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Paulo - + sociedade - Francis Fukuyama: O choque entre Islã e modernização 22/07/16 22:06

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São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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+ sociedade

por Francis Fukuyama

O cientista político contesta idéia do ensaísta Samuel


Huntington e afirma que é preciso desvincular da
tradição ocidental a noção de direitos humanos

O choque entre Islã e modernização


Dez anos atrás, Samuel Huntington afirmou que as linhas
falhas da política mundial na era pós-Guerra Fria são
principalmente culturais -um "choque de civilizações"
definido por cinco ou seis grandes regiões culturais que
podem às vezes coexistir, mas nunca convergirão, porque
carecem de valores comuns. Uma aplicação desse argumento
é que os atentados terroristas de 11 de setembro e a resposta
liderada pelos EUA devem ser considerados parte de uma
grande luta civilizacional entre o islã e o Ocidente. Outra é
que o que nós, ocidentais, consideramos que direitos
humanos universais são simplesmente um produto da cultura
européia e não se aplicam aos que não compartilham essa
tradição particular. Acredito que Huntington está errado em
ambos os casos. V.S. Naipaul, recentemente premiado com o
Nobel de literatura, certa vez escreveu um artigo intitulado
"Nossa Civilização Universal". Muito apropriado. Afinal,
Naipaul é um autor de origem indiana que cresceu em
Trinidad e Tobago. Ele afirmou não apenas que os valores
ocidentais são aplicáveis entre as culturas mas que ele deve
suas conquistas literárias exatamente a essa universalidade
permitida pelo cruzamento dos supostos limites
civilizacionais de Huntington. A universalidade é igualmente
possível em termos mais amplos, porque a força básica da
história humana e da política mundial não é a pluralidade
cultural, mas o progresso geral da modernização, cujas
expressões institucionais são a democracia liberal e a
economia orientada pelo mercado.

Ação de resistência
O atual conflito não faz parte de um choque de civilizações

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no sentido de que estamos lidando com regiões culturais de


posição equivalente; sobretudo é sintomático de uma ação de
resistência dos que são ameaçados pela modernização e,
portanto, por seu componente moral, o respeito aos direitos
humanos. Virtualmente todo direito que é ou foi afirmado
historicamente depende de uma de três autoridades: Deus, o
homem ou a natureza. A fonte original dos direitos, Deus ou
a religião, foi rejeitada no Ocidente desde o início do
Iluminismo. O "Segundo Discurso sobre o Governo", do
filósofo inglês John Locke (1632-1704), começa com uma
longa polêmica contra a defesa do direito divino dos reis por
Robert Filmer. Em outras palavras, o secularismo da
concepção ocidental dos direitos está na raiz da tradição
liberal. Hoje essa parece ser a principal linha divisória entre
o islã e o Ocidente, porque muitos muçulmanos rejeitam o
Estado secular. Mas, antes de endossarmos a idéia de um
choque de civilizações irredutível, devemos considerar por
que o liberalismo secular moderno surgiu no Ocidente. Não é
por acaso que as idéias liberais surgiram nos séculos 16 e 17,
quando sangrentas lutas entre seitas cristãs em toda a Europa
demonstraram a impossibilidade de um consenso religioso
sobre o qual basear o governo político. Hobbes, Locke e
Montesquieu reagiram a horrores como a Guerra dos 30
Anos afirmando que a religião e a política deveriam ser
separadas, principalmente para garantir a paz civil.

O dilema islâmico
O islamismo hoje enfrenta um dilema semelhante. Iniciativas
para unir política e religião estão dividindo os muçulmanos
assim como dividiram os cristãos na Europa. Nossos
políticos têm razão (e não apenas senso de oportunidade)
quando insistem que o atual conflito não é com o islã -uma fé
extremamente heterogênea, que não reconhece uma fonte
autorizada de interpretação doutrinária. A intolerância e o
fundamentalismo são uma opção para os muçulmanos, mas o
islã sempre teve de lutar com a questão do secularismo e a
necessidade de tolerância religiosa, como fica evidente na
atual fermentação reformista no Irã teocrático.
A segunda fonte de direitos -a visão essencialmente
positivista de que toda coisa que uma sociedade declare
como direito por meio de um dispositivo constitucional
torna-se de fato um direito- tampouco fornece garantias para
tendências liberalizantes, pois leva ao relativismo cultural.
Se, como afirma Huntington, os direitos que afirmamos no
Ocidente surgiram unicamente da crise política do
cristianismo europeu depois da Reforma protestante, o que
significa impedir outras sociedades de apelar a suas próprias
tradições locais para negar esses direitos? O governo chinês
é muito adepto da manipulação dessa questão.
A última fonte de direitos é a natureza. Na verdade, a
linguagem dos direitos naturais -defendida enfaticamente nos
Estados Unidos no século 18- continua moldando nosso
discurso moral. Quando dizemos, por exemplo, que a raça, a
etnia, a riqueza e o gênero são características não-essenciais,
isso obviamente implica que acreditamos na existência de
um substrato de "humanidade" que nos habilita à proteção

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igual contra certos tipos de comportamento de outros grupos


ou Estados. Essa crença é o motivo último para rejeitar
argumentos culturais que subordinariam algumas pessoas de
uma sociedade -as mulheres, por exemplo.
Além disso, a disseminação das instituições democráticas em
contextos não-europeus durante as últimas décadas do século
20 sugere que nós, ocidentais, não estamos sós nessa crença.
Mas, se os direitos humanos são de fato universais,
deveríamos exigir sua implementação em toda parte e em
qualquer momento? Aristóteles afirma em sua "Ética a
Nicômaco" que as regras naturais da justiça existem, mas sua
aplicação exige flexibilidade e prudência. Essa visão
permanece válida hoje. Devemos distinguir entre uma crença
teórica na universalidade dos direitos humanos e a prática
real da defesa dos direitos humanos em todo o mundo, pois
nossa "humanidade" comum é moldada em diversos
ambientes sociais, de modo que temos diferentes percepções
dos direitos.
Em muitas sociedades tradicionais, onde as opções e
oportunidades de vida são limitadas, a visão ocidental
individualista dos direitos é muito perturbadora. Isso ocorre
porque a concepção ocidental não pode ser abstraída do
processo maior da modernização. Argumentar de outro modo
é colocar o carro na frente dos bois, pois nosso
comprometimento com a universalidade dos direitos
humanos constitui apenas uma parte do complexo contexto
de uma civilização universal, da qual não se pode excluir
uma compreensão dos outros elementos das sociedades
modernas -justiça econômica e democracia política.

Francis Fukuyama é professor de economia política internacional na


Universidade Johns Hopkins (EUA) e autor de, entre outros, "O Fim da
História e o Último Homem" (ed. Rocco).
Copyright: Project Syndicate/Forum 2000.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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