmente inverossímeis e “ocultas”. Segundo, ele pode ser usado para significar uma
diferença conjunto-teorética entre as conseqüências verdadeiras e falsas de uma teoria que
nunca poderemos conhecer mas que podemos presumir. Foi Popper quem empregou
“verossimilhança” como termo técnico para denotar essa espécie de diferença ( Conjectures

234
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rigorosamente ao significado original c equivocada e enganosa. No uso original, pré -
popperiano, “verossimilhança” poderia significar semelhança intuitiva à verdade ou uma
protoversão ingênua da semlhança empírica à verdade de Popper. Popper apresenta
interessantes citações para esta última (Con- jectures and Refutation, pp. 399 e seguintes)
mas nenhuma para a primeira. Bellarmino, todavia, poderia ter concordado em que a teoria
coperniciana tinha grande “verossimilhança” no sentido técnico de Popper, mas não tinha
nenhuma verossimilhança no primeiro sentido, intuitivo. Quase todos os “instrumen talistas”
são “realistas”, pois concordam em que a "verossimilhança” [poppe - riana] das teorias
científicas provavelmente está crescendo; mas, ao mesmo tempo, não são “realistas”, pois
concordam, por exemplo, em que o enfoque de campo einsteiniano está intuitivamente mais
próximo do Esquema do Universo do que a ação newtoniana à distância. O "objetivo da
ciência”, portanto, pode estar aumentando a "verossimilhança" popperiana, mas não precisa
estar aumentando a verossimilhança clássica. Esta última, como diz o próprio Popper, à
diferença da primeira, é uma “idéia perigosamente vaga e metafísica" (Con- jectures and
Refutation, 1963, p. 231).
A “verossimilhança empírica” de Popper, em certo sentido, reabilita a idéia do
crescimento cumulativo na ciência. Mas a força propulsora do crescimento cumulativo na
"verossimilhança empírica" é conflito revolucionário na "verossimilha nça intuitiva”.
Quando Popper estava escrevendo seu “Truth. rationality and the growth of
knowledge”, senti-me apreensivo quanto à sua identificação dos dois con -

235
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ceitos de verossimilhança. De fato, fui eu quem lhe perguntou: “Podemos real mente falar em
melhor correspondência? Existem coisas como graus de verdade? Não será perigosamente
enganoso falar como se a verdade tarskiana estivesse localizada em algum lugar, numa
espécie de espaço métrico ou, pelo menos, topológico, de modo que podemos dizer
sensatamente de duas teorias — digamos uma teoria anterior t, e uma teoria ulterior /, —
que í 3 suplantou í, ou progrediu além de í,, aproximando-se mais da verdade do que <,?”
(Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 232). Popper rejeitou minhas vagas
apreensões. Ele achava — com razão — que estava propondo uma nova idéia
importantíssima. Enganava-se, porém, ao acreditar que sua concepção nova e técnica da
“verossimilhança” absorvia completamente os problemas na velha "verossimilhança”
intuitiva. Diz Kuhn: “Dizer, por exemplo, de uma teoria de campo que ela “está mais
próxima da verdade” do que uma teoria mais antiga de matéria e força deveria significar, a
menos que as palavras estejam sendo estranhamente usadas, que os constituintes finais da
natureza são mais parecidos com campos do que com matéria e força” ( neste volume, mais
adiante, p. 327; o grifo é meu). Na verdade, Kuhn está certo, mas as palavras de fato,
costumam ser “estranhamente usadas”. Espero que esta nota contribua para o
esclarecimento do problema em apreço.

236
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243
CONS OLANDO O ESPE CIALISTA 1

PAUL FEYERABEND
Vniversiíy of Califórnia, Berkeley

“Há anos venho enforcando gente, mas nunca vi tamanho es tardalhaço.”


(Observação feita por Edward “Lofty” Milton, carrasco em meio -expediente, na
Rodésia, por ocasião das demonstrações contra a pena de morte.) “Ele era — diz
a revista Time (15 de março de 1968) — profissionalmente incapaz de
compreender a comoção.”
1. Introdução.
2. Ambigüidade da apresentação.
3. Solução de enigmas como critério de ciência.
4. Função da ciência normal.
5. Três dificuldades do raciocínio funcional.
6. Existe a ciência normal?
7. Em defesa do hedonismo.
8. Uma alternativa: o modelo de mudança científica de Lakatos.
9. O papel da razão na ciência.

1 . INTRODUÇÃO

Nos anos de 1960 e 1961, quando Kuhn era membro do departamento de


filosofia da Universidade da Califórnia em Berkeley, tive a felicidade de poder
discutir com ele vários aspectos da ciência. Es

1. Uma versão anterior deste ensaio foi lido no seminário do Professor Popper em
março de 1967 na London School of Economics. Eu gostaria de agradecer ao Professor
Popper a oportunidade bem como sua crítica circuns tanciada. Confesso-me também grato
aos Srs. Howson e Worall pela valiosa ajuda editorial e estilística.

244
sas discussões me foram enormemente valiosas e, a partir de então, passei a olhar
para a ciência de um novo modo. 2 Entretanto, enquanto pensava, eu reconhecia
os problemas de Kuhn; e enquanto tentava explicar certos aspectos da ciência
para os quais ele me chamara a atenção (a onip resença das anomalias é um
exemplo); senti-me totalmente incapaz de concordar com a teoria da ciênçia que
ele mesmo propôs; e estava ainda menos preparado para aceitar a ideologia geral
que supus constituir a base do seu pensamento. Parecia -me que essa ideologia só
poderia proporcionar conforto ao mais tacanho e presunçoso tipo de
especialismo, pois tenderia a inibir o progresso do conhecimento e aumentaria
fatalmente as tendências anti-humanitárias que são uma característica tão
inquietante de grande parte da ciência pós-newtoniana. :i Sobre todos esses pontos
minhas discussões com Kuhn permaneceram inconclusivas. Mais de uma vez ele
interrompeu um dos meus longos sermões, assinalando que eu o interpre tara mal,
ou que nossas concepções se achavam mais próximas do que eu as fizera parecer.
Agora, relembrando nossos debates, 1 bem como os trabalhos que Kuhn publicou
desde que partiu de Berkeley, não tenho muita certeza de que fosse esse o caso. E
sinto-me fortalecido pelo fato de que quase todos os leitores da Structure of
Scientific Revolutions de Kuhn o interpretam como eu o faço, e que certas
tendências que se observam na sociologia e na psicologia modernas são
exatamente o resultado desse gênero de interpretação. Por conse guinte, espero
que Kulin me perdoe, mais uma vez, por ventilar as velhas questões e não me
leve a mal a maior ou menor grosseria em meu esforço por ser breve.

2. AMBIGÜIDADE DE APRESENTAÇÃO

Todas as vezes que leio Kuhn, perturba-me a seguinte pergunta: estamos


aqui diante de prescrições metodológicas que dizem ao cientista como há de
proceder; ou diante de uma descrição, isenta de qualquer elemento avaliativo das
atividades geralmente rotuladas de “científicas”? Parece-me que os escritos de
Kuhn não conduzem a

2. A crítica de alguns traços da metodologia contemporânea, que aparece em meus


ensaios "Problems in Empiricism, part 2", de 1969, e “Classical Em- piricism”, de 1970, é
apenas um efeito secundário atrasado.
3. Cf. meu ensaio de 1970, “Against Method”.
4. Alguns dos quais foram travados no ora desaparecido Café Old Europe na
Telegraph Avenue e divertia sobremodo os demais fregueses pela sua amis tosa veemência.

245
uma resposta direta. São ambíguas no sentido de que são compatíveis com ambas
as interpretações e a ambas dão apoio. Ora, essa ambigüidade (cuja expressão
estilística e cujo impacto mental têm muita coisa em comum com ambigüidades
semelhantes em Hegel e Wittgenstein) não é, de modo algum uma questão
secundária. Tem tido um efeito definido sobre os leitores de Kuhn e fê -los olhar
para o seu assunto e lidar com ele de maneira não de todo vantajosa. Mais de um
cientista social me assinalou que agora, afinal, aprendeu a transformar seu
campo em “ciência — querendo dizer com isso, naturalmente, que aprendeu a
aperfeiçoá-lo. De acordo com essa gente, a receita consiste em restringir a
crítica, reduzir a um o número de teorias compreensivas e criar uma ciência
normal que tenha por paradigma essa teoria. 5 Devem impedir-se os estudiosos de
especular ao longo de linhas diferentes e os colegas mais irrequietos precisam
ser induzidos a conformar-se e a “realizar trabalho sério”. É isto o que Kuhn
deseja conseguirl G É sua intenção fornecer uma justificação histórico-científica
para a necessidade cada vez maior de identificar-se com algum grupo? Deseja
ele que todo assunto imite o caráter monolítico, digamos, da teoria quântica de
1930? Acredita ele que uma disciplina construída dessa maneira se encontra em
melhor situação? Que levará a resultados melhores, mais numerosos e mais
interessantes? Ou é o seu grupo de seguidores, entre os sociólo gos, um efeito
secundário e não-pretendido de um trabalho cujo úni

5. Veja, por exemplo, Reagan, “Basic and Applied Research: A meaning - ful
Distinction?”, 1967, p. 1385. Afirma ele: “Nós [isto é, nós, os cientistas sociais] estamos no
que Kuhn poderia denominar um estádio “pré -paradigmá- tico" dc desenvolvimento, em que
o consenso ainda lem de surgir de conceitos básicos e suposições teóricas.”

6. A neurofisiologia, a fisiologia e certas partes da psicologia estão muito adiante da


física contemporânea no sentido de que conseguem fazer da discus são de fundamentos uma
parte essencial até da pesquisa mais específica. Os conceitos nunca se estabilizam de todo mas
permanecem abertos e são eluci dados, ora por uma, ora por outra teoria. Não há indicação de
que o progresso é estorvado pela atitude mais “filosófica” que, de acordo com Kuhn, funda -
menta um procedimento dessa natureza (cf. este volume, p. 11). (Desse modo a falta de
clareza acerca da idéia de percepção conduziu a muitas investigações empíricas interessantes,
algumas das quais deram resultados de todo inesperados e muitíssimo importantes. Cf.
Epstein, Varieties of Perceptual Learning, 1967, mormente as pp. 6-18.) Muito ao contrário,
encontramos uma consciência maior dos limites do nosso conhecimento, da sua conexão com a
natureza humana, e encontramos também uma familiaridade maior com a história do tema e
a capacidade não só de registrar, mas também de usar ativamente idéias passadas para o
avanço de problemas contemporâneos. Não devemos admitir que tudo isso contraste de modo
muito favorável com a dedicação sem humor e com o estilo constipado de uma ciência
“normal”?

246
co propósito é referir “wie es wirklich gewesen” sem implicar que as
características referidas são dignas de imitação? E se este é o único propósito do
trabalho, por que então o constante mal-entendido, e por que o estilo ambíguo e,
de vez em quando, altamente morali- zante?
Aventuro-me a conjeturar que a ambigüidade é pretendida e que Kuhn
deseja explorar plenamente suas potencialidades propa - gandísticas. Deseja, de
um lado, dar um apoio sólido, objetivo e his tórico a julgamentos de valor que
ele, como muitas outras pessoas, parece considerar arbitrários e subjetivos. Por
outro lado, deseja deixar para si mesmo uma segunda linha segura de retirada: os
que desgostam da derivação implícita de valores a partir de fatos sempre poderão
ouvir dizer que essa derivação não se faz e que a apresen tação é puramente
descritiva. Minha primeira série de perguntas, portanto, é a seguinte: por que a
ambigüidade? Como deve ela ser interpretada? Qual é a atitude Kuhn para com a
espécie de seguidores que descrevi? Não terão eles sabido lê -lo? Ou são os
legítimos seguidores de uma nova visão da ciência?

3. SOLUÇÃO E ENIGMAS COMO CRITÉRIO DE CIÊNCIA


Deixemos de lado o problema da apresentação e suponhamos que o
objetivo de Kuhn seja, com efeito, dar apenas uma descrição de acontecimentos
históricos e instituições influentes.
De acordo com essa interpretação, é a existência de uma tradição de
solução de enigmas que, de fato, aparta as ciências de outras atividades. Aparta -
as de modo “muito mais seguro e mais direto”, de maneira “ao mesmo tempo. . .
menos equívoca e. . . mais funda mental”, 7 do que outras propriedades mais
recônditas que as ciências também possuem. Mas se a existência de uma tradição
de solução de enigmas é tão essencial, a ocorrência dessa propriedade unifica e
caracteriza uma disciplina específica e bem reconhecível; nesse caso não vejo
como poderemos excluir de nossas considerações, digamos, a filosofia de Oxford
ou, para tomar um exemplo ainda mais extremo, o crime organizado.
Pois tudo indica que o crime organizado é a solução de enigmas par
excellence. Todo enunciado feito por Kuhn a respeito da ciência normal
permanece verdadeiro quando substituímos “ciência normal” por “crime
organizado”; e todo enunciado que ele escreveu acerca

7. Cf. este volume, p. 12.

247
do “cientista” individual aplica-se com a mesma força, digamos, ao arrombador
de cofres individual.
O crime organizado mantém a pesquisa fundacional em um ní vel mínimo 8
embora haja indivíduos notáveis, como Dillinger, que introduzem idéias novas e
revolucionárias. 9 Conhecendo mais ou menos, em suas linhas gerais, os
fenômenos que devem ser esperados, o arrombador de cofres profissional “deixa
de ser um explorador. . . ou, pelo menos, um explorador do desconhecido
[supõe-se, afinal de contas, que ele conheça todos os tipos existentes de cofres].
Ao invés disso, luta para. . . concretizar o conhecido [isto é, descobrir as
idiossincracias do cofre com que está lidando], destacando para essa tarefa
muitos aparelhos especiais e muitas adaptações especiais da teoria”. 10 Segundo
Kuhn, o malogro da consecução reflete-se, por certo, “na competência do
[arrombador de cofres] aos olhos dos colegas de profissão” 11 de modo que “é o
indivíduo [o arrobador de cofres] e não a teoria vigente [do eletromagnetismo,
por exemplo] que está sendo posto à prova” 12 ; “só o profissional é censurado,
não os seus instrumentos” 1:1 — e assim podemos continuar passo a passo, até o
derradeiro item da lista de Kuhn. A situação não melhora pelo fato de
assinalarmos a existência de revoluções. Primeiro, porque estamos lidando com a
tese de que é a ciência normal que se caracteriza pela atividade de solução de
enigmas. E, segundo, porque não há razão para acreditar que o crime organizado
ficará para trás no domínio das principais dificuldades. De mais a mais, é a
pressão derivada do número sempre crescente de anomalias que leva, primeiro a
uma crise, depois a uma revolução; e quanto maior a pressão, tanto mais cedo
ocorrerá a crise. Ora, pode-se esperar que a pressão exercida sobre os membros
de uma gangue e seus “colegas profissionais” excede as pressões exercidas sobre
o cientista — este último dificilmente terá de haver-se com a polícia. Para onde
quer que olhasse — a distinção que desejamos traçar não existe.

8. Cf. o ensaio de Kuhn de1961 intitulado: "The Function of Dogma


in Scientific Research”, p. 357.
9. Dillinger aprimorou consideravelmente a técnica dos assaltos aos ban
cos encenando ensaios gerais com modelos em tamanho natural dos bancos que pretendia
assaltar e que construía em sua fazenda. Refutou,por esse modo,
o “Pioneirismo não Compensa” de Andrew Carnegie.
10. Kuhn, “The Function of Dogma in Scientific
Research”,
11. Neste1961, p. 363.
volume,p. 15; cf.também p.
12 e nota de pé de pág. n.° 7,
à p. 9. 12. Neste volume,p. 9.
13. Neste volume,p. 12; cf. também o
livro de Kuhn, The Structure
of Scientific Revolutions, 1962, p. 79.
248
É claro que isto não constitui surpresa. Pois Kuhn, tal como o
interpretamos agora e como ele mesmo muitas vezes deseja ser inter pretado,
deixou de fazer uma coisa importante. Deixou de discutir a finalidade da ciência.
Todo criminoso sabe que, além de obter êxito em sua profissão e ser popular
entre os criminosos seus semelhantes, ele deseja uma coisa: dinheiro. Também
sabe que sua atividade criminosa normal lhe dará exatamente isso. Sabe que
receberá mais dinheiro e subirá mais depressa na escada profissional quanto
melhor solucionador de enigmas se revelar e quanto melhor se ajustar à
comunidade criminosa. Sua finalidade é o dinheiro. Qual é a finalidade do
cientista? E, tendo em vista essa finalidade, a ciência normal poderá conduzir a
ela? Ou os cientistas (e os filósofos de Oxford) serão menos racionais do que os
gatunos por “fazerem o que fazem” independentemente de qualquer finalidade?
14
São essas as perguntas que se formulam quando desejamos restringir-nos ao
aspecto puramente descritivo do relato de Kuhn.

4. A FUNÇAO DA CIÊNCIA NORMAL

A fim de responder a essas perguntas precisamos considerar não só a


estrutura real da ciência normal kuhniana, mas também sua função. A ciência
normal, diz ele, é uma pressuposição necessária das revoluções.
De acordo com essa parte do raciocínio a atividade vulgar asso ciada à
ciência “madura” exerce efeitos de longo alcance — não só sobre o conteúdo de
nossas idéias, mas também sobre sua substan- cialidade. Tal atividade, tal
preocupação com “minúsculos enigmas” conduz a um rigoroso ajustamento entre
a teoria e a realidade, e precipita o progresso. Isso acontece por várias razões.
Em primeiro lugar, o paradigma aceito orienta o cientista: “Como demonstrará
um olhar dirigido a qualquer história natural baconiana ou a um apa nhado do
desenvolvimento pré-paradigmático de qualquer ciência, a natureza é tão
complexa que não pode ser estudada nem aproximada mente ao acaso”. 15 Esse
ponto não é novo. A tentativa de criar conhecimento necessita de orientação, não
pode começar do nada. Mais especificamente, necessita de uma teoria, um ponto
de vista que per

14. "Estou fazendo o que estou fazendo” era uma observação favorita de Austin.

15. Kuhn, "The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 363

249
mita ao pesquisador separar o relevante do irrelevante, e que lhe mostre as áreas
em que a pesquisa será mais proveitosa.
A essa idéia comum adiciona Kuhn um toque específico pessoal. Ele
defende não só o uso de suposições teóricas, mas também a escolha exclusiva de
um conjunto particular de idéias, a preocupação monomaníaca com um ponto de
vista isolado. E defende tal modo de proccdcr porque este último desempenha
um papel na ciência real tal como ele a vê. Eis aí a ambigüidade entre a
descrição e a recomendação, de que já tratamos. Mas defende-o também por uma
segunda razão, um pouco mais recôndita por não terem sido explici tadas as
preferências que se escondem atrás dela. Defende-o por acreditar que sua
adoção acabará conduzindo à derrubada do mes- míssimo paradigma a que os
cientistas se restringiram em primeiro lugar. Se falhar até o esforço mais
adequado para ajustar a natureza às suas categorias; se se frustrarem
repetidamente as expectativas muito definidas, criadas por essas categorias,
então seremos forçados a procurar algo novo. E só não somos forçados a fazê -lo
por uma discussão abstrata de possibilidades que não toca a realidade, mas é
antes guiada por nossas simpatias e antipatias 18 ; somos forçados a fazê-lo por
processos que estabeleceram íntimo contato com a natureza e, portanto, em
última instância, pela própria natureza. Os debates da pré-ciência com sua crítica
universal e sua proliferação desinibida de idéias são “freqüentemente dirigidos
assim aos membros de outras escolas como. . . à natureza”. 17 A ciência matura,
sobretudo nos períodos tranqüilos que antecedem imediatamente a tempestade,
parece dirigir-se tão-somente à natureza e pode, portanto, esperar uma resposta
definida e objetiva. A fim de obter essa resposta precisamos de mais do que de
uma coleção de fatos reunidos a esmo. Mas também precisamos de mais do que
de uma discussão interminável de ideologias diferentes. O que precisamos é a
aceitação de uma teoria e a tentativa inexorável de ajustar a natureza ao seu
padrão. Creio ser esta a principal razão por que a rejeição, por uma ciência
madura, da batalha desinibida entre ■ alternativas seria defendida por Kuhn não
só como fato histórico, mas também como movimento racional. É aceitável essa
defesa?

16. “Se qualquer um oferece conjecturas acerca da verdade das coisas partindo da
mera possibilidade da hipótese, não vejo como se pode determinar a certeza em qualquer
ciência; pois é sempre possível engenhar hipóteses, uma depois da outra, que conduzem,
segundo se verifica, a novas dificuldades” (Newton, Carta a Pardies, de 10.6.1672).

17. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 1962, p. 13.

250
5. TRES DIFICULDADES DO RACIOCÍNIO FUNCIONAL

A defesa de Kuhn é aceitável contanto que as revoluções sejam desejáveis e


contanto que o modo particular com que a ciência nor mal conduz às revoluções
também seja desejável.
Ora, não vejo como a desejabilidade das revoluções pode ser estabelecida
por Kuhn. As revoluções ocasionam uma mudança de paradigma. Seguindo,
porém, o relato feito por Kuhn dessa mudança, ou “transferência de gestalt"
como ele lhe chama é impossível dizer que elas conduziram a algo melhor. É
impossível dizê-lo porque os paradigmas pré-revolucionários e pós-
revolucionários são frequentemente incomensuráveis. 18 Esta, para mim, seria a
primeira dificuldade do raciocínio funcional usado em conexão com o resto da
filosofia de Kuhn.
Em segundo lugar, temos de examinar o que Lakatos denominou “estrutura
fina” da transição: ciência normal/revolução, capaz de revelar elementos que não
desejamos tolerar. Tais elementos nos forçariam a considerar maneiras diferentes
de provocar uma revolução. Assim sendo é perfeitamente imaginável que
cientistas abandonem um paradigma por efeito da frustraç ão e não por terem
argumentos contra ele. (Matar os representantes do status quo seria outra maneira
de acabar com um paradigma. 19 ) Como procedem realmente os cientistas? E
como desejaríamos nós que eles procedessem? Um exame dessas perguntas leva a
uma segunda dificuldade do raciocínio funcional.
No intuito de mostrá-la tão claramente quanto possível, consideremos
primeiro os seguintes problemas metodológicos: É possível dar razões para
proceder como procede, segundo Kuhn, a ciência nor mal, isto é, tentando
aferrar-se a uma teoria apesar da existência de uma evidência prima jacie,
refutadora de argumentos contrários lógicos e matemáticos? E presumindo -se
que seja possível dar tais razões — será possível abandonar a teoria sem violar
as mencionadas razões?
Nas linhas que se seguem chamarei ao conselho para escolher, dentre certo
número de teorias, a que promete conduzir aos resulta

18. Cf. mais adiante, seção 9.


19. É assim que as doutrinas religiosas ou as doutrinas políticas eram
freqüentemente substituídas. O princípio subsiste ainda hoje, conquanto o assassinato já não
seja o método aceito. O leitor deve também refletir no reparo de Max Planck segundo o qual
as velhas teorias desaparecem porque morrem os seus defensores.
dos mais proveitosos, e ao conselho para aferrar-se a essa teoria, ainda que as
dificuldades reais que ela encontre sejam consideráveis, o princípio da
tenacidade. 20 O problema, pois, é como defender, esse princípio, e como mudar
nossa fidelidade aos paradigmas de modo que seja compat ível com ele ou talvez
até ditado por ele. Não nos esqueçamos que estamos aqui lidando com um
problema metodológico e não com a questão de saber como procede realmente a
ciência. Lidamos com ele porque esperamos que sua discussão nos aguce a
percepção histórica e nos conduza a interessantes descobertas históricas.
Agora a solução do problema é direta. O princípio da tenaci dade é
racional porque as teorias são capazes de desenvolvimento, porque podem ser
melhoradas, e porque podem finalmente ser ca pazes de acomodar as
mesmíssimas dificuldades que, em sua forma original, se mostravam totalmente
incapazes de explicar. Ademais,

20. Essa formulação do princípio foi sugerida por uma objeção levanta da por Isaac
Levi contra uma versão anterior.
O princípio de tenacidade, tal como foi formulado no texto, não deve ser confundido
com a regra de tenacidade de Putnam (Putnam, “ ‘Degree of Confirmation’ and Inductive
Logic", 1963, p. 772). Pois ao passo que a regra de Putnam exige que uma teoria seja
conservada “a não ser que ela se torne incompatível com os dados" (o grifo é dele), a
tenacidade, tal como Kuhn e eu a compreendemos, exige que ela seja conservada ainda que
haja dados incompatíveis com ela. Essa versão mais forte cria problemas que não aparecem
na metodologia de Putnam e que, sugiro eu, só poderão ser resolvidos se es tivermos
preparados para utilizar uma multiplicidade de teorias mutuamente incompatíveis a
qualquer momento do desenvolvimento do nosso conhecimento. Parece-me que nem Kuhn
nem Putnam estão preparados para dar esse passo. Mas enquanto Kuhn vê a necessidade de
usar alternativas (veja mais adiante) Putnam exige que o número delas seja sempre reduzido
a um ou a zero (ibid. pp. 770 e seguintes).
Lakatos diverge do relato apresentado no texto em dois sentidos. Distingue entre
teoria e programas de pesquisa. E só aplica a tenacidade aos programas de pesquisa.
Ora, se bem eu admita que a distinção e o uso que ele faz dela possam aumentar a
clareza, continuo inclinado a permanecer fiel ao meu termo “te oria”, muito mais vago, (sobre
uma explicação parcial desse termo, cf. minha nota de rodapé n.° 5, “Reply to Criticism”,
1965) que tanto abrange ac “teorias” quanto os “programas de pesquisa” de Lakatos, para
ligá-lo com tenacidade, e eliminar de todo as formas mais simples de refutação. Uma razão
dessa preferência é dada pelo próprio Lakatos: até simples refutações envol vem uma
pluralidade de teorias (veja especialmente o seu ensaio neste volume, pp. 147 e seguintes).
Outra razão é a minha crença de que só a interação ativa de "teorias” diferentes gera o
progresso, o que, naturalmente, presume que o componente “programa de pesquisa” não
aparece de vez em quando, mas está presente o tempo todo (cf. também mais adiante, seção
9).

252
não é muito prudente confiar demasiado em resultados experimentais. Seria,
com efeito, uma surpresa completa e até motivo de suspeita se toda a evidência
disponível viesse a sustentar uma única teoria, mes mo que acontecesse ser essa
teoria verdadeira. Experimentadores diferent es estão sujeitos a cometer erros
diferentes e é preciso geralmente que se passe muito tempo antes que todas as
experiências sejam reduzidas a um denominador comum. 21 A esses argumentos
em favor da tenacidade, o Professor Kuhn ajuntaria que uma teoria ta mbém
fornece critérios de perfeição, de malogro, de racionalidade, e que se deve
sustentá-la o maior tempo possível, a fim de manter o discurso racional o maior
tempo possível. O ponto mais importante, todavia, é este: quase nunca acontece
sexem as teorias comparadas diretamente “aos fatos” ou “à evidência”. O que
conta e o que não conta como evidência relevante geralmente depende da teoria
bem como de outros temas que podem ser convenientemente denomina dos
“ciências auxiliares” (“teorias que servem como pedra de toque” é a acertada
expressão de Imre Lakatos 22 ). Tais ciências auxiliares podem funcionar como
premissas adicionais na derivação de enunciados testáveis. Mas também podem
contaminar a própria linguagem de observação, fornecendo os conceitos em
cujos termos se expressam os resultados experimentais. Desse modo, um teste
da concepção coperniciana envolve, de um lado, suposições relativas à
atmosfera terrestre, o efeito do movimento sobre o objeto movido (dinâmica); e,
de outro, envolve suposições tocantes à relação entre a experiência dos sentidos
e “o mundo” (incluindo as teorias da cog- nição e as da visão telescópica).
As primeiras suposições funcionam como premissas, ao passo que as
últimas determinam quais são as impressões vcrídicas e, assim, nos permitem
não só avaliar mas também constituir nossas observações. Ora, não há garantias
de que uma mudança fundamental em nossa cosmologia, como, por exemplo, a
mudança de um ponto de vista geostático para um ponto de vista heliostático,
caminhará de mãos dadas com um aprimoramento de todos os assuntos
auxiliares pertinentes. Ao contrário: esse desenvolvimento é sumamente impro -
vável. Quem esperaria, por exemplo, que a invenção do copercia - nismo e do
telescópio fosse logo seguido pela ótica fisiológi ca apro

21. Foi preciso que se passassem uns vinte e cinco anos para que as perturbações da
repetição da experiência de Michelson e Morley por D. C. Miller fossem explicadas de modo
satisfatório. H. A. Lorentz havia desistido, desesperado, muito antes dis so.

22. Cf. o seu ensaio de 1968, “Changes in the Problem of Inductive Logic”.

253
priada? Teorias básicas e assuntos auxiliares estão muitas vezes “em
desacordo”. Em decorrência disso, obtemos instâncias refutadoras que não
indicam que uma nova teoria está fadada ao fracasso, mas apenas que não se
ajusta por enquanto ao resto da ciência. Sendo esse o caso, os cientistas devem
desenvolver métodos que lhes permitam reter suas teorias em face de fatos
refutadores evidentes e sem ambigüidades, ainda que não sejam eminentes
explicações testá- veis para o choque. O princípio da tenacidade (ao qual só dou
o nome de “princípio” por motivos mnemônicos) é um primeiro passo na
construção de tais métodos. 23
Tendo adotado a tenacidade, já não podemos empregar fatos re calcitrantes
para remover uma teoria, T, ainda que os fatos sejam tão evidentes e diretos
quanto a própria luz do dia. Mas podemos usar outras teorias, 7”, T”, T’”, etc.,
que acentuam as dificuldades de T se bem prometam, ao mesmo tempo, meios
para a sua solução. Nesse caso, a eliminação de T é exigida pelo próprio
princípio da tenacidade. 24 Daí que, se a nossa finalidade é a mudança de
paradigmas, devemos estar preparados para introduzir e expressar alterna tivas
de T ou, como o diremos (novamente por motivos mnemônicos), precisamos
estar preparados para aceitar um princípio de proliferação. Proceder de acordo
com esse princípio é um método de precipitar revoluções. É um método racional.
Mas é o método que a ciência realmente usa? Ou os cientistas se mantêm fiéis
aos seus paradigmas até o fim e até que a repulsa, a frustração e o tédio lhes
impossibilitem de todo continuar? Que é o que acontece no fim de um período
normal? Vemos que nosso pequeno conto de fadas me todológico nos leva, com
efeito, a encarar a história com a vista aguçada.
Lamento dizer que não me satisfaz o que Kuhn tem para ofere cer neste
ponto. De um lado, ele enfatiza com firmeza os traços dóg-

23. Sobre pormenores relativos à “diferença de fase” entre as teorias e as ciências


auxiliares correspondentes, cf. meu trabalho intitulado “Problems in Empiricism, part 2”. A
idéia já ocorre no ensaio de Lakatos de 1963 -4, “Proofs and Refutations”; é um lugar-comum
para Lenin e Trotsky (cf. meu ensaio de 1969, “Problems in Empiricism, part 2").

24. Claro está que essa não é toda a história — mas este esboço é mais do que
suficiente para o nosso propósito.Observe -se que o argumento de Kuhn em favor da
tenacidade (necessidade de um fundo racional de raciocínio) também não é violado, visto que
a melhor teoria também fornecerá, natural mente, melhores padrões de racionalidade e
excelência.
máticos, 25 autoritários 26 e tacanhos 27 da ciência normal, o fato de que ela conduz
a um temporário “fechamento da mente” 28 que o cientista que dele participa
“deixa em grande parte de ser um explorador. . .ou, pelo menos, um explorador
do desconhecido. Em lugar disso, ele luta para articular e concretizar o
conhecido...” 29 de sorte que “é [quase sempre] o cientista individual, muito mais
do que [a tradição de solução de enigmas, ou até alguma] teoria vigente que está
sendo testada”. 30 “Só o profissional é censurado, seus ins trumentos, não.” 31 Ele
compreende, naturalmente, que uma ciência específica, como a física, pode
conter mais de uma tradição para a solução de enigmas, mas ele lhe enfatiza a
“quase independência”, afirmando que cada uma delas é “guiada por seus
próprios paradigmas e enfrenta seus próprios problemas”. 32 Por conseguinte,
uma só tradição será guiada por um só paradigma. Este é um lado da his tória.
De outro lado, ele assinala que a solução de enigmas é substi tuída por
argumentos mais “filosóficos” assim que se faz a escolha “entre teorias
concorrentes”. 33
Ora, se a ciência normal é de facto tão monolítica quanto o quer Kuhn, de
onde vêm as teorias concorrentes? E se estas efetivamente surgem, por que
haveria Kuhn de levá-las a sério e permitir- lhes que provoquem uma mudança
do estilo argumentativo do “científico” (solução de enigmas) para o
“filosófico”? 34 Lembro-me muito bem de que Kuhn criticou Bohm por haver
perturbado a uniformidade da teoria quântica contemporânea. Não se permitiu à
teoria de Bohm que modificasse o estilo argumentativo. Einstein, que Kuhn
menciona na citação acima, tem permissão para fazê-lo, talvez porque sua teoria
esteja agora mais bem entrincheirada que a de Bohm. Significa isso, porventura,
que se permite a proliferação contanto que as alternativas concorrentes estejam
bem entrincheiradas? Mas a pré-

25. Kuhn, “The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 349.


26. Ibid. p. 393.
27. Ibid. p. 350.
28. Ibid. p. 393.
29. Kuhn, “The Function of Dogma in ScientificResearch”, 1961, p. 363.
30. Neste volume, p. 9.
31. Neste volume, p. 12; cf. também Kuhn, The Structure ofScientific
Revolutions, p. 79.
32. Kuhn, "The Function of Dogma in Scientific Research”, 1961, p. 388.
33. Neste volume, p. 12.
34. “Filosófico” no sentido de Kuhn (e de Popper) e não no sentido, digamos, da
filosofia lingüística contemporânea.

255
-ciência, que possui exatamente essa característica, é considerada inferior à
ciência. De mais a mais, a física do século XX contém uma tradição que deseja
isolar a teoria geral da relatividade do resto da física, e restringi -la ao muito
amplo. Por que Kuhn não sustentou essa tradição, que está de acordo com sua
concepção da “quase independência” dos paradigmas simultâneos?
Inversamente, se a existência de teorias concorrentes envolve uma mudança do
estilo argumen- tativo, não devemos duvidar dessa pretensa quase
independência? Não fui capaz de encontrar nos escritos de Kuhn uma resposta
satisfatória a essas perguntas.
Levemos o ponto um pouco mais adiante. Kuhn não se limitou a admitir
que a multiplicidade das teorias modifica o estilo de argu mentação. Também
atribuiu uma função definida à multiplicidade. Mostrou mais de uma vez, 35 em
perfeita harmonia com nossas breves observações metodológicas, que as
refutações são impossíveis sem a ajuda das alternativas. Ademais, descreveu
com alguns pormenores o efeito de aumento que têm as alternativas sobre as
anomalias e explicou o modo com que esse aumento produz revoluções. 36 Disse,
portanto, que os cientistas criam revoluções de acordo com o nosso
modelozinho metodológico e não seguindo inexoravelmente um para digma e
abandonando-o de repente quando os problemas se agigantam.

Tudo isso conduz agora, sem perda de tempo, à dificuldade nú mero três, a
saber, à suspeita de que a ciência normal ou “madura”, tal como foi descrita por
Kuhn, não é sequer um fato histórico.

6. EXISTE A CIÊNCIA NORMAL?


Relembremos o que até aqui descobrimos ter sido afirmado por Kuhn. Em
primeiro lugar, ele asseverou que as teorias não podem ser refutadas senão com
a ajuda de alternativas. Em segundo lugar, afiançou que a proliferação também
representa um papel histórico

35. Cf. o ensaio de Kuhn de 1961 intitulado "Measurement in Modern Physical


Science” e também o meu reconhecimento no meu ensaio, “Explana - tion, Reduction and
Empiricism”, de 1962, p. 32.
36. Um distúrbio de menor importância, ainda acessível ao tratamento, pode ver -se,
de outro ponto de vista, como exemplo contrário, e assim, como causa de crise” (Kuhn, The
Structure of Scientific Revolutions, p. 79). “A proposta astronômica de Copérnico... criou
uma crise crescente para... o paradigma de que ela se originara” (ibid. p. 74; o grifo é meu).
“Os paradigmas não são corrigíveis pela ciência normal de maneira alguma” (ibid. p. 121; o
grifo é meu).

256
no derrubamento de paradigmas. Paradigmas têm sido derrubados mercê do modo
com que as alternativas têm ampliado as anomalias existentes. Finalmente, Kuhn
mostrou que as anomalias existem em qualquer ponto da história de um
paradigma. 37 A idéia de que as teorias são inatacáveis durante decênios e mesmo
durante séculos, até surgir uma grande refutação que as derruba —- essa idéia,
afirma ele, não passa de um mito. Ora, se isso é verdade, por que não damos
início imediatamente à proliferação e nunca permitimos que uma ciência normal
venha a existir? E será excesso de otimismo esperar que os cientistas pensam
dessa maneira e que os períodos normais, se alguma vez existiram, não possam
haver durado muito tempo e não possam haver-se estendido tampouco por
campos extensos? Um rápido olhar dirigido a um exemplo, como o último
século, mostra que este parece ter sido efetivamente o ca so.
No segundo terço desse século existiam, pelo menos, três paradigmas
diferentes e mutuamente incompatíveis. Eram eles: (1) o ponto de vista mecânico,
que encontrou expressão na astronomia, na teoria cinética, nos vários modelos
mecânicos da eletrodinâmica, assim como nas ciências biológicas, sobretudo na
medicina (aqui a influência de Helmholtz foi fator decisivo); (2) o ponto de vista
ligado à invenção de uma teoria do calor independente e fenomenológica, que
finalmente se revelou incompatível com a mecânica; (3) o ponto de vista
implícito na eletrodinâmica de Faraday e Maxwell, desenvolvido e libertado dos
seus concomitantes mecânicos por Hertz.
Ora, esses diferentes paradigmas estavam longe de ser “quase
independentes”. Ao contrário, foi a ativa interação deles que acarretou a queda
da física clássica. As dificuldades que conduziram à teoria especial da
relatividade não poderiam ter nascido sem a tensão que existia entre a teoria de
Maxwell, de um lado, e a mecânica de Newton, de outro (Einstein de screveu a
situação em termos maravilhosamente simples em sua autobiografia; Weyl
apresentou um relato igualmente breve, porém mais técnico, em Raum, Zeit,
Materie; Poincaré já se refere a essa tensão em 1899, e depois novamente em
1904, em sua conferência de St. Louis). Nem era possível utilizar o fenômeno do
movimento browniano para uma refutação direta da se gunda lei da teoria
fenomenológica. 38 A teoria cinética tinha de ser

37. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 1962, pp. 80 e seguintes e p. 145.

38. Cf. minha discussão na seção VI do meu ensaio de 1965, “Problems of


Empiricism”.

257
apresentada desde o princípio. Aqui, mais uma vez, seguindo Boltz - mann,
Einstein mostrou o caminho. As investigações que prepararam o terreno para a
descoberta do quantum de ação, para mencionar outro exemplo, juntaram
disciplinas diferentes, incompatíveis e, às vezes, até incomensuráveis como a
mecânica (a teoria cinética tal como foi usada na derivação de Wien da sua lei
da radiação), a termodinâmica (o princípio de Boltzmann da igual distribuição
de energia por todos os graus de liberdade) e a ótica ondulatória; e elas teriam
sofrido um colapso houvesse sido a “quase independência” desses assuntos
respeitada por todos os cientistas. Claro está que nem tod o o mundo participou
dos debates e a grande maioria pode ter continuado a lidar com os seus
“minúsculos enigmas”. Entretanto, se levarmos a sério o que o próprio Kuhn nos
ensina, não foi essa atividade que originou o progresso, mas a atividade da
minoria prolife- radora (e dos experimentadores que atenderam aos problemas
da minoria e às suas estranhas predições). E podemos perguntar se a maioria não
continua solucionando os velhos enigmas através das próprias revoluções. Mas
se isto é verdade, o relato de Kuhn que separa temporalmeníe períodos de
proliferação e períodos de monis- mo desmorona completamente. 39

7. EM DEFESA DO HEDONISMO
Parece, portanto que a interação entre a tenacidade e a proliferação que
descrevemos em nosso pequeno conto de fadas me todológico é também um traço
essencial do desenvolvimento real da

39. Poder-se-á objetar que a atividade de resolução de enigmas, embora insuficiente


para provocar uma revolução, é necessária, pois cria o material que acaba conduzindo à
dificuldade: a resolução de enigmas é responsável por algumas condições de que depende o
progresso científico. Os pré-socráticos que progrediram (suas teorias não se limitaram a
mudar, foram também aprimoradas) sem dar a menor atenção a enigmas refutam essa
objeção. Está visto que eles não produziram o padrão: ciência normal-revolução-ciência
normal- revolução, etc., em que a estupidez profissional é periodicamente substituída por
explosões filosóficas só para voltar de novo a um “nível mais elevado”. Não há dúvida, porém,
de que esta é uma vantagem, que nos permite ter a mente aberta durante o tempo todo e não
apenas no meio de uma catástrofe. Além disso — não é a “ciência normal” cheia de “fatos” e
“enigmas” qUe pertence, não ao paradigma vigente, mas a alguns predecessores? E não se dá
também o caso de fatos anômalos serem freqüentemente apresentados pelos críticos de um
paradigma, em lugar de serem usados por eles como ponto de partida da crítica? E se isso é
verdade, disso não se segue que a proliferação, muito mais que o padrão normalidade-
proliferação-normalidade, caracteriza a ciência? De modo que a posição de Kuhn seria não só
metodologicamente insustentável (veja a seção anterior) mas também historicamente falsa?

258
ciência. Parece que não é a atividade de solução de prob lemas a responsável pelo
crescimento do nosso conhecimento, mas a ativa interação de várias concepções
sustentadas com tenacidade. Além disso, a invenção de novas idéias e a tentativa
de assegurar-lhes um lugar digno na competição conduzem ao derrubamento de
velhos e familiares paradigmas. Essa atividade inventiva ocorre durante o tempo
todo. Entretanto, a atenção só se volta para ela durante as revoluções. Essa
mudança da atenção não reflete nenhuma mudança estrutural profunda (como,
por exemplo, a transição do soluciona- mento de problemas para a especulação
filosófica e o teste dos fundamentos). Não é nada mais que uma mudança de
interesse e publicidade.
Esta é a imagem da ciência que emerge da nossa breve análise. Será uma
imagem atraente? Tornará ela proveitosa a busca da ciência? Ser-nos-á benéfica
a presença de tal disciplina, o fato de termos de viver com ela, estudá -la,
compreendê-la, ou será ela talvez capaz de corromper-nos o entendimento e
diminuir-nos o prazer?
É muito difícil hoje em dia abordar essas questões com o espírito certo. O
proveitoso e o não-proveitoso são determinados em tão grande extensão pelas
instituições e formas de vida existentes que dificilmente chegamos a uma
avaliação correta dessas mesmas instituições. 40 As ciências especialmente estão
rodeadas de uma aura de perfeição que susta qualquer indagação sobre o seu
efeito benéfico. Usam-se com liberalidade frases como “busca da verdade” ou “o
mais alto objetivo da humanidade”. Elas enobrecem, sem dúvida, o seu objeto,
mas também o afastam do terreno da discussão crítica (Kuhn deu mais um passo
nessa direção, conferindo dignidade até à parte mais cacete e corriqueira da
atividade científica: a ciência normal). Entretanto, por que se haveria de permitir
a um produto do engenho humano que ponha fim às mesmíssimas perguntas a
que ele deve sua existência? Por que haveria a existência desse produto de
impedir-nos de formular a pergunta mais importante de todas: até que ponto
aumentou a felicidade dos seres humanos e até que ponto au mentou a sua
liberdade? O programa sempre foi logrado pela son dagem de formas de vida bem
entrincheiradas e bem fundadas com valores impopulares e infundados. Foi
assim que o homem, pouco a pouco, se libertou do medo e da tirania dos
sistemas não-examinados.

40. Os filósofos analíticos modetnos estão tentando mostrar que essa avaliação é até
logicamente impossível. Nisto são apenas seguidores de Hegel — com uma diferença: falta-
lhes o saber, a perceptividade e o espírito do mestre.

259
Nossa pergunta, portanto, é a seguinte: que valores escolheremos pa ra sondar as
ciências de hoje?
Afigura-se-me que a felicidade e o pleno desenvolvimento de um ser
humano é agora, como sempre foi, o mais alto valor possível. Esse valor não
exclui os valores que fluem de formas institucionalizadas de vida (verdade,
coragem, altruísmo, etc.). Antes, os encoraja mas apenas até o ponto em que
podem contribuir para o avanço de algum indivíduo. O que se exclui é o uso de
valores institucionalizados para a condenação, ou talvez até a eliminação, dos
que preferem arranjar suas vidas de maneira diferente. O que se exclui é a
tentativa de “educar” crianças de maneira que percam seus múltiplos talentos, de
modo que fiquem restritas a um domínio estreito de pensamento, ação e emoção .
Adotando esse valor básico desejamos uma metodologia e um conjunto de
instituições que nos permitam perder o menos possível do que somos capazes de
fazer e nos obriguem o menos possível a desviar-nos de nossas implicações
naturais.
Ora, o pequeno conto de fadas metodológico que esboçamos na seção n.° 6
diz que a ciência que tenta desenvolver nossas idéias e emprega meios racionais
para a eliminação até das conjecturas mais fundamentais precisa um princípio de
tenacidade juntamente com um princípio de proliferação. Urge que lhe permitam
reter idéias em face de dificuldades; e urge que lhe permitam apresentar novas
idéias ainda que as concepções populares pareçam plenamente justificadas e sem
defeitos. Descobrimos também que a ciência real ou, pelo me nos, a parte da
ciência real responsável pela mudança e pelo pro gresso, não é muito diferente
do ideal esboçado no conto de fadas. Mas esta é deveras uma feliz coincidência!
Estamos agora de pleno acordo com nossos desejos expressos acima! A
proliferação significa que não há necessidade de suprimir nem o mais estranho
produto do cérebro humano. Todos podem seguir suas inclinações e a ciência,
concebida como empreendimento crítico, aproveitará essa atividade.
Tenacidade: significa que se estimula a pessoa não só a seguir apenas suas
inclinações, mas também a desenvolvê-las, a erguê-las, com a ajuda da crítica
(que envolve uma comparação com as alternativas existentes) a um nível mais
elevado de expressão e, por esse modo, a erguer-lhes a defesa a um nível mais alto
de consciência. A interação entre a proliferação e a tenacidade também im porta
na continuação, num novo nível, do desenvolvimento biológico da espécie e
pode até aumentar a tendência para mutações biológicas úteis. Pode ser o único
meio possível de impedir que nossa espécie se estagne. Para mim, este é o
argumento final e mais importante

260
contra a “ciência madura” descrito por Kuhn. Tal empreendimento não é só mal
concebido e inexistente; sua defesa é também incompa tível com uma visão
humanitária.

8. UMA ALTERNATIVA: O MODELO DA MUDANÇA


CIENTIFICA DE LAKATOS
Permitam-me agora apresentar em sua totalidade a imagem da ciência que,
no meu entender, deve substituir o relato de Kuhn.
Essa imagem é a síntese das duas descobertas seguintes. Primei ro, contém a
descoberta de Popper de que a ciência progride pela discussão crítica de visões
alternativas. Segundo, contém a descoberta de Kuhn da função da tenacidade que
ele expressou, erroneamente a meu ver, mediante o postulado da existência de
períodos de tenacidade. A síntese consiste na afirmação de Lakatos (desenvolvi -
da em seus próprios comentários sobre Kuhn) de que a proliferação e a
tenacidade não pertencem a períodos sucessivos da história da ciência, mas estão
sempre co-presentes.il
Quando falo em “descoberta” não quero dizer que as idéias mencionadas
são inteiramente novas, ou que agora aparecem numa forma nova. Muito ao
contrário. Algumas dessas idéias são tão velhas quanto montanhas. A idéia de
que o conhecimento progride através de uma luta de visões alternativas e que ele
depende da proliferação foi primeiro aventada pelos pré -socráticos (isso foi en-
fatizado pelo próprio Popper) e depois desenvolvida numa filosofia geral por
Mill (especialmente em On Liberty). A idéia de que uma luta de alternativas é
decisiva para a ciência também foi apresentada por Mach (Erkenntnis und lrrtum)
e Boltzmann (veja suas Populaer- wissensschaftliche Vorlesungen), principalmente
sob o impacto do darwinismo. A necessidade de tenacidade foi enfatizada pelos
materialistas dialéticos que objetaram a vôos “idealísticos” extremos da
imaginação. E a síntese, finalmente, é a própria essência do materia - lismo
dialético na forma em que este aparece nos escritos de Engels, Lenin e Trotsky.
Pouca coisa a esse respeito sabem os filósofos “analíticos” ou “empiristas” de
hoje, que ainda sofrem muito a influência

41. Creio que a análise de Lakatos pode ser ainda aperfeiçoada se se abandonar a
distinção entre teorias e programas de pesquisa (cf. mais acima, p. 252, nota de rodapé n.°
20) e se admitir a incomensurabilidade (saltando da quantidade para a qualidade na
linguagem do materialismo dialético). Melhorada dessa maneira, seria um relato
verdadeiramente dialético do nosso conhecimento.

261
do Círculo de Viena. Considerando esse contexto estreito, embora “moderno”,
podemos falar, portanto, em “descobertas” genuínas, se bem que muito
atrasadas.
No entender de Kuhn, a ciência madura é uma sucessão de períodos
normais e revoluções. Os períodos normais são monísticos; os cient istas tentam
resolver enigmas resultantes da tentativa de ver o mundo em função de um único
paradigma. As revoluções são plura- lísticas até que emerge um novo paradigma
que ganha apoio suficiente para servir de base a um novo período normal.
Esse relato deixa sem resposta núm problema: como se pro cessa a
transição de um período normal para uma revolução? Na se ção n.° 6 indicamos
que a transição pode ser conseguida de um modo razoável: compara -se o
paradigma central com as teorias alternativas. O Profess or Kuhn parece ser da
mesma opinião. De mais a mais, ele mostra que é isso o que realmente acontece.
A proliferação já se manifesta antes da revolução e serve de instrumento à sua
produção. Mas isso significa que o relato original é falso. A proliferação n ão
começa com a revolução; precede-a. Alguma imaginação e um pouco mais de
pesquisa histórica mostram que a proliferação não só precede imediatamente as
revoluções, mas também se acha presente durante o tempo todo. A ciência que
conhecemos não é uma sucessão temporal de períodos normais e períodos de
proliferação; é a sua justaposição.
Vista desse modo, a transição da pré-ciência para a ciência não substitui a
proliferação desinibida nem a crítica universal da primeira pela tradição de
solução de enigmas de uma ciência normal. Completa-a com essa atividade ou,
para expressá-lo ainda melhor, a ciência madura une duas tradições muito
diferentes que estão com freqüência separadas, a tradição da crítica filosófica
pluralística e uma tradição mais prática (e menos humanitária — veja a seção 8)
que explora as possibilidades de um material dado (de uma teoria; de um pedaço
de matéria) sem ser impedida pelas dificuldades que podem surgir e sem dar
atenção a maneiras alternativas de pensar (e de agir). Aprendemos com o
Professor Popper que a primeira tradição está intimamente ligada à cosmologia
dos pré-socráticos. A segunda é melhor exemplificada pela atitude dos membros
de uma sociedade fechada em relação ao seu mito básico. Kuhn conjeturou que a
ciência madura consiste na sucessão desses dois modelos diferentes de
pensamento e ação. Ele está certo na medida em que notou o elemento normal,
conservador ou anti-humanitário. Esta é uma

262
descoberta genuína. Mas está errado na medida em que representou erroneame nte
a relação entre esse elemento e os processos mais filo sóficos (isto é, críticos).
Sugiro, de acordo com o modelo de Laka- tos, que a relação correta é uma
relação de simultaneidade e interação. Falarei, portanto, do componente normal e
do componente filosófico da ciência e do período normal e do período da
revolução.
Parece-me que um relato dessa natureza supera muitas dificul dades, tanto
lógicas quanto fatuais, que tomam o ponto de vista de Kuhn tão fascinante mas,
ao mesmo tempo, tão insatisfatório. 42 Ao considerá-lo não deveria
desencaminhar-nos o fato de o componente normal quase sempre pesar mais do
que a sua parte filosófica. Pois o que estamos investigando não é o tamanho de
certo elemento da ciência, mas sua função (um homem só pode revolucionar uma
época). Nem devemos ficar excessivamente impressionados pelo fato de que a
maioria dos cientistas consideraria o componente “filosófico" situado fora da
ciência propriamente dita e poderia apoiar essa atitude mostrando a própria falta
de agudeza filosófica. Pois não são eles que realizam o aprimoramento
fundamental mas os que promovem a interação ativa do componente normal e do
componente filosófico (essa interação consiste quase sempre na crítica do que
está bem entrincheirado e é não-filosófico pelo que é periférico e filosófico).
Ora, admitindo-se tudo isso, por que parece existir uma flutuação definida no
estado da ciência? Se a ciência consiste na cons tante interação entre uma parte
filosófica; se é essa interação que a faz progredir, por que os elementos
revolucionários só se tornam visíveis em raras ocasiões como essas? Não é este
simples fato histórico suficiente para apoiar o relato de Kuhn sobre o meu? Não
é típico sofisma filosófico negar um fato histórico tão óbvio?
Creio que a resposta a essa pergunta é evidente. O componente normal,
grande, está bem entrincheirado. Daí que uma mudança do componente normal
seja muito notável. Assim também é a sua re

42. Para tornar apenas um exemplo, Kuhn escreve (neste volume, p. 11) que “os
profissionais são treinados para a prática normal e não para a prática extraordinária da
ciência; se se mostram, apesar disso, eminentemente bem - -sucedidos no suplantar e no
substituir as teorias de que depende a ciência normal, essa é uma singularidade que p recisa
ser explicada”. É, sem dúvida, uma singularidade no relato de Kuhn. Em nosso relato só
precisamos chamar a atenção para o fato de serem as revoluções feitas, em sua maioria, por
membros do componente filosófico que, embora cônscios da prática normal , são também
capazes de pensar de maneira diferente (no caso de Einstein a capacidade autoprofessada de
escapar do treinamento normal era essencial à sua liberdade de pensamento e a suas
descobertas).

263
sistência à mudança. Ela se torna especialmente forte e notável nos períodos em
que a mudança parece iminente. É dirigida contra o componente filosófico e o
traz à consciência pública. A geração mais jovem, sempre ansiosa por coisas
novas, apodera-se do novo material e estuda-o com avidez. Os jornalistas,
sempre à espreita de manchetes — quanto mais absurdas, melhor — fazem
publicidade das novas descobertas (que são os elementos do componente
filosófico que discordam mais radicalmente das concepções vigentes enquanto
ainda possuem alguma plausibilidade e talvez até algum apoio fatual). Estas são
algumas razões das diferenças que percebemos. Não creio que devamos procurar
algo mais profundo.
Ora, no que tange à mudança do próprio componente normal não há razão
para esperar que ele siga um modelo clarament e reconhecível e lógico. Kuhn,
como outros filósofos antes dele (estou aqui pensando principalmente em Hegel)
presume que uma mudança histórica tremenda precisa exibir uma lógica própria
e que a mudança de uma idéia deve ser razoável no sentido de que ex iste um elo
entre o fato da mudança e o conteúdo da idéia que está mudando. Eis aí uma
suposição plausível enquanto lidamos com pessoas razoadas: as mu danças do
componente filosófico, muito provavelmente, podem ser explicadas como o
resultado de argumentos claros e sem ambigüidade. Mas presumir que pessoas
que habitualmente resistem à mudança; que carregam o cenho a qualquer crítica
feita a coisas que lhes são caras; e cujo propósito mais elevado é solucionar
enigmas numa base não-co- nhecida nem compreendida; presumir que pessoas
assim modificarão sua fidelidade de um modo razoável é levar o otimismo e a
busca da racionalidade longe demais. Os elementos normais, isto é, os que têm o
apoio da maioria, podem mudar porque a geração mais jovem não pode dar -se ao
incômodo de seguir seus maiores; ou porque alguma figura pública mudou de
idéia; ou porque algum membro influente do estabelecimento morreu e não
deixou atrás de si (talvez em razão de sua natureza suspicaz) uma escola forte e
influente, ou porque uma instituição poderosa e não-científica impele o
pensamento numa direção definida. 43 As revoluções, portanto, são as
manifestações

43. Ê plausível presumir que uma das causas da transição para a ciência madura
com suas várias tradições “quase independentes” d eve ser procurada no decreto da Igreja
Católica Apostólica Romana contra o ponto de vista coperniciano. “Isso há de ser levado em
conta pelos que tentam explicar o desenvolvimento especial das muitas ciências individuais e
a ausência de uma base filosófica consciente e segura considerando-a como peculiaridade da
cultura italiana do século XVII... Uma interpretação dessa natureza presume...

264
exteriores de uma mudança do componente normal que não pode ser
responsabilizado de nenhum modo razoável. São a s ubstância de anedotas,
embora aumentem e tomem visíveis os elementos mais ra cionais da ciência,
ensinando-nos desse modo o que a ciência poderia ser se houvesse por perto
pessoas mais razoadas.

9. O PAPEL DA RAZAO NA CIÊNCIA


(1) Até agora critiquei Kuhn de um ponto de vista quase idêntico ao de
Lakatos. (Existem algumas ligeiras diferenças, tais como minha relutância em
separar teorias e programas de pesquisa, 41 mas não se fará caso delas. Quando
falo em “teorias” sempre me refiro a teorias e/ou programas de pes quisa.) Quero
agora defender Kuhn contra Lakatos. Mais especialmente, quero sustentar que a
ciência é, e deveria ser, mais irracional do que Lakatos e Feyerabend, (o autor
popperiano 3 das seções precedentes deste ensaio e dos “Problemas do
Empirismo”) estão preparados para admitir. 45
A transição da crítica para a defesa não quer dizer que mudei de idéia.
Nem pode ela ser completamente explicada pelo meu cinis mo vis-à-vis da
questão da filosofia da ciência. Liga-se antes à natureza da própria ciência, à sua
complexidade, ao fato de que ela tem

que a condenação de Galileu foi apenas uma pressão externa, que não poderia ter influído no
desenvolvimento de assuntos espirituais. Entretanto, consi derou-se o julgamento romano
como restrição de consciência que só se poderia quebrar com risco de vida e da salvação...
Era permitido o desenvolvimento de disciplinas individuais. Ninguém foi impedido de
esquadrinhar os céus, estudar os fenômenos físicos, pensar matematicamente... e promover a
cultura material por meio de uma atividade dessa natureza. Sacerdotes e ordens religiosas, e
até os jesuítas, responsáveis pelo destino de Galileu, exer ceram, diligentes, essas tarefas
restritas. Mas a consciência individual, assim como os onipresentes “directeurs de
conscience”, os funcionários, as escolas, as igrejas, o Estado observavam com cuidado essa
luta simples pelo saber a fim de que ninguém se atrevesse a utilizar -lhe os resultados na
especulação filosófica". (Leonardo Olschki, Gerschinchte der neusprachlichen
wissenschaftli- chen Literatur, 3, Galilei und seine Zeit, 1927, p. 400). Foi assim que a
“ciência madura" veio a existir, pelo menos nos países católicos. Cf. também o capítulo IX de
Galileo und sein Kamp für die Kopernikanische Lehre, 2, 1926, de
Wohlwill, onde o desenvolvimento depois da morte de Galileu é esboçado
com minúcias.

44. Cf. mais acima, p. 252, nota de pé de página n.° 20.


45. Os índices são projetados como crítica irônica de Lakatos, “Criti-
cism and the Methodology of Scientific Research Programmes”, 1968, em que foi apresentada
pela primeira vez a prática de dividir um sujeito em três. (Cf. também neste volume, p. 224.)
Essa prática criou muita confusão e retardou os filósofos que tentavam encontrar os pontos
fracos do racionalismo crítico.

265
aspectos distintos, de que não pode ser prontamente separada do resto da
história, de que sempre utilizou e continua a utilizar todos os talentos e todas
as sandices do homem. Argumentos contrários trazem à luz características
diferentes que ela contém, desafiam-nos a tomar uma decisão, desafiam-nos a
aceitar esse monstro de muitas caras e ser devorados por ele, ou a mudá-lo de
acordo com nossos desejos. Vejamos agora o que se pode dizer contra o
modelo do crescimento, científico de Lakatos.
(2) O falseacionismo ingênuo julga (isto é, aceita ou condena) uma
teoria assim que ela é introduzida na discussão. Lakatos dá tempo à teoria,
permite que ela se desenvolva, permite que ela mostre sua força oculta, e só a
julga “depois de muito tempo”. Os “padrões críticos” que emprega
46
proporcionam um intervalo de hesitação. São aplicados “a posteriori” , São
aplicados depois da ocorrência das transferências “progressivas” ou
“degenerativas” do problema.
Agora é fácil ver que os padrões desse gênero só têm força prática
quando combinados com um limite de tempo (o que parece uma transferência
degenerativa do problema pode ser o começo de um período muito mais longo
de progresso). Mas introduza-se o limite de tempo e o argumento contra o
falseacionismo ingênuo reaparece apenas com uma modificação sem
importância (se lhe é permitido esperar, por que não espera um pouquinho
mais?) Dessa maneira, os padrões que Lakatos deseja defender ou são vãos —
não se sabe quando devem ser aplicados — ou podem ser criticados por
motivos muito semelhantes ao que conduziram a eles em primeiro lugar.
Em tais circunstâncias pode fazer-se uma de duas coisas. Pode- se parar
de apelar para padrões permanentes, que permanecem em vigor em todo o
correr da história e governam todos os períodos isolados de d esenvolvimento
científico e toda transição de um período para outro. Ou podem reter-se tais
padrões como ornamento verbal, como lembrete de tempos mais felizes, quando
ainda se julgava possível dirigir um negócio complexo, e não raro
catastrófico, como a ciência seguindo umas poucas regras simples e
“racionais”. Tudo faz crer que Lakatos deseja escolher a segunda alternativa.
(3) Escolher a segunda alternativa significa abandonar padrões
permanentes de fato embora os retendo em palavras. De fato, a posição de
Lakatos agora parece idêntica à de Popper tal como foi sin

46. Neste volume, pp. 164. 194 e 214.

266
tetizada num adendo maravilhoso (porque autodestrutivo) da quarta edição da
Opeti Society, 47 Segundo Popper não “precisamos de nenhum . . . sistema
definido de referência para a nosa crítica”, pode mos até revisar as regras mais
fundamentais e abandonar as exigências mais fundamentais se surgir a
necessidade de uma medida diversa de estimação. 48 É irracional essa posição?
Supõe ela que a ciência é irracional? Sim e não. Sim — porque já não existe um
conjunto isolado de regras que nos guie através de todas as curvas e voltas da
história do pensamento (ciência), quer como participantes, quer como
historiadores que desejam reconstruir-lhe o curso. Pode-se, naturalmente, forçar
a história num modelo dessa natureza, mas os resul tados serão sempre mais
pobres e muito menos interessantes do que foram os acontecimentos reais. Não
— porque cada episódio particular é racional no sentido de que alguns dos seus
traços podem ser explicados em função de razões aceitas ao tempo da sua
ocorrência, ou inventadas no decurso do seu desenvolvimento. Sim — porque
nem essas razões lógicas que mudam de uma idade para outra bas tam a explicar
todas as características importantes de determinado episódio. Precisamos
acrescentar acidentes, preconceitos, condições materiais (como a existência de
um tipo particular de vidro num país e não em outro), as vicissitudes da vida de
casados, inadvertên- cia, superficialidade, orgulho, e muitas outras coisas para
se obter um quadro completo. Não — porque transportados para o clima do
período que é objeto de consideração e dotados de uma inteligência viva e
curiosa, podemos ter tido ainda mais para dizer, podemos ter tentado superar
acidentes e “racionalizar” até a mais caprichosa seqüência de acontecimentos.
Mas — e agora chegamos a um ponto decisivo — como se realizará a transição
de certos padrões para outros padrões? Mais especialmente, que acontece a
nossos padrões (em contraposição às nossas teorias) durante um período de
revolução? São mudados à maneira popperiana, por uma discussão crítica de
alternativas, ou existem processos que desafiam uma análise racio nal? Essa é
uma das perguntas formuladas por Kuhn. Vejamos a resposta que pod emos dar-
lhe!
(4) O próprio Popper enfatizou que os padrões não são sem pre adotados
na base do argumento. As crianças, diz ele, “aprendem a imitar os outros. . . e,
assim, aprendem a considerar padrões de comportamento como se estes
consistissem em regras fixas, ‘da

47. Popper, “Fact, Standards, and Truth: a further criticism of relati - vism”, 1961, p.
388.
48. Loc. cit. p. 390.

267
das’. . . e coisas como simpatia e imaginação podem representar um papel
importante nesse desenvolvimento”. 49 Considerações semelhantes aplicam-se aos
adultos que desejam continuar aprendendo que estão decididos a expandir seus
conhecimentos e sua sensibilidade. Não podemos presumir, por certo, que o que
é possível no caso de crianças — deslizar, à menor provocação, para padrões de
reação inteiramente novos — deveria estar fora do alcance de adultos e
inacessível a uma das mais notáveis atividades adultas, a ciência. Além diso, é
provável que mudanças catastróficas, freqüente desa pontamento de expectativas,
crises no desenvolvimento do nosso conhecimento se modifiquem e talvez
multipliquem os padrões de reação (incluindo os padrões de argumentação)
exatamente como uma crise ecológica multiplica as mutações. Isso pode ser um
processo inteiramente natural, como aumentar de tamanho, e a única função do
discurso racional talvez consista em aumentar a tensão mental que precede e
causa a explosão comportamental. Ora — não é exatamente esta a espécie de
mudanças que podemos esperar em períodos de revolução científica? Não
restringe ela a eficácia dos argumentos (exceto como agente causativo que
conduz a desenvolvimentos muito diferentes do que é exigido pelo seu
conteúdo)? A ocorrência de uma mudança dessa natureza não mostra que a
ciência, que faz parte da evolução do homem, não é nem pode ser inteiramente
racional? Pois se há acontecimentos, e não necessariamente argumentos que nos
fazem adotar novos padrões, não caberá aos defensores do status quo fornecer,
além dos argumentos, causas contrárias? E se as velhas formas de argumentação
se revelam uma causa contrária demasiado fraca, não devem elas desistir ou
recorrer a meios mais fortes e mais “irracionais”? (É muito difícil, e talvez
inteiramente impossível, combater os efeitos de uma lavagem cerebral por meio
de argumentos.) Até o racionalista mais puritano se verá forçado a deixar os
argumentos e a usar, digamos, propaganda, não porque alguns dos seus
argumentos deixaram de ser válidos, mas porque as condições psicológicas que
lhe permitem argumentar eficazmente e influenciar os outros desapareceram. E
que adianta um argumento que deixa as pessoas indiferentes?
(5) Considerando perguntas como essas um popperiano respon derá que
novos padrões, com efeito, podem ser descobertos, inven tados, aceitos,
comunicados aos outros de maneira muito irracional, mas que sempre resta a
possibilidade de criticá-los depois que forem

49. Loc. cit. p. 390.

268
adotados, e que essa possibilidade mantém racional o nosso conheci mento. “Em
que, então, devemos coníiar?” pergunta Popper depois de uma anális e de
posíveis fontes de padrões. 50 “Que devemos aceitar? A resposta é: devemos
confiar apenas provisoriamente no que quer que aceitemos, recordando sempre
que estamos de posse, na melhor das hipóteses, da verdade (ou correção) parcial,
e fadados a incorrer pelo menos em algum erro ou julgamento incorreto em
algum lugar — não só com respeito a fatos mas também com res peito aos
padrões adotados; em segundo lugar, só devemos confiar (ainda que
provisoriamente) em nossa intuição se tivermos chegado a ela em c onseqüência
de muitas tentativas para usar a imaginação, de muitos erros, de muitos testes, de
muitas dúvidas e da crítica investigadora.”
Ora, essa referência a testes e à crítica que se supõe garanta a
racionalidade da ciência e, talvez, de toda a nossa vida tanto pode relacionar-se
a processos bem definidos, sem os quais é imposível dizer que ocorreu uma crítica
ou um teste, quanto pode ser puramente abstrata, de sorte que nos cabe a tarefa
de preenchê-la ora com este, ora com aquele conteúdo. O primeiro caso acaba de
ser discutido. No segundo temos apenas um ornamento verbal, exata mente como
a defesa feita por Lakatos de seus próprios “padrões objetivos” e se revelou um
ornamento verbal. As perguntas da seção n.° 4 permanecem não -respondidas em
qualquer um dos casos.
(6) De certo modo essa situação também foi descrita por Pop per, para o
qual o “racionalismo está necessariamente longe de ser compreensivo ou auto -
suficiente”. 51 Mas Kuhn não pergunta se há limites para a razão; a questão
resume-se em saber onde estão situados esses limites. Estão fora das ciências, de
modo que a própria ciência permanece inteiramente racional, ou as mudanças
irracionais são uma parte essencial até da atividade mais racional já inventada
pelo homem? O fenômeno histórico “ciência” contém ingredientes que desafiam
uma análise racional? O objetivo abstrato de chegar mais perto da verdade pode
ser alcançado de modo inteiramente racional, ou é talvez inacessível aos que
decidem contar apenas com a argumentação? Tais são os problemas que devemos
enfrentar agora.
(7) Considerando esses problemas adicionais, Popper e Lakatos rejeitam
a “psicologia das multidões” 52 e afirmam o caráter racional

50. Loc. cit. p. 391.


51. Popper, The Open Society and its Enemies, 1945, capítulo 24.
52. Neste volume, p. 220.

269
de toda ciência. De acordo com Popper é possível chegar a um jul gamento sobre
qual das duas teorias está mais próxima da verdade, ainda que as teorias
tivessem sido separadas por uma sublevação catastrófica, como uma revolução
científica. (A teoria T estará mais próxima da verdade do que a teoria 7”, se a
classe das conseqüências verdadeiras de 7”, o chamado conteúdo de verdade de
T’, exceder a classe das conseqüências verdadeiras de T sem aumento do conteú-
do de falsidade.) De acordo com Lakatos, as características aparentemente
desarrazoadas da ciência só ocorrem no mundo material e no mundo do
pensamento (psicológico); estão ausentes do “mundo das idéias, do ‘terceiro
mundo’ de Platão e de Popper”. 53 É nesse terceiro mundo que se verifica o
crescimento do saber e que se torna possível um julgamento racional de todos os
aspectos da ciência. Cumpre assinalar, todavia, que o cientista, infelizmente,
também lida com o mundo da matéria e do pensamento (psicológico) e que as
regras que criam ordem no terceiro mundo podem ser totalmente inadequa das à
criação da ordem nos cérebros dos seres humanos vivos (a não ser que esses
cérebros e suas características estruturais sejam coloca dos no terceiro mundo,
circunstância que o relato de Popper não deixa muito clara). 54 Os numerosos
desvios do caminho reto da racionalidade, que observamos na ciência atual, bem
podem ser necessários se quisermos alcançar o progresso com o material
quebradiço e indigno de confiança (instrumentos, cérebro, etc.) que temos a
nossa disposição.
Não há necessidade, contudo, de levar mais adiante a objeção. Não há
necessidade de argumentar que a verdadeira ciência pode diferir da sua imagem
do terceiro mundo precisamente nos sentidos qu possibilitam o progresso. 55 Pois o
modelo popperiano de um enfoque da verdade ruirá até nos limitarmos
exclusivamente a idéias. Ruirá porque existem teorias incomensuráveis.

53. Neste volume, p. 222.


54. Aqui me refiro aos ensaios de Popper intitulados “Epistemology without a
Knowing Subject” e "On the Theory of the Objective Mind”, am bos de 1968. No primeiro se
atribuem ninhos de passarinho ao “Terceiro Mundo” (p. 341) e presume -se uma interação
entre eles e os mundos restantes. São atribuídos ao Terceiro Mundo por causa da sua
função. Mas também se encontram pedras e rios nesse terceiro mundo, pois um pássaro pode
pousar numa pedra ou banhar-se num rio. Em realidade, tudo o que é notado por algum
organismo (e, portanto, desempenha um papel em seu Umwelt) será encontrado no terceiro
mundo que conterá, por conseguinte, todo o mundo material e todos os erros que a
humanidade cometeu. Conterá também a “psicologia das multidões”.

55. Cf. meu ensaio “Problems in Empiricism, part 2", de 1969.


(8) Com a discusão da incomensurabilidade, chego a um ponto da
filosofia de Kuhn que aceito com entusiasmo. Refiro-me à sua afirmativa de que
os paradigmas sucessivos só podem ser avaliados com dificuldade e que eles
podem ser de todo incomparáveis, pelo menos na medida em que estão em jogo
os padrões mais familiares de comparação (eles podem ser prontamente
comparáveis cm outros sentidos). Não sei qual de nós foi o primeiro a usar o
termo “inco- mensurável" no sentido usado aqui. Aparece no livro de Kuhn,
Struc- titre of Scientific Revolutions. e em meu ensaio “Explanation, Rc- duetion,
and Empiricism”, ambos aparecidos cm 1962. Ainda me lembro de que me senti
maravilhado diante da harmonia presta- belecida que nos fez não só defender
idéias semelhantes mas também usar as mesmas palavras para expressá -las. É
claro que a coincidência está longe de ser misteriosa. Eu tinha lido os primeiros
rascunhos do livro de Kuhn e discutira o conteúdo com o próprio autor. Nessas
discussões ambos concordamos em que novas teorias, embora fossem
freqüentemente melhores e mais minuciosas do que as prcdecessoras, nem
sempre eram tão ricas que pudessem lidar com todos os problemas a que sua
predecessora dera uma resposta definida e precisa. O crescimento do
conhecimento ou. mais especificamente, a subs tituição de uma teoria
compreensiva por outra tanto envolve perdas quanto ganhos. Kuhn gostava de
comparar a concepção científica do mundo do século XVII com a filosofia
aristotélica. ao passo que eu usava exemplos mais recentes, como a teoria da
relatividade e a teoria quântica. Vimos também que poderia ser dificílimo
comparar teorias sucessivas da maneira habitual, isto é, através dc um exame
tias classes dc conseqüências. O esquema aceito foi o seguinte { f i g . 7 ): 7 é
suplantada por 7". 7" explica por que 7 falha onde falha (em /•'): explica
também por que T foi, pelo menos em parte, bem-sucedida (em S ) \ e faz
predições adicionais. ( A ) . Ora, para que esse esquema

Fig. 1 Fig. 2

271
funcione é preciso que haja enunciados que se seguem (com ou sem a ajuda de
definições e/ou de hipóteses de correlação) tanto de T quanto de 7”. Casos há,
porém que convidam a um julgamento comparativo sem satisfazer às condições
que acabamos de expor. A relação entre tais teorias é a que se vê na Fig. 2. 58
Um julgamento que envolva uma comparação de classes de conteúdos é agora
claramente impossível. Não se pode dizer, por exemplo, que T está mais
próximo ou mais afastado da verdade do que T.
(9) Como exemplo de duas teorias incomensuráveis discutamos
brevemente a mecânica celeste clássica (CM) e a teoria especial da relatividade
(SR). Para começar, é mister enfatizar que a pergunta “CM e SR são
incomensuráveis?” não é completa. As teorias podem ser interpre tadas de
maneiras diferentes. Elas serao comen- suráveis em algumas interpretações,
incomparáveis em outras. O ins- trumentalismo, por exemplo, torna
comensuráveis todas as teorias relacionadas com a mesma linguagem de
observação e interpretadas nessa base. Por outro lado, desejando apresentar um
relato unificado de questões observáveis e inobserváveis, um realista empregará
os termos mais abstratos de qualquer teoria que esteja estudando com esse fim.
O processo é inteiramente natural. SR, como nos sentirí amos inclinados a dizer,
não se limita a convidar-nos a repensar o comprimento, a massa e a duração
inobservados', ela parece encerrar o caráter relacionai de todos os comprimentos,
massas e durações, observados ou inobservados, observáveis ou inobserváve is.
Ora, a extensão dos conceitos de uma nova teoria T a todas as suas conse-
qüências, incluindo os relatórios observacionais, pode mudar tanto a
interpretação das conseqüências que elas desaparecem das classes de
conseqüência de teorias anteriores. Essas teorias anteriores serão, então,
incomensuráveis com T. A relação entre SR e CM é um caso ilustrativo. O
conceito de comprimento usado em SR e o conceito de comprimento
pressuposto em CM são diferentes. São ambos relacionais, e muito complexos
(considere-se a determinação do comprimento em função do comprimento de
ondas de uma linha espectral especificada). Mas o comprimento relativista (ou a
forma relativista) envolve um elemento ausente do conceito clássico e é, em
princípio, excluído dele. 57 Envolve a velocidade relativa do objeto em tela em

56. A área debaixo de 7” deveria ser imaginada como se jazesse defronte da área
debaixo de T, ou atrás dela, de modo que não há sobreposição.
57. É possível basear as estruturas de espaço e tempo unicamente nesse no vo
elemento e evitar a contaminação por modos anteriores de pensar. A única coisa que
precisamos fazer é substituir distâncias por tempos -luz e tratar os intervalos de tempo da
maneira relativista, por exemplo, usando o Cálculo-K.

272
algum sistema de referência. É verdade que o esquema relativista amiúde nos dá
números praticamente idênticos aos que obtemos de CM — mas isso não torna os
conceitos mais semelhantes. Nem o caso c —»eo (ou v —»co ) que dá predições
rigorosamente idênticas pode ser usado como argumento para mostrar que os
conceitos precisam coincidir pelo menos neste caso: magnitudes diferentes ba -
seadas em conceitos diferentes podem dar valores idênticos cm suas

(Cf. o capítulo II do 'ensaio de Synge intitulado “Introduction to General Relati vity", de


1964. Sobre o cálculo-K, cf. o livro de Bondi publicado em
1967 Assumption ad Myth in Physical Theory, pp. 29 e seguintes, bem como o capítulo
XXVI da obra de Boiim publicada em 1965, The Special Theory of Relativity). Os conceitos
resultantes (de distância, velocidade, tempo, etc.) são uma parte necessária da relatividade no
sentido de que todas as idéias ulteriores. como a do comprimento definido pelo transporte de
hastes rígidas precisam ser mudadas e adaptadas a eles. Eles bastam, portanto, para ex plicar
a relatividade.
Marzke e Wheeler, cm seu ensaio de 1963. “Gravitation and Geometry: the geometry of
space-time and geometrodynamical standard meter", apresen taram um relato
circunstanciado da maneira com que a leoria da relatividade pode ser libert ada de
ingredientes externos. Adotam o princípio, que atribuem a Bohr c Rosenfeld, de "que toda
teoria adequada deve prover por si mesma aos próprios meios para definir as quantidades
com que lida. De acordo com esse princípio, à relatividade geral clássic a cumpriria admitir
aferições de espaço e tempo livres de qualquer referência ao quantum de ação [para re lógios
atômicos ou distâncias mínimas|" ou "hastes rígidas" como as descri tas, digamos, pela teoria
não-relativisla da elasticidade (p. 48). Eles passam a construir relógios c medidores que só
usam as propriedades das trajetórias da luz e da partícula inerte (pp. 53 -6). A igualdade das
distâncias medidas por esses relógios e medidores é intransitiva num universo clássico,
transitiva num universo relativista. Os resultados das medidas de distância desse tipo são
invariantes de translações num universo relativista, porém menos invarian - tcs num universo
clássico. Dois acontecimentos diferentes são sempre separa dos por uma distância finita num
universo relativista. mas nem sempre são tão separados num universo clássico. A unidade de
mensuração no universo relativista é o intervalo entre os dois equinócios efetivos de 1900 e
pode ser comparada com qualquer intervalo (espacial ou temporal) de um modo inva - riante.
Nenhuma comparação dessa natureza é possível no caso clássico (p. 62). O número 3.10 x
nunca aparece. A importância dos raios de luz e do cone de luz na geometria intrínseca da
física vem mais diretamente à super fície. A verdadeira função da velocidade da luz já não se
confunde com a tarefa trivial de relacionar duas unidades separadas de intervalo, o metro e o
segundo, de origem puramente histórica e acidental" (p. 56). A teoria da relatividade geral,
portanto, como se vê, “provê aos próprios meios de definir intervalos de espaço e tempo" (p.
62) e os intervalos assim definidos são incomensuráveis com os intervalos clássicos.
A falta de espaço não nos permite apresentar com detalhes este caso interessante, mas
espera-se que os que giram em torno do problema da inco- mnsurabilidade se utilizem de
Marzke e Wheeler como base para uma discus são concreta.

273
respectivas escalas sem deixar de ser magnitudes diferentes (a mesma
observação aplica-se à tentativa de identificar a massa clássica com a massa
relativa em repouso). 58 Tomada seriamente, essa disparidade conceituai
contamina até as situações mais “ordinárias”: o conceito relativista de certa
forma, como uma mesa, ou de certa seqüência temporal, como eu dizer “sim”,
também diferirá do conceito clássico correspondente. Será, portanto, vão esperar
que derivações suficientemente longas possam fazer-nos voltar às idéias mais
velhas. 59 As classes de conseqüência de SR e CM relacionam-se entre si como
na Fig. 2. Não se pode fazer uma comparação de conteúdo nem um julgamento
de verossimilhança.
(10) No que se segue discutirei umas poucas objeções que têm sido
erguidas, não contra esta análise particular da relação entre SR e CM, mas
contra a própria possibilidade, ou desejabilidade de teorias incomensuráveis
(quase todas as objeções contra a incomensu- rabilidade são desse tipo geral).
Elas expressam idéias metodológicas que precisamos criticar se quisermos
aumentar nossa liberdade vis-à- vis das ciências.
Uma das objeções mais populares procede da versão de realismo que
acabei de descrever em (9). “Um realista”, dissemos, “deseja apresentar um
relato unificado de questões observáveis e inobservá - veis, e empregará os
termos mais abstratos de qualquer teoria que esteja considerando para esse fim.”
Empregará esses termos a fim de dar significado a sentenças de observação, ou a
fim de substituir- lhes a interpretação costumeira (por exemplo, usará as idéias
de SR a fim de substituir a costumeira interpretação de CM dos enunciados
cotidianos acerca de formas, seqüências temporais, etc.). Contra isso se assinala
que os termos teóricos recebem sua interpretação por

58. Sobre este ponto e sobre argumentos adicionais, cf. o livro de Ed - dington, The
Mathematical Theory of Relativity (1924), p. 33.
59. Isto liquida uma objeção que John Watkins levantou em várias
ocasiões.
60. Sobre outros pormenores, especialmente relativos ao conceito de massa, à função
das “leis de ponte” ou "regras de correspondência”, e ao modelo de duas linguagens, cf.
seção IV do meu ensaio de 1965, “Problems of Empiricism”. É claro que, dada a situação
descrita no texto, não podemos derivar a mecânica clássica da relatividade, nem mesmo
aproximadamente (por exemplo, não podemos derivar a lei clássica da conservação da massa
de uma lei relativista correspondente). A possibilidade de ligar as fórmulas das duas
disciplinas de modo capaz de satisfazer a um matemático puro (ou a um instrumentalista)
não está, porém, excluída. Sobre uma situação análoga no caso da mecânica quântica cf. a
seção n.° 3 do meu ensaio de 1968-9, “On a Recent Critique of Complementarity”. Cf.
também a seção n.° 2 do mesmo ensaio sobre considerações mais gerais.

274
estar ligados a uma linguagem observacional preexistente ou a outra teoria que já
esteve ligada a uma linguagem de observação dessa natureza e que, sem essa
conexão, eles são destituídos de conteúdo. Desse modo, afirma Carnap K1 que
“não há interpretação independente para Lt [a linguagem em função da qual se
formula certa teoria, ou certa concepção do mundo|. O sistema T [que consiste
nos axiomas da teoria e nas regras de derivação | é por si mesmo um sistema
postulado não-interpretado. [Seus] termos obtêm apenas uma interpretação
indireta e incompleta pelo fato de estarem alguns liga dos pelas [regras de
correspondência] C a termos observacionais”. Ora, se os termos teóricos não têm
“interpretação independente”, não podem ser usados para corrigir a interpretação
dos enunciados de observação, que é a sua única fonte de significado. Donde se
colhe que o realismo, tal como o descrevemos, é uma doutrina impossível.
A idéia orientadora que existe por trás dessa objeção é que não se podem
introduzir linguagens novas e abstratas de forma direta: elas precisam ser
ligadas primeiro a um idioma observacional já existente e presum ivelmente
estável. 1 ' 2
Essa idéia orientadora é imediatamente refutada pelo modo com que as
crianças aprendem a falar e com que os antropólogos e lin güistas aprendem a
linguagem desconhecida de uma tribo recém-des- coberta.
O primeiro exemplo é instrutivo por outras razões também, pois a
incomensurabilidade desempenha um papel importante nos primei ros meses do
desenvolvimento humano. Piaget e sua escola li:i ensinam que a percepção da
criança se desenvolve através de vários eslá-

61. Cf. Carnap, “The Methodological Character of Theorelical Concepts, 1956, p. 47.

62. Um princípio ainda mais conservador é às vezes usado quando se discute a


possibilidade de linguagens com uma lógica diferente da nossa. Assim, no ensaio que
escreveu em 1968, "Convencionalism a nd the Indeter- minacy of Translation”, discutindo, c
não apenas expondo o princípio, diz Strout que "qualquer possibilidade presumivelmente
nova precisa poder ajus tar-se ao nosso atual aparelho conceituai ou lingüístico, ou ser
compreendida em função desse aparelho”; disso se segue que “qualquer ‘alternativa’ é algu-
ma coisa que já compreendemos e que lem sentido para nós. ou não é nenhuma alternativa".
O que se passa por alto é que uma alternativa inicialmente não compreendida pode ser
aprendida do modo pelo qual aprendemos uma língua nova e não-familiar, não por tradução,
mas por vivermos com os membros da comunidade em que a língua é falada.

63. À guisa de exemplo, convida-se o leitor a consultar Piaget, The Construction o/


Reality in the Child, 1954.

275
dios antes de atingir a forma adulta, relativamente estável. Num está dio os
objetos parecem comportar-se como pós-imagens 64 — e são tratadas como tais:
a criança segue o objeto com os olhos até que este desaparece e não faz a
menor tentativa para recuperá-lo, ainda que isto requeira um esforço físico (ou
intelectual) mínimo; esforço, aliás, que já está dentro do alcance da criança.
Não há sequer uma tendência para procurar — e isso é muito apropriado,
“conceitual- mente” falando. Pois teria sido com efeito disparatado “procurar”
uma pós-imagem. Seu “conceito” não propicia uma operação dessa natureza.
A chegada do conceito e da imagem perceptual de objetos ma teriais
modifica dramaticamente a situação. Ocorre uma drástica re- orientação de
padrões comportamentais e, pelo que podemos conje- turar, de pensamento,
ainda existem pós-imagens ou coisas parecidas, mas são agora difíceis de
encontrar e precisam ser descobertas por métodos especiais (a palavra visual
anterior desaparece literalmente). Tais métodos procedem de um novo esquema
conceptual (as pós- -imagens ocorrem em seres humanos, não no mundo físico
externo, e estão presas a eles) e não podem conduzir de volta aos fenômenos
exatos do estádio prévio (a esses fenômenos deveria dar -se, portanto, um nome
diferente, como, por exemplo, “pseudo-pós-imagens”). Nem às pós-imagens,
nem às pseudo-pós-imagens se confere uma posição especial no mundo novo.
Elas, por exemplo, não são tratadas como evidência em que se supõe que repouse
a nova noção de um objeto material. Tampouco podem ser usadas para explicar
esta noção: as pós-imagens nascem juntamente com ele e estão ausentes da mente
dos que ainda não reconhecem objetos materiais; e as pseudo -pós- -imagens
desaparecem assim que se verifica tal reconhecimento. Cumpre admitir que todo
estádio posui uma espécie de “base” observa- cional, à qual se dá especial
atenção e da qual se recebe uma multi dão de sugestões. Entretanto, essa base (1)
muda de estádio para estádio; (2) faz parte do aparelho conceituai de
determinado estádio, e não é sua única fonte de interpretação.
Considerando desenvolvimentos como esses, podemos suspeitar que a
família dos conceitos cujo centro é o “objeto material” e a família dos conceitos
cujo centro são as “pseudo-pós-imagens” são incomensuráveis precisamente no
sentido que está sendo debatido aqui. É razoado esperar que mudanças
conceituais desse tipo ocorram

64. Piaget, The Construction of Reality in the Child (1954), pp. 5 e seguintes.

276
apenas na infância? Devemos acolher o fato — se é que se trata de um fato de
que um adulto está preso a um mundo perceptivo estável e a um sistema
conceituai estável, que o acompanha e que ele pode modificar de muitas
maneiras, mas cujos contornos gerais se imobili zaram para sempre? Ou não será
mais realista presumir que ainda são possíveis mudanças fundamentais, que
acarretam a incomensu- rabilidade, e que elas devem ser estimuladas a fim de
não licarmos excluídos para sempre do que pode ser um estádio superior de co -
nhecimento e consciência? Além disso, a questão da mobilidade do estádio
adulto, de qualquer maneira, é uma questão empírica que precisa ser atacada pela
pesquisei e não pode ser resolvida por um decreto metodológico. Uma tentativa
para transpor os limites de determinado sistema conceituai e escapar ao alcance
dos “óculos pop- perianos” 65 é parte essencial dessa pesquisa. 66
(11) Olhando agora para o segundo elemento da refutação — campo de
trabalho antropológico —- vemos que o que é aqui um anátema (e por bons
motivos) é ainda um princípio fundamental para os representantes
contemporâneos da filosofia do Círculo de Viena. De acordo como Carnap,
Feigl, Nagel e outros, os termos de uma teoria recebem sua interpretação, de
modo indireto, por estarem relacionados com um sistema conceituai diferen te,
que é uma teoria mais antiga ou uma linguagem de observação. 07 Não se adotam
as teorias mais antigas ou as linguagens de observação em virtude da sua
excelência teórica (não seria possível que o fossem: as teorias

65. Cf. o ensaio de Lakatos, neste volume, à p. 222, nota de pé de página n.° 335.

66. Sobre a condição da pesquisa formulada na última sentença, cf. a seção n.° 8 de
meu ensaio "Reply to Criticism", de 1965. Sobre o papel da observação, cf. a seção n.° 7 do
mesmo trabalho. Sobre a aplicação da obra de Piaget à física e, mais especialmente, à teoria
da relatividade, cf. o apêndice do livro de Bohm, The Special Theory oj Relativity (1965).
Bohm e Schu- macher também analisaram as diferentes estruturas informais que
fundamentam nossas teorias. Uma das principais conclusões da sua obra é que Bohr e
Einstein argumentaram de pontos dc vista incomensuráveis. Visto desse modo, o caso de
Einstein, Podolski c Rosen não pode refutar a interpretação de Copenhague, nem pode ser
refutado por ela. Temos assim duas teorias, uma que nos permite formular a experiência -
pensamento de Einstein-Podolski-Rosen, outra que não fornece a maquinaria necessária a
essa formulação, de modo que precisamos encontrar meios independentes de decidir qual
delas adotar. Sobre novos comentários acerca desse problema, cf. a seção n.° 9 do meu ensaio
"On a Recent Critique of Complementarity”, de 1968 -9.

67. Sobre o que se segue, veja também minha Crítica da "Structure of Science”, de
Nagel.

277
mais antigas são geralmente refutadas). Adotam-se porque “são usadas por uma
certa comunidade de linguagem como meio de comu nicação”.'’ 8 De acordo com
esse método, a frase “tendo uma massa relativista muito maior do que. . .” é
parcialmente interpretada ligando-a primeiro com alguns termos pré-relativistas
(termos clássicos; termos do senso comum) que são “comumente
compreendidos” (presumivelmente como o resultado de um ensino prévio em
conexão com métodos toscos de pesagem). Isso é até pior do que a exigência
outrora popular de esclarecer pontos duvidosos traduzindo-os para o latim.
Pois embora o latim fosse escolhido por ser mais preciso, mais claro e também
concepitualmente mais rico, do que os idiomas vulgares que evoluíam
lentamente, a escolha de uma linguagem de observação ou de uma teo ria mais
antiga como base da interpretação deve-se ao fato de serem eles
“antecedentemente compreendidos”, deve-se à sua popularidade. Além disso, se
os termos pré-relativistas, que estão muito distantes da realidade —
especialmente em vista do fato de procederem de uma teoria incorreta —
podem ser ensinados ostensivamente, por exemplo, com a ajuda de métodos
toscos de pesagem (e temos de presumir que eles podem ser ensinados dessa
maneira pois, caso contrário, todo o esquema desmorona) por que não
haveríamos de introduzir diretamente os termos relativistas, e sem a ajuda dos
termos de outro idioma? Finalmente, manda o simples senso comum que o
ensino, ou aprendizado, de linguagens novas e desconhecidas não seja
contaminado por material externo. Os lingüistas nos lembram que uma
tradução perfeita nunca é possível, ainda que usemos complexas definições
contextuais. Essa é uma das razões da importância do trabalho de campo
quando se aprendem novas linguagens a partir do zero e da rejeição, por
inadequado, de qualquer relato estribado na tradução (completa ou parcial).
Entretanto, o que se maldiz em lingüística é agora aceito naturalmente pelos
empiristas lógicos, “uma linguagem de observação” mítica que substitui o
inglês dos tradutores. Comecemos o trabalho de campo também neste domínio
e encetemos o estudo da linguagem de teorias novas, não nas fábricas de
definição do modelo duplo de linguagem, mas em companhia dos metafísicos,
experimentadores, teóricos, dramaturgos cortesãos, que construíram novas
concepções de mundo! Isso remata nossa discusão do princípio orientador da
primeira objeção contra o realismo e a possibilidade de teorias inco -
mensuráveis.

68. Carnap, “The Methodological Character of Theoretical Concepts” (1956), p. 40.


Cf. também Hempel, Philosophy of Natural Science (1966), pp. 74 e seguintes.

278
(12) Em seguida lidarei com uma mistura de apartes que nunca foram
apresentados de maneira sistemática e que podemos liquidar em poucas palavras.
Para começar, há a suspeita de que as observações inter pretadas em função
de uma nova teoria já não podem ser utilizadas para refu tar a mencionada teoria.
Essa suspeita c abrandada assinalando-se que as predições de uma teoria
dependem de seus postulados, das regras gramaticais associadas bem como das
condições iniciais, ao passo que o significado das noções primitivas só depende
dos postulados (e das regras gramaticais associadas): é possível refutar uma
teoria por uma experiência inteiramente interpretada em seus termos.
Oütro ponto que se destaca com freqüência é a existência de experiências
cruciais que refutam uma de duas teorias presumivel mente incomensuráveis e
confirmam a outra. Por exemplo: a experiência Michelson-Morley, a variação da
massa de partículas elementares, o efeito transversal de Doppler refutam CM e
confirmam SR. A resposta ao problema também não é difícil: adotando o ponto
de vista da relatividade, descobrimos que as experiências, que naturalmente não
serão descritas em termos relativistas, utilizando as noções relativistas de
comprimento, duração, velocidade, etc., 69 são pertinentes à teoria e também
constatamos que elas a sustentam. Adotando CM (com ou sem éter) tornamos a
descobrir que as experiências (agora descritas nos termos muito diferentes da
física clássica, mais ou menos como Lorentz as descreveu) são pertinentes, mas
também descobrimos que elas solapam (a conjunção de eletrodinâmica clássica e
de) CM. Por que seria necesário possuir uma terminologia que nos permita dizer
que a mesma experiência confirma uma teoria e refuta a outra? Nós mesmos não
usamos essa terminologia? Em primeiro lugar, deveria ser fácil, embora um
tanto laborioso, expressar o que acaba de ser dito sem declarar a identidade. Em
segundo lugar, está claro que a identificação não contraria a nossa tese, p ois
agora não estamos usando os termos da relatividade, nem da física clássica,
como se faz um teste, mas nos referimos a eles e à sua relação com o mundo
físico. A linguagem em que se profere esse discurso pode ser clássica, relativista
ou comum. Não adianta insistir em que os cientistas agem como se a situação
fosse muito menos complicada. Agindo dessa maneira, eles são instrumentalistas
(veja mais acima, seção n.° 9) ou estão equivocados: muitos cientistas se
interessam,

69. Sobre exemplos dessas descrições cf. Synge, "Introduction to Gene ral Relativity”
(1964).

279
hoje em dia, por fórmulas enquanto discutimos interpretações. Também é
possível que, estando familiarizados com CM e SR ao mesmo tempo, eles
passam tão depressa de uma teoria para a outra q ue dão a impressão de
permanecer dentro de um único domínio de discurso.
(13) Diz-se também que, admitido o ingresso da incomensura - bilidade
na ciência já não podemos decidir se uma nova concepção explica o que se
presume que explique ou se vagueia por campos diferentes. Não saberíamos, por
exemplo, se uma teoria física recém- -inventada ainda lida com problemas de
espaço e tempo ou se o seu autor não fez por engano uma afirmativa biológica.
Mas não há necessidade de possuir tal conhecimento. Pois assim que se admite o
fato da incomensurabilidade, não se formula a pergunta que funda menta a
objeção (o progresso conceituai nos impede muitas vezes de fazer certas
perguntas; desa maneira, já não podemos fazer per guntas sobre a velocidade
absoluta de um objeto — ao menos enquanto encararmos com seriedade a
relatividade). Esta não é, porém, uma perda séria para a ciência? De maneira
alguma! O progresso se fez através do mesmo “vaguear por campos diferentes”
cuja “inde- cidibilidade” agora exercita tão grandemente o crítico: Aristóteles
via o mundo como um super organismo, isto é, uma entidade biológica, ao passo
que um elemento essencial da nova ciência de Des cartes, Galileu e dos seus
seguidores em medicina e em biologia é a perspectiva exclusivamente
mecanística. Deverão ser proibidos esses desenvolvimentos? E se o não forem,
que sobrará do protesto?
Uma objeção estreitamente ligada emana da noção de explicação, ou
redução, e enfatiza a continuidade de conceitos pressuposta por essa noção
(poderiam usar-se outras noções para iniciar exatamente a mesma espécie de
argumento). Ora, tomado nosso exemplo acima, supõe-se que a relatividade
explica as partes válidas da física clássica e, portanto, não pode ser
incomensurável com ela! A resposta é óbvia de novo. Por qu e se preocuparia o
relativista com o destino da mecânica clássica a não ser como parte de um
exercício histórico? Só existe uma tarefa que podemos exigir legitimamente de
uma teoria, a saber, que ela nos forneça um relato correto do mundo. Que
relação têm os princípios da explicação com essa exigência? Não é razoável
presumir que um ponto de vista como o da mecânica clássica, que se revelou
deficiente em vários sentidos, não pode ter conceitos inteiramente adequados, e
não é igualmente razoável tentar substituir-lhe os conceitos pelos de uma
cosmologia mais bem-sucedida? Ademais, por que seria a noção da explicação
sobrecarregada pela exigência de uma continuidade conceituai? Verificou -se
que essa

280
noção era antes demasiado estreita (exigência de deriva bilidade) e teve de ser
ampliada para incluir conexões parciais e estatísticas. Nada nos impede de
ampliá-la ainda mais para admitir, digamos, a “explicação pela equivocação”.
(14) Teorias incomensuráveis, por conseguinte, podem ser refutadas
por referência a suas próprias espécies respectivas de experiência (na ausência
de alternativas comensuráveis, no entanto, essas refutações são bastante
fracas). 71’ O conteúdo delas não pode ser comparado. Nem é possível fazer um
julgamento de verossimilhança a não ser dentro dos confins de uma teoria
particular. Não se pode aplicar nenhum dos métodos que Popper deseja
utilizar para racionalizar a ciência, e o que se pode aplicar, a refutação, é
grandemente reduzido em sua força. O que sobra são julgamentos estéticos,
julgamentos de gosto, e nossos próprios desejos subjetivos. Quererá isto dizer
que vamos acabar no subjetivismo? Quererá isto dizer que a ciência se tomou
arbitrária, que ela se tornou um elemento do rclati- vismo geral que Popper
deseja atacar? Vejamos.
Para começar, parece-me que uma atividade cujo caráter humano pode
ser visto por todos é preferível a uma atividade que se afigura ‘objetiva” e
inacessível às ações e aos desejos humanos. 71 As ciências, afinal de contas, são
nossa própria criação, incluindo todos os severos padrões que elas parecem
impor-nos. É bom ter sempre presente o fato de que a ciência, como hoje a
conhecemos, não é inelutável e que nós podemos construir um mundo em que
ela não desempenhe papel algum (atrevo-me a sugerir que um mundo assim
seria mais agradável do que o mundo em que vivemos). Que melhor lembrete
existe do que a compreensão de que a escolha entre teorias suficientemente
genéricas para fornecer-nos uma visão ampla do mundo e empiricamente
desconexas pode tornar-se uma questão de gosto? Que a escolha da nossa
cosmologia básica pode tornar-se uma questão de gosto?
Em segundo lugar, as questões de gosto não estão completa mente além
do alcance do raciocínio. Os poemas, por exemplo, podem ser comparados em
gramática, estrutura dos sons, conjunto de imagens, ritmo, e podem ser
avaliados nessa base (cf. Ezra Pound

70. Sobre este ponto cf. a 1* seção do meu ensaio “Reply to Criticism”, bem como o
meu ensaio “Problems of Empiricism”, ambos de 1965.
71. Sobre este problema de “alie nação” cf. Marx, Nationalokonotnie uncl Philosophie
e “Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie”, ambos os tr.i balhos de 1844.
sobre o progresso na poesia). 72 Até o estado de espírito mais esquivo pode ser
analisado, e precisa ser analisado se a finalidade for apre- sentá-lo de modo que
possa ser apreciado ou que aumente o inventário emocional (cognitivo,
perceptivo) do leitor. Todo poeta que não é de todo irracional compara,
aprimora e argüi até encontrar a formulação correta do que deseja dizer. ™ Não
seria maravilhoso se esse processo desempenhasse um papel também nas
ciências?
Finalmente, há maneiras mais vulgares de explicar o mesmo assunto que
talvez sejam um pouco menos repulsivas aos ouvidos de um filósofo da ciência
profissional. Podemos considerar o comprimento das derivações que conduzem
dos princípios de uma teoria à sua linguagem de observação, e também podemos
chamar a atenção para o número de aproximações feitas no correr de derivação
(todas as derivações precisam ser padronizadas par a essa finalidade de modo
que se possa julgar o comprimento sem ambigüidades; essa padroni zação refere-
se à forma da derivação, não se refere ao conteúdo dos conceitos usados). Um
comprimento menor e um número menor de aproximações pareceriam
preferíveis. Não é fácil ver o modo com que se pode compatibilizar esse
requisito com a exigência de simplicidade e generalidade que, segundo parece,
tende a aumentar os dois parâmetros. Seja como for, há muitas maneiras que
nos são franqueadas depois de compreendido e levado a sério o fato da
incomensura- bilidade.
(15) Comecei mostrando que o método científico, abrandado por
Lakatos, é apenas um ornamento que nos faz esquecer a adoção de uma atitude
de “vale tudo”. Considerei então o argumento de que o método das
transferências de problemas, embora talvez se mostre inútil no primeiro mundo,
pode fornecer uma explicação correta do que acontece no terceiro, e talvez nos
permita abrangê-lo com a vista através de “óculos popperianos”. A resposta foi
que também há difi

72. Popper tem reiterado, tanto nas conferências quanto nos escritos que enquanto
há progresso nas ciências não há progresso nas artes. Ele baseia sua afirmativa na crença de
que o conteúdo de teorias que se sucedem pode ser comparado e que é possível fazer um
julgamento de verossimilhança. A refutação dessa crença elimina uma diferença importante
(talvez a única diferença importante) entre a ciência e as artes e permite que se fale em
estilos e preferências na primeira e em progresso nas segundas.

73. Cf. Brecht, “Über das Zerpflücken von Gedichten” (1964), p. 119. Nas
conferências que tenho pronunciado sobre minha teoria do conhecimento costumo
apresentar e discutir a tese de que descobrir uma nova teoria para determinados fatos é
como descobrir uma nova produção para uma peça conhecida. Sobre pintura, cf. também
Gombrich, Art and lllusion, 1960.

282
culdades no terceiro mundo e que a tentativa de julgar cosmologias pelo seu
conteúdo talvez tenha de ser posta de lado. Longe de ser indesejável, um
desenvolvimento dessa natureza muda a ciência, trans- formando-a de amante
exigente e severa em atraente e condescendente cortesã, disposta a antecipar-se a
todos os desejos do amante. Claro está que depende de nós a escolha de um
dragão ou de um gatinho por companheiro. Creio que não preciso explicar
minhas preferências.

REFERÊNCIAS

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Bondi [1967]: Assumption ad Myth in Physical Theory, 1967.
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Feyerabend [1969]: “Problems in Empiricism, part 2", estampado no livro organizado por
Colodny: The Nature and Function of Scientific Theory, 1969.
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Popper [1961]: “Fact, Standards, and Truth: a further criticism of relativism”, Addendum
1, publicado na quarta edição do livro de 1945 de Popper, The Open Society and its
Enemies, vol. II, pp. 369-96, 1962.
Popper [1968a]: “Epistemology without a Knowing Subject”, ensaio publica do nos
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Wohlwill [1926]: Galileo und sein Kampf für die Kopernikanische Lehre, 2, 1926.

284
REFLE XÕES S OBRE M EUS CRÍTICOS 1

THOMAS S. KUHN
Princelon University

1. Introdução.
2. Metodologia: o papel da história e da sociologia.
3. Ciência Normal: sua natureza e funções.
4. Ciência Normal: sua busca através da história.
5. Irracionalidade e Escolha da Teoria.
6. Incomensurabilidade e Paradigmas.

1. INTRODUÇÃO

Já se passaram quatro anos desde que o Professor Watkins e eu trocamos


pontos de vista mutuamente impenetráveis no Colóquio Internacional de
Filosofia da Ciência, realizado em Bedford College, Londres. Relendo nossas
colaborações, juntamente com as que depois disso lhes foram acrescidas, sinto -
me tentado a postular a existência de dois Thomas Kuhn. Kuhn ( é o autor deste
ensaio e do primeiro artigo deste volume. Também publicou em 1962 um livro
chamado “A Estrutura das Revoluções Científicas, o mesmo que ele e Master -
mann discutiram em outra parte. Kuhn 2 é o autor de outro livro com

1. Embora minha batalha com o último prazo para a entrega de origi nais a uma
publicação não lhes desse tempo para isso, meus colegas C. G. Hempel e R. E. Grandy
conseguiram ler meu primeiro manuscrito e oferecer úteis sugestões para o seu
aperfeiçoamento conceituai e estilístico. Fico-lhes muitíssimo agradecido, mas eles não devem
ser censurados pelos meus pontos de vista.

285
o mesmo título. É ele quem é aqui citado repetidamente por Sir Karl Popper e
pelos Professores Feyerabend, Lakatos, Toulmin e Watkins. O terem os dois
livros o mesmo título não será de todo acidental, pois os pontos de vista que
apresentam coincidem com freqüência e, de qualquer maneira, são expressos
com as mesmas palavras. Chego, porém, à conclusão de que suas preocupações
centrais são em geral muito diferentes. Segundo afirmam seus críticos (não me
foi possível, infelizmente, conseguir-lhe o original), Kuhn 2 parece, em algumas
ocasiões, defender pontos de vista que subvertem aspectos essen ciais da posição
delineada pelo seu homônimo.
Falta-me espírito para estender esta fantasia introdutória e, em vez disso,
explicarei por que a empreendi. Muita coisa neste volume comprova o que antes
descrevi como a mudança de gestalt que divide em dois grupos os leitores d e
minhas Scientific Revolutions. Juntamente com esse livro, esta coleção de
ensaios, portanto, proporciona um exemplo do que denominei em outro lugar
comunicação parcial ou incompleta — o falar — um-através-do-outro que
caracteriza regularmente o discurso entre participantes em pontos de vista inco-
mensuráveis.
Esse colapso da comunicação'é importante e exige muito estudo. À
diferença de Paul Feyerabend (pelo menos como eu e outros o lemos), não
acredito que seja total nem irreversível. Onde ele fala em i ncomensurabilidade
tout court, tenho falado regularmente também em comunicação parcial, que
acredito suscetível de melhora até onde as circunstâncias o requeiram e a
paciência o permita, assunto que será desenvolvido mais adiante. Não acredito,
porém, como Sir Karl, que o sentido em que “somos prisioneiros apanhados no
referencial das nossas teorias, das nossas expectativas, das nossas expe riências
passadas, da nossa linguagem” é meramente “pickwickiano”. Nem acredito que
“poderemos sair do nosso referencial a qualquer momento. . . [para] entrar em
outro melhor e mais espaçoso. . . do qual poderemo, a qualquer momento,
escapar.. . de novos” 2 . Se essa possibilidade fosse rotineiramente disponível,
não haveria dificuldades muito especiais em penetrar no referencial de outra
pessoa a fim de avaliá-lo. As tentativas dos meus críticos para penetrar no meu
referencial dão a entender, todavia, que as mudanças desse refe rencial, de
teoria, de linguagem ou de paradigma colocam problemas mais profundos, tanto
de princípio quanto de prática, do que o admi tem as citações precedentes. Esses
problemas não são simplesmente

2. Neste volume, p. 69.

286
os do discurso comum, nem serão resolvidos pelas mesma técnicas. Se o
pudessem ser, ou se as mudanças de referencial fossem normais e ocorressem à
vontade e a qualquer momento, elas não seriam comparáveis, na frase de Sir
Karl, “ao(s) embate(s) cultural(ais) que têm estimulado algumas das maiores
revoluções intelectuais.” 3 É a próprio possibilidade dessa comparação que os
toma tão importantes.
Um aspecto especialmente interessante deste volume, portanto, é que ele
fornece um exemplo desenvolvido de um embate cultural menor, das grandes
dificuldades de comunicação que caracterizam tais embates, e das técnicas
lingüísticas desenvolvidas na tentativa de acabar com eles. Lido como exemplo,
poderia ser objeto de estudo e análise, fornecendo informações concretas
relativas a um tipo de episódio de desenvolvimento a cujo respeito sabemos
muito pouco. Desconfio que, para alguns leitores, o maior interesse deste livro
será o referido fracasso dos ensaios em alcançar zonas de acordo acerca de
questões intelectuais. Com efeito, porque essas incapaci - dades ilustram um
fenômeno central do meu ponto de vista, o livro tem esse interesse para mim.
Sou, contudo, demasiado participante, estou envolvido com demasiada
profundidade, para fornecer a aná lise que o colapso da comunicação requer. Ao
invés disso, tratarei neste ensaio fundamentalmente das questões levantadas por
meus críticos atuais, embora esteja convencido de que dirigem com fre qüência
sua atenção de modo errôneo, o que obscurece repetidamente as diferenças mais
profundas entre os pontos de vista de Sir Karl e os meus.
Esses pontos, excetuando-se por enquanto os que foram tratados no ensaio
estimulante da Srta. Masterman, podem ser incluídos em três categorias
coerentes, cada uma das quais ilustra o que acabo de denominar como o fracasso
de nossa discussão em chegar a zonas de acordo. O primeiro, para as finalidades
da minha discussão, é a diferença percebida em nossos métodos: lógica versus
história e psicologia social; normativo versus descritvo. Estes, como daqui a
pouco tentarei mostrar, são contrastes singulares com os quais se discriminam os
colaboradores deste volume. Todos nós, à diferença dos membros do que foi até
recentemente o principal movimento na filosofia da ciência, fazemos pesquisa
histórica e ao desenvolver nossos pontos de vista confiamos tanto nela quanto na
observação dos cientistas contemporâneos. Nesses pontos de vista, além do mais,
o descritivo e o normativo estão inextricavelmente misturados. Embora
possamos

3. Neste volume, p. 70.

287
diferir em nossos padrões e diferimos seguramente no tocante a algu mas
questões substânciais, dificilmente poderemos ser distinguidos por nossos
métodos. O título do meu ensaio anterior, “Lógica da Descoberta ou Psicologia
da Pesquisa?” não foi escolhido para sugerir o que Sir Karl devia fazer, senão
para descrever o que ele faz. Quando Lakatos escreve “Mas o referencial
conceituai de Kuhn. . . é sociopsicológico: o meu é normativo”, 4 só posso pensar
que ele está fazendo uma escamoteação a fim de reservar para si o manto
filosófico. Feyerabend tem razão, por certo, quando afirma que minha obra faz
reiteradas afirmações normativas. Com a mesma razão, conquanto o ponto ainda
exija mais discussão, a posição de Lakatos é sociopsicológica em sua repetida
dependência de decisões não-go- vernadas por regras lógicas mas pela
sensibilidade madura do cientista treinado. Se difiro de Lakatos (ou de Sir Karl,
Feyerabend, Toulmin ou Watkins), é mais com respeito à substância do que com
respeito ao método.
Quanto à substância, nossa diferença mais aparente se relaciona com a
ciência normal, tópico ao qual voltarei imediatamente depois d e discutir o
método. Uma parte desproporcionada deste volume é dedicada à ciência normal,
e evoca uma das retóricas mais singula res: a ciência normal não existe e é
desinteressante. Sobre este ponto discordamos, mas não, creio eu, das maneiras
que meus críticos supõem. Quando me referir a ele tratarei em parte das
dificuldades reais que existem na recuperação das tradições científicas normais
da história, mas meu objetivo primeiro e central será lógico. A exis tência da
ciência normal é um corolário da existência de revoluções, um ponto implícito
no trabalho de Sir Karl e explícito no de Lakatos, Se ela não existisse (ou se
fosse não-essencial, dispensável à ciência), as revoluções também estariam
comprometidas. Sobre isso, porém, eu e meus críticos (excetu ando-se Toulmin)
concordamos. As revoluções através da crítica não exigem menos a ciência
normal do que as revoluções através da crise. Inevitavelmente, a expressão
“intenções contrárias” apreende melhor a natureza do nosso discurso do que a
palavra “desacordo”.
A discussão da ciência normal suscita o terceiro conjunto de questões para
o qual se dirigiu a crítica: a natureza da mudança de uma tradição científica
normal para outra e das técnicas pelas quais se resolvem os conflitos resultantes.
Meus críticos respondem às minhas opiniões sobre este assunto com acusações
de irracionalidade,

4. Neste volume, p. 220.

288
relativismo e defesa da regra das multidões. Todos são rótulos que rejeito
categoricamente, até quando usados em minha defesa por Feyerabend. Dizer que,
em questões de escolha de teoria, a força da lógica e da observação não pode,
em princípio, ser compulsiva não é descartar a lógica e a observação nem sugerir
que não haja boas razões para favorecer uma teoria em detrimento de outra.
Dizer que os cientistas treinados são, nesses assuntos, o mais alto tribunal de
apelação não é defender a regra das multidões nem sugerir que os cientistas
poderiam ter decidido aceitar qualquer teoria. Nessa área, meus críticos e eu
divergimos também, mas nossos pontos de divergência ainda não foram vistos
pelo que são.
Essas três séries de questões — método, ciência normal e regra das
multidões — são as que mais avultam neste volume e, por essa razão, em minha
resposta. Minha resposta, porém, não pode terminar sem dar um passo além
delas a fim de considerar o problema dos paradigmas a que o ensaio da Srta.
Masterman é dedicado. Coincido com sua opinião de que o termo “paradigma”
aponta para o aspecto filosófico central do meu livro, mas o tratamento que ali
se deu é muito confuso. Nenhum aspecto do meu ponto de vista evoluiu mais
desde que o livro foi escrito, e o trabalho dela ajudou esse desenvol vimento.
Conquanto minha atual posição difira da dela em muitos detalhes, abordamos o
problema com o mesmo espírito, incluindo uma convicção comum da
importância da filosofia da linguagem e da metáfora.
Não me será possível aqui lidar plenamente com os problemas
apresentados pelo meu tratamento inicial dos paradigmas, mas duas
considerações exigem que eu os mencione. Até uma breve discussão permitirá o
isolamento das duas maneiras totalmente diversas com que o termo é
desenvolvido em meu livro, eliminando-se assim a constelação de confusões que
me criaram obstáculos, bem como aos meus críticos. Além disso, o
esclarecimento resultante me permitirá sugerir o que, a meu ver, constitui a
origem da diferença fundamental e singular entre mim e Sir Karl.
Ele e os seus seguidores partilham, com os mais tradicionais filósofos da
ciência, da suposição de que se pode resolver o proble ma da escolha da teoria
por técnicas semanticamente neutras. As conseqüências observacionais de ambas
as teorias são expostas pela primeira vez num vocabulário básico partilhado (não
necessariamente completo nem permanente). Alguma medida comparativa da
contagem de sua verdade/falsidade fornece então a base para a escolha

289
entre elas. Para Sir Karl e sua escola, tanto quanto para Camap e Reichenbach,
os cânones de racionalidade derivam assim, exclusiva mente, dos cânones da
sintaxe lógica e lingüística. Paul Feyerabend proporciona a exceção que prova
essa regra. Negando a existência de um vocabulário adequado a relatos neutros
de observação, ele conclui de pronto pela irracionalidade intrínseca da escolha
de teorias.
A conclusão é seguramente pickwickiana. Não se pode rotular de
“irracional” nenhum processo essencial ao desenvolvimento cien tífico sem fazer
enorme violência ao termo. Portanto, é uma sorte que a conclusão seja
desnecessária. Pode-se negar, como o fazemos Feyerabend e eu, a existência de
uma linguagem de observação partilhada em sua inteireza por duas teorias e
ainda esperar preservar boas razões para escolher entre elas. Para atingir essa
meta, no entanto, os filósofos da ciência precisarão seguir outros filósofos con -
temporâneos no exame, numa profundidade até agora sem precedentes, da
maneira com que a linguagem se ajusta ao mundo, inda gando como os termos se
ligam ã natureza, como se aprendem essas ligações e como são transmitidas de
uma geração a outra pelos membros de uma comunidade lingüística. E por serem
fundamentais às minhas próprias tentativas de responder a perguntas, dessa
espécie, num dos dois sentidos separáveis do termo, os paradigmas também
precisam encontrar um lugar neste ensaio.

2. A METODOLOGIA: O PAPEL DA HISTÓRIA


E DA SOCIOLOGIA

As dúvidas acerca da propriedade dos meus métodos para che gar às minhas
conclusões unem muitos ensaios contidos neste volume. Sustentam os meus
críticos que a história e a psicologia social não são uma base adequada de
conclusões filosóficas. Suas objeções não formam, entretanto, um todo
uniforme. Considerarei, portanto, se- riatim, as formas um tanto diferentes que
elas assumem nos ensaios assinados por Sir Karl, Watkins, Feyerabend e
Lakatos.
Sir Karl conclui o seu trabalho assinalando que, para ele, “é surpreendente
e decepcionante a idéia de recorrer à sociedade ou à psicologia (ou.. . à história
da ciência) a fim de informar-se a respeito das metas da ciência e do seu
possível progresso... como”, pergunta ele, “pode o retrocesso a tais ciências
freqüentemente es

290
púrias ajudar-nos a resolver essa dificuldade?” 5 Confesso que não sei a que
visam esses reparos, pois creio que, nessa área, não há diferenças entre mim e
Sir Karl. Se ele quer dizer que as generalizações que constituem as teorias
aceitas na sociologia e psicologia (e na história?) são palhas muito fracas para
com elas tecer uma filosofia de ciência, eu não poderia estar mais decididamente
de acordo com ele. Tanto o meu trabalho quanto o dele não se firmam nelas. Se,
por outro lado, ele está pondo em dúvida a importância para a filosofia da
ciência dos tipos de observações coligidas por historia dores e sociólogos, não sei
como o seu próprio trabalho será compreendido. Seus escritos estão cheios de
exemplos históricos e de generalizações acerca do comportamento científico,
alguns discutidos em meu ensaio anterior. Ele escreve sobre temas históricos e
cita esses artigos em suas obras filosóficas principais. Um interesse sis temático
pelos problemas históricos e uma disposiçã o para empenhar-se em pesquisas
históricas originais distinguem os homens que ele treinou dos membros de
qualquer outra escola atual de filosofia da ciência. Nesses pontos me confesso
popperiano impenitente.
John Watkins expressa um tipo diferente de dúvi da. No princípio do seu
ensaio, ele escreve que “a metodologia. .. diz mais res - pento à ciência no que
ela tem de melhor, ou à ciência como deveria ser dirigida, do que à ciência
vulgar,” 6 ponto com o qual, pelo menos numa formulação mais cuidadosa,
concordo completamente. Mais adiante, sustenta que o que denominei ciência
normal é ciência vulgar, e ele então pergunta por que tanto “me empenho em
sobrestimar a Ciência Normal e em subestimar a Ciência Extraordinária?” 7 Na
medida em que essa pergunta se refere à ciência normal em particular, reservo
minha resposta para mais tarde (num ponto em que tentarei também desenredar a
extraordinária distorção de minha posição feita por Watkins). Mas Watkins
também parece estar fazendo uma pergunta mais geral, que se relaciona
intimamente com uma questão ventilada por Feyerabend. Ambos concedem, pelo
menos em defesa do seu argumento, que os cientistas se comportam como afir -
mei que o fazem (mais tarde examinarei as restrições que eles, opõem a essa
concessão). Por que haveria o filósofo ou o metodólogo, per guntam então, de
levar os fatos a sério? Ele não está, afinal de contas, preocupado com uma
descrição completa da ciência, mas com a descoberta dos fundamentos da
atividade, isto é, com a reconstrução

5. Neste volume, p. 70.


6. Neste volume, p. 36.
7. Neste volume, p. 41.

291
racional. Mas com que direito e em obediência a que critérios o observador -
historiador ou observador-sociólogo diz ao filósofo quais são os fatos da vida
científica que lhe é preciso incluir em sua reconstrução ou que pode ignorar?
No intuito de evitar longas dissertações sobre a filosofia da his tória e da
sociologia, restrinjo-me a uma resposta pessoal. Não estou menos interessado na
reconstrução racional, na descoberta dos fundamentos, do que os filósofos da
ciência. Meu objetivo também é a compreensão da ciência, das razões de sua
eficácia, do status cognitivo de suas teorias. À diferença, porém, da maioria dos
filósofos da ciência, comecei como historiador da ciência, examinando atenta -
mente os fatos da vida científica. Tendo descoberto, no decorrer do processo,
que muito comportamento científico, incluindo o dos maiores cientistas, violava
persistentemente cânomes metodológicos aceitos, tive de perguntar por que essa
inconformidade com os citados cânones não parecia tolher o êxito da atividade.
E quando," mais taide, descobrir que uma visão alterada da natureza da ciência
transformava o que anteriormente parecera comportamento aberrante numa parte
essencial da explicação do êxito da ciência, a descoberta me deu confiança na
nova explicação. Por conseguinte, meu critério para dar ênfase a qualquer
aspecto particular do comportamento científico não é simplesmente que ete
ocorre, nem é tão-somente que ele ocorre com freqüência, senão que s e ajusta a
uma teoria do conhecimento científico. Inversamente, minha confiança nessa
teoria deriva de sua capacidade de dar um sentido coerente a muitos fatos que,
segundo uma concepção mais antiga, tinham sido aberrantes ou irrelevantes. Os
leitores observarão uma circularidade no argumento, mas este não é vicioso, e
sua presença não distingue, de modo algum, minha concepção da dos meus
críticos atuais. Aqui também me comporto como eles.
O fato de serem significativamente teóricos meus critérios para
discriminar entre os elementos essenciais e os não-essenciais do comportamento
científico observado fornece também uma resposta ao que Feyerabend denomina
de ambigüidade da minha apresentação. As observações de Kuhn a propósito do
desenvolvimento científico » devem ser lidas como descrições ou prescrições?
pergunta ele. 8 A resposta, naturalmente, é que elas devem ser lidas das duas
maneiras

8. Neste volume, p. 245. Sobre um exame muito mais profundo e cuida doso de
alguns contextos em que se fundem o descritiv o e o normativo, veja Cavell, "Must We
Mean What We Say?”.

292
ao mesmo tempo. Se eu tiver uma teoria sobre como e por que opera a ciência,
ela terá de ter por força implicações para a maneira com que os cientistas devem
proceder para que sua atividade floresça. A estrutura do meu argumento é
simples e, creio eu, irrepreensível: os cientistas comportam-se das seguintes
maneiras; essas maneiras de proceder (aqui entra a teoria) têm as seguintes
funções essenciais; na ausência de um modo alternado que sirva a funções
semelhantes, os cientistas devem proceder essencialmente como procedem quan -
do se preocupam em aprimorar o conhecimento científico.
Note-se que nada nesse argumento estabelece o valor da própria ciência, e
que a “defesa do hedonismo” de Feyerabend é correspondentemente irrelevante. 9
Em parte por haverem eles interpretado er roneamente minha prescrição (ponto
esse ao qual voltarei), tanto Sir Karl quanto Feyerabend encontram ameaça na
atividade que descrevi. É “capaz de corromper-nos o entendimento e diminuir-
nos o prazer” (Feyerabend); é “um perigo. . . de fato para a nossa civi lização”
(Sir Karl). 10 Não sou conduzido para essa avaliação, nem o são muitos dos meus
leitores, mas nada no meu argumento depende de um erro que ele possa encerrar.
Explicar por que uma atividade funciona não é aprová -la nem desaprová-la.
O ensaio de Lakatos aventa um quarto problema acerca do método e é o
mais fundamental de todos. Já confessei minha inca pacidade de compreender o
que ele quer dizer quando faz afirma ções deste teor: “o referencial conceituai de
Kuhn. . . é sociopsico- lógico: o meu é normativo”. Se nos perguntamos, todavia,
não o que ele pretende, mas por que lhe parece apropriada essa espécic de
retórica, surge um ponto importante, um ponto que está quase explícito no
primeiro parágrafo de sua seção n.° 4. Alguns dos prin cípios desenvolvidos em
minha explicação da ciência são irredutivel- mente sociológicos, pelo menos por
enquanto. Em particular, confrontada com o problema da escolha da teoria;'a
estrutura da minha resposta é aproximadamente a seguinte: tome -se um grupo
das pessoas mais capazes com a motivação mais apropriada; adestrem-se essas
pessoas em alguma ciência e nas especialidades pertinentes à escolha em
perspectiva; incuta-se-lhes o sistema de valores e a ideologia vigentes em sua
disciplina (e numa grande extensão em outros campos científicos também); e,
finalmente, permita-se-lhes fazerem a escolha. Se essa técnica não explicar o
desenvolvimento científico

9. Neste volume, p. 258.


10. Neste volume, pp. 258 e 65.

293
como nós o conhecemos, nenhuma outra o fará. Não pode haver um conjunto de
regras adequadas de escolha que se possam impor ao desejado comportamento
individual nos casos concretos que os cientistas encontrarão no decorrer d e suas
carreiras. Seja o que for o processo científico, temos de explicá -lo examinando
a natureza do grupo científico, descobrindo o que ele valoriza, o que ele tolera e
o que ele desdenha.
Essa posição é intrinsecamente sociológica e, como tal, um afas tamento
importante dos cânones de explicação licenciados pelas tra dições que Lakatos
rotula de justificacionismo e falseacionismo, assim dogmático como ingênuo.
Mais adiante a especificarei melhor e a defenderei. Neste momento, porém,
interessa-me simplesmente a sua estrutura, que tanto Lakatos quanto Sir Karl
acham inaceitável em princípio. E pergunto: por que o fariam eles? Ambos
empregam, repetidamente, argumentos da mesmíssima estrutura.
É verdade que Sir Karl não o faz durante todo o tempo. A parte do seu
ensaio que procura um algoritmo para a verossimilhan ça, se tiver êxito,
eliminará toda a necessidade de recurso aos valores de grupo, aos julgamentos
feitos por mentes preparadas de determinada maneira. Mas, como assinalei no
fim do meu ensaio anterior, existem muitos trechos em todos os escritos de Sir
Karl que só podem ser lidos como descrições dos valores e atitudes que os
cientistas deverão possuir se, quando as coisas não vão bem, eles quiserem
triunfar fazendo progredir seu empreendimento. O fal seacionismo sofisticado de
Lakatos vai até mais longe. Em quase todos os sentidos, apenas dois dos quais
são essenciais, sua posição está agora muito próxima da minha. Entre os
sentidos em que concordamos, embora ele ainda não o tenha percebido, figura o
nosso emprego comum de princípios explanatórios que são de estrutura
basicamente sociológica ou ideológica.
O falseacionismo sofisticado de Lakatos isola certo número de questões a
cujo respeito os cientistas que empregam o método pre cisam tomar decisões,
individual ou coletivamente. (Desconfio do termo “decisão” neste contexto,
visto que ele supõe deliberação consciente sobre cada questão antes de supor
uma atitude de pesquisa. Por enquanto, contudo, o usarei. Até a última seção
deste ensaio muito pouca coisa dependerá da distinção entre tomar uma decisão
e encontrar-se na situação decorrente do fato de havê-la tomado.) Os cientistas
precisam, por exemplo, decidir quais são os enunciados que deverão ser
tornados “infalseáveis por decreto" e quais os que

294
não deverão sê-lo. 11 Ou, lidando com uma teoria probabilista, preci sarão decidir
sobre um limiar de probabilidade abaixo do qual a evidência estatística será
reputada “incompatível” com essa teoria. 12 Acima de tudo, encarando teorias
como programas de pesquisa que deverão ser avaliados a seu tempo, os cientistas
precisam decidir se determinado programa em determinado momento é
“progressivo” (e, portanto, científico) ou “degenerativo” e, portanto,
pseudocientífi- co). 13 No primeiro caso, terá de ser continuado; no segundo, re-
jeitado.
Observem agora que a exigência para a tomada de decisões desse tipo pode
ser interpretado de duas maneiras. Pode ser tomada para nomear ou descrever
pontos de decisão para os quais ainda será preciso fornecer procedimentos
aplicáveis em casos concretos. No tocante a essa interpretação, Lakatos ainda
terá de contar-nos como os cientistas escolherão os enunciados particulares que
deverão ser infalseáveis pelo seu decreto; e também precisa especificar critérios
que possam ser usados na ocasião para distinguir um programa de pesquisa
degenerativo de um programa de pesquisa progressivo, etc. A não ser assim, ele
não nos terá dito coisa alguma. Alternativa mente, suas observações sobre a
necessidade de decisões particulares podem ser interpretados como descrições já
completas (pelo menos na forma — seu conteúdo particular pode ser preliminar)
de diretrizes, ou máximas, que ao cientistas cumpre seguir. Sobre essa inter -
pretação, a terceira decisão diretiva teria o seguinte teor: “C omo cientista, você
não pode abster-se de decidir se o seu programa de pesquisa é progressivo ou
degenerativo, e precisa arcar com as conseqüências da sua decisão, abandonando
o programa num caso, prosseguindo nele no outro.” Correspondentemente, a
segunda diretiva seria a seguinte: “Trabalhando com uma teoria probabilista,
você precisa perguntar constantemente a si mesmo se o resultado de algu ma
experiência determinada não é tão improvável que chegue a ser inconsistente
com a sua teoria, e precisa, como cientista, responder também.” Finalmente, a
primeira diretiva seria enunciada da seguinte maneira: “Como cientista, você
terá de assumir riscos, escolhendo enunciados como base do seu trabalho e
ignorando, pelo menos até que se tenha desenvolvido o seu pr ograma de
pesquisa, todos os ataques reais e potenciais dirigidos contra eles.”

11 . Neste volume, p. 128.


12. Neste volume, p. 132.
13. Neste volume, pp. 144 e seguintes.

295
Está claro que a segunda interpretação é muito mais fraca do que a
primeira. Exige as mesmas decisões, mas não fornece nem promete fornecer
regras que lhes ditariam os resultados. Em lugar disso, incorpora tais decisões a
julgamentos de valor (assunto ao qual terei de voltar mais adiante) mais do que
a mensurações ou computações, digamos, de peso. Não obstante, concebidas
tão-só como imperativos que obrigam o cientista a tomar determinadas es pécies
de decisões, essas diretrizes são tão fortes que influem profun damente no
desenvolvimento científico. Um grupo cujos membros não se sent issem
obrigados a lutar com tais decisões (mas que, ao con trário, enfatizassem outras
ou nenhuma delas) comportar-se-ia de maneiras notavelmente diferentes, e sua
disciplina se modificaria de acordo com isso. Se bem o exame dessas diretrizes
de decisão feito por Lakatos seja, não raro, equívoco, acredito que é justamente
dessa segunda espécie de eficácia que depende a sua metodologia. Ele pouco
fez, por certo, para especificar algoritmos por cujo inter médio as decisões que
exige deverão ser tomadas, e o teor de sua exposição sobre falseacionismo
ingênuo e falseacionismo dogmático dá a entender que ele já não acha possível
uma especificação dessa natureza. Nesse caso, todavia, seus imperativos de
decisão apresentam-se na forma, embora nem sempre no conteúdo, idêntico aos
meus. Especificam compromissos ideológicos que os cientistas têm de com -
partilhar para que sua atividade seja bem-sucedida. São, portanto,
irredutivelmente sociológicos no mesmo sentido e na mesma extensão em que o
são meus princípios explanatórios.
Nessas circunstâncias, não sei ao certo o que Lakatos está criti cando nem
o que, nessa área, no seu entender, constitui um ponto de divergência entre nós.
Uma estranha nota de pé de página, entretanto, no fim do seu ensaio, nos
fornece uma pista 14 :

"Existem duas espécies de filosofias psicologistas da ciência. De acordo com


uma espécie não pode haver filosofia da ciência: só uma psicologia de cientistas. De
acordo com a outra espécie há uma psicologia da mente “científica”, "ideal” ou
“normal”: isso transforma a filosofia da ciência numa psicologia da mente ideaL .. .
Kuhn não parece haver notado a distinção.”

Se o compreendo corretamente, Lakatos identifica comigo a primeira


espécie de filosofia psicologista da ciência, e a segunda consigo me smo. Mas
ele me compreendeu maL Não estamos tão distantes

14. Neste volume, p. 223, nota de rodapé n.° 339.

296
um do outro quanto dá a entender a sua descrição e, onde diferimos, sua posição
literal exigiria uma renúncia da nossa meta comum.
Parte do que Lakatos rejeita são explicações que exigem recurso aos fatores
que distinguem determinados cientistas (“a psicologia do cientista” contra “a
psicologia d a . . . mente ‘normal’”). Mas isso não nos separa. Tenho recorrido
exclusivamente à psicologia social (prefiro “sociologia”), campo muito diferente
da psicologia individual reiterada n vezes. Similarmente, minha unidade para
propósitos de explicação é o grupo científico normal (isto é, não -patológico),
levando-se em conta o fato de que seus membros diferem mas sem ter em conta
aquilo que faz que cada indivíduo seja único. Além disso, Lakatos gostaria de
rejeitar até as características das mentes científicas normais, que as tornam
mentes de seres humanos. Aparentemente, ele não vê outra maneira de reter a
metodologia de uma ciência ideal ao explicar o êxito observado da ciência real.
Sua maneira, porém, não funcionará se ele esperar explicar uma atividade
exercida por pessoas. Não existem mentes ideais, e a “psicologia da mente ideal”
é, portanto, inexeqüível como base de explicação. Nem o modo utilizado por
Lakatos para apresentar o ideal é indispensável à consecução do seu objetivo.
Ideais partilhados influem no comportamento sem tomar ideais os que os
alimentam. O tipo de pergunta que faço tem sido, portanto: como influirá no
comportamento de grupo determinada constelação de crenças, valores e
imperativos? Minhas explicações decorrem da resposta. Não estou certo de que
Lakatos pretende outra coisa mas, se não o pretende, não há nada nesta área a
cujo respeito possamos divergir.
Tendo interpretado erroneamente a base sociológica da minha posição,
Lakatos e meus outros críticos inevitavelmente deixam de reparar numa
característica especial que decorre do fato de tomar como unidade o grupo
normal em vez da mente sormal. Dado um algoritmo partilhado adequado,
digamos, à escolha individual entre as teorias concorrentes ou à identificação de
uma grave anomalia, todos os membros de um grupo científico chegarão à
mesma decisão. Este seria o caso ainda que o algoritmo fosse probabilístico, pois
todos os que se utilizassem dele avaliariam a evidência da mesma ma neira. Os
efeitos de uma ideologia partilhada, no entanto, são menos uniformes, pois seu
modo de aplicação é de uma espécie diferente. Dado um grupo cujos memb ros
estão todos comprometidos em escolher entre teorias alternativas e também em
tomar em consideração valores como a precisão, a simplicidade, a liberdade de
ação, etc., enquanto estiverem fazendo sua escolha, as decisões concretas de

297
membros individuais em casos individuais, apesar de tudo, variarão. Os
compromissos partilhados influirão de forma decisiva no compor tamento do
grupo, mas a escolha individual será também uma fun ção da personalidade, da
educação e do padrão anterior de pesquisa profissional. (Essas variáveis são o
domínio da psicologia individual.) A muitos dos meus críticos tal variabilidade
se atigura uma fraqueza da minha posição. Entretanto, quando considerar os
problemas de crise e de escolha da teoria, hei de querer sustentar q ue se trata, na
verdade, de uma força. Se uma decisão precisa ser tomada em circunstâncias em
que até o mais deliberado e o mais ponderado julgamento pode estar errado,
talvez seja vitalmente importante que indivíduos diferentes decidam de maneiras
diferentes. De que outra maneira poderia o grupo, como um todo, cobrir suas
apostas? 15

3. CIÊNCIA NORMAL: SUA NATUREZA E FUNÇÕES

No tocante aos métodos, os que emprego não diferem significa tivamente


dos métodos dos meus críticos popperianos. Aplicando-os, é claro que obtemos
conclusões um tanto distintas, mas nem mesmo estas se encontram tão longe
uma da outra quanto vários dos meus críticos supõem. Em particular, todos nós,
com exceção de Toulmin, compartilhamos da convicção de que os episódios
centrais do progresso científico — os que tornam o jogo digno de ser jogado e a
atividade digna de ser estudada — são as revoluções. Watkins inventa um
adversário imaginário ao afirmar que tenho “menospreza do” as revoluções
científicas, sentindo por elas uma “aversão filosófica” ou sugerindo que elas
“dificilmente poderão ser chamadas de ciência.” 16 Foi a descoberta da natureza
enigmática das revoluções que me levou para a história e a filosofia da ciência.
Quase tudo o que escrevi desde então se refere a elas, fato que Waltkins assinala
e depois ignora.
Ora, se concordamos nisso, não podemos discordar de todo acerca da
ciência normal, o aspecto da minha obra que mais perturba meus críticos atuais.
Por sua própria natureza as revoluções não po

15. Se não estivesse em causa a motivação humana, poder-se-ia conseguir o mesmo


efeito computando primeiro uma probabilidade e depois atribuindo certa fração dos membros
da classe a cada uma das teorias concorrentes, sendo que a fração exata depende do resultado
da computação probabilista. De algum modo, essa alternativa prova meu ponto de vista por
reductio ad absurdum.
16. Neste volume, pp. 41, 42 e 38.

298
dem constituir toda a ciência: é forçoso que algo diferente se intercale entre elas.
Sir Karl estabelece admiravelmente o ponto. Sublinhando o que sempre
reconheci como uma das nossas áreas principais de concordância, ele acentua
que “os cientistas desenvolvem necessariamente suas idéias dentro de um
referencial teórico definido”. 17 Para ele, como para mim, as revoluções exigem
tais referenciais, visto que sempre supõem a rejeição e a substituição de um
referencial ou de algumas de suas partes integrantes. E como a ciência que
denomino normal é precisamente a pesquisa dentro de um referencial, ela só
pode ser o reverso de uma moeda cujo anverso são as revoluções. Não admira
que Sir Karl “não tivesse visto claramente a distinção” entre ciência normal e
revoluções. 18 Isso se segue das suas premissas.
Mas outra coisa também se segue. Se os referenciais são neces sários aos
cientistas, se romper com um é inevitavelmente entrar em outro — pontos que
Sir Karl adota explicitamente — a influência de um referencial sobre a mente do
cientista talvez não possa ser explicada tão-só como conseqüência de haver sido
ele “mal ensinado,. . . uma vítima da doutrinação”. 19 Nem poderia ela, como
Watkins supõe, ser explicada inteiramente em conexão com o prevalecimento de
mentes de terceira categoria, aptas apenas para o trabalho “laborioso, não -
crítico”. 20 Essas coisas existem e a maioria delas é prejudicial. Apesar disso, se
os referenciais são o pré-requisito da pesquisa, seu domínio da mente não é
apenas “pickwickiano”, nem pode ser muito certo dizer que “se tentarmos,
poderemos sair do nosso referencial a qualquer momento”. 21 Ser ao mesmo
tempo essencial e livremente dispensável é praticamente uma autocontradição.
Meus críticos tor- nam-se incoerentes quando a adotam.
Nada disso é dito num esforço paar mostrar que meus críticos efetivamente
concordam comigo, mas não o sabem. Eles não concor dam! O que estou
tentando fazer, eliminando irrelevâncias, é descobrir os pontos a cujo respeito
discordamos. Sustentei até agora que a expressão de Sir Karl “revoluções
permanentes”, tanto quanto a ex- presão “círculo quadrado”, não descreve um
fenômeno que poderia existir. É preciso viver os referenciais, e explorá -los,
antes que eles

17. Neste volume, p. 63, o grifo é meu. A não ser que se esclareça explicitamente, todas
as passagens grifadas nas citações feitas neste ensaio estão no original.

18. Neste volume, p. 64.


19. Neste volume, p. 65.
20. Neste volume, p. 42.
21. Neste volume, p. 69.

299
possam romper-se. Mas isso não quer dizer que os cientistas não devem
objetivar um perpétuo rompimento de referenciais, por mais inacessível que seja
essa meta. ‘Revoluções permanentes” poderia ser o nome de um importante
imperativo ideológico. Se Sir Karl e eu discordamos a respeito da ciência
normal, é sobre esse ponto. Ele e o seu grupo sustentam que o cientista deve
tentar sempre ser um crítico e um proliferador de teorias alternativas. Insisto na
desejabi- lidade de uma estratégia alternada que reserve tal comportamento para
ocasiões especiais.
Limitando-se à estratégia da pesquisa, esse desacordo já é mais estreito do
que o visto pelos meus críticos. Para que se possa ver o que está em jogo será
preciso estreitá-lo ainda mais. Tudo o que foi dito até agora, posto que expresso
para a ciência e para os cientistas, aplica-se igualmente a certo número de outros
campos. Minha prescrição metodológica, todavia, dirige-se exclusivamente às
ciências e, entre elas, aos campos que ostentam o padrão especial de desenvol -
vimento conhecido como progresso. Sir Karl apreende claramente a distinção
que tenho em mente. Iniciando o seu ensaio escreve ele: “ ‘Um cientista
empenhado numa pesquisa. . . pode ir logo ao âmago de. . . um referencial
organizado. . . [e de] uma situação de problema geralmente aceita. .. [deixando]
para outros o ajuste de sua contribuição à estrutura do conhecimento científico.’.
.. o filósofo”, continua ele, “se encontra em posição diferente.” 22 Não obstante,
tendo apontado para a diferença, Sir Karl depois disso a ignora, recomendando a
mesma estratégia tanto a cientistas quanto a filósofos. No processo, ele chega às
conseqüências, para o projeto da pesquisa, do detalhe e da precisão especiais
com que, diz ele, o referencial de uma ciência madura instrui os que a praticam
sobre o que têm de fazer. Na ausência da orientação detalhada, a estratégia
crítica de Sir Karl me parece a melhor disponível. Ela não pro vocará o padrão
especial de desenvolvimento que caracteriza, digamos, a física, mas tampouco o
fará qualquer outra prescrição metodológica. Dado, po rém, um referencial que
forneça tal orientação, pretendo que a ele se apliquem minhas recomendações
metodológicas.
Consid.ere-se por um momento a evolução da filosofia ou das artes desde
o fim do Renascimento. Trata-se de campos que se opõem

22. Neste volume, p. 63. Os leitores que conhecem meu livro The Structure of
Scientific Revolutions reconhecerão que a frase de Sir Karl "deixando para outros o ajuste
de sua contribuição ao referencial do conhecimento científico" capta com muita exatidão as
implicações essenciais de minha descrição da ciência normal.

300
freqüentemente às ciências estabelecidas como camp os que não progridem. Esse
contraste não pode dever-se à ausência de revoluções nem uma prática normal
no intervalo entre duas revoluções. Ao contrário, muito antes de reparar na
estrutura similiar do desenvolvimento científico, os historiadores retrataram
esses campos como se eles se desenvolvessem através de uma sucessão de
tradições entre- cortadas de alterações revolucionárias de estilo e gosto
artísticos ou de pontos de vista e metas filosóficos. Tampouco se pode dever o
contraste à ausência, na filosofia e nas artes, de uma metodologia popperiana.
Como observa a Srta. Masterman no que concerne à filosofia, 23 estes são
justamente os campos em que ele está melhor exemplificado, em que os seus
praticantes encontram a tradição vigente asfixiante, em que pelejam para romper
com ela e procuram regularmente um estilo ou um ponto de vista filosófico
próprio. Nas artes, sobretudo, o trabalho de homens mal sucedidos na inovação
descreve-se como “derivativo”, termo depreciativo, significativamente ausente
do discurso científico, mas que se refere, por outro lado, repetidamente, a
“modas”. Em nenhum desses campos, sejam eles das artes ou da filosofia, o
profissional que não consegue alterar a prática tradicional tem um impacto
significativo sobre o desenvolvimento da disciplina. 2 '* São estes, em suma, os
campos para os quais é essencial o método de Sir Karl porque sem uma crítica
constante e a proliferação de novos modos de prática não haveria revoluções. A
substituição de minha própria metodologia pela de Sir Karl produziria a
estagnação exatamente pelas razões que meus críticos subli nham. Em nenhum
sentido óbvio, contudo, a metodologia dele é causa de progresso. A relação entre
a prática pré-revolucionária e a prática pós-revolucionária nesses campos não é
a que aprendemos a esperar das ciências desenvolvidas.
Meus críticos sugerirão que as razões para a diferença são ma nifestas.
Campos como a filosofia e as artes não se proclamam ciências, nem satisfazem
ao critério de demarcação de Sir Karl. Em outras palavras, não geram resultados
que possam, em princípio, ser testados através de um cotejo ponto-por-ponto
com a natureza. Mas esse argumento me parece equivocado. Sem satisfazer ao
critério de Sir Karl, tais campos poderiam não ser ciências mas, apesar disso, po

23. Neste volume, pp. 85 e seguintes.


24. Sobre uma discussão mais completa das diferenças existentes entre as comunidades
científicas e as artísticas e entre os padrões correspondentes de desenvolvimento, ver meu
comentário sobre as relações entre ciência e arte (1969).

301
deriam progredir como progridem as ciências. Na Antigüidade e du rante o
Renascimento, as artes, mais do que as ciências, forneciam os paradigmas
aceitos do progresso. 25 Poucos filósofos encontram razões de princípio por que o
seu campo não deve progredir com firmeza, embora muitos lamentem seu
fracasso nesse sentido. Em todo o caso, há muitos campos — eu lhes chamarei
protociências — em que a prática gera conclusões testáveis mas que, não
obstante, têm maior semelhança com a filosofia e as artes do que com as ciên-
cias estabelecidas em seu padrão de desenvolvimento. Penso, por exemplo, em
campos como a química e a eletricidade em meados do século XVIII, no estudo
da hereditariedade e da filogenia em meados do século XIX, ou em muit as
ciências sociais de hoje. Nesses campos, embora satisfaçam ao critério de
demarcação de Sir Karl, a crítica incessante e a luta contínua por uma nova
largada também são forças primárias e é preciso que o sejam. Mas também não
resultam, como na filosofia e nas artes, em progresso nítido.
Concluo, em suma, que as protociências, como as artes e a filosofia,
carecem de algum elemento que, nas ciências maduras, permite as formas mais
patentes de progresso. Esse elemento, contudo, é algo que não pode ser
proporcionado por uma prescrição metodológica. À diferença dos meus críticos
atuais, e entre eles, nesse ponto, incluo Lakatos, não reivindico nenhuma
terapêutica para auxiliar a transformação de uma protociência numa ciência,
nem suponho que se possa obter alguma coisa nesse sentido. Se, como sugere
Feyerabend, alguns cientistas sociais me atribuem o parecer de que podem
melhorar o status do seu campo legislando primeiro um acor do no que tange aos
seus aspectos fundamentais e depois se entregam à solução de enigmas, estão
interpretando de maneira muito errônea o meu ponto de vista. 26 Uma sentença
que usei antigamente quando discutia a eficácia especial das teorias matemáticas
aplica-se igualmente aqui: “Como acontece no desenvolvimento individual,
acontece no grupo científico: a maturidade vem mais seguramente para os que
sabem esperar.” 27 Afortunadamente, ainda que nenhuma prescrição a force, a
transição para a maturidade chega para muitos campos, e vale a pena esperar e
lutar para atingi-la. Cada uma das

25. Gombrich, Art and Illusion, 1960, pp. 11 e seguintes.


26. Neste volume, p. 246. Note-se, contudo, que o trecho citado por Feyerabend na nota
de pé de página n.“ 5 não diz, de forma alguma, o que ele relata.

27. Veja a p. 190 do meu ensaio intitulado "T he Function of Measu- rement in Modem
Physical Science”, 1961.

302
ciências atualmente estabelecidas emergiu de um ramo anteriormente mais
especulativo da filosofia natural, da medicina ou dos ofícios num período do
passado relativamente bem definido. Outros campos experimentarão por certo a
mesma transição no futuro. Só depois que ela ocorre, o progresso se toma
característica óbvia de um campo. E só então minhas prescrições, que meus
críticos censuram, entram em ação.
Sobre a natureza dessa mudança escrevi longamente em minhas Scientific
Revolutions e de maneira mais sucinta enquanto discutia os critérios de
demarcação em minha colaboração anterior para este volume. Aqui me
contentarei com um resumo descritivo abstrato. Limite sua atenção primeiro a
campos que visam a explicar circunstancialmente alguma classe de fenômenos
naturais. (Se, como assinalam meus críticos, minha descrição ulterior se ajusta à
teologia e aos assaltos aos bancos, isso não cria problema algum.) Um campo
dessa natureza obtém primeiro a maturidade quando munido de teoria e técnica
que satisfazem às quatro condições seguintes. Em primeiro lugar, o critério de
demarcação de Sir Karl, sem o qual nenhum campo é potencialmente uma
ciência: para certas classes de fenômenos naturais as predições concretas terão
de emergir da prática do campo. Em segundo lugar, para algumas subclasses
interessantes de fenômenos, o que quer que passe por sucesso preditivo deve ser
sistematicamente alcançado. (A astronomia ptolemaica sempre pre disse a posição
planetária dentro de limites de erro amplamente reco nhecidos. A tradição
astrológica acompanhante não poderia, excetuando-se as marés e o ciclo
menstruai médio, especificar de antemão a predição que vingaria e a que
falharia.) Em terceiro lugar, as técnicas preditivas precisam ter raízes numa
teoria que, embora metafísica, simultaneamente as justifique, explique seu
sucesso limitado e sugira meios para melhorá-las não só na precisão mas também
no alcance. Finalmente, o aprimoramento da técnica prediti va precisa ser uma
tarefa desafiadora, que exige em certas ocasiões a mais alta dose de talento e
devoção.
Tais condições, é claro, eqüivalem à descrição de uma boa teoria científica.
Mas uma vez que se abandonam as esperanças de uma prescrição perapêutic a,
não há razão para esperar menos do que isso. Minha afirmativa tem sido — é
meu único desacordo genuíno com Sir Karl em relação à ciência normal — que,
tendo à mão uma teoria assim, já se foi o tempo para a crítica firme e a
proliferação da teoria. Os cientistas, pela primeira vez têm, uma alter nativa que
não é uma simples imitação do que já se passou. Ao invés

303
disso, podem aplicar seus talentos aos enigmas que se encontram no que Lakatos
ora denomina o “cinto protetor”. Um dos seus objetivos é amp liar a esfera de
ação e a precisão da experiência e da teoria existentes assim como melhorar o
ajuste entre elas. Outro é eliminar conflitos não só entre as diferentes teorias
empregadas em seu trabalho mas também entre os modos com que se usa uma
única teoria em diferentes aplicações. (Watkins tem razão, entendo agora, quando
censura meu livro por dar um papel demasiado pequeno a esses enigmas
interteóricos e intrateóricos, mas a tentativa de Lakatos de reduzir a ciência à
matemática, não deixando nenhum papel significativo para a experiência, vai
longe demais. Ele não poderia, por exemplo, estar mais enganado a respeito da
irrelevância da fórmula de Balmer para o desenvolvimento do modelo do átomo
de Bohr. 28 Tais enigmas e outros como eles constituem a principal atividade da
ciência normal. Embora eu não possa voltar a argumenatr aqui sobre esse ponto,
eles não como pensa Watkins, e tampouco, como pensa Sir Karl, se parecem com
os problemas da ciência e da engenharia aplicada. É claro que os homens
fascinados por eles são uma raça especial, mas o mesmo se pode dizer de
filósofos e artistas.
No entanto, mesmo em face de uma teoria que permita a ciência normal, os
cientistas não precisam medir-se com os enigmas que ela fornece. Ao invés disso,
poderiam comportar-se como devem fazê-lo os praticantes das protociências; isto
é, poderiam procurar pontos fracos potenciais, que existem sempre em grande
quantidade, e tentar erguer teorias alternativas em torno deles. A maioria dos
meus críticos atuais acredita que eles devem fazê-lo. Eu discordo, mas só por
motivos estratégicos. Feyerabend me apresenta incorretamente de um modo que
lamento muito quando afirma, por exemplo, que critiquei “Bohm por haver
perturbado a uniformidade da teoria quântica contemporânea”. 29 Seria difícil
conciliar minha fama de encrenqueiro com essa afirmativa. De fato, confessei a
Feyerabend que eu partilhava do descontentamento de Bohm mas supunha que
sua atenção exclusiva a isso quase certamente falharia. Ninguém, sugeri, tinha
probabilidades de resolver os paradoxos da teoria quântica enquanto

28. Neste volume, p. 180, sobre as observações aceita da fórmula de


Balmer. Essa atitude para com o papel da experiência é encontrada em muitos
pontos do ensaio de Lakatos. Sobre o papel real da fórmula de Balmer na obra de Bohr, veja o
ensaio citado na nota de pé de página n.° , p. mais
adiante.
29. Neste volume, p. 255. Uma resposta implícita eo contraste traçado
por Feyerabend entre minhas atitudes para com Bohm e Einstein como crí
ticos será encontrada mais adiante, nas pp. 317 e seguintes.

304
não pudesse relacioná-los com algum enigma técnico concreto da física atual.
Nas ciências desenvolvidas, à diferença da filosofia, são os enigmas técnicos que
fornecem a ocasião habitual e, não raro, os materiais concretos para a revolução.
Sua disponibilidade, juntamente com a informação e os sinais que proporcionam,
explica em grande parte a natureza especial do progresso científico. Porque
podem, de ordinário, ter como líquida e certa a teoria vigente, preferin do explo-
rá-la a criticá-la, os praticantes das ciências maduras têm liberdade para explorar
a natureza até uma profundidade esotérica e um detalhe de outro modo
inimagináveis. Porque essa exploração acabará isolando severos pontos de
perturbação, eles podem confiar em que o exercício da ciência normal os
informará sobre quando e onde poderão tornar-se utilmente críticos popperianos.
Até nas ciências desenvolvidas há um papel essencial para a metodologia de Sir
Karl. É a estratégia apropriada para as ocasiões em que alguma coisa sai errado
com a ciência normal, quando a disciplina esbarra na crise.
Expus longamente esses pontos em outro lugar e não os desen volverei
aqui. Seja-me permitido, em vez disso, rematar esta seção voltando à
generalização com a qual a iniciei. A despeito da energia e do espaço que meus
críticos lhe dedicaram, não creio que a posição que acabo de esboçar se afaste
em demasia da posição de Sir Karl. Nesie conjunto de questões, nossas
divergências são de nuances. Sustento que, nas ciências desenvolvidas, as
ocasiões para a crítica não precisam ser deliberadamente procuradas, nem devem
sê-lo pela maioria dos praticantes. Quando se encontram, a primeira resposta
apropriada é uma reserva decente. Embora veja a necessidade de defender uma
teoria quando atacada pela primeira vez, Sir Karl dá mais ênfase do que eu à
busca deliberada de pontos fracos. Não há muita coisa para escolher entre nós.
Por que se dá, então, que os meus críticos atuais vêem aqui nossas
diferenças cruciais? Já sugeri uma das razões: o sentido deles
— que não compartilho mas que, de qualquer maneira, carece de importância
— de que minha descrição estratégica infringe uma moral mais elevada. Uma
segunda razão, que discutirei na seção seguinte, é a aparente incapacidade d eles
de ver em exemplos históricos as funções pormenorizadas do colapso da ciência
normal ao preparar o palco para as evoluções. Os casos históricos de Lakatos,
nesse particular, são especialmente interessantes, pois ele descreve com clareza a
transição da fase progressiva para a fase degenerativa de um programa de
pesquisa (a transição da ciência normal para a crise) e depois parece negar a
importância crítica do que disso re

305
sulta. Neste ponto, todavia, devo focalizar uma terceira razão, que emerge de
uma crítica proferida por Watkins, a qual, no contexto presente, serve a uma
propósito que não estava de maneira alguma nos planos dele.
“Contrastando com a idéia relativamente clara da testabilidade,” escreve
Watkins, “a noção [da ciência normal] “de deixar de ‘sustentar
convenientemente uma tradição de solução de enigmas’ é es sencialmente vaga.”
:!0
Com a acusação de vagueza eu concordo, mas é um erro supor que ela sirva
para distinguir minha posição da de Sir Karl. O que é exato no que concerne à
posição de Sir Karl, como também assinala Watkins, é a idéia da testabilidade
em princípio. Nisso me fio também, pois nenhuma teoria que não fosse em
princípio testável poderia funcionar ou deixar de funcionar adequadamente
quando aplicada ao soliicionamento científico de enigmas. A despeito da
estranha incapacidade de Watkins de percebê-lo, levo realmente muito a sério a
idéia de Sir Karl da assimetria entre falseamento e confirmação. O que é vago,
no entanto, a respeito da minha posição são os critérios rea is (se é isto o que se
requer) que devem ser aplicados quando se decide se determinada incapacidade
de resolução de enigmas há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, toman -
do-se assim uma ocasião de profunda preocupação. Essa decisão, contudo, é
idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia
ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão
vago quanto eu. No intuito de traçar uma separação entre nós nessa questão,
Watkins transfere a clareza da testabilidade em princípio para a área absurda da
testabilidade na prática, sem a menor alusão à maneira com que se há de efetuar
a transferência. Não se trata de um equívoco sem prece dentes, e faz
sistematicamente a metodologia de Sir Karl parecer, mais um lógica e menos
uma ideologia do que ela realmente é.
Ademais, retornando ao ponto deiendido no fim da última seção, é
legítimo perguntar se o que Watkins denomina vagueza constitui uma
desvantagem. Cumpre ensinar todos os cientistas — trata-se de um elemento
vital de sua ideologia — a ficarem alertas ao colapso da teoria e a saberem
responder-lhe, seja ele descrito como severa anomalia, seja descrito como
falseamento. Além disso, é mister fornecer-lhes exemplos do que se pode
esperar que façam suas teorias com cuidado e habilidade suficiente. De posse
apenas desses elementos, obviamente, eles chegarão com freqüência a
julgamentos dife

30. Neste volume, p. 39.

306
rentes em casos concretos: onde um enxerga uma causa de crise o outro não vê
mais do que evidência de um talento limitado para a pesquisa. Mas eles emitem
julgamentos e a falta de unanimidade que os distingue pode ser o que lhes salva
a profissão. A maioria das opiniões, segundo as quais uma teoria deixou de
sustentar adequadamente uma tradição de resolução de enigmas, revela -se
errônea. Se todos esposassem os mesmos pontos de vista, não sobraria ninguém
para mostrar que a teoria existente explica a anomalia aparente, co mo costuma
fazer. Se, por outro lado, ninguém estivesse disposto a assumir o risco e procurar
depois uma teoria alternativa, não haveria nenhuma das transformações
revolucionárias de que depende o desenvolvimento centífico. Segundo diz
Watkins, “deve haver um nível crítico em que uma quantidade tolerável de
anomalias se transforma numa quantidade intolerável”. 31 Não é mister, porém,
que esse nível seja o mesmo para todos, nem os indivíduos precisam especificar
de antemão seu próprio nível de tolerância. Basta-lhes estar certos de que
possuem um nível e ter consciência de algumas discrepâncias que os impeliriam
para ele.

4. CIÊNCIA NORMAL: SUA BUSCA ATRAVÉS


DA HISTÓRIA

Sustentei até agora que, se há revoluções, é preciso que haja ciência


normal. Pode-se, contudo, perguntar legitimamente se qualquer uma delas
existe. Toulmin o fez, e meus críticos popperianos encontram dificuldade para
descobrir na história uma ciência normal significativa, de cuja existência
depende a existência das revoluções. As perguntas de Toulmin têm um valor
especial, pois a resposta que lhes foi dada me obrigará a enfrentar algumas
dificuldades genuínas apresentadas por minhas Scientific Revolutions e a
modificar, de acordo com eias, minha apresentação original. Infelizmetne,
todavia, não são essas as dificuldades que Toulmin enxerga. Para que possam
ser isoladas, cumpre varrer a poeira que ele espalhou.
Conquanto tenha havido mudanças importantes em minha po sição nos sete
anos que decorreram após a publicação do meu livro, não figura entre elas a
mudança de uma preocupação com macror- revolução para uma concentração em
microrrevolução. Sem embargo disso, Toulmin descobre parte dessa mudança
cotejando um ensaio

31. Neste volume, p. 39.

307
lido em 1961 com um livro publicado em 1962. 32 O ensaio, todavia, foi escrito e
publicado depois do livro, e sua primeira nota de pé de página especifica a
relação que Toulmin inverte. Toulmin vai buscar outra prova da mudança numa
comparação entre o livro e o manuscrito do meu primeiro ensaio deste volume. 33
Mas ninguém mais, que eu saiba, chegou sequer a notar as diferenças que ele
sublinha, e o livro, de qualquer maneira, é muito explícito no que se refere à
centralidade do interesse que Toulmin só encontra em minha obra mais recente.
Entre as revoluções discutidas no corpo do livro estão, por exemplo, descoberta s
como as dos raios-X e do planeta Urano. “Reconhece-se”, declara o prefácio,
“que a extensão [do termo ‘revolução’ a episódios como estes] força um uso
habitual. Não obstante, continuarei a falar até das descobertas como
revolucionárias, porque é justamente a possibilidade de relacionar-lhes sua
estrutura, digamos, com a da revolução coperniciana que faz com que a concep -
ção ampliada me pareça tão importante.” 34 Meu interesse, em suma, nunca se
concentrou nas revoluções científicas como em “algo que tende a acontecer em
determinado ramo da ciência apenas uma vez em cada duzenos anos, ou coisa que
o valha”. 35 Mas sim que se dirigiu ao que Toulmin acredita que eu cheguei
somente após abandonar aquele interesse: um tipo pouco estudado de mudança
conceituai que ocorre com freqüência na ciência e é fundamental para o seu
progresso.
A analogia geológica de Toulmin é inteiramente apropriada a esse interesse,
mas não como ele a emprega. Toulmin enfatiza o aspecto do debate uniformismo -
catastrofismo que lidava com a possibilidade de atribuir catástrofes a causa
naturais, e que, depois de resolvida essa questão, “as ‘catástrofes’ passaram a ser
uniformes e governadas por leis exatamente como quaisquer outros fenômenos
geológicos e paleontológicos”. 36 Mas essa inserção do termo “uniformes” é
gratuita. Além da questão das causas naturais, o debate tem um segundo aspecto
central: a questão de saber se as catástrofes

32. Neste volume, pp. 49 e seg.


33. Veja também Toulmin, “The Evolutionary Development of Natural Science”
(1967), especialmente à p. 471, nota de rodapé n.° 8. A publicação dessa inexatidão biográfica
antes do artigo em que ela afirma basear-se deu-me muito trabalho.
34. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, 1962. À p. 6, a possibilidade de
estender a concepção a microrrevoluções é descrita como “uma tese fundamental’’ do livro.
35. Neste volume, p. 55.
36. Neste volume, p. 54; o grifo é meu.

308
existem, se se deveria atribuir um papel importante na evolução geo lógica a
fenômenos como terremotos e ações vulcânicas, que agiam mais súbita e
destrutivamente do que a erosão e a deposição sedi mentar. Os uniformistas
perderam essa parte do debate. Quando ele terminou, os geólogos reconheceram
duas espécies de mudança geológica, não menos distintas porque ambas se
deviam a causas naturais; uma delas atuava gradual e uniformemente; a outra,
súbita e catastroficamente. Mesmo hoje não consideramos os maremotos co mo
casos especiais de erosão.
De maneira análoga não afirmei que as revoluções eram aconte cimentos
inescrutáveis de unidade, senão que na ciência, como na geologia, há duas
espécies de mudança. Uma delas, a ciência normal, é o processo geralmente
cumulativo por cujo intermédio as crenças aceitas de uma comunidade científica
ganham substância e são expressas e ampliadas. É o que os cientistas foram
treinados para fazer, e a principal tradição da filosofia da ciência de fala inglesa
deriva do exame das obras exemplares em que esse treinamento está incluí do.
Infelizmente, como mostro em meu ensaio anterior, os proponentes dessa
tradição filosófica geralmente escolhem seus exemplos de mudanças de outra
espécie, que são então adaptadas para servir a este propósito. O resultado é a
incapacidade de reconhecer a preponderância das mudanças em que precisam ser
jogados fora e substituídos compromissos conceituais fundamentais à prática de
alguma especialidade científica. Obviamente, como diz Toulmin, as duas es -
pécies de mudanças se interpenetram: como em outros aspectos da vida, as
revoluções na ciência não são totais, mas o reconhecimento da continuidade
através das revoluções não levou os historiadores, nem ninguém, a abandonar a
idéia. Foi uma falha de minhas Scientific Revolutions o fato de só poder nomear,
e não analisar, o fenômeno a que se referiu repetidamente pelo nome de
“comunicação parcial”. Mas a comunicação parcial nunca foi, como o queria
Toulmin, “completa incompreensão [mútua] ”. 37 Nomeava um problema que
devia ser trabalhado e não elevado à inescrutabilidade. A menos que possamos
aprender mais sobre ele (oferecerei algumas sugestões na seção seguinte),
continuaremos a interpretar mal a natureza do progresso científico e talvez do
conhecimento. Nada no ensaio de Toulmin me convence de que seremos bem-
sucedidos se continuarmos a tratar todas as mudanças científicas como uma coisa
só.

37. Neste volume, p. 54.

309
Subsiste, contudo, o desafio fundamental deste trabalho. Pode mos
diferençar meras expressões e extensões de crença partilhada de mudanças que
envolvem reconstrução? A resposta em casos extremos é manifestamente “Sim”.
A teoria do aspecto do hidrogênio de Bohr foi revolucionária como não o foi a
teoria da estrutura fina do hidrogênio de Sommerfeld; a teoria astronômica de
Copémico foi revolucionária, mas a teoria calórica da compressibilidade
adiabática não o foi. Estes exemplos, contudo, são tão extremos que não chegam
a ser plenamente informativos: existem demasiadas diferenças entre as teorias
contrastadas, e as mudanças revolucionárias afetaram muita gente. Felizmente,
porém, não estamos restritos a eles: a teoria de Ampère do circuito elétrico foi
revolucionária (ao menos entre os eletricistas franceses), porque separava a
corrente elétrica dos efeitos eletrostáticos, até então conceitualmente unidos. A
Lei de Ohm também foi revolucionária e também encontrou resistência, porque
exigia uma reintegração de conceitos anteriormetne aplicados separada mente à
corrente e à carga. 38 Por outro lado, a lei de Joule-Lenz relacionando o calor
gerado num fio à resistência e à corrente foi um produto da ciência normal, pois
se achavam à mão assim os efeitos qualitativos como os conceitos necessários à
quantificação. Da mesma forma, num nfvel menos obviamente teórico, a
descoberta do oxigênio levada a cabo por Lavoisier (embora talvez não o fosse a
de Scheele e por certo não foi a de Priestley) foi revolucionária, pois era
inseparável de uma nova teoria da combustão e da acidez. O descobrimento do
néon, todavia, não o foi, pois o hélio já fornecera a noção de gás inerte e a
necessária coluna da tabela periódica.
Ê lícito perguntar-se todavia, até onde e até que grau de universalidade
pode ser levado esse processo de discriminação. Pergun tam-me repetidamente se
este ou aquele desenvolvimento foi “normal ou revolucionário”, e por via de
regra respondo que não sei. A resposta a cada caso concebível não depende da
minha capacidade, nem da capacidade de qualquer outra pessoa, mas da
aplicabilidade da discriminação a um número de casos muito maior do que o dos
fornecidos até agora. Parte da dificuldade em responder reside no fato de que a
discriminação entre episódios normais e revolucionários exige um estudo
histórico acurado, e poucas partes da história da ciência já foram estudadas
assim. Precisamos saber não só o nome da mudança, mas também a naturez a e a
estrutura dos compromissos

38. Sobre esses tópicos, veja Brown, “The Electric Current in Eearlv Nineteenth -
Century French Physics” (1969) e Schagrin, “Resistance to Ohm’s Law” (1963).

310
de grupo e depois da sua ocorrência. Muitas vezes, para deter miná- los, é
necessário conhecer também a maneira com que a mudança foi recebida quando
proposta pela primeira vez. (Não há outra área em que eu esteja mais
profundamente cônscio da necessidade de uma pesquisa histórica adicional, se
bem que não concorde com as conclusões obtidas por Pearce Williams e duvide
que os resultados da investigação me aproximem ainda mais de Sir Karl.) Minha
dificuldade, porém, tem um aspecto mais profundo. Posto que muito dependa de
novas pesquisas, as investigações necessárias não são simplesmente da espécie
acima indicada. Além do mais, a estrutura do argumento em minhas Scientific
Revolutions obscurece um pouco a natureza do que falta. Se eu estivesse
reescrevendo o livro agora, modificaria significativamente sua organização.
A essência do problema é que para responder à pergunta “nor mal ou
revolucionária?” precisamos perguntar primeiro, “para quem?” Às vezes, a
resposta é fácil: a astronomia coperniciana foi uma revolução para todos; o
oxigênio foi uma revolução para químicos, mas não o foi, digamos, para
astrônomos matemáticos, a menos que eles estivessem também interessados,
como Laplace, em assuntos químicos e térmicos. Para o segundo grupo o
oxigênio não passava de um gás a mais, cujo descobrimento significava mero
acréscimo de saber; nada que lhes fosse essencial como astrônomos teria de ser
alterado na assimilação da descoberta. Em regra geral, no entanto, não é possível
identificar grupos que compartem de compromissos cognitivos pela simples
enunciação de uma disciplina científica — astronomia, química, matemática, etc.
Mas isto foi o que acabei de fazer aqui e o que fiz antes em meu livro. Alguns
assuntos científicos, como, por exemplo, o estudo do calor, têm perten cido a
diferentes comunidades científicas em diferentes ocasiões, às vezes a diversas ao
mesmo tempo, sem se tomar domínio especial de nenhuma. Além disso,
conquanto os cientistas se inclinem muito mais para a unanimidade em seus
compromissos do que os que praticam, digamos, a filosofia e as artes, existem
escolas em ciência, comunidades que abordam o mesmo assunto de pontos de
vista muito diferentes. Os eletricistas franceses nos primeiros decênios do século
XIX eram membros de uma escola que não incluía quase nenhum eletricista
britânico do tempo, e assim por diante. Se estivesse agora reescrevendo o meu
livro, eu começaria, portanto, discutindo a es trutura comunitária da ciência e não
me fiaria exclusivamente de temas partilhados ao fazê -lo. A estrutura
comunitária é um tópico a cujo respeito possuímos hoje muito poucas
informações, mas que

311
se tornou recentemente uma das principais preocupações dos soció logos, e dela
se ocupam também cada vez mais os historiadores. 39
Os problemas de pesquisa envolvidos não são nada triviais. Os
historiadores da ciência que deles tratam devem deixar de confiar
exclusivamente nas técnicas do historiador intelectual e empregar também as do
historiador social e cultural. Posto que o trabalho mal haja começado, há razões
de sobra para esperar que ele tenha êxito, sobret udo no tocante às ciências
desenvolvidas, as que cortaram suas raízes históricas nas comunidades
filosóficas ou médicas. O que teríamos então seria um rol dos diferentes grupos
de especialistas através dos quais a ciência progrediu em vários períodos de
tempo. A unidade analítica seriam os praticantes de determinada especialidade,
homens reunidos por elementos comuns em sua educação e aprendi zado,
cônscios do trabalho um do outro, e caracterizados pela rela tiva plenitude de sua
comunicação profissional e pela relativa unanimidade do seu julgamento
profissional. Nas ciências maduras os membros de tais comunidades se veriam,
e seriam vistos pelos outros, como os responsáveis exclusivos por determinada
matéria e por determinado conjunto de metas, incluindo o treinamento dos seus
sucessores. A pesquisa, entretanto, revelaria também a existência de escolas
rivais. As comunidades típicas, pelo menos na cena cientí fica contemporânea,
podem consistir numa centena de membros e, às vezes, num número nitidamente
inferior. Indivíduos, particularmente os mais capazes, podem pertencer a vários
grupos, simultânea ou sucessivamente, e mudarão ou, pelo menos, ajustarão sua
maneira de pensar ao passar de um para outro.
Sugiro que grupos como esses sejam considerados as unidades produtoras
do conhecimento científico. Está claro que não poderiam funcionar sem ter os
indivíduos por membros, mas a própria idéia do saber científico como produto
particular apresenta os mesmos problemas intrínsecos apresentados pela idéia de
uma linguagem particular, paralelo ao qual voltarei. Nem o conhecimento nem a
linguagem serão os mesmos depois de concebidos como algo que o indi víduo
pode possuir e desenvolver sozinho. É, portanto, com respeito a grupos como
estes que se deve formular a pergunta “normal ou revolucionária?”. Muitos
episódios deixarão de ser, então, revolucionários para todas as comunidades,
muitos o serão apenas para um

39. Uma discussão um pouco mais circunstanciada dessa reorganização e uma pequena
bibliografia preliminar estão incluídas em meu ensaio de 1972 intitulado "Second Thoughts on
Paradigms”.

312
grupo, outros o serão para várias comunidades ao mesmo tempo, e uns poucos
para toda a ciência. Formulada dessa maneria, a per gunta terá, creio eu,
respostas tão precisas quanto as que requer minha distinção. Ilustrarei num
momento uma razão para pensar assim, aplicando este enfoque a alguns casos
concretos usados por meus críticos para suscitar dúvidas acerca da existência e
do papel da ciência normal. Em primeiro l ugar, no entanto, preciso indicar um
aspecto de minha atual posição que, muito mais claramente do que a ciência
normal, representa uma linha divisória profunda entre meu ponto de vista e o de
Sir Karl.
O programa que acaba de ser esboçado torna ainda mais clara do que antes
a base sociológica da minha posição. E o que é mais importante, ressalta o que
talvez ainda não tenha ficado claro, a extensão em que considero o
conhecimento científico como sendo, intrinsecamente, o produto de um agregado
de comunidade de especialistas. Sir Karl vê “um grande perigo na. . .
especialização”, e o contexto em que faz essa avaliação dá a entender que o
perigo é o mesmo que ele vê na ciência normal. 10 Mas no tocante ao primeiro,
pelo menos, a batalha foi claramente perdida desde o princípio. Isso não quer
dizer que possamos não desejar, por bons motivos, opor-nos à especialização e
até ser bem sucedidos no fazê-lo, senão que o esforço redundaria
necessariamente numa oposição à própria ciência. Todas as vezes em que Sir
Karl contrasta a ciência com a filosofia, como no início do seu ensaio, ou a
física com a sociologia, a psicologia e a história, como no fim, contrasta uma
disciplina esotérica, isolada e largamente autônoma, com outra que ainda visa
comunicar-se com um público maior que o dos seus profissionais e a persuadi-
lo. (A ciência não é a única atividade cujos praticantes podem ser agrupados em
comunidades, mas é a única em que cada comunidade é seu público e seu juiz
próprio e exclusivo. 11 O contraste não é novo, característico, digamos da Grande
Ciência e da cena contemporânea. A matemática e a astronomia eram assun tos
esotéricos na Antigüidade; a mecânica tornou-se assim depois de Galileu e
Newton; a eletricidade depois de Coulomb e Poisson; e assim até a economia
nos dias de hoje. A transição para um grupo fechado de especialistas, quase
sempre, fazia parte da transição para a maturidade que discuti há pouco ao
considerar a emergência da solução de enigmas. É difícil acreditar que se trata
de uma caracterís

40. Neste volume, p. 65.


41. Veja o meu comentário de 1969 sobre as relações entre a ciência e a arte.

TI
tica dispensável. A ciência talvez pudesse voltar a ser semelhante à filosofia,
como Sir Karl deseja, mas desconfio de que ele, nesse caso, a admirar ia menos.
A fim de rematar essa parte da minha discussão, recorro a alguns casos
concretos, através dos quais meus críticos ilustram suas dificuldades para
encontrar a ciência normal e suas funções na his tória, tomando primeiro um
problema suscitado por Sir Karl e Watkins. Ambos assinalam que nada parecido
com um consenso a respeito de fundamentos “emergiu durante a longa história
da teoria da matéria', desde os pré-socráticos até os dias atuais tem havido deba-
tes infindáveis entre os conceitos contínuos e descontínuos da matéria, entre
várias teorias atômicas de um lado, e teorias etéreas, ondulatórias e de campo de
outro”. 12 Feyerabend defende uma tese muito semelhante em relação à segunda
metade do século XIX contrastando os enfoques mecânicos, fenomenológicos e
teóricos de campo com problemas de física. 43 Concordo com todas as descrições
deles do que aconteceu. Mas a expressão “teorias da matéria”, pelo menos até os
últimos trinta anos, não diferencia sequer os interesses da ciência dos interesses
da filosofia e muito menos se fixa numa comunidade ou num pequeno grupo de
comunidades responsável pelo assunto e especialista nele.
Não estou insinuando que os cientistas não têm e não usam teorias da
matéria, nem que o seu trabalho não sofre a influência de tais teorias, nem
mesmo que os resultados de suas pesquisas não desempenham um papel nas
teorias da matéria sustentadas por outros. Mas até este século as teorias da
matéria têm sido mais um instrumento para os cientistas do que um tema. O fato
de especialidades diferentes terem escolhido instrumentos diferentes e, às vezes,
criticado as escolhas uns dos outros, não significa que elas não praticas sem a
ciência normal. A generalização freqüentemente ouvida de que, antes do advento
da mecânica ondulatória, físicos e químicos estadea- vam teorias características
e irreconciliáveis da matéria é demasia do simplista (em parte porque se pode
dizer o mesmo igualmente bem, nos dias de hoje, acerca de diferentes
especialidades químicas). Mas a própria possibilidade de uma generalização
dessa natureza dá a entender o modo com que a questão levantada por Watkins e
Sir

42. Neste volume, pp. 45 e seguintes e pp. 66-7. Como nota Watkins, Dudley Shapere
defendeu um ponto de vista similar em seu ensaio de 1964 intitul ado "The Structure of
Scientific Revolutions” em conexão com o papel do atomismo na química na primeira metade
do século XIX. Trato desse caso logo adiante.

43. Neste volume, p. 256.

314
Karl deve ser abordada. Quanto a isso, os praticantes de determinada
comunidade ou escola não precisam compartir sempre de uma teoria da matéria.
A química, na primeira metade do século XIX é um caso ilustrativo. Embora
muitos dos seus instrumentos fundamentais — proporção constante, proporção
múltipla, pesos combinados, etc.
— fossem desenvolvidos e se tornassem propriedade comum através da teoria
atômica de Dalton, os homens que os usaram puderam, após o acontecimento,
adotar atitudes amplamente variáveis a respei to da natureza e até da existência
dos átomos. A disciplina deles ou, pelo menos, muitas de suas partes, não
dependia de um modelo partilhado da matéria.
Até onde admitem a existência da ciência normal, meus críticos sempre
encontram dificuldade para descobrir a crise e seu papel. Watkins proporciona
um exemplo, cuja resolução decorre imediatamente da análise desenvolvida
acima. As Leis de Kepler, recorda-nos Watkins, eram incompatíveis com a teoria
planetária de Newton, mas os astrônomos, até então, não se haviam mostrado
insatisfeitos com eles. E Watkins afirma, portanto, que o tratamento
revolucionário dispensado por Newton aos movimentos planetários não foi
precedido de uma crise astronômica. Mas por que o teria sido? Em primei ro
lugar, a transição das órbitas keplerianas para as órbitas newto - nianas não
precisaria ter representado (falta-me a prova para eu ter a certeza) uma
revolução para os astrônomos. A maioria deles seguia Kepler e explicava a forma
das órbitas planetárias em termos mecânicos em lugar de explicá -la em termos
geométricos. (Isto é, a sua explicação não se utilizava da “perfeição geométrica"
da elipse, nem de outra característica de que a órbita se visse privada por efeito
de perturbações newtonianas.) Conquanto a transição do círculo para a elipse
tenha sido parte de uma revolução para eles, um ajustamento secundário do
mecanismo explicaria, como aconteceu com Newton, o afastamento da
elipticidade. E o que é mais importante, o ajustamento feito por Newton das
órbitas keplerianas era um subproduto do seu trabalho em mecânica, campo ao
qual a comunidade dos astrônomos matemáticos se referia de passagem em seus
prefácios, mas que, a partir de então, representou apenas o papel mais global em
seu trabalho. Na mecânica, porém, onde Newton provo cou uma revolução,
registrara-se uma crise amplamente reconhecida desde a aceitação do
copernicianismo. O exemplo contrário de Watkins é o melhor grão que eu
poderia desejar para o meu moinho.
Volto-me, finalmente, para um dos casos históricos mais desen volvidos de
Lakatos, o do programa de pesquisas de Bohr, pois ilus
tra o que mais me intriga em seu ensaio, amiúde admirável, e dá a entender quão
profundo e até residual pode ser o popperianismo. Conquanto sua terminologia
seja diferente, seu aparelho analítico es tá tão próximo do meu quanto o que
mais o esteja: núcleo, trabalho no cinto de proteção e fase degenerativa são
paralelos bem próximos dos meus paradigmas, ciência normal e crise. Lakatos,
contudo, não vê como funcionam essas noções partilhadas nem mesmo quando
as aplica ao que c para mim um caso ideal. E isso é importante. Permi- tam-me
ilustrar algumas coisas que ele poderia ter visto e poderia ter dito. Minha
versão, como a sua ou como qualquer outro trecho de narrativa histórica, será
uma reconstrução racional. Mas não pedirei aos leitores que apliquem
“toneladas de sal” nem acrescentem notas de pé de página assinalando que o que
está dito em meu texto é falso."
Considere-se a narrativa de Lakatos da origem do átomo de Bohr. “O
problema básico”, escreve ele, “era o enigma de como os átdmos d e Rutherford.
. . podem permanecer estáveis; pois, de acor do com a teoria bem corroborada do
eletromagnetismo de Maxwell- -Lorentz, eles deveriam desintegrar-se.” 45 Eis
aí um genuíno problema popperiano (e não um enigma kuhniano) nascido do
conflito entre duas partes da física cada vez mais bem estabelecidas. Estivera
disponível, além disso, por algum tempo, como foco potencial de crí tica. Não se
originou do modelo de Rutherford em 1911; a instabili dade radioativa era
igualmente uma dificuldade para a maioria dos modelos mais velhos de átomo,
incluindo o de Thompson e o de Na- gaoka. De mais a mais, foi esse problema
que Bohr (em certo sentido) resolveu em seu famoso ensaio tripartido de 1913,
inaugurando

44. Neste volume, pp. 169 e 172, 179 e alhures. Pode-se indagar razoavelmente da
força evidenciai de exemplos que exigem essa espécie de qualificação (e será “qualificação” a
palavra realmente certa?). Em outro contexto, no en tanto, eu me mostrarei muito grato por
esses “casos históricos” de Lakatos. Mais claros, porque mais explícitos, do que quaisquer
exemplos que conheço, eles ilustram as diferenças entre o modo com que os filósofos e os
historiadores costumam fazer história. O problema não consiste nas probabilidades que têm
os filósofos de cometer erros — Lakatos conhece os fatos melhor do que muitos historiadores
que escreveram sobre esses assuntos, e os historiadores cometem erros monumentais. Mas um
historiador não incluiria em sua narrativa um relato fatual que soubesse ser falso. Se o
tivesse feito, achar-se ia tão sensível ao próprio deslize que não comporia uma nota de pé de
página chamando a atenção para ele. Ambos os grupos são escrupulosos, mas diferem quanto
ao objeto dos seus escrúpulos. Discuti algumas diferenças dessa espécie em minh a
Conferência de Isenberg não-publicada, “The Relations between History and Philosophy of
Science”, pronunciada em março de 1968.

45. Neste volume, p. 173.

316
desse modo uma revolução. Não admira que Lakatos quisesse fazer dele o
“problema básico” para o programa de pesquisa que produziu a revolução, mas
não o conseguiu. lfi
Ao invés disso, a base era um enigma inteiramente normal. Bohr propôs -se
melhorar as aproximações físicas num ensaio de C. G. Darwin sobre a energia
perdida por partículas carregadas que passam pela matéria. No processo, fez a
descoberta, para ele surpreendente, de que o átomo de Rutherford, à diferença de
outros modelos correntes, era mecanicamente instável e de que um dispositivo ad
hoc, semelhante ao de Planck, para estabilizá-lo fornecia uma promissora
explicação das periodicidades na tabela de Mendeleiev, outra coisa que ele não
estava procurando. Nesse ponto o seu modelo ainda não tinha estados excitados,
nem Bohr tencionava aplicá-lo aos espectros atômicos. Tudo isso aconteceu, no
entanto, quando ele tentou conciliar seu modelo com o modelo aparentemente
incompatível desenvolvido por J. W. Nicholson e, entrementes, encontrou a
fórmula de Balmer. Como grande parte da pesquisa que produz revoluções, as
maiores realizações de Bohr em 1913 foram, portanto, produtos de um programa
de pesquisa dirigido para metas muito diferentes das que se alcançaram.
Conquanto não pudesse ter estabilizado o modelo de Rutherford pela quantização
se não tivesse tido conhecimento da crise que a obra de Planck introduzira na
física, sua própria obra ilustra com muita clareza a eficácia revolucionária dos
enigmas normais de pesquisa.
Examine-se, finalmente, o último trecho, do caso histórico de Lakatos, a
fase degenerativa da velha teoria quântica. Ele c onta bem a maior parte da
história e eu me limitarei a chamar a atenção para ela. A partir de 1900, os
físicos entraram a reconhecer, cada vez mais amplamente, que o quantum de
Planck introduzira uma incoerência fundamental em física. A princípio, muitos
tentaram eliminá- la mas, depois de 1911 e sobretudo depois da invenção do
átomo de Bohr, esses esforços críticos foram abandonados. Por mais de um
decênio, Einstein foi o único físico de nota que continuou a dirigir suas energias
para a busca de uma física consistente. Outros aprenderam a viver com a
inconsistência e tentaram, em vez disso, resolver enigmas técnicos com os
instrumentos de que dispunham. Sobretudo nas áreas dos espectros atômicos, da
estrutura atômica e dos calores específicos, suas realiz ações não tiveram
precedentes. Embora a in

46. Sobre o que se segue, veja Heilbron e Kuhn, "The Genesis of the Bohr Atom”
(1969).

317
consistência da teoria física fosse largamente reconhecida, os físicos, apesar de
tudo, puderam explorá-la e, ao fazê-lo, realizaram descobertas fundamentais
num ritmo extraordinário entre 1913 e 1921. De repente, no entanto, a partir de
1922, esses mesmos êxitos isolaram três problemas obstinados — o modelo do
hélio, o efeito anômalo de Zeeman e a dispersão ótica — que não poderiam ser
resolvidos por nada que lembrasse a técnica existente, coisa de que os físicos se
persuadiam cada vez mais. Em resultado disso, muitos modificaram sua atitude
de pesquisa, passando a multiplicar as versões da velha teoria quântica, cada
qual mais descabida que a anterior, projetando e experimentando cada uma delas
contra os três pontos reconhecidos de perturbação.
É a esta última fase, de 1922 em diante, que Lakatos chama o estágio
degenerativo do programa de Bohr. Para mim é um caso típico d e crise,
claramente documentado em publicações, correspon dência e anedotas. Vêmo-lo
praticamente do mesmo modo. Lakatos poderia, portanto, ter contado o resto da
história. Para os que esta- vam experimentando a crise, dois dos três problemas
que a provocaram revelaram-se imensamente informativos, a dispersão e o efeito
anômalo de Zeeman. Por uma série de medidas correlatas, demasia do complexas
para serem esboçadas aqui, a procura deles conduziu primeiro à adoção em
Copenhague de um modelo de átomo em que os chamados osciladores virtuais
juntavam estados quânticos discretos, depois a uma fórmula para a dispersão
teórica quântica e, finalmente, para a mecânica das matrizes que encerrou a crise
três anos depois do seu início. Para essa primeira formulação da mecânica
quântica, a fase degenerativa da velha teoria quântica forneceu, a um tempo, a
ocasião e muita substância técnica detalhada. A história da ciência, pelo que sei,
não oferece outro exemplo tão claro, tão circunstanciado e tão convincente das
funções criativas da ciência normal e da crise.
Lakatos, entretanto, ignora este capítulo e salta para a mecâ nica
ondulatória, a segunda e, a princípio, muito diversa formulação de uma nova
teoria quântica. Primeiro, descreve a fase degenerativa da velha te oria quântica
como cheia de “inconsistências” cada vez mais estéreis e de hipóteses cada vez
mais “ad hoc" (os termos “ad hoc" e “inconsistências” estão certos; “estéreis”
não poderia estar mais errado; essas hipóteses não somente conduziram à
mecânica de matrizes mas também ao spin eletrônico). Em seguida, apresenta a
inovação que resolve a crise como um mágico tira um coelho da cartola: “Logo
apareceu um programa de pesquisa rival: a mecânica

318
ondulatória... [que] não tardou a alcançar, vencer e subst ituir o programa de
Bohr. O trabalho de Broglie surgiu na ocasião em que o programa de Bohr estava
degenerando. Mas isso não passou de coincidência. Ficamos a perguntar-nos o que
teria acontecido se de Broglie tivesse escrito e publicado seu estudo em 1914 em
lugar de fazê-lo em 1924.” 17
A resposta à pergunta retórica, que remata o período, é clara:
absolutamente nada. Tanto o ensaio de de Broglie quanto o caminho seguido
desde o citado ensaio até à equação ondulatória de Schrodin - ger dependem,
detalhadamente de acontecimentos verificados depois de 1914: do trabalho de
Einstein e do próprio Schrondinger, assim como da descoberta do efeito de
Compton em 1922. 18 Ainda que esse ponto não pudesse ser documentado com
detalhes, não estará sendo muito forçada a coicindência quando se usa para
explicar a emergência simultânea de duas teorias independentes e, a princípio,
muito diferentes, ambas capazes de resolver uma crise que fora visível só por
três anos?
Permitam que eu seja escrupuloso. Se bem deixe escapar inteiramente as
funções criativas essenciais da crise da velha teoria quân tica, Lakatos não erra
de todo no tocante à sua importância para a invenção da mecânica ondulatória. A
equação ondulatória não foi uma resposta à crise que começou em 1922, senão
para a crise que data do trabalho de Planck em 1900 e para a qual a maioria dos
físicos voltou as costas depois de 1911. Se Einstein não se tivesse tenazmen te
recusado a pôr de lado sua profunda insatisfação com as incom patibilidades
fundamentais da velha teoria quântica (e se não lhe tivesse sido possível ligar
esse descontentamento aos enigmas técni cos concretos dos fenômenos de
flutuação eletromagnética — algo para o qual ele não encontrou equivalente
depois de 1925), a equação ondulatória não teria emergido quando e como
emergiu. O caminho de pesquisa que conduz a ela não é o mesmo que conduz à
mecânica das matrizes.
Mas as duas tampouco são independentes, nem a simultaneidade do seu
término se deve tão-só à coincidência. Entre os vários episó dios de pesquisa que
as ligam figura, por exemplo, a convincente demonstração de Compton das
propriedades corpusculares da luz,

47. Neste volume, p. 190; o grifo é meu.


48. Veja Klein, “Einstein and the Wave-Particle Duality” (1964), e Ro- man e Forman,
“Why Was It Schrõdinger Who Developed de BrogIie’s Ideas?” (1969).

319
subproduto de uma parte muito específica de pesquisa normal sobre a dispersão
dos raios-X. Antes de poder pensar na idéia das ondas da matéria, os físicos
tinham primeiro de levar a sério a idéia do fóton, o que pouca gente havia feito
antes de 1922. O trabalho de de Broglie começou como uma teoria do fóton,
sendo que o seu esforço principal visou a conciliar a lei da radiação de Planck
com a estrutura corpuscular da luz; as ondas da matéria entraram no meio do
caminho. O próprio de Broglie talvez não tivesse precisado da des coberto de
Compton para levar o fóton a sério, mas o seu público, francês e estrangeiro,
sem dúvida precisava. Conquanto a mecânica ondulatória em nenhum sentido se
seguisse ao efeito de Compton, existem laços históricos entre os dois. No
caminho para a mecânica das matrizes o papel do efeito de Compton é ainda
mais claro. A primeira utilidade do modelo do oscilador virtual em Copenhague
foi mostrar que esse efeito poderia ser explicado sem recorrer ao fóton de
Einstein, conceito que Bohr relutara notoriamente em aceitar. Aplicou -se, em
seguida, o mesmo modelo à dispersão e encontra ram-se as pistas para a
mecânica das matrizes. O efeito de Compton é, portanto, uma ponte e stendida
sobre o abismo que Lakatos esconde sob o nome de “coincidência”.
Tendo fornecido em outros lugares muitos outros exemplos dos papéis
significativos da ciência normal e da crise, não continuarei a multiplicá -los aqui.
A míngua de pesquisas adicionais eu não poderia, de qualquer maneira, fornecê -
los em quantidade suficiente. Quando for completada, essa pesquisa talvez não
confirme o que digo, mas o que já foi feito, até agora não ajuda, por certo, os
meus críticos. Eles precisam continuar procurando exemplos contrários.

5. IRRACIONALIDADE E ESCOLHA DA TEORIA

Passo agora a tecer considerações sobre um derradeiro conjunto de temas


que merecem consideração, mencionados pelos meus críti cos atuais, que os
partilham com outros filósofos, e que decorrem princ ipalmente de minha
descrição dos processos pelos quais os cientistas escolhem entre teorias
concorrentes, e resultam em acusações agrupadas em tomo de termos como
“irracionalidade”, “regra das multidões” e “relativismo”. Nesta seção pretendo
eliminar os mal- -entendidos pelos quais meu próprio passado retórico é, sem
dúvida, parcialmente responsável. Em minha seção final, que se segue a esta,
tratarei de alguns assuntos mais profundos, provocados pelo proble

320
ma da escolha da teoria. Nesse ponto, os termos “paradigma” e
•‘incomensurabilidade”, que até agora evitei quase que de todo, tor narão a entrar
na discussão.
Em minhas Scientific Revolutions descrevo a ciência normal, a certa altura,
como “tentativa enérgica e dedicada de forçar a natu reza a entrar nas caixas
conceituais fornecidas pela educação profissional.” 49 Mais tarde, discutindo os
problemas que cercam a escolha entre os conjuntos concorrentes de caixas,
teorias ou paradigmas, eu os descrevi como 50 :

acerca de técnicas de persuasão, ou acerca de argumentos e con- tra-


argumentos numa situação em que. .. não estão em jogo nem a demonstração
nem o erro. A transferência de lealdade de paradigma a paradigma é uma
experiência de conversão que se não pode forçar. A resistência que dura a vida
toda. . . não é uma violação de padrões científicos, mas um índice da natureza
da própria pesquisa científica ... Conquanto sempre possa encontrar homens
— como Priestley, por exemplo — desarragoados a ponto de resistir o quanto
resistiram, o historiador não encontrará um ponto em que a resistência se
torna ilógica ou não-científica. Na pior das hipóteses, poderá querer dizer que
o homem que continua a resistir depois de todos os seus colegas se haverem
convertido deixa, ipso facto, de ser um cientista.

Não admira (ainda que eu mesmo tenha ficado muito surpreen dido) que
trechos como esse sejam interpretados por certos grupos como querendo dizer
que, nas ciências desenvolvidas, a força faz o direito. Eu teria afirmado, segundo
dizem, que os membros de uma comunidade científica podem acreditar em tudo
o que quiserem, bastando para isso que decidam primeiro sobre o objeto do seu
consenso, para impô-lo depois aos colegas e à natureza. Os fatores
determinantes daquilo em que decidem acreditar são fundamental mente
irracionais, questões fortuitas e de gosto pessoal. Nem a lógica, nem a
observação, nem a boa razão estão implicadas na escolha da teoria. Seja ela o
que for, a verdade científica é completamente rela tivista.
Estes mal-entendidos são todos danosos, não importando qual seja minha
responsabilidade por possibilitá-los. Posto que ainda deixe uma profunda divisão
entre mim e os meus críticos, a eliminação dos mal-entendidos é indispensável
até para descobrir nossa diver

49. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, 1962, p. 5.


50. Op. cit. p. 151.

321
gência. Antes de tratá-los individualmente, no entanto, cabe aqui um reparo de
ordem geral. Os tipos de mal-entendidos que acabo de esboçar são expressos
apenas por filósofos, grupo já familiarizado com os pontos a que viso em
trechos como o que acabo de citar. À diferença dos leitores para os quais o
ponto é menos familiar, eles às vezes supõem que eu pretendo mais do que
realmente pretendo. O que quero dizer, no entanto, é apenas o seguinte.
Num debate sobre a escolha de teorias, nenhuma das partes tem acesso a
um argumento que se assemelhe a uma prova da lógica ou da matemática
formal. Nesta última, tanto as premissas quanto as regras de inferência são
estipuladas de antemão. Em havendo diver gência no tocante às conclusões, as
partes que figuraram no debate podem reconstituir os passos dados, um por um,
conferindo cada passo com a estipulação anterior. No fim do processo, um ou
outro terá de admitir que, num ponto isolado da discussão, se enganou, i nfringiu
ou aplicou mal uma regra anteriormente aceita. Depois des sa admissão, não lhe
resta nenhum outro recurso e a prova do adver sário é irrecusável. Só quando os
dois descobrem, em vez disso, que diferem a propósito do significado ou da
aplicabilidade de uma regra estipulada, que seu consenso anterior não fornece
uma base suficiente de prova, é que o debate se parece com o que ocorre
inevitavelmente na ciência.
Nessa tese relativamente familiar nada deveria sugerir que os cientistas
não fazem uso da lógica (e da matemática) em seus argumentos, incluindo os que
têm por fim persuadir um colega a renunciar a uma teoria e abraçar outra. Estou
atônito com a tentativa de Sir Karl de condenar-me por autocontradição porque
eu mesmo emprego argumentos lógicos. 51 O que melhor se pode dizer é que
espero que meus argumentos, pelo simples fato de serem lógicos, sejam irre -
cusáveis. Sir Karl enfatiza o meu ponto, e não o seu, quando os des creve como
lógicos porém equivocados, e não tenta destacar o equí voco nem explicitar seu
caráter lógico. O que ele quer dizer é que, apesar da lógica dos meus
argumentos, discorda da minha conclusão. Nosso desacordo há de girar em
torno de premissas ou da maneira com que elas devem ser aplicadas, situação
comum entre cientistas que debatem a escolha de teorias. Quando isso acontece,
elas recorrem à persuasão como prelúdio da possibilidade de demonstração.
Citar a persuasão como recurso do cientista não é sugerir a inexistência de
razões excelentes para escolher uma teoria em detri

51 Neste volume, pp. 68 e 70.

322
mento de outra. 52 Não creio positivamente que “a adoção de uma nova teoria
científica seja um assunto intuitivo ou místico, um caso de descrição
psicológica, muito mais que de codificação lógica ou metodológica”. 5 '* Ao
contrário, o capítulo das minhas Scientific Re- volutions de que foi tirada a
citação precedente nega explicitamente “que os novos paradigmas triunfem
finalmente através de alguma estética mística”, e as páginas que antecedem essa
negativa contêm uma codificação preliminar de boas razões para a escolha de
teoria. 51 Existem, além disso, razões do mesmo tipo comum na filosofia da
ciência: exatidão, amplitude, simplicidade, produtividade e outras. É vitalmente
importante que os cientistas aprendam a avaliar essas características e que lhes
sejam fornecidos exemplos que as ilustrem na prática. Se eles não adotassem
valores como esses, suas disciplinas se desenvolveriam de modo muito diferente.
Note-se, por exemplo, que os períodos em que a história da arte f oi uma história
de progresso também foram os períodos em que a meta do artista era a exatidão
da representação. Com o abandono desse valor, o padrão de desenvolvimento
alterou-se drasticamente embora continuasse um desenvolvimento muito
significativo. 55
Não nego, portanto, a existência de boa razões, nem que essas razões sejam
da espécie habitualmente descrita. Insisto, todavia, em que elas são valores que
se usam a fazer escolhas e não regras de escolha, o que não impede que os
cientistas que delas compartem possam fazer escolhas diferentes na mesma
situação concreta. Dois fatores estão profundamente envolvidos nisso. Primeiro,
em muitas situações concretas, valores diferentes, ainda que todos representem
boas razões, ditam conclusões diferentes, escolhas diferentes. Nos casos de
conflito de valor (uma teoria, por exemplo, é mais simples, mas a outra é mais
precisa), o peso relativo colocado sobre valores diferentes por indivíduos
diferentes representa um papel decisivo na escolha individual. E o que é mais
importante, se bem que os cientistas compartilhem desses valores e tenham de
continuar a fazê-lo para que a ciência sobreviva, nem todos os aplicam da
mesma maneira. A simplicidade, o alcance, a produtividade e até a precisão
podem ser julgados de modo muito diverso (o que não quer dizer que pos

52. Sobre uma versão da opinião de que Kuhn insiste em que "as deci sões de um grupo
científico para adotar um novo paradigma não podem basear -se em boas razões de espécie
alguma, fatuais ou quaisquer outras”, veja Shapere, “Meaning and Scientific Change”,
especialmente a p. 67.
53. Cf. Scheffler, Science and Subjectivity, 1967, p. 18.
54. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, 1962, p. 157.
55. Gombrich, Art and Illusion. 1960, pp. 11 e seguintes.

323
sam ser julgados arbitrariamente) por pessoas diversas. E estas, mais uma vez,
podem diferir em suas conclusões sem violar nenhuma regra aceita.
A variabilidade de julgamento, como já tive ocasião de sugerir em conexão
com o reconhecimento das crises, talvez seja até essencial ao progresso
científico. A escolha de uma teoria, que também é, como diz Lakatos, a escolha
de um programa de pesquisa, envolve grandes riscos, sobretudo nos estágios
iniciais. Em virtude de um sistema de valores que difere do sis tema comum em
sua aplicabilidade, alguns cientistas precisam escolhê-la logo para que ela possa
desenvolver-se até chegar ao ponto de lograr a capacidade geral de persuasão.
Entretanto, as escolhas ditadas por esses sistemas atípicos de valores geralmente
são erradas. Se todos os membros da comuni dade aplicassem valores da mesma
maneira arriscada, a atividade do grupo cessaria. Creio que Lakatos passa por
alto este último ponto e, com ele, o papel essencial da variabilidade individual
no que só mais tarde é a unânime decisão do grupo. Como Feyerabend também
enfatiza, dar a essas decisões um “caráter histórico” ou sugerir que elas são
tomadas apenas “retrospectivamente” é privá-las de sua função/’ 6 A comunidade
científica não pode esperar pela história, embora alguns membros individuais o
façam. Os resultados necessários são logrados, em lugar disso, distribuindo -se
pelos membros do grupo o risco que deve ser aceito.

Alguma coisa neste argumento dá a entender, por acaso, a pro priedade de


expressões como decisão pela “psicologia das multidões”? r ’ 7 Creio que não. Ao
contrário, uma característica da multidão é a rejeição de valores de que seus
membros costumam compartilhar. Feito por cientistas, o resultado seria o fim da
sua ciência, como o dá a entender o caso Lysenko. Meu argumento, porém, vai
ainda mais longe, pois enfatiza que, à diferença da maioria das disciplinas, a
responsabilidade por aplicar valores científicos partilhados deve ser deixada ao
grupo de especialistas. 58 Pode não se estender a todos os cientistas, muito menos
a todos os leigos cultos, e menos ainda à multidão. Se o grupo de especialistas
se comporta como uma multidão, renunciando aos seus valores normais, a
ciência já não tem salvação.

56. Neste volume, pp. 147, 265 e seguintes.


57. Neste volume, pp. 172, nota de pé de páginas n.“ 188 e 221.
58. Cf. meu The Structure of Scientific Revolutions, p. 167.

324
Pela mesma razão, nenhuma parte do meu argumento aqui ou em meu livro
supõe que os cientistas podem escolher qualquer teoria que lhes agrade na
medida em que concordam em sua escolha e conseqüentemente a põem em
prática. 5S A maioria dos enigmas da ciência normal é diretamente apresentada
pela natureza, e todos envolvem indiretamente a natureza. Conquanto soluções
diferentes tenham sido recebidas como válidas em diferentes ocasiões, não se
pode forçar a natureza a ajustar-se a um conjunto arbitrário de caixas con-
ceituais. Pelo contrário, a história da protociência mostra que a ciência normal
só é possível com caixas muito especiais, e a história da ciência desenvolvida
mostra que a natureza não se deixará enclausurar indefinidamente em nenhum
conjunto construído até agora pelos cientistas. Se digo, às vezes, que qualquer
escolha feita por cientistas com base em sua experiência pa ssada e em
conformidade com seus valores tradicionais é ipso jacto ciência válida para o seu
tempo, estou apenas sublinhando uma tautologia. As decisões toma das de outras
maneiras ou as que não poderiam ser tomadas desse modo não proporcionam
base para a ciência e não seriam científicas.
Subsistem as acusações de irracionalidade e relativismo. Sobre a primeira,
no entanto, já falei, pois discuti as questões, excetuando a incomensurabilidade,
de que ela parece nascer. Entretanto, não vejo com otimismo esse assunto, pois
eu não entendia antes e não entendo agora o que meus críticos querem dizer
quando empregam termos como “irracional” e “irracionalidade” para caracterizar
meus pontos de vista. Essgs rótulos me parecem meras relíquias, barreiras que
impedem uma atividade conjunta, seja para a discussão, seja para a pesquisa.
Minhas dificuldades para compreender, todavia são ainda mais claras e mais
agudas quando se empregam esses termos, não para criticar minha posição, senão
para defendê-la. Há manifestamente muita coisa na última parte do ensaio de
Feyrabend com a qual estou de acordo, mas descrever o argumento como defesa
da irracionalidade na ciência me parece não só absurdo mas também vagamente
obsceno. Eu o descreveria, como descrevo o meu, como

59. A seguinte anedota pode dar uma idéia da minha surpresa e da minha mortificação
provocadas por isso e pelas maneiras correlatas de ler o meu livro. Durante uma reunião, eu
conversava com uma amiga e colega com a qual só me encontrava de raro em raro, mas que eu
sabia, através de uma crítica publicada, ser entusiasta do meu livro. Ela virou -se para mim e
disse, "Bem, Tom, parece-me que o seu maior problema agora é mostrar em que sentido a
ciência pode ser empírica”. Meu queixo caiu e ainda está meio bambo. Tenho uma recordação
visual total dessa cena, a única depois da entrada de de Gaulle em Paris em 1944.

325
uma tentativa para mostrar que as teorias existentes de racionalidade não são
totalmente corretas e que precisamos reajustá-las ou modificá-las para explicar
por que a ciência opera como opera. Supor, em lugar disso, que possuímos
critérios de racionalidade independentes de nossa compreensão dos
fundamentos do processo científico é abrir a porta para a fantasia utópica.
Uma resposta à acusação de relativismo precisa ser mais complexa do que
as que precedem, pois a acusação não nasce apenas do mal -entendido. Num
sentido do termo eu talvez seja relativista; mas num sentido mais essencial não
o sou. Só posso esperar aqui separar os dois. Já deve estar claro q ue minha
concepção do desenvolvimento científico é fundamentalmente evolucionária.
Imagine-se, portanto, uma árvore evolucionária que representa o
desenvolvimento das especialidades científicas a partir da sua origem comum,
digamos, na filosofia natural primitiva. Imagine-se, além disso, uma linha
traçada nessa árvore desde a base do tronco até a ponta de um galho pri mário
sem voltar sobre si mesma. Duas teorias, sejam elas quais forem, ao longo desta
linha estão relacionadas entre si por descendência. Considerem-se agora duas
teorias assim colhidas em pontos não muito próximos da origem. Creio que será
fácil conceber uma série de critério — incluindo a máxima precisão de
predições, grau de especialização, número (mas não extensão) de soluções de
problemas concretos — que permitam a qualquer observador não envol vido com
nenhuma delas dizer qual é a mais velha e qual a descen dente. Para mim,
portanto, o desenvolvimento científico, como a evolução biológica, é
unidirecional e irreversível. Uma teoria científica não é tão boa quanto outra por
fazer o que fazem normalmente os cientistas. Nesse sentido não sou relativista.
Mas existem razões por que me chamam de relativista, e elas se
relacionam com os contextos em que sou cauteloso na aplicação do rótulo
“verdade”. No atual contexto, seus empregos intrateóricos me parecem não -
problemáticos. Os membros de determinada comuni dade científica geralmente
se porão de acordo sobre as conseqüências de uma teoria comum capazes de
suportar o teste da experiência e que, portanto, são verdadeiras, sobre as que são
falsas segundo a atual aplicação da teoria, e sobre as que ainda não foram
testadas. Lidando com a comparação de teorias destinadas a abranger a mesma
extensão de fenômenos naturais, sou mais cauteloso. Quando se trata de teorias
históricas, como as que foram examinadas mais acima, posso dizer com Sir Karl
que cada uma delas foi havida por verdadeira em sua época e depois posta de
lado por falsa. De mais a mais, posso dizer

326
que a teoria mais recente é a melhor das duas como instrumento para a prática da
ciência normal, e espero acrescentar o suficiente acerca dos sentidos em que era
melhor explicar as principais características evolutivas do desenvolvimento das
ciências. Podendo chegar a esse ponto, não me sinto relativista. Não obstante, há
outro passo, ou espécie de passo, que muitos filósofos da ciência desejam dar e
que eu recuso. Eles desejam comparar teorias como representações da natureza,
como enunciados sobre “o que há realmente lá fora”. Admitindo -se que nenhuma
teoria de um par histórico é verdadeira, eles procuram, apesar disso, um sentido
em que a mais recente está mais perto da verdade. Acredito que nada disso
exista. Por outro lado, já não sinto que se tenha perdido alguma coisa por
assumir essa posição, muito menos a capacidade de explicar o progresso
científico.
O que estou rejeitando será esclarecido com referência ao ensaio de Sir
Karl e a seus outros escritos. Ele propôs um critério de veros similhança que lhe
permite escrever que “uma teoria mais recente. . . t 2 suplantou Z( . . . por
aproximar-se mais da verdade do que íi”. Outrossim, ao discutir uma sucessão de
referenciais, ele fala de cada membro mais recente da série como “melhor e mais
espaçoso" do que os predecessores; e dá a entender que o limite da série, pelo
menos se levada ao infinito, é a verdade “'absoluta' ou ‘objetiva', no sentido de
Tarski”. 60 Essas posições, contudo, apresentam dois problemas, e confesso que
tenho dúvidas sobre a posição de Sir Karl em relação ao primeiro deles. Dizer,
por exemplo, de uma teoria de campo que ela “está mais perto da verdade” do
que uma teoria mais velha de matéria-e-força deveria significar, a menos que as
palavras estejam sendo usadas de maneira estranha, que os constituintes finais
da natureza são mais parecidos com campos do que com matéria e força. Mas
nesse contexto ontológico está longe de ser claro o modo com que se há de
explicar a expressão “mais parecido”. A compa ração de teorias históricas não
indica que suas ontologias se estão aproximando de um limite: de alguns modos
fundamentais a relatividade geral de Einstein se parece mais com a física de
Aristóteles do que com a de Newton. De qualquer maneira, a evidência da qual
se devem tirar conclusões acerca de um limite ontológico nã o é a comparação
das teorias em seu todo senão a comparação das suas conseqüências empíricas.
Este salto é importante, sobretudo em face do teorema segundo o qual qualquer
conjunto finito de conseqüên

60. Popper, Conjectures and Rejutations, 1963, capítulo 10, sobretudo a p. 232; e,
neste volume, p. 69; o grifo é meu.

327
cias de determinada teoria pode ser derivado de outro conjunto incompatível.
A outra dificuldade, mais fundamental, é enfatizada pela refe rência de Sir
Karl a Tarski. A concepção semântica da verdade é regularmente sumariada no
exemplo: “A neve é branca” é verdade se e somente se a neve é branca. Para
aplicar essa concepção na comparação de duas teorias, preqisamos supor,
portanto, que seus proponentes concordam acerca dos equivalentes t écnicos de
coisas práticas, como o saber se a neve é branca. Se essa suposição se refe risse
exclusivamente à observação objetiva da natureza, não apresen taria problemas
insuperáveis, mas ela envolve também a suposição de que os observadores
objetivos em apreço compreendem “a neve é branca” da mesma maneira, assunto
que poderá não ser óbvio se a sentença tiver o seguinte teor: “os elementos
combinam-se em constante proporção pelo peso”. Sir Karl considera como
necessariamente verdadeiro que os proponentes de teorias concorrentes
compartilhem de uma linguagem neutra adequada à comparação desses relatos
de observação. Estou prestes a afirmar que eles não o fazem. Se eu estiver certo,
tanto “verdade” como “prova” podem ser termos de aplicações apenas
intrateóricas. Enquanto não se resolver o problema de uma linguagem neutra de
observação, a confusão será perpetuada pelos que assinalam (como o faz
Watkins quando responde aos meus reparos rigorosamente paralelos acerca de
“equívocos” 51 ) que o termo é regularmente usado como se a transferência de
contextos intrateóricos para contextos interteóricos não fizesse diferença.

6. INCOMENSURABILIDADE E PARADIGMAS

Chegamos, afinal, à constelação central de questões que me se param da


maioria dos meus críticos. Lamento a extensão da jornada até este ponto mas só
aceito uma responsabilidade parcial pelos obstáculos que foi preciso tirar do
caminho. Infelizmente, a necessidade de relegar essas questões à seção final
resulta num tratamento relativamente apressado e dogmático. Só posso esperar
isolar alguns aspectos do meu ponto de vista, para os quais meus críticos
fizeram vista grossa ou que puseram de lado, e fornecer motivos para novas
leituras e discussões.

61. Neste volume, p. 35, nota de pé de página n.° 3.


A comparação ponto por ponto de duas teorias sucessivas exige uma
linguagem em que pelo menos as conseqüências empíricas de ambas possam ser
traduzidas sem perda nem alteração. Pelo menos desde o século XVIII, quando
os filósofos supunham a neutralidade dos relatos de sensação pura e buscavam
um “caráter universal” que expusesse todas as linguagens para expressá -las em
uma só, muita gente tem presumido que é fácil encontrar uma linguagem dessa
natureza. Idealmente, o vocabulário primitivo de uma linguagem assim
consistiria em termos de dados-dos-sentidos puros acrescidos de conetivos
sintáticos. Os filósofos agora abandonaram a esperança de alcançar esse ideal,
mas muitos continuam a supor que as teorias podem ser comparadas mediante
recurso a um vocabulário básico que consiste inteiramente em palavras ligadas à
natureza de maneiras não-problemáticas e, na extensão necessária, independentes
da teoria. Esse é o vocabulário em que se estruturam os enunciados básicos de
Sir Karl. Ele o exige a fim de comparar a verossimilha nça de teorias alternativas
ou mostrar que uma é “mais ampla” do que a predeces - sora (ou a inclui).
Feyerabend e tu argumentamos exaustivamente que não se encontra um
vocabulário nessas condições. Na transição de uma teoria para a teoria seguinte
as palavras alteram seus significados ou condições de aplicabilidade de maneiras
sutis. 02 Conquanto a maioria dos mesmos sinais seja usada antes e depois de uma
revolução — como, por exemplo, força, massa, elemento, composto, célula — os
modos com que algumas se ligam à natureza modifica- ram-se um pouco. Por
isso dizemos que as teorias que se sucedem são incomensuráveis.
Nessa escolha do termo “incomensurável” incomodou inúmeros leitores. Se
bem não signifique “incomparável" no campo do qual foi tirado, os críti cos têm
insistido sistematicamente em que não podemos interpretá -lo literalmente, visto
que homens que sustentam teorias diferentes se comunicam e, às vezes, trocam
idéias uns com os outros. (i;! E o que é mais importante, os críticos não raro
passam da existência observada de tal comunicação, que eu mesmo destaquei, à
conclusão de que ela não apresenta problemas essenciais. Toulmin parece con

62. Em seu ensaio intitulado “The Structure of Scientific Revolutions”, de 1964, Shapere
critica, em parte com muita propriedade, o modo com que discuto a mudança de significado
em meu livro. No processo ele me desafia a especificar o “saldo” entre uma mudança de
significado e uma alteração na aplicação de um termo. Devo dizer que, no estado atual da
teoria do significado, não há nenhuma. Pode-se defender o mesmo ponto usando qualquer um
dos termos.

63. Veja, por exemplo, neste voiume, pp. 54-5.

329
tentar-se com admitir “incongruências conceituais” e depois prosse guir como
antes. ,i4 Lakatos insere entre parênteses a frase “ou de reinterpretações
semânticas” quando nos diz como comparar teorias sucessivas e
conseqüentemente trata a comparação como puramente lógica. (ir ’ Sir Karl
exorcisa a dificuldade de um modo que tem um interesse especial: “É apenas
um dogma — um dogma perigoso
— o que estatui que os diversos referenciais são como linguagens mutuamente
intraduzíveis. O fato é que nem línguas totalmente dife rentes (como o inglês e o
hopi, ou o chinês) são intraduzíveis, e que existem inúmeros índios ou chineses
que aprenderam a dominar perfeitamente o inglês.” 66
Aceito a utilidade, aceito até a importância do paralelo lingüís tico e por
isso me estenderei um pouco sobre ele. Presume-se que Sir Karl o aceite
também, visto que se utiliza dele. Se o aceita, o dogma à que faz objeção não é
que os referenciais são como as linguagens, senão que as linguagens são
intraduzíveis. Mas nunca ninguém acreditou que o fossem! O que as pessoas têm
acreditado, e o que toma importante o paralelo, é que as dificuldades para
aprender uma segunda língua diferem das dificuldades da tradução e são muito
menos problemáticas do que elas. Embora precisamos conhecer duas línguas
para poder traduzir o que quer que seja, e embora a tradução sem pre possa ser
levada a cabo até certo ponto, apresenta não raro, graves dificuldades até para o
mais competente poliglota. Ele terá de encontrar os melhores compromissos
disponíveis entre objetivos incompatíveis. Há que preservar os matizes, mas não
ao preço de sentenças tão longas que se rompa a comunicação. A literalidade é
desejável mas deixará de sê-lo se exigir a introdução de muitas palavras
estrangeiras que tenham de ser discutidas separadamente num glos sário ou
apêndice. Para as pessoas profundamente comprometidas com a precisão e com
a felicidade de expressão, ao mesmo tempo, a tradução é penosa, e algumas não
conseguem fazê-la de maneira alguma.
A tradução, em suma, sempre envolve compromissos que alte ram a
comunicação. O tradutor precisa decidir quais são as altera ções aceitáveis. Para
fazê-lo, cumpre-lhe conhecer os aspectos do original que importa preservar e
alguma coisa sobre a cultura e a experiência dos que lerão a sua obra. Não
admira, portanto, que

64. Neste volume, p. 55.


65. Neste volume, p. 146. Talvez apenas em razão de sua excessiva brevidade, a outra
referência de Lakatos a este problema na p. 222, nota n.° 335, é igualmente pouco útil.

66. Neste volume, p. 69.

330
seja hoje uma questão profunda e aberta o saber como seria uma tradução
perfeita, e até que ponto uma traduçã o real pode aproxi- mar-se do ideal. Quine
concluiu recentemente que “sistemas rivais de hipóteses analíticas [para a
preparação de traduções] podem confor mar-se com todas as disposições da fala e
ditar, não obstante, num sem-número de casos, uma tradução inteiramente
diferente... Duas traduções desse tipo talvez sejam até manifestamente contrárias
em valor-de-verdade.” fl7 Não preciso ir muito longe para reconhecer que a
referência à tradução isola os problemas que nos levaram, a Feye rabend e a mim,
a falar em incomensurabilidade, mas não os resolve. Para mim ao menos, a
existência de traduções sugere que esse recurso está à disposição dos cientistas
que esposam teorias incomensuráveis. O recurso, contudo, não precisa ser o
pleno reenunciado numa linguagem neutra das próprias conseqüências das
teorias. Subsiste o problema da comparação de teorias.
Por que a tradução, seja entre teorias, seja entre linguagens, é tão difícil?
Porque, como tem sido freqüentemente observado, as linguagens cortam o
mundo de maneiras diferentes, e não temos acesso a um meio sublingüístico
neutro de relatar. Quine mostra que, embora o lingüista empenhado numa
tradução radical possa descobrir prontamente que o seu informante nativo
pronunciou a palavra “Ga- vagai” por ter visto um coelho, é mais difícil
descobrir como “Gavagai” deve ser traduzido. Deverá o lingüista vertê -la por
“coelho”, “espécie de coelho”, “parte de coelho”, “ocorrência de coelho", ou por
outra expressão que ele talvez nem tenha pensado em formular? Ampliamos o
exemplo supondo que, na comunidade que está sendo examinada, os coelhos
mudam de cor, de comprimento de pelo, de jeito característico de andar, etc.,
durante a estação chuvosa, e que o seu aspecto nessa época gera o termo
“Bavagai'’. Deverá o termo “Bavagai” traduzir-se por “coelho molhado”,
“coelho peludo”, “coelho manco”, tudo isso junto, ou deverá o lingüista concluir
que a comunidade nativa não reconheceu que “Bavagai” e “Gavagai” se referem
ao mesmo animal? A evidência relativa a uma escolha entre as alternativas
emergirá da investigação adicional, e o resultado será uma hipótese analítica
razoável com implicações para a tradução de outros termos também. Mas isso é
apenas uma hipótese (nenhuma das alternativas, há pouco consideradas, precisa
estar certa); o resultado de qualquer erro podem ser dificuldades ulteriores de
comunicação; quando elas ocorrem, não se sabe se o problema é com a tradução
e, assim, onde se encontra a raiz da dificuldade.

67. Quine, Word and Object, 1960, pp. 73 e seguintes.

331
Esses exemplos dão a entender que um manual de tradução encerra
inevitavelmente uma teoria, que oferece os mesmos tipos de recompensa, mas
também tende a correr os mesmos riscos que as de mais teorias. Para mim eles
sugerem também que a classe dos tradutores tanto inclui o historiador da ciência
quanto o cientista que tenta comunicar-se com um colega que abraça uma teoria
diferente. B8 (Note-se, todavia, que os motivos e sensibilidades correlatas dos
cientistas e historiadores são muito diferentes, o que explica inúmeras dife-
renças sistemáticas em seus resultados.) Eles têm com freqüência a vantagem
inestimável de serem idênticos, ou quase, os sinais usados nas duas linguagens,
de funcionar a maioria deles da mesma maneira em ambas as linguagens, e de
haver, onde a função se modificou, razões informativas para conservar o mesmo
sinal. Mas essas vantagens acarretam desvantagens, ilustradas não só no
discurso científico como também na história da ciência. Tornam excessivamente
fácil ignorar as mudanças funcionais, que seriam aparentes se fossem
acompanhadas da mudança de sinais.
O paralelo traçado entre a tarefa do historiador e a do lingüista acentua um
aspecto da tradução com que Quine não lida (nem pre cisa lidar) e que tem
causado transtornos aos lingüistas. 69 Ao ensinar a física aristotélica a
estudantes, mostro sistematicamente que a ma téria (na Física, não na
Metafísica), justamente por causa da sua onipresença e da sua neutralidade
qualitativa, é um conceito fisicamente dispensável. O que povoa o universo
aristotélico, explicando-lhe, a um tempo, a diversidade e a regularidade, são as
“naturezas” ou “essências” imateriais; o paralelo apropriado à tabela periódica
contemporânea não são os quatro elementos aristotélicos, mas o quadrângulo de
quatro formas fundamentais. De maneira semelhante, ao ensinar o
desenvolvimento da teoria atômica de Dalton, assinalo que ela indicava uma
nova concepção da combinação química, disso resultando que a linha que separa
os objetos de referência dos termos “mistura” e “combinação” se modificava; as
ligas eram combinações antes de Dalton, misturas depois. 70 Tais observa

68. Algumas dessas idéias a respeito de tradução foram desenvolvidas em meu


seminário de Princeton. Não posso agora distinguir minhas contribui ções das dos estudantes e
colegas que participaram do citado seminário. Um ensaio da autoria de Tyler Burge foi,
entretanto, particularmente útil.
69. Veja sobretudo Nida, “Linguistics and Ethnology in Translation -Pro- blems”,
1964. Sinto-me muito grato a Sarah Kuhn por haver chamado minha atenção para esse ensaio.

70. Esse exemplo deixa particularmente clara a inadequação da sugestão de Scheffler


de que os problemas levantados por Feyerabend e por mim desa

332
ções fazem parte da minha tentativa de traduzir teorias mais velhas em termos
modernos, e meus alunos interpretavam materiais que deviam ser traduzidos, se
bem já existisse uma tradução inglesa, de maneira caracteristicamente diferente
depois das minhas observações do que o faziam antes. Pela mesma r azão, um
bom manual de tradução, sobretudo para a língua de outra região e cultura, deve
incluir parágrafos discursivos que expliquem como os nativos encaram o mundo
e as espécies de categorias ontológicas que eles desenvolvem. Parte de
aprendizagem da tradução de uma linguagem ou de uma teoria consiste em
aprender a descrever o mundo em que funcionam a linguagem ou a teoria.
Tendo apresentado a tradução para ilustrar a elucidação que se obtém
considerando as comunidades científicas como comunida des de linguagem,
deixo-a agora por alguns momentos a fim de examinar um aspecto
particularmente importante do paralelismo. Ao aprender uma ciência ou uma
linguagem, adquire-se via de regra o vocabulário juntamente com uma bateria de
generalizações que o apresentam aplicado à natureza. Em nenhum caso, porém,
as generalizações encerram mais que uma fração do conhecimento da natu reza
adquirido no processo de aprendizagem. Grande parte dele está encerrado no
mecanismo, seja este qual for, que se usa para ligar os ter mos à natureza. Tanto
a linguagem natural quanto a científica se destinam a descrever o mundo como
ele é, e não o mundo que se pode conceber. É verdade que a primeira se adapta à
ocorrência inesperada com maior facilidade do que a última mas. muitas vezes, à
custa de longas sentenças e uma sintaxe dúbia. Coisas que não podem ser ditas
prontamenlè numa linguagem são coisas que os que a falam esperam não
precisar dizer. Se nos esquecemos disso ou lhe subestimamos a importância é
provavelmente porque o inverso não funciona. Podemos descrever prontamente
muitas coisas (unicórnios, por exemplo) que não esperamos ver.

parecem quando se substitui a igualdade-de-significado pela igualdade-de-refe- rência


(Scheffler, Science and Subjectivity, 1967, capítulo 3). Seja qual for, a referência de
“composto” neste exemplo se modifica. Mas, como o indicará a discussão seguinte, a
igualdade-de-referência não está mais livre de dificuldade do que a igualdade -de-significado
em qualquer uma das aplicações que nos interessam, a mim e a Feyerabend. Será a referência
de “coelho” a mesma de "tipo de coelho” ou de “ocorrência de coelho"? Considerem -se os
critérios de individuação e auto-identidade que se ajustam a cada um dos termos.

71. Sobre um exemplo extenso, veja meu ensaio de 19 64, intitulado “A Function for
Thought Experiments”. Uma discussão mais analítica será encontrada em meu outro ensaio,
este de 1972, subordinado ao título “Second Thoughts on Paradigms”.

333
Como, então, adquirimos o conhecimento da natureza que está ins erido na
linguagem? Quase sempre pelas mesmas técnicas e ao mesmo tempo que
adquirimos a própria linguagem, cotidiana ou científica. Partes do processo são
bem conhecidas. As definições de um dicionário dizem-nos alguma coisa a
respeito do que significam as palavras e simultaneamente nos informam dos
objetos e situações a cujo respeito podemos precisar ler ou falar. No que
concerne a algumas dessas palavras aprendemos mais, e no que concerne a ou -
tras tudo o que sabemos, ao encontrá-las numa infinidade de sentenças. Em tais
circunstâncias, como o demonstrou Carnap, adquirimos leis da natureza e um
conhecimento de significados. Com uma defi nição verbal de dois testes, ambos
definitivos, da presença de uma carga elétrica, aprendemos não só o que é
possível saber sobre o termo “carga” mas também que um corpo que passa por
um teste passará também pelo outro. Tais processos de aprendizagem da na -
tureza da linguagem são, contudo, puramente lingüísticos. Relacionam umas
palavras com outras e, assim, só funcionarão se já possuirmos um vocabulário
adquirido por um processo não-verbal ou incompletamente verbal. É presumível
que essa parte da aprendizagem se faça por ostensão ou por algum
desenvolvimento dela, a correspondência direta de palavras ou frases inteiras
com a natureza. Se Sir Karl e eu travamos uma disputa filosófica fundamental,
esta gira em torno da importância do último tipo de aprendizagem da natureza e
da linguagem para a filosofia da ciência. Embora saiba que muitas palavras de
que os cientistas precisam, em especial para a formulação de sentenças básicas,
são aprendidas por um processo não totalmente lin güístico, ele trata esses termos
e o conhecimento adquirido com eles como não-problemáticos, pelo menos no
contexto da escolha das teorias. Tenho para mim que Sir Karl passa por alto um
ponto pun- damental, o mesmo que me levou a apresentar a noção de paradigmas
em minhas Scientific Revolutions.
Quando falo em conhecimento engastado em termos e frases aprendidas
por um processo não-lingüístico como a ostensão, estou defendendo o mesmo
ponto que meu livro visava defender por meio de reiteradas referências ao papel
dos paradigmas como soluções concretas de problemas, objetos exemplares de
uma ostensão. Quando digo que esse conhecimento é importante para a ciência e
para a construção de teorias, estou identificando o que a Srta. Masterman
acentua acerca de paradigmas ao afirmar que eles “podem funcionar quando a
teoria não está presente”. 72 Não é provável, no entanto,

72. Neste volume, p. 80.

334
que esses laços se tornem aparentes para quem quer que tenha levado a noção de
paradigma menos a sério do que a Srta. Masterman, pois, como ela própria
enfatiza com muita propriedade, tenho usado o ter mo de maneiras diferentes.
Para descobrir qual é a maneira atual, farei uma breve digressão a fim de
desenredar confusões, neste caso de minha exclusiva responsabilidade.
Na Seção 4, acima, observei que uma nova versão das minhas Scientific
Revolutions começaria com uma discussão da estrutura da comunidade. Tendo
isolado um grupo de especialistas individuais, eu perguntaria em seguida o que
foi que seus membros partilharam e que lhes permitiu solucionar enigmas e lhes
explicou a relativa unanimidade na escolha de problemas e na avaliação de
soluções de problemas. Uma das respostas que meu livro sugere para essa per -
gunta é “um paradigma” ou “um conjunto de paradigmas”. (Este é o sentido
sociológico do termo da Srta. Masterman.) Eu preferiria agora empregar outra
expressão, talvez “matriz disciplinar”: “disciplinar” por ser comum aos que
praticam uma disciplina especificada; e “matriz” por consistir em elementos
ordenados que requerem especificação individual. Todos os objetos de
compromisso descritos em meu livro como para digmas, partes de paradigmas ou
paradigmáticos encontrariam um lugar na matriz disciplinar, mas não seriam
reunidos como paradigmas, individual ou coletivamente. Entre eles haveria:
generalizações simbólicas partilhadas, como “/ = ma", ou “elementos se
combinam em constante proporção pelo peso”; mo delos partilhados, quer
metafísicos, como o atomismo, quer heurísticos, como o modelo hidrodinâmico
do circuito elétrico; valores partilhados, como o destaque dado à precisão da
predição, discutida acima; e outros elementos desse gênero. Entre os últimos, eu
enfatizaria em particular as soluções de problemas concretos, os tipos de
exemplos comuns de problemas solucionados que os cientistas encontram em
laboratórios enquanto estudantes, nos problemas que rematam capítulos de
textos científicos e nos exames. Se pudesse, eu chamaria paradigmas a essas
soluções de problemas, pois foram elas que me levaram a escolher o termo em
primeiro lugar. Tendo, porém, perdido o controle da pa lavra, eu os descreverei,
daqui por diante, como exemplares. 7:i

73. Esta modificação e quase tudo o mais do que resta neste ensaio são discutidos com
maiores detalhes e com maior evidência em meu ensaio de 1972, "Second Thoughts on
Paradigms”. Remeto a ele os leitores até para referências bibliográficas. Cabe aqui, no
entanto, um reparo adicional. A alteração que acabo de esboçar em meu texto priva -me do
recurso às expressões “período pré-paradigmático” e “período pós-paradigmático" quando
descrevo

335
De ordinário, as soluções de problemas desta espécie são vistas
como meras aplicaçõ es da teoria já aprendida. O estudante as faz
para praticar, para adquirir facilidade no emprego do que já sabe.
Essa descrição é válida, sem dúvida, depois que tiver sido resolvido
um número suficiente de problemas, mas nunca no começo. Resolver
problemas é aprender a linguagem de uma teoria e adquirir o conhe -
cimento da natureza imerso nessa linguagem. Em mecânica, por
exemplo, muitos problemas envolvem aplicações da Segunda Lei de
Newton, normalmente enunciada como “/ = ma". Essa expressão
simbólica, no entanto, é mais o esboço de uma lei do que uma lei.
Precisa ser reescrita numa forma simbólica diferente a cada problema
especial antes que se lhe apliquem a dedução lógica e a matemática.

Para a queda livre ela se torna md²s


mg = ______; para o pêndulo é mg
dt²

mg d²Ø para osciladores harmônicos conjugados


Sen Ø = — ml ______;
dt²
transforma-se em duas equações, a primeira das quais pode ser escrita da seguinte
maneira:

e assim por diante.

Como me falta espaço para desenvolver um argumen to, limitar- me-ei a


afirmar que os físicos compartilham de poucas regras, explí citas ou implícitas, com
as quais operam a transição do esboço de lei para as formas simbólicas específicas
exigidas pelos problemas individuais. Ao invés disso, a exposição a uma série de
soluções de problemas exemplares os ensina a ver diferentes situações físicas co -

a maturação de uma especialidade científica. Visto retrospectivamente, isto me parece


muito bom, pois em ambos os sentidos do termo, todas as comunidades cientí ficas sempre
possuíram paradigmas, incluindo as escolas do que deno minei anteriormente “período
pré-paradigmático”. O fato de não ter eu podido ver antes esse ponto ajudou por certo a
dar ao paradigma um aspecto de entidade ou propriedade quase mística, q ue, como o
carisma, transforma os que ele contamina. Note -se, contudo, como o indica a Seção 3, que
essa alteração na terminologia não modifica de maneira alguma minha descrição do
processo de maturação. Os primeiros estádios do desenvolvimento da maioria das ciências
caracterizam-se pela presença dc certo número de escolas con correntes. Mais tarde,
geralmente em decorrência de uma notável realização científica, todas essas escolas, ou o
maior número delas, desaparecem, e a mudança faculta aos membros da comunidade
restante um comportamento profissional muito mais vigoroso. As observações da Srta.
Masterman (mais acima, pp. 85-88) sobre todo esse problema me portem muito válidas.

336
mo parecidas umas com as outras; elas são vistas, se vocês quiserem, numa
gestalt newtoniana. Depois que os estudantes adquirem a capacidade de ver
assim certo número de situações de problemas, podem escrever ad libitum as
formas simbólicas exigidas por outras situações dessa natureza à medida que
surgem. Antes de tal aquisição, entretanto, a Segunda Lei de Newton era para
eles pouco mais que uma seqüência de símbolos não interpretados. Embora a
partilhassem, não sabiam o que significava e ela, portanto, pouco lhes dizia a
respeito da natureza. Mas o que ainda lhes restava aprender não se achava
incorporado em formulações simbólicas adicionais. Isso se logrou através de um
processo como a ostensão, a exposição direta a uma série de situações, todas
newtonianas.
Ver situações de problemas semelhantes umas às outras, sujeitas à
aplicação de técnicas similares, é também parte importante do tra balho científico
normal. Vejamos um exemplo ilustrativo. Galileu descobriu que uma bola que
rola por um plano inclinado adquire exatamente a velocidade suficiente para
voltar à mesma altura vertical num segundo plano inclinado de inclinação
qualquer, e aprendeu a ver essa situação experimental como semelhante ao
pêndulo cujo peso é a massa de um ponto. Huyghens então resolveu o problema
do centro de oscilação de um pêndulo físico imaginando o corpo estendido deste
último composto de pêndulos de pontos de Galileu, cujos elos poderiam ser
liberados em qualquer ponto da oscilação. Liberados os elos, os pêndulos de
pontos individuais oscilariam livremente, mas o seu centro coletivo de
gravidade, quando cada qual estivesse no ponto mais alto, estaria a uma altura
que seria igual à altura do centro de gravidade do pêndulo primitivo quando este
começou a cair. Finalmente, Daniel Bernoulli, ainda sem nenhuma aju da das
Leis de Newton, descobriu como fazer que o fluxo de água de um orifício no
tanque de armazenagem se assemelha ao pêndulo de Huyghens. Determina -se a
descida do centro de gravidade da água no tanque e do jato durante um período
infinitesimal de tempo. Ima- gine-se, a seguir, que cada partícula de água se
move separadamente para cima até alcançar à máxima altura com a velocidade
que possuía no fim do intervalo de descida. A subida do centro de gravidade das
partículas separadas deve então igualar a descida do centro de gra vidade da água
no tanque e do jato. Dessa visão do problema seguiu- se de pronto a longamente
procurada velocidade do efluxo. Esses exemplos mostram o que a Srta.
Masterman tem em mente quando diz que um paradigma é fundamentalmente um
artefato que transforma problemas em enigmas e permite que sejam resolvidos
até na ausência de um corpo adequado de teoria.

337
Está claro que estamos de volta à linguagem e a sua ligação com a
natureza? Somente uma lei foi usada em todos os exemplos precedentes.
Conhecida como o Princípio da vis viva, era geralmente enunciada como “A
descida real iguala a subida potencial”. O exa me dos exemplos é uma parte
essencial (embora apenas uma parte) da aprendizagem do que significam
individual e coletivamente as palavras dessa lei, ou da aprendizagem do modo
com que se ligam à natureza. É igualmente uma parte da aprendizagem de como
se comporta o mundo. As duas não podem separar-se. O mesmo papel duplo
representam os problemas dos compêndios em que os estu dantes aprendem, por
exemplo, a descobrir forças, massas, acelera ções na natureza, e no processo
descobrem o que significa “/ = ma” e como se liga à natureza e legisla sobre ela.
É claro que em nenhum desses casos os exemplos funcionam sozinhos. O
estudante precisa conhecer matemática, um pouco de lógica e, acima de tudo, a
linguagem natural e o mundo a que ela se aplica. Mas o último par foi aprendido
em extensão considerável, da mesma maneira, por uma série de ostensões que o
ensinaram a ver sua mãe sempre igual a si mesma e diferente de seu pai e da
irmã, e que o ensinaram a ver cães semelhantes uns aos outros e diferentes dos
gatos, etc. Essas relações aprendidas de similaridade são as que todos
desenvolvemos dia após dia, não-problematicamente, mas sem poder nomear as
características pelas quais fazemos as identificações e discriminações. Isto é,
são anteriores a uma lista de critérios que, reunidos numa ge neralização
simbólica, nos permitiriam definir nossos termos. São, antes, partes de um modo
de ver o mundo condicionado pela lingua gem ou correlacionado com ela.
Enquanto não as tivermos adquirido, não veremos mundo algum.
Sobre um relato menos apressado e mais desenvolvido desse aspecto do
paralelo entre a teoria e a linguagem remeterei os leitores ao ensaio
anteriormente citado do qual foi tirada muita coisa que figura nos último
parágrafos. Entretanto, antes de voltar ao problema da escolha de teorias,
preciso pelo menos expor o ponto principal defendido, por aquele ensaio.
Quando falo em aprendizagem da linguagem e da natureza por ostensão e,
sobretudo, quando falo em aprendizagem do agrupamento dos objetos de
percepção em conjuntos de similaridade sem responder a perguntas como,
“semelhante com respeito ao quê?”, não me refiro a algum processo místico que
possa ser coberto pelo rótulo de “intuição” para ser depois deixado em paz. Ao
contrário, a espécie de processo que tenho em mente pode ser modelado num
computador e, assim, comparado com o modo mais familiar de aprendizagem
que recorre a critérios, em lugar

338
de recorrer a uma relação aprendida de similaridade. Estou agora nos primeiros
estágios desse tipo de comparação, e espero, entre outras coisas, descobrir algo a
respeito das circunstâncias em que cada uma das duas estratégias opera com
maior eficácia. Em ambos os programas o computador receberá uma série de
estímulos (modelados como conjuntos ordenados de números inteiros)
juntamente com o nome da classe em que cada estímulo f oi escolhido. No
programa de aprendizagem do critério a máquina recebe instruções para abstrair
critérios que lhe permitam classificar estímulos adicionais e pode, depois,
descartar-se do conjunto original com o qual aprendeu a fazer o serviço. No
programa de aprendizagem da similaridade, a máquina, ao invés disso, recebe
instruções para reter todos os estímulos e clas sificar cada estímulo novo através
de uma comparação global com os exemplares reunidos que já encontrou. Ambos
os programas funcionarão, mas não darão resultados idênticos. Diferem em
muitos dos mesmos modos e por muitas das mesmas razões por que a jurispru -
dência difere da lei codificada.
Uma das minhas afirmativas, portanto, é que nós ignoramos durante muito
tempo a maneira com que o conhecimento da natureza pode ser tacitamente
incorporado em experiências totais sem que in- tervenha a abstração de critérios
ou de generalizações. Tais experiências nos são apresentadas no correr da
educação e da iniciação profissional por uma geração que já as conhece como
exemplares. Assimilando um número suficiente de exemplares, aprendemos a re -
conhecer e a trabalhar com o mundo com que nossos professores já estão
familiarizados. Minhas principais aplicações anteriores dessa afirmação têm
sido, naturalmente, à ciência normal e à maneira com que ela é alterada pelas
revoluções, mas vale a pena notar aqui uma aplicação adicional. O
reconhecimento da função cognitiva de exem plos também pode remover a eiva
de irracionalidade de minhas observações anteriores a propósito das decisões
que descrevi como tendo uma base ideológica. Em face de exemplos do que faz
uma teoria científica e obrigados por valores partilhados a continuar fazendo
ciência, não precisamos de critérios para descobrir que alguma coisa saiu err ada
ou para fazer escolhas em caso de conflito. Ao contrário, embora ainda me falte
uma prova cabal, acredito que uma das diferenças entre meus programas de
similaridade e meus programas de critérios será a eficiência especial com que os
primeiros lidam com situações dessa ordem.
Levando em conta essas observações, voltemos afinal ao pro blema da
escolha de teorias e ao recurso oferecido pela tradução.

339
Uma das coisas de que depende a prática da ciência normal é a ca pacidade
aprendida de agrupar objetos e situações em classes primitivas de similaridade,
primitivas no sentido de que o agrupamento se faz sem responder à pergunta,
“similar em relação ao quê?” Um aspecto de todas as revoluções é que, nesse
caso, mudam algumas relações de similaridade. Objetos que estavam antes
agrupados no mesmo conjunto agrupam-se depois em conjuntos diferentes e
vice- -versa. Pensem no Sol, na Lua, em Marte e na Terra antes e depois de
Copérnico; na queda livre, no movimento pendular e no movimento planetário
antes e depois de Galileu; ou em sais, ligas e numa mistura de enxofre e
limalhas de ferro antes e depois de Dalton. Visto que a maioria dos objetos até
mesmo dentro dos conjuntos alterados continua a ser agrupada junta, preservam-
se em geral os nomes dos conjuntos. Não obstante, a transferência de um
subconjunto pode influir crucialmente na trama de relações recíprocas entre os
conjuntos. A transferência dos metais do conjunto da combustão, da acidez e da
diferença entre a combinação física e a química. Essas mudan ças se espalharam
imediatamente por todo o campo da química. Quando ocorre uma redistribuição
dessa natureza de objetos entre conjuntos de similaridade, dois homens cujo
discurso se processou por algum tempo com uma compreensão aparentemente
total poderão ver-se, de repente, respondendo ao mesmo estímulo com descri -
ções ou generalizações incompatíveis. Só porque nenhum deles pode dizer,
então, “Emprego a palavra elemento (ou mistura, ou planeta, ou movimento
irrestrito) em obediência a tais e tais critérios”, a origem do colapso da
comunicação entre eles poderá ser extraordi nariamente difícil de isolar e
contornar.
Não quero dizer que não haja um recurso em situações seme lhantes, mas
antes de perguntar que tipo de recurso é esse, seja -me permitido enfatizar a
profundidade que soem apresentar tais diferenças. Elas não dizem respeito
apenas a nomes ou à linguagem, mas também e inseparavelmente à natureza.
Não podemos dizer sequer com segurança que os dois homens vêem a mesma
coisa e possuem os mesmos dados, mas os identificam ou interpretam de
maneira diferente. O que estão respondendo diferentemente são estímulos, e os
estímulos recebem muito processamento nervoso antes de alguma coisa ser vista
ou algum dado ser oferecido aos sentidos. Visto sa bermos agora (o que
Descartes não sabia) que a correlação entre o estímulo e a sensação não é
biunívoca nem independe da educação, podemos razoadamente suspeitar que ela
varia entre uma comunidade e outra, correlacionando-se a variação com as
diferenças corres

340
pondentes na interação entre a natureza e a linguagem. As espécies de colapsos
da comunicação que agora estão sendo consideradas são provavelmente
evidência de que os homens envolvidos processam cer tos estímulos de maneira
diferente, recebendo deles dados diferentes, vendo coisas diferentes ou as
mesmas coisas diferentemente. Eu mesmo considero provável que muita coisa do
agrupamento de estímulos em conjuntos de similaridade, ou todo ele, ocorre na
porção estímulo- -para-sensação do nosso aparelho de processamento nervoso;
que a programação educacional desse aparelho ocorre quando nos são apre -
sentados estímulos que nos afirmam emanar de membros da mesma classe de
similaridade; e que, completada a programação, reconhece mos, digamos, gatos e
cães (ou coligimos forças, massas e coerções) porque eles (ou as situações em
que aparecem) se assemelham, pela primeira vez, aos exemplos que vimos antes.
Apesar disso, é necessário que haja um recurso. Conquanto não tenham
acesso direto a eles, os estímulos a que r espondem os participantes do colapso
da comunicação são os mesmos, sob pena de soli- psismo. Como é o mesmo o
seu aparelho nervoso geral, por mais di ferente que seja a programação. Além
disso, com exceção de uma área de experiência pequena, mas important íssima, a
programação precisa ser a mesma, pois os homens envolvidos compartem de
uma história (excetuando-se o passado imediato), de uma linguagem, de um
mundo cotidiano e, em sua maioria, de um mundo científico. Co nhecendo o que
partilham, podem descobrir muita coisa tocante às suas diferenças. Pelo menos
poderão fazê-lo se tiverem suficiente vontade, paciência e tolerância da
ambigüidade ameaçadora, características que, em assuntos desse tipo, não podem
ser consideradas necessariamente verdadeiras. Com efeito, as espécies de
esforços terapêuticos, para os quais me volto agora, raro são levados muito
longe por cientistas.
Em primeiro lugar, e o que é mais importante, os homens que
experimentam o colapso da comunicação podem descobrir por expe riência — às
vezes pela experiência do pensamento, ciência de pol trona — a área em que ele
ocorre. Muitas vezes o centro lingüístico da dificuldade envolve um conjunto de
termos, como elemento e composto, que ambos os homens desenvolvem de
maneira não-problemá- tica, mas que ligam à natureza, como pode ser visto
agora, de maneiras diferentes. Para cada um deles, estes termos pertencem a um
vocabulário básico, pelo menos no sentido de que o seu uso normal intragrupal
não gera discussões, nem pedidos de explicações, nem divergências. Tendo
descoberto, porém, que para a discussão intergrupal essas pa

3 41
lavras são o centro de dificuldades especiais, nossos homens recorrem aos
vocabulários cotidianos partilhados numa tentativa adicional de elucidar
dificuldades. Isto é, cada qual tenta descobrir o que outro veria e diria quando se
lhe apresentasse um estímulo ao qual sua res posta visual e verbal fosse
diferente. Com tempo e habilidade, eles podem aprender muito sem a predizer a
conduta do outro, coisa que o historiador aprende a fazer (ou deveria aprender)
quando lida com teorias científicas mais velhas.
O que os participantes de um colapso da comunicação descobri ram,
naturalmente, foi um modo de traduzir a teoria um do outro em sua própria
linguagem e, simultaneamente, descrever o mundo a que essa teoria ou essa
linguagem se aplicam. Sem dar, ao menos, alguns passos preliminares nessa
direção, não haveria processo que nos sentiríamos sequer tentados a descrever
como escolha de teorias. A única coisa que estaria envolvida seria a conversão
arbitrária (se bem eu duvide da existência de uma coisa dessas em qualquer
aspecto da vida). Note-se, contudo, que a possibilidade de tradução não torna
inadequado o termo “conversão”. Na ausência de uma linguagem neutra, a
escolha de uma nova teoria é a decisão para adotar uma linguagem nativa
diferente e desenvolvê-la num mundo correspondentemente di ferente. A essa
espécie de transição, entretanto, não se ajustam muito bem os termos “escolha”
e “decisão”, embora sejam claras as razões para desejar aplicá-los após a
transição. Explorando uma teoria alter nativa por meio de técnicas como a que
acima se esboçou, é provável descobrirmos que já a estamos usando (como
notamos, de repente, que estamos pensando numa língua estrangeira, e não a
estamos traduzindo). Em ponto algum tivemos consciência de haver chegado a
uma decisão, de haver feito uma escolha. Esse tipo de mudança, no entanto, é
conversão, e as técnicas que a induzem bem podem sei descritas como
terapêuticas, ainda que seja só por ficarmos sabendo, quando dão certo, que
estávamos doentes. Não admira que haja resistência às técnicas e que a natureza
da mudança seja disfarçada em relatos subseqüentes.

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343
Este livro foi impresso pela
ED1PE Artes Gráficas, Rua Domingos
Paiva, 60 — São Paulo.
WITTGENSTE1N, LINGUAGEM E FILOSOFIA * —
Warren Shibles

ESTÉTICA, PSICOLOGIA F. RELTGIAO —


W ingcnstein

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO
FILOSÓFICO — Kiirl Jaspers

FILOSOFIA: ORIENTE E OCIDENTE* — Charles A


Moore

OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRATICOS —
Gerd A. Bornheim

ENSAIOS FILOSÓFICOS — Susanne K. Langer

DIÁLOGOS — Platão

A FILOSOFIA ATRAVÉS DOS TEXTOS —


Alexandre Caballero

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* Co-edlção com a Editora da USI

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EDITORA CULTRIX
Rua Conselheiro Furtado, 648 fone 278-4811, 01511
São Paulo, SP

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